O conceito de história no século XVIII brasílico: o artigo de Mara Cristina de Matos Rodrigues.

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O conceito de história no século XVIII brasílico: o artigo de Mara Cristina de Matos Rodrigues. Mara Cristina de Matos Rodrigues. "A configuração do tempo nos textos da Academia do Esquecidos: apontamentos sobre historiografia dos séculos XVIII". In Silva, Nicolazzi, Pereira (Org.). Contribuições à História da Historiografia Lusobrasileira. Hucitec. 2014.

Uma das fraquezas das novas gerações de historiadores é o descaso a que geralmente relegam o enfrentamento organizado e crítico da literatura especializada. Seja por cálculo cordial, seja pelas dificuldades em função do volume vertiginoso de textos, seja ainda pela fragilidade do questionário da investigação, o fato é que são cada vez mais raros balanços historiográficos rigorosos e exaustivos. Tanto para aqueles que sabem o valor desse esforço, quanto para os que querem aprender como fazê-lo, o artigo de Mara Rodrigues é exemplar. O texto começa apontando a carência de pesquisas sobre a historiografia setecentista, obscurecida pela centralidade que o século XIX e o IHGB têm na literatura especializada. Salienta que, nesse aspecto, os estudos literários possuem um arquivo mais rico, citando os trabalhos de João Adolfo Hansen e Alcir Pécora como exemplos de uma tradição de pesquisas sobre a produção intelectual letrada dos séculos XVII e XVIII. Reconhece que, mais recentemente, esse cenário vem mudando, com trabalhos de historiadores como Iris Kantor, João Paulo Pimenta, Taíse Quadros da Silva e Eduardo Sinkevisque. A lista não é completa - lembraria, de pronto, de artigo de Fernando Nicolazzi sobre as dissertações acadêmicas e do mestrado de Pedro Telles Silveira - mas é suficiente e representativa para o problema que a autora enfrenta. O problema é a natureza da experiência da história disponível e transformada nessa primeira metade de século XVIII brasílico. Como bem descreve Rodrigues,

se em abordagens como a de Hansen predomina uma visão de continuidade dos padrões teológico-retóricos do século XVII, reagindo assim a uma historiografia nacionalista que procurou as origens do nacional, e do moderno, em qualquer vestígio do passado brasílico; estudos mais recentes de historiadores como Kantor e Pimenta apontam para elementos de transformação da experiência colonial visíveis nessa conjuntura. Anterior ao marco "clássico" do momento pombalino de 1850 e a sociedade dita "tradicional" do século XVII, essa primeira metade de século XVIII apareceria indecidida. Não faria sentido recuperar cada lance da argumentação, afinal, esse texto é um convite à leitura do artigo. Gostaria apenas de destacar algumas conclusões da autora ao por em diálogo detalhado os argumentos de Hansen e Kantor. Para Rodrigues, a fusão dos protocolos retóricos com o providencialismo luso são visíveis e estruturais nas dissertações e textos produzidos pelos "esquecidos", o que poderia, segundo ela, reforçar o argumento pela continuidade, para alguns, do "arcaísmo", da experiência das academias. Por outro lado, mesmo discordando de pontos importantes do argumento de Kantor, não recusa a possibilidade de serem encontrados elementos que evidenciem, por exemplo, um encurtamento do horizonte de expectativa, quando o passado exemplar deixa de ser primordialmente o clássico-antigo e se desloca para a própria história "americana", argumento desenvolvido por João Paulo Pimenta. Ou ainda, quando no "história natural" podemos encontrar, nessas fontes, indícios claros de uma perda de autoridade dos Antigos, reencenando, em território colonial, elementos das "querelas" antigos versus modernos. Esse ponto talvez seja uma oportunidade para pensarmos sobre as diferenças entre "história retórica", "mestra da vida" e "exemplaridade". Alguma vezes se entende a expressão "mestra da vida" como metonímia de uma concepção não moderna de história e, por derivação, Antiga, no sentido de própria da Antiguidade greco-romana, que poderia então ter se estendida ao longos dos séculos. Outra vezes, essa concepção "antiga" é definida pelo preceito do "aprender com a história" e da "exemplaridade", o que certamente gera inúmeras imprecisões e ruídos no debate, pois a tipologia montada, por exemplo, por Koselleck, não está assentada em nenhum desses elementos isoladamente, mas na interação de um conjunto de transformações sócioconceituais. Se não podemos definir uma concepção "antiga" homogênea de história, muito menos poderíamos supor a sua "continuidade" imóvel ao longo dos séculos e, em especial, a partir do Renascimento.

Ao mesmo tempo, é difícil recusar o fato de que uma concepção inédita de tempo histórico surge e vai se tornando um fato incontornável em algum momento que podemos mapear com relativa segurança entre 1700 e 1850. Assim, mais do que opor "antigo" em sentido clássico, ou mesmo, "arcaico", à "moderno", precisamos pensar a configuração própria de cada momento e, ao mesmo tempo, a sua dinâmica. Dito de outra forma, a história do surgimento do campo moderno de experiência é um processo, como qualquer outro, de continuidades e rupturas, mas também de reconfiguração qualitativa da experiência. Se é relativamente fácil identificar elementos "antigos" no mundo moderno, afinal, fazem parte de um repertório cultural herdado, o contrário requer maior esforço, ou seja, identificar uma concepção processual-evolutiva de história como estrutura social difundida na antiguidade, o que não significa que não possamos encontra elementos desse processo, se o entendemos tipologicamente como afastamento entre experiência e expectativa. Na experiência de tempo moderno houve e há lugar para elementos que geralmente poderiam ser caracterizados como "antigos" ou "arcaicos", tais como o aprendizado com a história, a exemplaridade e o recurso à "Providência", sem que isso indique uma sobrevivência equivalente a outros períodos históricos. O jusnaturalismo e o racionalismo do século XVIII não são incompatíveis com noções como natureza humana, portanto, autorizam algum tipo de exemplaridade histórica que pode ser bem distinto daquele imaginado por Cícero ao afirmar ser a história "mestra da vida". Como bem ilustrou Borges em seu conto sobre o Quixote, a mesma frase ou expressão terá sentidos radicalmente distintos a depender de seu contexto de enunciação. O mesmo acontece com o recurso à "Providência", que não deve por si só ser confundido com uma concepção providencialista de história, pois a visão de mundo cristã soube também adaptar-se à experiência moderna do tempo fundindo-se com filosofias da história, por exemplo. O artigo de Rodrigues navega muito bem por entre esses abismos e, ao final, recusa "[...] tanto a pressuposição de uma modernidade político-social subterrânea e disfarçada sob uma linguagem arcaica, quanto o enclausuramento da experiência do tempo no século XVIII, sem nenhuma comunicação com o contexto social, político e cultural que o sucedeu". (p. 132). Talvez eu não tenha ficado tão convencido de que a continuidade de procedimentos retóricos - em um espaço "retórico" como as Academias Ilustradas - seja o melhor termômetro para medirmos as transformações conceituais. De algum modo, seria como hoje avaliar experiência sexual contemporânea pela análise de uma revista de freiras, por isso, a metodologia da história dos conceitos valoriza a diversidade documental como aspecto incontornável, algo que ainda precisamos fazer para o século XVIII brasílico,

complexificando um modelo da história intelectual limitada ao duo "autorobra". Valdei Araujo Mariana, 16 de setembro de 2015 Revisado em 17 set. 2015

Leia mais em: http://valdeiaraujo.blogspot.com.br/

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