O conceito de justiça em Mill

July 8, 2017 | Autor: G. Hessmann Dalaqua | Categoria: John Rawls, John Stuart Mill, Utilitarismo, Justiça
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Fichamento do quinto capítulo de Utilitarismo (1863) Gustavo Dalaqua

Mill inicia seu quinto capítulo notando que o maior entrave à aceitação do Utilitarismo se deve ao valor intrínseco que costumeiramente se associa ao conceito de justiça. Para a maior parte dos filósofos, escreve Mill, “o Justo há de ter sua existência na Natureza, enquanto algo absoluto [...] distinto [...] da Utilidade” (§1).1 Seguindo Adam Smith, Mill afirma que a noção de que a justiça existe apartada da utilidade advém de um sentimento moral. Há dentro de nós um sentimento moral que, como um instinto, nos impele a separar justiça e utilidade. Para Mill, no entanto, dizer que a Natureza nos dotou de um sentimento instintivo que, naturalmente, nos compele a afirmar que a existência da justiça e da utilidade são distintas não basta. O instinto precisa ser analisado, “iluminado pela razão” (§2). O sentimento de justiça é sui generis, ou acaso seria derivado da combinação de outros sentimentos? Para resolver a questão, será preciso averiguar qual é o traço distintivo da justiça. Partindo do senso comum, Mill examinará os casos em que a justiça se predica, no intuito de verificar se, nas situações em que os termos “justo” e “injusto” afloram em nossos lábios, o mesmo significado subjacente é presente. O que, geralmente, as pessoas chamam de justo? Ou melhor, o que se entende por injusto? Segundo o autor, os atributos morais se definem melhor pelo seu oposto (§3). Mill reporta que, no século XIX, a ocorrência da palavra “(in)justiça” se dava mormente em cinco sentidos. No primeiro caso em que se a coloca, a justiça se identifica com o direito positivo. Neste sentido, o injusto se define pela quebra ou violação dos direitos legais e, inversamente, a justiça seria o cumprimento das leis estabelecidas pelo poder civil (§5). Em sua segunda acepção, e em contraste com o primeiro caso, a justiça é definida em relação a direitos morais, que não se confundem com os legais (§6). Embora concordem que o direito positivo jamais possa ser o critério último da justiça, aqueles que empregam o termo neste sentido, diz Mill, discordam quanto às ações que ipso facto se autorizam. Há quem diga que, mesmo quando desrespeita os direitos morais, à lei deve-se obediência. Lembremos, por exemplo, da advertência emitida

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Visto que a maior parte das citações advém do cap. V da obra Utilitarianism, quando a citarmos, limitarnos-emos a especificar, entre parênteses e no corpo do texto, o parágrafo no qual a passagem se localiza. Em contraste, toda e qualquer citação estrangeira a esta obra terá sua fonte identificada no pormenor.

reiteradas vezes no opúsculo O que é o Esclarecimento?: “Questionai, mas obedecei!” Entre um reino de leis inadequadas e o caos bárbaro, fiquemos com o primeiro. Não é esta a posição de Mill. O autor sugere que “os mais notórios benfeitores da humanidade” seriam condenados por semelhante posicionamento (§6). Ademais, ele afirma que a resistência, por parte dos indivíduos, em aquiescer a uma “lei má” constitui, “no estado de coisas existente,” uma das poucas armas efetivas no combate às “instituições perniciosas” (§6). Nesta passagem, Mill deixa claro que aprova a desobediência civil de leis injustas. Isto reforça o matiz de Sobre a Liberdade, onde o indivíduo é apresentado como fonte de resistência ao ordenamento jurídico. Ou, para usar os termos que nos são caros, o indivíduo é dotado de um poder que rivaliza com o Direito. O poder jurídico tem sua razão de ser no desenvolvimento do indivíduo (vide o segundo e terceiro capítulo de Governo Representativo). Decerto, este indivíduo depende do poder governamental para se desenvolver, e cada modo de governo, Mill afirma, implica um certo tipo de indivíduo (cf. ibid, cap. I). As diferentes formas de governo geram diferentes estilos de conduta individual. No entanto, da geração não se segue “submissão à lei” (§6). Atingido certo patamar de desenvolvimento, o indivíduo passa a desfrutar de poder próprio. Ele torna-se polo emissor de um poder capaz de resistir, reivindicar, rivalizar e, inclusive, reestruturar o Direito positivo. Outro aspecto que se depreende de seu elogio à desobediência civil é o de que Mill concebe uma esfera normativa, vale dizer, um âmbito de justiça, prévio à criação da lei. Se, a fim de melhorar as instituições vigentes, podemos desobedecer uma lei porque ela é “julgada injusta,” isto significa que o conceito de justiça é distinto do da lei (§6). Pois se acaso fossem iguais, nenhuma lei seria injusta. Quando o âmbito da justiça coincide inteiramente com o da lei positiva, o legal é, automaticamente, justo. “[P]arece ser universalmente admitido que é possível haver leis injustas, e que a lei, por conseguinte, não é o critério último de justiça, podendo conceder a uma pessoa um benefício, ou impor a outra um mal, que a justiça condena” (§6). Neste caso, a injustiça consistiria na violação dos direitos morais do indivíduo. Eis, enfim, a segunda acepção que o termo (in)justiça possuía no tempo de Mill. Em terceiro lugar, diz-se que justo é o que se merece, aquilo que é devido a alguém. Dar a alguém, então, um bem que não lhe é devido redundaria em injustiça. A um primeiro olhar, esta acepção evoca a justiça particular de Aristóteles, na medida em que parece estar relacionada à distribuição de bens, o que, supostamente, faz cair por terra a supramencionada afirmação de que Mill ignora a justiça particular aristotélica.

Entretanto, um olhar mais atento para a continuação do texto mostra que Mill logo põe o foco distributivo em segundo plano, e se volta para o indivíduo. Após definir o injusto como “obter um bem [...] que ele [sc. o indivíduo] não merece,” ao invés de ressaltar, à maneira de Aristóteles, o caráter eminentemente distributivo que a justiça aqui assume, Mill se foca na questão do merecimento individual (§7). O que faz com que um indivíduo seja digno de merecimento? Resposta: o indivíduo merece um bem quando pratica o bem. Quando comete um mal, ele não o merece. “O preceito de devolver um bem por um mal nunca foi considerado como [...] cumprimento da justiça, mas sim como um caso no qual as reivindicações da justiça se renunciadas, em prol de outras considerações” (§7). Com esta frase, marca-se a diferença entre Mill e Rawls. Para o último, a justiça vem sempre em primeiro lugar, visto que é “a primeira virtude das instituições sociais” (RAWLS, 2008, p. 4). Em contrapartida, para Mill, dependendo da circunstância, a justiça pode vir a ser posta em segundo plano. Na conclusão de seu capítulo sobre justiça, veremos, Mill retomará este ponto, que Rawls tratará de criticar (ibid, p. 32). De acordo com o quarto sentido, é “injusto quebrar fé com qualquer um” (§8). Já de acordo com a quinta acepção, o injusto refere-se à parcialidade. É “inconsistente com a justiça ser parcial; mostrar favor ou preferência a um sobre outro” (§9). Desnecessário dizer que, em certos momentos, a parcialidade tem sua vez; nem sempre é censurável demonstrar preferência a uns sobre outros. A caridade começa em casa, diz o ditado. Com efeito, não se julga louvável quem, em circunstâncias normais, favorece um total estranho e descuida dos conhecidos. A imparcialidade é obrigatória quando os direitos estão em questão. A obrigatoriedade da imparcialidade descende da “obrigação mais geral de dar a cada um o que lhe é devido [giving everyone his right]” (§9). 2 Do ponto de vista do direito, isto implica que a justiça deve ser cega e tratar os cidadãos imparcialmente. Do ponto de vista do governo, ser imparcial pode significar levar apenas o “interesse público” em 2

A tradução mais literal da passagem (dar a cada um seu direito) é indesejável porque dá margem à interpretação de que a imparcialidade seria a fonte criadora dos direitos, o que não é o caso. Outras traduções possíveis: dar a cada um o que lhe é de direito; dar a cada um o que lhe é justo. A equivalência de “right” por “justo” segue a tradução brasileira de Uma Teoria da Justiça (RAWLS, 2008). A escolha é apropriada, todavia convém ressaltar que outras seriam possíveis, porquanto “right” deriva do alemão “Recht” e, à maneira deste, possui três acepções. Referida a ações, “right” significa que a ação não atenta contra a justiça. Em segundo lugar, “right” é usado para denominar os direitos legais dos indivíduos. Contudo, também serve de adjetivo a pessoas, sem necessariamente implicar uma conotação jurídicolegal (por exemplo: daquele que acertou uma equação matemática, diz-se que estava “right,” i.é, “correto”). A respeito da relação entre “right” e “Recht” e seus possíveis usos, vide a Introdução de Sullivan para a tradução inglesa da Metafísica dos Costumes (Londres: Cambridge, 2009).

consideração no preenchimento do quadro de funcionários públicos (§9). Compreendese pois que, “enquanto obrigação da justiça,” a imparcialidade significa “ser influenciado exclusivamente pelas considerações que [...] devem influenciar o caso em questão” (§9). Junto com a ideia de imparcialidade, geralmente se associa a de igualdade, que tem que ver com a distribuição de direitos e bens. Pelo último, Mill compreende “o produto do trabalho” (§10). A justiça enquanto imparcialidade, portanto, remete à distribuição de bens e direitos entre as pessoas. Todos concordam que a distribuição exige um princípio de justiça como guia, entretanto ninguém concorda que princípio este deve ser. “Dentre aplicações tão diversas do termo Justiça, [...] é difícil apreender o liame mental que subjaz a todas, sob o qual o sentimento moral anexado ao termo essencialmente depende.” (§11). Diante deste imbróglio, prossegue Mill, talvez seja de alguma ajuda proceder filologicamente e analisar a história do termo. Em todos seus cognatos arcaicos, a justiça se associava com a lei positiva, de modo mais ou menos rígido. No caso do judaísmo, a relação era de extrema rigidez. Sem jamais admitir exceções, o código moral hebraico era fechado, e a justiça residia na Lei. Isto se deu “até o nascimento do Cristianismo” (§12). De fato, o Cristianismo representa um ponto de inflexão na relação entre indivíduo e lei. É bem sabido que Jesus revê abertamente o decálogo. Inclusive, há situações em que sua desobediência ao ordenamento jurídico é deliberada e exercida em público (características exemplares da desobediência civil), como no caso da adúltera, que segundo a Lei de Moisés, seria apedrejada (João 8, 1-11). Tratar-se-ia do primeiro caso de desobediência civil da história? É pouco provável. Lembremos de Antígona e sua desobediência ao édito do Rei, que proibira sua família de enterrar o corpo de seu irmão e ordenava que seu corpo fosse largado a esmo para as rapinas. Quando confrontada com os guardas por ter sepultado o defunto, Antígona despreza o direito positivo por sua injustiça e, altiva, justifica sua desobediência, alegando que “não são estas as leis estabelecidas [...] pela Justiça dos deuses” (Antígona, 463). Embora fictícia, a tragédia de Sófocles reflete um costume difundido entre gregos e romanos, qual seja, o de cultivar uma relação inteligente e aberta com a lei positiva. Segundo Mill, os antigos “sabiam que suas leis, originalmente, tinham sido feitas pelos homens” (§12). Assim sendo, eles

não tinham medo de admitir que os homens são capazes de criar leis más, [...] o que chamar-se-ia de injusto. Compreende-se, pois, que o sentimento de injustiça fosse associado não a qualquer violação da lei, mas apenas a violação daquelas leis que deveriam existir, incluindo [...] a [violação] às próprias leis, se concebidas como contrárias ao que a lei deveria ser (§12).

Feita a análise do termo justiça, conclui-se que, em seus primórdios, “Δίκαιον” designava a lei correta [rightful law], isto é, a lei que estava de acordo com o direito (§12). Nesta perspectiva, o poder, responsável pela promulgação e garantia da execução da lei positiva, estava dissociado do direito e da justiça, razão pela qual era possível que as leis positivas fossem injustas [unrightful], ou o que dá no mesmo, contra o direito. Direito e poder, em suma, conviviam em relação de exterioridade para os antigos, motivo pelo qual podiam entrar em conflito. Qual a diferença entre a justiça com relação às “obrigações morais em geral” (§14)? De modo geral, a moralidade diz respeito àquilo que, na ausência de sua realização, é passível de censura e reproche. Ela trata do que deve ser feito, e que não sendo feito, insta por punição. Já a justiça, sua particularidade está na intersubjetividade. Em última instância, a justiça reside em um indivíduo, ou em um agregado de indivíduos: Parece-me que esta característica [...] – um direito em uma pessoa, correlativo a uma obrigação moral – constitui a diferença específica da justiça [...]. A justiça implica algo que é não apenas direito [right] fazer, mas também o que um indivíduo pode reclamar de nós em virtude de seu direito moral (§15).

Retomando a divisão kantiana entre deveres perfeitos e imperfeitos, Mill afirma que a justiça coincide com a classe dos deveres perfeitos, ou seja, com os deveres que “geram, numa ou várias pessoas, um direito correlativo” (§15). O autor cita o exemplo da caridade: posto que seja uma obrigação moral, ser caridoso não é, propriamente, uma questão de justiça, visto que sua execução não se refere “a uma pessoa específica” (§15). O rosto da justiça tem contornos definidos; a justiça é pessoal. Embora resulte das relações sociais entre os diferentes indivíduos, a justiça, ela própria, não se aplica à estrutura básica da sociedade. Ela deriva da pessoa moral, dos direitos individuais. Para Mill, não faz sentido pensar a justiça como uma relação de cegos cobertos por véus, incapazes de identificar um sujeito determinado, de carne e osso, a quem a justiça se refere.

Tendo definido a justiça, Mill passa à análise da origem do sentimento associado à justiça. No seu entender, o sentimento da justiça compreende dois elementos essenciais: “o desejo de punir uma pessoa que causou dano, e o conhecimento ou a crença de que há um ou mais indivíduos específicos a quem o dano foi causado” (§18).3 Quanto ao primeiro elemento, Mill constata que ele “nasce espontaneamente de dois sentimentos, ambos naturais [...]: o impulso da autodefesa e o sentimento de simpatia” (§19). Todo animal deseja retaliar qualquer dano que ele, ou aquele com qual simpatiza, sofre. A diferença é que, no ser humano, sua “inteligência mais desenvolvida” o conduz a uma “maior amplitude da simpatia” (§19). Como diria Rawls a respeito de Mill, o sentimento moral da justiça descende do “desejo de estar em união com outrem” (RAWLS, 2007: 282). De acordo com a teoria da justiça milliana, “deve haver uma harmonia entre os sentimentos e fins que são nossos e os sentimentos e fins que são dos outros” (idem). A justiça implica uma harmonia entre o individual e o coletivo, a formação de “uma comunidade de interesses” (§20). A simpatia mais alargada do ser humano, junto com sua inteligência mais elevada, sincroniza o interesse individual com o coletivo. É daí que vem a justiça, sentimento que nos impele “a agir conforme o bem comum” e que cria uma identidade comum entre o indivíduo e sua comunidade (§21). A justiça implica uma noção de bem comum, alicerce da união social. Ela não deriva de um acordo hipotético feito por indivíduos exclusivamente autointeressados – para não dizer egoístas –, que barganham entre si a fim de maximizar ganhos e minimizar perdas. Eis a diferença da teoria de Mill para com Rawls. Segundo Mill, a identificação do interesse individual com o coletivo está presente na teoria da justiça kantiana. “Age de modo que a regra de tua ação possa ser adotada como lei por todos os seres racionais” – o imperativo categórico reconhece, implicitamente, que a presença ou ausência de interesse coletivo em uma ação é critério determinante para se avaliar sua justiça (§22). O imperativo categórico demonstra que a ação injusta é aquela cuja regra não interessa ninguém senão a mim próprio. “Para dar significado ao princípio de Kant, seria necessário interpretá-lo da seguinte maneira: devemos orientar nossa conduta por uma regra que todos os seres racionais possam adotar com benefício para seus interesses coletivos” (§22). Ou seja: a ideia de 3

Daqui Mill extrairá o princípio do dano, pedra de toque do ordenamento jurídico. Grosso modo, o princípio do dano afirma que o direito positivo só pode punir a ação que causa dano a outrem. O dano deve ser cerceado porque ameaça o livre desenvolvimento da individualidade, base do poder (Sobre a Liberdade, cap. 1 e 3).

“simpatia” e de “espectador imparcial,” cuja presença leva Rawls a criticar o utilitarismo, também marca presença no pensamento de Kant. O imperativo categórico de Kant, na medida em que alvitra a união de todas as pessoas em um todo abstrato, também é passível de ser repudiado por “não levar a sério a distinção entre as pessoas” (RAWLS, 2011, p. 33). Em resumo, o justo [right] está imbricado com a noção de retaliação. Dizer que alguém possui direito [right] a algo significa reconhecer que sua posse há de ser protegida pela sociedade, “seja por força de lei, seja por força da educação e da opinião” (§23). Porém, por qual motivo deveria a sociedade proteger este direito individual? Mill responde: os direitos individuais devem ser protegidos por conta de sua “utilidade geral” (§25). Por esta última, o autor não denota o prazer cru (pace Bentham). Decerto, o utilitarismo milliano também é hedonista, no sentido em que matiza a utilidade como aquilo que maximiza o prazer e a felicidade. No entanto, Mill introduz uma distinção de natureza na classe dos prazeres: há os inferiores (os sensuais) e os superiores (os intelectuais). A vida feliz é aquela na qual os prazeres superiores predominam sobre os inferiores (vide cap. II do Utilitarismo). “Considero a utilidade como a solução última de todas as questões éticas,” Mill escreve no primeiro capítulo de Sobre a Liberdade (1859, p. 15). Todavia, Mill faz questão de sublinhar que concebe a utilidade “em sentido amplo, fundamentada nos interesses permanentes do homem enquanto ser progressivo” (idem, grifo meu). Em síntese, a promoção dos direitos individuais se deve à utilidade que, por sua vez, está fundamentada nos interesses permanentes do ser humano, que jamais podem ser sacrificados a fim de maximizar o montante geral de utilidade. Eis a grande diferença do utilitarismo milliano para com o “utilitarismo clássico” (vide a explicação de RAWLS, 2011, pp. 28-38). De fato, a aproximação da utilidade com a inviolabilidade da pessoa, apresentada em Sobre a Liberdade, faz com que “a concepção de utilidade em Mill não seja, ela própria, utilitarista” (RAWLS, 2007, p. 269). A respeito da separação entre utilidade e justiça, Mill declara: “se a justiça é totalmente independente da utilidade e constitui um critério per se que o espírito pode reconhecer por simples introspecção, então é difícil compreender por que semelhante oráculo interno é tão ambíguo” (§26). Dito de outra maneira, se os princípios da justiça são passíveis de intuição geral, como compreender o conflito? As questões de justiça estão, atesta Mill, constantemente em disputa. O que se considera justo e útil varia

conforme a posição histórico-geográfica. Indexar a justiça a uma intuição geral sugere a possibilidade de extirpar o conflito de uma vez por todas, e os fatos, segundo Mill, denunciam que semelhante expectativa é ingênua. Por mais que, à luz de suas intuições privilegiadas, se vanglorie por não ser contraintuitiva, semelhante teoria da justiça é, rebate Mill, contrafactual. A justiça vive imersa em conflitos e, por vezes, a “utilidade social” é de alguma valia para solucioná-los (§30). A tributação dever ser aplicada proporcionalmente à renda, ou cada cidadão deveria ser obrigado a contribuir com o mesmo tanto? É lícito permitir que os mais qualificados ganhem mais, ou a sociedade deve criar mecanismos de compensação para os menos favorecidos, a fim de garantir que sua renda não diste em demasia dos trabalhadores qualificados? Estes são exemplos de questões controversas, marcadas por posições antagônicas, cada qual invocando a justiça a seu favor. Segundo Mill, nestes casos, “é impossível estabelecer harmonia” entre os grupos sociais que, por conta de sua posição, não largarão mão de sua posição (§30). Os trabalhadores não qualificados insistem que o justo proíbe remuneração desigual; os empresários afluentes clamam que a justiça demanda tributação igual a todos. Ao invés de procurar um solo mínimo, que apazigue os conflitos e unifique os diversos grupos sociais em torno de uma concepção unívoca de justiça, Mill recorre a outro critério: a utilidade social. Para decidir qual dos lados convém mais à justiça, vale perguntar: qual posição condiz com a utilidade social? Isto é, qual posição melhor satisfaz “as condições essenciais do bem-estar humano” (§32)? O bem-estar humano opera, por assim dizer, como obrigação da justiça. As “obrigações da justiça”, Mill especifica no parágrafo seguinte, compele-nos a não danificar a vida de nossos semelhantes, isto é, a não impedi-los de exercer “a liberdade de perseguir seu próprio bem” (§33). A justiça, dizíamos, nos leva a agir conforme o bem comum. Entretanto, o que aqui se designa de bem comum está longe de ser tirânico e homogêneo. Pelo contrário, o bem comum a que Mill alude visa, justamente, o florescimento das diferenças, a coexistência de uma infinidade de “experimentos de vida” (MILL, 1859, p. 63). No entanto, na visão de Rawls (1985), ainda que defina o bem comum de modo aberto, a pluralidade da justiça milliana esbarra em certos limites. Conquanto estime a pluralidade, Mill valoriza o estilo de vida crítico – o ideal da individualidade sui generis – em detrimento dos demais, e repudia, por exemplo, o conformismo. A individualidade, Mill adverte no terceiro capítulo de Sobre a Liberdade, é peça-chave da

utilidade social, que é precisamente a base da justiça. Porém, segundo aponta “Justice as Fairness: Political not Metaphysical”,

semelhante ideal [da individualidade milliana] . . . é incompatível com outras concepções de bem presentes em formas de vida pessoais, morais e religiosas consistentes com a justiça e que, portanto, têm sua vez em uma sociedade democrática. Enquanto ideais morais abrangentes, a autonomia e a individualidade são inadequadas para uma concepção política da justiça. Tal qual o encontramos em Kant e J. S. Mill, estes ideias abrangentes, não obstante sua demasiada importância no pensamento liberal, vão longe demais (RAWLS, 1985, p. 409).

Como Mill reconhece em Sobre a Liberdade, a individualidade é um ideal repudiado por muitos. O próprio autor, com efeito, se dispõe a tentar convencer a maioria acerca do valor moral da individualidade e reserva toda a segunda metade do capítulo III do Sobre a Liberdade para tanto. Rawls, em contrapartida, isenta-se de semelhante embaraço, uma vez que sua teoria da justiça foca, sobretudo, no procedimento utilizado na distribuição dos bens pela sociedade, dispensando o que entende por ideais morais abrangentes, tal qual a autonomia kantiana e a individualidade de Mill. Ao término do texto, Mill acena para o tema da “justiça distributiva”, ao elevar, como “preceitos de justiça,” a imparcialidade e o tratamento equânime dos cidadãos, em certa medida, perante as “instituições” (§36). Em certa medida, porque a igualdade aqui é proporcional ao mérito: “devemos tratar igualmente bem (quando um dever superior não o impedir) todos os que para nós tenham iguais méritos, e a sociedade deve tratar igualmente bem todos os que para ela tenham iguais méritos” (§36). É possível, pois, que a igualdade, preceito da justiça, seja posta de lado por conta de algum dever superior. Assim sendo, nota-se que, segundo Mill, os componentes da justiça não são fixos:

Todos [...] têm igual direito aos meios de obtenção da felicidade, salvo quando as inevitáveis condições da vida humana e o interesse geral, que compreende o de cada indivíduo, impõem limites à regra [...]. Tal como qualquer outra máxima de justiça, de modo nenhum é possível aplica-la, ou julgá-la aplicável, universalmente (§36).

As máximas da justiça não constituem, rigorosamente falando, máximas. Dependendo da circunstância, o justo pode variar:

[A] palavra justiça designa certas exigências morais que, consideradas em seu conjunto, ocupam um lugar elevado na escala da utilidade e são, portanto, mais rigorosamente obrigatórias do que quaisquer outras; embora possam ocorrer casos particulares em que

algum outro dever social seja tão importante a ponto de revogar as máximas gerais da justiça. Assim, para salvar uma vida, talvez seja não só lícito, como inclusive um dever, roubar ou obter pela força os alimentos ou medicamentos necessários, ou raptar o médico, quando é o único homem qualificado, e constrange-lo a cumprir sua função. Em tais casos, visto que não chamamos de justiça o que não é uma virtude, não costumamos dizer que a justiça deve dar lugar a algum outro princípio moral. Dizemos, antes, que o justo em situações ordinárias, em virtude desse outro princípio moral, não é o justo no caso particular. Graças a esse artifício útil da linguagem, salvaguarda-se o caráter de inviolabilidade atribuído à justiça, o que nos poupa de ter de afirmar que pode haver injustiças louváveis (§37).

Eis a conclusão do capítulo, o clímax de toda a discussão, que Uma Teoria da Justiça tratará de criticar. No primeiro capítulo desta obra, tendo em mente a citação acima, Rawls afirma que

de uma perspectiva utilitarista, a interpretação desses preceitos [de justiça] e de seu caráter peremptório é a de que esses são os preceitos que a experiência mostra que devem ser estritamente respeitados e que só se deve afastar deles em circunstâncias excepcionais, quando se quer maximizar as vantagens (RAWLS, 2011, pp. 31-2).

Para corroborar esta interpretação do utilitarismo, Rawls menciona, justamente, os parágrafos 37 e 38 do quinto capítulo do Utilitarismo. Contudo, em nenhum desses parágrafos encontramos o termo “vantagens”. Isto já evidencia que, a fim de fortalecer sua própria teoria, Rawls empresta seus termos a uma passagem onde os mesmos inexistem. Primeira observação. Uma análise atenta dos parágrafos, penso, é suficiente para desestabilizar ou até desbancar a crítica rawlsiana. Nestes dois parágrafos, Mill não afirma que devemos nos afastar da justiça para garantir a maximização de “vantagens” (expressão que lhe é estrangeira). Muito pelo contrário, o que diz é que, justamente para não sacrificar a justiça, há casos em que temos de ser corajosos o suficiente e ir contra os preceitos que, via de regra, reputam-se como justos. Poder-se-ia objetar, todavia, que embora não use o termo vantagens, a “utilidade social” que define a justiça milliana equivale ao que Rawls nomeia de vantagens. A objeção é questionável (o que Rawls entende exatamente por “vantagem” e o que permitiria identifica-la com a utilidade social de Mill?), porém concedamos, não obstante, a questão. Ainda assim, a objeção não procede. Para Mill, as coisas não se passam como se houvesse, de um lado, a justiça, e de outro, a utilidade social. A relação entre justiça e utilidade social não é de exterioridade, tampouco de submissão. A justiça é a utilidade social:

A justiça é o nome apropriado para certas utilidades sociais que são deveras importantes e que se impõem, portanto, de modo mais absoluto e imperativo que as demais [utilidades sociais] (ainda que, entre estas últimas, possa haver outras que se imponham mais em casos particulares). (§38).

Não é lícito afirmar que a utilidade social nos afasta da justiça em dados casos. Não é o que Mill diz. Antes, o que afirma é que, em certos casos, a utilidade social – isto é, a justiça – nos leva a revogar preceitos que, ordinariamente, reportam-se como justos. Nestes casos, o utilitarismo milliano continua tão comprometido com a justiça quanto antes. De acordo com Mill, não existe injustiça louvável. É por conta de seu compromisso inegociável com a justiça que devemos recusar aqueles preceitos que, no mais das vezes, configuram o justo. De uma teoria da justiça, devemos exigir tanta exatidão quanto for possível. Teorias ético-morais diferem das geométricas neste respeito (pace RAWLS, 2011, p. 152).4 A obediência cega a máximas intransigíveis não condiz com a justiça. A virtude da justiça exige jogo de cintura, uma sensibilidade crítica que saiba reconhecer os momentos em que, por exemplo, o preceito “não roubarás” deixa de ser justo. A interpretação de Rawls não faz jus às palavras de Mill.

Referências.

MILL, J. S. Utilitarianism. Edição e notas de J. Gray. Oxford: Oxford University Press, 2008 [1863]. RAWLS, J. A Theory of Justice. Cambridge, MA: Harvard University Press, 2011. ______. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2008. ______. “Justice as Fairness: Political not Metaphysical”. In: Collected Papers. Cambridge, MA: Harvard University Press, 2001 [1985]. ______. Lectures on the History of Political Philosophy. Cambridge, MA: Harvard University Press, 2007.

“Nossa investigação [ética] será adequada se tiver tanta clareza quanto comporta o assunto, pois não se deve exigir a precisão em todos os raciocínios por igual” (Aristóteles, Ética Nicomaqueia, 1094b11-5). 4

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