O Conceito de Jihad à luz do Corão e da tradição muçulmana

June 7, 2017 | Autor: Michele Rosado | Categoria: Medieval History, Medieval Islam, Islamic Studies, Islamic Tradition
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O Conceito de Jihad à luz do Corão e da tradição muçulmana1 Michele Rosado de Lima Castro2

Introdução: Maomé, profeta do Islã, morreu no ano 632. Nesse momento, aquele recente corpo de crenças revelado por Allah que há pouco mais de dez anos havia se constituído como religião, já havia obtido muitas conquistas. Desde a hégira, migração dos crentes de Meca para Medina, em 622, os seguidores das revelações de Maomé já chamavam a si mesmos de muslims (submissos) e chamavam a sua comunidade de ummah. Em vida, Maomé iniciou a unificação da Península Arábica sob os mandamentos da religião do Deus único e em seu último sermão direcionado àquela comunidade reforçou a necessidade de que todos se mantivessem unidos e seguissem as palavras divinas por ele transmitidas: “Lembrai-vos que um dia vós estareis diante de Allah e respondereis por seus atos. Então vos atenteis, não vos distancieis do caminho da retidão quando eu houver partido”. Mas como saberiam os crentes qual seria o “caminho da retidão”? Como manter o Estado criado pelo profeta de Deus no caminho correto, já que os ensinamentos proferidos pelo profeta através das revelações poderiam se perder ao longo do tempo? Para evitar tal perda, os primeiros califas, sucessores do profeta, precisaram criar um novo corpo de normas que tivesse como base os ensinamentos proferidos por Maomé. A primeira atitude tomada nesse sentido foi compilar as recitações de Maomé de forma sistemática e oficial, o que somente ocorreu durante o califado de Uthmam (644-656) dando origem ao Corão tal como conhecemos hoje. Como sabemos, as mensagens descritas no Corão tratam da forma como os crentes deveriam agir: “quando entrardes nas casas, saudai-vos mutuamente em nome de Deus e que vossas saudações sejam bonitas e amáveis” (24:60); como deveriam tratar as mulheres: “E dize às crentes que baixem o olhar e preservem o pudor e não exibam de seus adornos além do que aparece necessariamente. E que abaixem seu véu sobre o seio e não exibam seus adornos senão a seus maridos ou pais ou sogros.”(24:30); entre tantas outras normas sociais. Além do Corão, outra compilação se tornou importante para os crentes, a compilação dos atos e falas de Maomé: os hadıth. Também estes dizem muito sobre a forma como o crente deveria

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Texto publicado nos anais do Simpósio da ABHR Sudeste de 2013. No momento de publicação do texto era graduanda em História pela Universidade Federal de Ouro Preto, vinculada ao Núcleo de Estudos de História da Religião sob orientação do Prof. Dr. Celso Taveira. Atualmente é vinculada ao Laboratório de Estudos Medievais da Universidade Estadual de Campinas, onde desenvolve mestrado na área de História Medieval. 2

se comportar; já que se parte do pressuposto que o profeta, como escolhido de Deus para transmitir Suas mensagens, não agiria de forma pecaminosa, e, por extensão, seus atos poderiam ser emulados pelos crentes quando houvesse dúvida na leitura do livro sagrado. O Corão e os hadıth são a fonte do direito islâmico (fiqh) e foram tomados como fundamentos para aquele novo Estado que pretendia se fortalecer e se expandir sem se desviar do caminho da retidão. Portanto, para compreender o conceito de Jihad3 faz-se necessário um atento estudo destes escritos. O conceito de Jihad é comumente traduzido como “guerra santa” muçulmana. Esta tradução não é razoável, já que se trata de um conceito muito mais complexo e remete a outros tantos esforços que não somente o de guerra armada, como a tradução sugere. Ademais, é comum que o termo apareça associado à justificativa do terrorismo e, por conseguinte, associado a atos de violência conta outros povos. Assim, além de ser uma tradução que resulta de uma análise bastante superficial, ainda é uma explicação que carrega grande peso político e diz muito mais sobre os desentendimentos entre Ocidente e Oriente, ao longo do tempo, do que propriamente soluciona a dúvida do que vem a ser o Jihad. Dessa forma, o objetivo desse trabalho é fazer uma análise tanto do Corão quanto de uma compilação dos hadith a fim de tentar compreender e caracterizar o conceito de Jihad. Para a análise do Corão utilizamos a tradução do árabe para o português de Mansur Challita, comparando, sempre que necessário, com a tradução feita do árabe para o inglês de Hâce Ahmet Dindin. Para a análise dos hadith será utilizada uma das compilações mais respeitadas pelos sunitas4, a de Husayn Muslim al-Hajjaj, terminada no final do século IX e traduzida para o inglês por Nasiruddin al-Khattab. Após breve descrição destes dois escritos, trataremos, em linhas gerais, sobre a jurisprudência islâmica, passando, finalmente, para a análise dos documentos com os quais trabalhamos.

O Corão e os hadith como fontes da jurisprudência islâmica A palavra qur’an, em árabe, significa recitação (HALEEM, 2001, p. 2) e, por si só, nos diz muito sobre a história do livro sagrado do Islã, que, para ser mais bem compreendida, deve ser buscada ainda nos primeiros momentos das profecias de Maomé. Considera-se o ano 3

Optamos por utilizar o termo Jihad no masculino de acordo com o livro de Peter Demant, intitulado O mundo muçulmano (2004), e o artigo de Nieves Paradela, intitulado Belicismo y espiritualidad: una caracterización del Yihad islámico (2001). 4 O fato de utilizarmos uma compilação sunita não significa excluir a importância de outros partidos dentro da religião. Esta escolha foi feita considerando o fato de que não seria possível, aqui, fazermos uma análise das crenças e das diferenças de crenças entre eles e, também, o fato de a grande maioria da população muçulmana ter predileção sunita.

de 610 como o ano da realização da primeira profecia, mas somente no ano de 613 elas vieram a público por meio das pregações das mensagens de Allah ao povo de Meca (WATT, 1956, p. 27). A primeira revelação foi recebida enquanto estava sozinho em uma caverna, mas, após o início das pregações, os crentes puderam testemunhar o exato momento de contato com além, presenciando muitas das profecias enviadas por Deus. A princípio essas mensagens não foram registradas de maneira sistemática: como a comunidade árabe préislâmica era uma comunidade de tradições orais, somente algumas partes das pregações eram anotadas por aqueles que a ouviam, a maioria delas eram registradas somente na memória. Após a morte de Maomé, os crentes se viram sem a orientação dada pelo profeta e percebem a necessidade de fazer uma compilação oficial das revelações para que elas não fossem se perdendo à medida que aqueles que tiveram contato direto com o profeta também morressem. Este esforço é iniciado tanto por Abu Bakr (632 - 634) quanto por Omar (634 - 644), os dois primeiros sucessores de Maomé, mas somente no Califado de Uthman (644-656) é que surgiu o texto oficial que compõe o Corão tal como o conhecemos hoje. O Corão é composto por 114 capítulos chamados suras e cada sura é formada por versículos, ou ayat, num total de 6.235. Como já dito anteriormente, o Corão trata de diversos temas, o que é demonstrado por Muhammad Abdel Haleen em seu livro Understanding the qur’an, em que diz que temas relativos à crença ocupam a maior parte do livro, seguido por temas relativos à moral. Logo após estão os rituais e, finalmente, as disposições jurídicas (HALEEM, 2001, p. 15). Os crentes acreditam que o Corão seja a palavra de Deus transcrita para um livro, sendo assim o autor é propriamente Deus e é Dele o lugar de fala em todo o livro. Na apresentação da tradução do Corão para o português, Mansur Challita diz que o livro é, normalmente, escrito em primeira pessoa, tanto do singular quanto do plural, e pode se dirigir tanto a Maomé – usando a segunda pessoa do singular – quanto aos crentes no geral – usando a segunda pessoa do plural. Quando utiliza a terceira pessoa está se referindo aos não muçulmanos (2011, p. 21). Após a morte de Maomé teve início um grande esforço dos estudiosos do Corão para interpretá-lo, mas algumas regras sociais não estavam ali descritas ou estavam de forma a causar dúvidas. Partindo da hipótese de que o profeta era um homem guiado diretamente por Deus e, dessa forma, não erraria, e que nenhum crente viria a mentir sobre algo que a comunidade, e principalmente ele próprio, tomava como sagrado, a ummah se voltou para a história do profeta para solucionar essas possíveis lacunas ou ambiguidades. Além disso, considera-se que esta seja uma forma totalmente legitimada pelo Corão de se esclarecer as dúvidas que possivelmente surgiriam já que o próprio Corão é bastante enfático sobre a

importância de se seguir as mensagens proferidas por Maomé e tomá-lo como exemplo, o que fica claro na seguinte passagem: “O mensageiro de Deus é um belo exemplo para os que confiam em Deus e no último dia e recordam Deus com frequência” (33:21). Os atos e falas de Maomé foram compilados por crentes que estiveram na companhia do profeta quando as bases da religião ainda estavam sendo formadas. Essas compilações foram chamadas de hadith. As mais famosas e reconhecidas compilações são as de Muhhamad Ibn Ismail alBukhari (870) e a de Abu- l-Husayn Muslim ibn al-Hajjaj (875) (GLASSÉ, 1989, p. 141), elas compõem uma coleção de seis livros considerada pelos sunitas como os de maior autoridade. Entre estas, utilizaremos neste trabalho a segunda citada, a obra de Husayn Muslim al-Hajjaj, na edição de Nasiruddin al-Khattab publicada em 2007. Estas duas obras, o Corão e os hadith, passaram, a partir do momento de sua compilação, a constituir o corpo de normas da comunidade muçulmana. Mas ainda era necessário outro esforço, o de interpretação. Para tal, aplicou-se um saber do Islã clássico chamado fiqh. Este termo é normalmente traduzido como jurisprudência islâmica e se refere à ciência que lida com a observância dos rituais e dos cinco pilares da religião (GLASSÉ, 1989, p. 126). Deste esforço de interpretação surgiu a sharia, termo que se refere à lei islâmica, o material legal que deve ser seguido pelo muçulmano e consultado em caso de julgamentos. É importante destacar a existência de diversas escolas jurídicas islâmicas, entre sunitas, xiitas e caridjitas. Assim, estas divisões possuem formas diferentes de interpretação do Corão e, por consequência, diferentes shariah. Assim como as outras religiões do livro, o Islã não diferencia religião da vida cotidiana e, por isso, a lei muçulmana não trata somente de rituais religiosos ou questões teológicas, são competências do fiqh questões como a alimentação, o matrimônio, a herança, o comércio e também a guerra (PARADELA, 2001, p. 3). É por esse motivo que voltaremos nossa atenção aos escritos do Corão e da tradição, já que é ali que se encontra a base fundamental das leis que são seguidas pelos muçulmanos, lei tal que também trata da legitimação e da necessidade do Jihad.

O Jihad no Corão e na tradição muçulmana

No Corão há diversas suras que tratam ora de paz ora da necessidade de guerra. Podem-se encontrar versos passíveis de serem interpretados como suscitadores da guerra sem restrições, como por exemplo: “E combatei até que não haja mais idolatria e que a relegião pertença exclusivamente a Deus. Se desistirem, Deus observa o que fazem.” (8:39). Outras

falam especificamente da legitimação da guerra contra o inimigo que primeiro atacar os crentes: “E combatei, pela causa de Deus, os que vos combatem. Mas não sejais o primeiro a agredir. Deus não ama os agressores” (2:190). Já em outras passagens é clara a necessidade de manter a paz, mesmo com os infiéis: “Se eles se inclinarem para a paz, inclina-te para ela também e confia em Deus. Ele ouve tudo e sabe tudo” (8:61); ou se manter afastados deles: “Proclama, pois, o que te for mandado, e afasta-te dos idólatras. Bastamos Nós para te proteger contra os zombateiros” (15:94-95). Assim, tanto entre os estudiosos muçulmanos quanto entre os não muçulmanos, é possível encontrar interpretações que divergem bastante entre si sobre o que é Jihad e quando ele pode ser colocado em prática. Para Richard Bonney, o ponto central que traz tantos desentendimentos é a questão da ab-rogação (naskh), onde algumas passagens do Corão foram invalidadas por outras posteriores. Essa questão é um importante ponto de debate entre estudiosos da lei Islâmica, motivo pelo qual várias escolas interpretam os textos sagrados de formas diferentes (BONNEY, 2004, p. 22). Um verso do Corão trata especificamente sobre este assunto: “Os versículos que ab-rogamos ou desprezamos nesse Livro, Nós os substituímos por outros, iguais ou melhores. Não sabeis que Deus tem poder sobre tudo?” (2:106). Este é um verso que possibilita a interpretação citada por Bonney em seu livro Jihad: from Qur’an to Bin Laden, de que a “ab-rogação é um fenômeno inteiramente interno: nenhum hadith, em outras palavras, pode ab-rogar algum verso do Corão” (BONNEY, 2004, p. 24). Contudo, como se pode perceber na passagem citada acima, o fenômeno de ab-rogação de uma passagem por outra do próprio Corão revelada posteriormente é geralmente aceita. Dessa forma, faz-se necessário consultar a ordem de revelação das suras – lembrando que no Corão elas não são organizadas cronologicamente. As últimas duas suras, em ordem de revelação, foram, respectivamente, a 9ª (O arrependimento) e 5ª (A mesa servida). A 9ª é especialmente importante para nossa análise porque ela contém a chamada ayah da espada, verso tal que acredita-se ter ab-rogado mais de cem outras ayahs do Corão (BONNEY, 2004, p. 22) e é bastante utilizada por grupos radicalistas para legitimar guerras. Trataremos desta importante passagem mais a frente. Segundo Richard Bonney, há no Corão 35 ocorrências da palavra Jihad ou equivalentes (BONNEY, 2004, p. 22). Dada a impossibilidade de analisar tal fonte em língua original, não pretendemos, neste trabalho, localizar e estudar cada uma delas, mas, sim, procurar, nas traduções para o inglês e para o português, as passagens que podem nos dizer algo sobre a necessidade de guerra e quando ela pode ser considerada uma guerra em nome de Deus. Alguns versos são enfáticos quanto ao fato da guerra em nome de Deus somente ser

justificada quando for em defesa da religião. Além da passagem citada acima, pode-se dar como exemplo os seguintes versos: “Se, portanto, não se conservarem [os infiéis] afastados de vós e não vos oferecerem a paz e não retiverem as mãos, capturai-os e matai-os onde quer que os encontreis, porque sobre eles vos concedemos poder absoluto” (4:91) e “Quanto a vós, descrentes, se era uma vitória que procuráveis sois bem servidos! Se desistirdes de combater, será melhor para vós. Mas se voltardes, voltaremos! Vosso exército, por mais numeroso que seja, de nada valerá. Deus está com os crentes” (8:19). Entretanto, outras passagens não são tão claras quanto essa necessidade, mas é possível percebê-la se colocarmos a passagem em questão dentro de seu contexto, é o que acontece, por exemplo, com “A guerra foi-vos prescrita e vós a detestais. Mas quantas coisas amais que acabam vos prejudicando! Deus sabe e vós não sabeis” (2:216). Se tomada separadamente é perfeitamente perceptível que a guerra é incentivada sem restrições, mas se a olhamos dentro de um contexto maior, temos o seguinte:

A guerra foi-vos prescrita e vós a detestais. Mas quantas coisas amais que acabam vos prejudicando! Deus sabe e vós não sabeis Interrogarte-ão acerca do mês sagrado: haverá combates nele ou não? Responde: “Guerrear nesse mês é uma enorme transgressão e um afastamento da senda de Deus e um desrespeito a Ele e à Mesquita Sagrada . Mas expulsar dos lugares santos seus habitantes é um erro maior ainda, pois o erro é pior que a matança.” Ora, não pararão de vos combater até que vos levem, se puderem, a renegar vossa religião. E quem de vós renegar sua religião e morrer na descrença terá perdido esse mundo e o outro. (2:216-217)5

Esta é a primeira sura inteiramente revelada após a migração de Maomé para Medina, 622. As ayahs 1 a 175, especificamente, foram reveladas nos dois primeiros anos desse período (ASSAD, 1980, p. 15). Pensando no contexto histórico dessa revelação, é possível perceber que quando se diz que os inimigos não pararão de combater até que os muçulmanos reneguem sua religião, o Corão pode estar se referindo à conjuntura que motivou a evasão dos crentes de Meca, onde não podiam colocar sua religião em prática pela oposição dos coraixitas. Assim, colocando os versos em seu respectivo contexto, tanto o do livro quanto o histórico, percebemos que há também um sentido de defesa na guerra proposta. O mesmo ocorre com a ayah da espada citada acima, vejamos sua transcrição: “Mas quando os meses sagrados tiverem transcorrido, matai os idólatras onde quer que os

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Grifo nosso.

encontrais e capturai-os e cercai-os e usai de emboscadas contra eles. Se se arrependerem e recitarem a oração e pagarem o tributo então libertai-os. Deus é perdoador e misericordioso” (9:5). Mais uma vez, ao analisar o verso isoladamente, percebe-se um sentido de comando de guerra sem restrições, mas vejamos a passagem juntamente com outras ayahs que complementam sua ideia:

Mas quando os meses sagrados tiverem transcorrido, matai os idólatras onde quer que os encontrais e capturai-os e cercai-os e usai de emboscadas contra eles. Se se arrependerem e recitarem a oração e pagarem o tributo então libertai-os. Deus é perdoador e misericordioso. Se um idólatra procurar sua proteção, protege-o até que ouça apalavra de Deus. Então levao a seu lugar de segurança . Pois esses idólatras são ignorantes.Como teriam os idólatras uma aliança com Deus e Seu mensageiro, salvo aqueles com quem pactuastes junto à Mesquita Sagrada? Enquanto forem leais para convosco, sede leais para com eles. Deus ama os homens de bem. Como teriam um pacto com Deus e Seu mensageiro quando vos derrotam e não respeitam nem sua palavra nem vossa honra? Procuram agradar-vos com palavras enquanto seus orações se conservam fechados. A maioria deles é depravada. Venderam a vil preço as revelações de Deus e desviam outros de Seu caminho. Condenável é o que fazem! Não respeitam no crente nem parentesco nem aliança. São todos agressores. Se, contudo, se arrependerem e observarem a oração e pagarem o tributo , então serão vossos irmão na religião. Esclarecemos as revelações para os que compreendem. Mas se violarem seus juramentos e insultarem vossa religião , combatei então os cabeças da descrença – eles não tem respeito por sua palavra- afim de levá-los a desistir. Deixareis de combater um povo que violou seus juramentos e tentou expulsar o Mensageiro e tomou a iniciativa de vos agredir? Será que os temeis? Deus é mais digno de ser temido. (9: 5-13) 6

Mais uma vez, vemos aqui, quando o contexto é colocado em destaque e não somente o verso, outra alusão à guerra no sentido de defesa da comunidade religiosa. Assim, se voltamos à teoria da ab-rogação, percebemos que mesmo que este veso tenha ab-rogado tantas outras ayahs, ainda permanece o sentido de que a guerra só pode ser considerada uma guerra em nome de Deus quando for no sentido de defesa. Muhammad Asad enfatiza em diversos momentos, em seu livro The message of the qur’an, que cada verso do Corão deve ser lido e interpretado considerando o contexto do livro como um todo. Ele sugere também que esta passagem seja lida juntamente com os dois versículos anteriores e com outros de outras suras, como por exemplo a ayah 2:190 já citada. Além disso, ele explica que este versículo se refere

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Grifo nosso.

mais especificamente a uma guerra já em progresso contra povos que se tornaram culpados pela violação de um tratado de não agressão com os crentes (ASSAD, 1980, p. 380). Na compilação dos hadith de Husayn Muslim al-Hajjaj, há, no quinto volume, um livro intitulado O livro do Jihad e das expedições, em que ele relata, entre outras coisas, momentos da vida do profeta onde ele explicou como os chefes de guerra deveriam se comportar frente aos inimigos (Muslim, 32, 2, 4522-4) ou quem poderia, ou não, ser morto durante a guerra (Muslim, 32, 8, 4547-8). Até o momento não encontramos, nessa compilação, nenhuma menção direta às formas de legitimação da guerra santa, no entanto, consta a descrição de como o profeta se comportou em diversas batalhas e expedições. Dessa forma, faremos uma análise desses momentos da vida do profeta para compreender se estas guerras empreendidas eram realmente guerras de defesa da fé e da comunidade muçulmana como interpretamos no Corão. Para compreender as batalhas citadas no livro, devemos voltar ao contexto da migração dos muslim de Meca para Medina em 622. No período de início das revelações de Maomé, em Meca, a Península Arábica era uma encruzilhada de rotas comerciais e Meca era sua principal cidade, onde era profundo o abismo entre pobres e ricos. As revelações de Maomé vêm se contrapor a tudo isso, trazendo mensagens de generosidade e de auxilio material aos pobres. Os coraixitas, tribo dominante em Meca, rejeitaram terminantemente estas mensagens, já que este era um ponto de grande contraste entre as pregações do profeta e a realidade da vida dos árabes e, por isso, a partir daí Maomé começa a sofrer grande oposição dos coraixitas. Maomé teve proteção do clã Banu Hashim, do qual era membro, até a morte de seu tio, Abu Talib, líder dos hachemitas, em 619. Seu sucessor na liderança do clã foi Abu Lahab, adversário declarado de Maomé. Até esse mesmo ano, ele já havia conquistado um grupo de seguidores, que, se ainda não constituíam uma religião organizada, já se autodenominavam mumin (fiel) ou muslim (submisso) (MANTRAN, 1877, p. 63). Com a perda de apoio de seu clã, a pregação e a nova vida dos crentes – guiada pelas revelações do profeta – se tornavam cada vez mais impraticáveis em Meca e, por isso, em 622, Maomé, juntamente com seus seguidores, se retirou de Meca e buscou refúgio na cidade de Medina, mais ao norte. Os muçulmanos migraram de Meca para Medina em setembro de 622, evento que marca o início do calendário árabe, sendo chamado de hidjra (emigração), ou Hégira. A partir desse momento, os coraixitas se tornam inimigos diretos de Maomé e dos muçulmanos, não só por permanecerem politeístas, mas, principalmente, por haverem impossibilitado a prática de sua religião. A oposição dos coraixitas foi tomada como uma ofensa à comunidade. Assim, desde a Hégira era comum que os muçulmanos praticassem

ataques contra caravanas de comércio dos Coraixitas. Em 624, um destes ataques, que ocorreu na cidade de Badr, próximo a Medina, obteve grande sucesso, culminando na morte de cerca de 50 homens de Meca, entre eles diversos líderes militares, e outros tantos foram tomados como prisioneiros (WATT, 1956, p. 12). Esta batalha é conhecida como Batalha de Badr e, cronologicamente falando, é a primeira batalha citada no Livro do Jihad e expedições de Muslim (Muslim, 32, 30, 4621). Apesar do sucesso nesta batalha, não houve nenhuma mudança imediata na situação política dos muçulmanos: eles sabiam que essa batalha não significava que eles haviam recuperado o direto de retornar a Meca ou que Medina passaria a superar o poder de Meca na região. No entanto, a batalha deixou claro aos coraixitas que Maomé os desafiava para um confronto de forças (WATT, 1956, p. 14). No ano seguinte Abu Sufyan, um dos líderes militares dos coraixitas que sobreviveram ao ataque em Badr, reuniu cerca de 3000 homens para atacar Medina como forma de se vingar dos muçulmanos e recuperar seu prestígio em Meca. A tropa de Sufyan acampou ao norte de Medina em frente ao Monte de Uhud, onde os muçulmanos foram encontrá-los para evitar uma batalha dentro da cidade. Segundo as descrições de W. M. Watt, em seu livro Maomé em Medina, os muçulmanos estavam prestes a conquistar a segunda vitória contra os coraixitas, quando os arqueiros saíram da posição inicialmente estipulada por Maomé para saquear o acampamento dos coraixitas, possibilitando, assim, um ataque surpresa da cavalaria de Mecca. Os muçulmanos tiveram que se refugiar nas encostas do Monte Uhud e os coraixitas retornaram vitoriosos para Meca (WATT, 1956, p. 21-24). Uma terceira batalha que é citada nos hadith de Muslim e que também se deu em função daquele primeiro momento de oposição dos coraixitas de Meca foi a batalha das trincheiras, também conhecida como batalha dos confederados (Muslim, 32, 36, 4640), que ocorreu no ano de 627. Os coraixitas e outras tribos, entre elas os judeus da tribo de Nadir, formando os confederados, reuniram cerca de 10.000 homens para lutar contra os muçulmanos. Contra esse grande contingente, os muçulmanos contavam com somente cerca de 3.000 homens, que era quase toda a população de Medina, excetuando-se os judeus da tribo Qurayzah que não participaram da luta. Tendo um número muito inferior de homens, Maomé utilizou uma tática até então desconhecida na Península Arábica. Em qualquer lugar onde Medina poderia ser atacada em solo Maomé construiu trincheiras, impossibilitando a entrada dos confederados na cidade. Depois de cerca de quinze dias de tentativas mal sucedidas de adentrar e saquear a cidade, os confederados retornaram a Meca porque seu estoque de comida para os cavalos e para a própria tropa já havia acabado. Apesar das perdas terem sido mínimas, os coraixitas retornaram a Meca com a moral gravemente afetada, o que

trouxe implicações para o comércio, já que, com o fortalecimento de Maomé e da comunidade muçulmana, a possibilidade de haver novos ataques como o de Badr era grande (WATT, 1956, p. 35-39). As duas tribos de judeus envolvidas na guerra das trincheiras – a tribo Nadir, que se aliou aos coraixitas, e a tribo Qurayzah, que não participou da guerra, mas iniciou um processo de negociações com os inimigos dos muçulmanos – passaram a ser alvo da fúria de Maomé depois desse episódio. Segundo Watt, Maomé tinha, com a tribo Qurayzah, um tratado de não agressão e de não auxílio dos inimigos contra os muçulmanos (WATT, 1956, p. 38), mas, durante a batalha das trincheiras, os judeus confederados foram até os Qurayzah procurar por aliança. Apesar das negociações não terem terminado em um acordo de auxílio por parte dos Qurayzah, Maomé tomou como quebra do tratado o fato de haverem entrado em negociações com o inimigo e, imediatamente após a retirada das tropas dos coraixitas, marchou contra os Qurayzah e exterminou de 700 a 800 homens da tribo (ARMSTRONG, 2001, p. 21). Com os Nadir, Maomé veio a se encontrar no ano de 629 na batalha de Khaybar (Muslim, 32, 43, 4665-9), quando os judeus foram obrigados a se render e pagar um tributo sobre tudo que ali fosse produzido (WATT, 1956, p. 240). Em 628 os muçulmanos empreenderam uma primeira tentativa de peregrinação a Meca, mas, ao se aproximarem da cidade foram surpreendidos pelos coraixitas que não permitiram sua entrada. No Oásis de Hudaybiyyah, coraixitas e muçulmanos assinaram um tratado, chamado tratado de Hudaybiyyah que dizia que naquele ano os muçulmanos retornariam a Medina sem terminar a peregrinação, mas, no ano seguinte, eles teriam a permissão de ficar ali por três dias, contando que não entrassem com armas. Além disso, ficou acordado que não haveria ataques de nenhuma das partes por dez anos e qualquer outra tribo poderia fazer aliança tanto com Maomé quanto com os coraixitas sem maiores problemas. Em 630 houve um ataque, por parte dos coraixitas, a uma tribo aliada a Maomé, o que aos olhos dos muçulmanos, foi uma quebra do tratado de Hudaybiyyah. Assim, Maomé marchou até Meca com um exército de cerca 10000 homens (ARMSTRONG, 2001, p. 61), conseguindo entrar e tomar a cidade sem derramamento de sangue. Ao chegarem, receberam a notícia de que as tribos beduínas de Hawazin e Thaqif, antigos inimigos dos coraixitas, planejavam um ataque a Meca com um exército de cerca de 20000 homens. Ao serem informados do ataque, os líderes de Meca que ainda não haviam se convertido ao Islã preferiram se aliar a Maomé contra as tribos beduínas do que cair nas mãos de seus inimigos tradicionais. Dessa forma, coraixitas e muçulmanos uniram forças e, em janeiro de 630, saíram para um ataque a essas tribos em Hunayn, dando origem ao nome Batalha de Hunayn (WATT, 1956, p. 73). A

batalha terminou com o extermínio dos homens e o apresamento das mulheres e crianças – o Corão é claro quanto a não matá-las em guerra – além dos animais.

Considerações finais Há uma grande discussão entre os estudiosos sobre quando a guerra em nome de Deus pode ser considerada legítima. Muhammad Asad (1900 - 1992), cujos principais trabalhos que tratam sobre o tema são The road to mecca, publicado em 1954, onde ele dedica um capítulo inteiro sobre o Jihad, e The message of the qur'an, publicado em 1980, onde ele faz uma cuidadosa análise de cada verso do Corão; acredita que a guerra em nome de Deus somente pode ser aplicada em um contexto de defesa da comunidade muçulmana. Richard Bonney também cita outros, como, por exemplo, Shaykh Muammad al-Ghazali (1917 - 1996) que ainda acrescenta que “mesmo uma guerra defensiva somente é legitimada quando ocorre pelas causas de Deus e não por glória pessoal em busca de vantagens especiais” (BONNEY, 2004, p. 30). Por outro lado, Bonney também cita Faruq Sherif, que acredita que “o mundo muçulmano está sempre em posição de potencial hostilidade contra o mundo não muçulmano” pelo fato da guerra contra os infiéis ser um dos pilares básicos da religião (BONNEY, 2004, p. 31). A partir de nossa análise do Corão, entendemos que Jihad, a guerra em nome de Deus, só pode ser justificada quando colocada em prática tendo em vista a defesa da comunidade religiosa. Quando voltamos nossa análise para os hadith de Muslim nos deparamos com a descrição de várias batalhas travadas pelo próprio Maomé, que são tomadas pela comunidade muçulmana como exemplo. Analisando o contexto histórico dessas batalhas percebemos que o sentido de defesa da religião e da comunidade é reforçado. As mais importantes expedições citadas são aquelas empreendidas contra os coraixitas de Meca, que, no primeiro momento das revelações se opuseram veementemente às mensagens que aquela comunidade pregava, culminando na fuga dos crentes da cidade. Outras batalhas, como as de Hunayn e a de Khaybar também foram empreendidas quando houve algum primeiro ataque, ou perigo de ataque, dos inimigos.

Referências bibliográficas:

ARMSTRONG, Karen. O Islã. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. ASAD, Muhammad. The Message of The Qur'an. Sharjah: Dar Al Andalus, 1980. BONNEY, Richard. Jihad: from the qur’an to Bin Laden. Nova York: Palgrave Macmillan, 2004. CHALLITA, Mansur (trad.). O Alcorão. Rio de Janeiro: BestBolso, 2011. DEMANT, Peter. O Mundo Muçulmano. São Paulo, Contexto, 2004. GLASSÉ, Cyril. The Concise Encyclopedia of Islam. New York, Harper Collins, 1989. HALEEM, Muhammad Abdel. Understanding the qur’an: themes and styles. Londres: I.B.Tauris, 2001. MANTRAN, Robert. A Expansão Muçulmana (séculos VII-XI), São Paulo, Pioneira, 1977. PARADELA, Nieves. Belicismo y espiritualidad: una caracterización del Yihad islámico. In: Militarium Ordinum Anacleta, Oporto, nº 5, 2001. WATT, W. M. Muhammad at Medina. Londres: Oxford University Press, 1956.

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