O conceito de Representação - Literatura, Religião e Cinema

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O CONCEITO DE REPRESENTAÇÃO LITERATURA, RELIGIÃO E CINEMA

O mundo é ‘re-presentado’, tornado mais uma vez presente. Sophia de Mello Breyner Andresen (1991:341)

1. IMITAÇÃO E MIMESE

Com as reflexões de Platão e Aristóteles, instauram-se duas visões sobre a (arte de) imitação: o discípulo de Sócrates condena-a, apelando mesmo à «(...) necessidade de a recusar em absoluto (...)», pois «(...) todas as obras dessa espécie se (…) afiguram ser a destruição da inteligência dos ouvintes (...).» (Platão, 1972:451). Este sentido negativo atribuído à imitação é justificado por «(...) o poeta imitador instaurar na alma de cada indivíduo um mau governo, lisonjeando a parte irracional (...), que está sempre a forjar fantasias, a uma enorme distância da verdade.» (id.:472). Se as existências do mundo sensível são cópias das ideias puras, modelo ideal, o artista, ao imitá-las, produz imagens de imagens do arquétipo, cópia da cópia, simulacros, pelo que se distancia duas vezes do real, afastando o homem da contemplação da verdade. O poeta «imita» pessoas

que

actuam,

transformando-se,

pelo

discurso

directo

das

representações dramáticas, nas personagens, dando vida e alimento às paixões, suscitando ilusões e falsas crenças, sem conformidade com a verdade universal das ideias. Daí, a «mimesis» ser um processo enganador e perigoso para a alma, sendo a imitação perturbadora e deformadora da realidade. O filósofo peripatético defende que «(...) imitar é congénito no homem (...)» (Aristóteles, 1986:106), faculdade inerente ao ser humano desde que 1

nasce, dado tratar-se do modo como aprende e apreende o mundo e que o diferencia dos animais. Segundo Aristóteles, a arte seria imitação por imitar a natureza, suprindo as suas deficiências, entendendo-se a «mimesis» como uma acção técnica recriadora da realidade, não repetição, mas analogia, semelhança – que o produto artístico seja não verdadeiro ou falso, mas possível, provável, verosímil, visando o universal e não o particular. A imitação poética é, pois, imitação criadora. O objecto de todas as artes é a imitação de homens que praticam acções, imitando-os melhores do que são, na tragédia, ou ridicularizando-os, na comédia. Daí, pois, que o feio possa agradar. A obra de arte (um quadro, por exemplo) será como uma duplicação fotográfica do mundo sensível, fruto de um desenho interior formado no espírito, reprodução de uma imagem interior da mente do artista. A imitação consiste, pois, em apreender elementos da realidade, construindo uma imagem simbólica. Não consiste em duplicar, dado não existirem duas imagens iguais – só há imitação quando falta ou existe algo mais do que no modelo.1 A actividade imitativa é, assim, um processo produtivo e construtivo que implica uma relação e uma partilha, para que haja conformidade entre a imitação e o objecto imitado, que permita o reconhecimento e a equivalência. A arte, como mimese, para ser interpretada, implica um conjunto de normas e convenções, um código cultural – a obra de arte imita a realidade, mas não é reflexo da realidade, uma cópia do real. Condicionado pelas expectativas do artista e do receptor, condicionando uma obra e a sua interpretação, o acto imitativo é determinado pela tradição e por mecanismos que permitem reconhecer uma imagem como representação da realidade ou a percepção que dela se tem. Só a familiarização

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«(...) os poetas imitam homens melhores, piores ou iguais a nós, como o fazem os pintores (...).» (Aristóteles, id.:105).

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com as convenções de cada área artística possibilitará julgar a expressão das ideias ou emoções de uma obra a ela pertencente. Entenda-se, pois, que haja rejeição do que é inabitual, artisticamente, dada a sua «irrealidade». Veja-se o caso das vanguardas – por exemplo, a revista Orpheu, em 1915, tinha como objectivo irritar o burguês, escandalizar, expressando uma vontade de romper com o passado, de procurar formas novas, de experimentar processos de escrita diferentes, de demolir, de renovar e inovar. O texto literário é uma construção da realidade, uma «realidade fictícia», um «mundo fictício», é representação num outro plano. Imitar implica uma composição e uma transformação, que recria metaforicamente a realidade. A «mimesis» não é imitação ou reprodução, mas produção sob efeitos da verosimilhança e da subjectividade: o universo que uma obra constrói é um mundo possível,2 «(...) universo dotado de uma existência puramente textual (...)» (Reis, 1997:563), construído a partir da leitura e da interpretação que o autor faz da realidade, da sua relação com ela, com outros textos escritos, produzido num determinado contexto. A ficção organiza a realidade em termos de sentido, apresentando um modelo ou uma proposta de realidade ao representar entidades do mundo real3 – o homem recorre às palavras (é a linguagem que produz o texto4) para estruturar a sua percepção e representar o real.5 A interpretação consiste em mostrar algo, é uma explicação de sentido e uma reformulação – «fazer é refazer» (Goodman, 1995:43), conduzindo a versões-de-mundos e não uma única, que se considere verdadeira, o que seria uma hipótese arbitrária. Assim, a ficção é uma pluralidade de mundos, uma 2

«(...) o possível não é mais do que a face invisível do real.» (Magalhães, 2000:258). «Mas foi a minha imaginação (partindo do real, eu sei) a construí-la. Magia para filtrar o mundo, dar-lhe algum sentido.» (Oliveira, 2003:28). 4 «Toda a designação do real cabe à linguagem.» (Bessiére, 1995:381). 5 «A percepção e a representação não copiam, pela simples razão de que o mundo apreendido é já o produto da interacção entre sujeito e objecto, entre o homem e o real.» (Buescu, 1990:268). 3

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leitura do real: «A work of art that imitates a model of reality thus seems to be imitating reality itself.» (Steiner apud Buescu, id.:266). O mundo está no texto enquanto é referido por ele – o texto apenas pode falar do mundo, representálo. A «mimesis» é um «(...) processo impulsivo de imitar, não a realidade, mas uma sua representação.» (Medeiros, 2000:37).

2. REPRESENTAÇÃO

Considerava Aristóteles: «(...) não é ofício do poeta narrar o que aconteceu; é, sim, o de representar o que poderia acontecer, quer dizer: o que é possível segundo a verosimilhança e a necessidade.» (id.:115). A representação é uma forma de compreender, de perceber o mundo, simbólica e referencialmente, mediada por um sujeito; inclui aspectos e elementos reconhecíveis do «universo real»,6 imagem de algo ausente, representado interiormente pela imaginação, configurando-o: «(...) há representação porque há refiguração (...).» (Bessiére, id.:382). Não se trata de uma cópia servil, mas de uma interpretação, de uma leitura pessoal da realidade. É a capacidade de idealizar, aliada à ficção e à transposição, que apresenta metaforicamente a correspondência entre uma pessoa ou objecto e o seu representante.7 É a ideia de tomar o lugar de: na política, os deputados representam os seus concidadãos, que os elegeram como seus representantes; no teatro, os actores representam as personagens criadas pelo dramaturgo, dãolhes vida perante os espectadores, presentificam-nas no palco – «(...) a noção de 6

«Não há representação a não ser através de um lugar e de um momento, através de uma personagem e de uma acção que é a relação da personagem com os objectos desse lugar e desse momento (I. Watt, 1957).» (apud Bessiére, id.:383). 7 «As goteiras tilintam: como registar este som?» (Oliveira, id.:30). Para representar sons da natureza, recorre-se à criação de palavras que traduzam o seu significante.

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representação quer dizer tornar presente, mas implica sempre uma mistura de presença e de ausência; de identidade e de diferença.» (Matos, 2001:208). A representação de algo para alguém implica um acordo, um código, uma convenção para a nova forma de apresentar, através da mimese e da verosimilhança, a realidade concreta. Aquilo que representa é diferente do que é representado, assegura a sua presença, substitui o que está ausente – é pela semelhança que a representação pode ser conhecida, interiorizada na consciência, presente no espírito. Pensemos na religião: quando se diz que as estátuas representam santos ou a Virgem, o que se afirma é a relação aceite, convencionada, da classificação daquela imagem que denota o objecto que se pretende imitar. Porque não é mais que uma norma religiosa o acto de ver e de acreditar nas imagens a santificação dos seres a que correspondem. Nem sequer se podem dizer que são feitas à imagem de quem representam, pois não existem representações primitivas da Virgem ou dos santos que nos mostrem, com fidelidade, como eram, realmente. Acredita-se que representarão como poderiam ter sido, ou melhores, nos traços físicos e na expressão de beleza e grandeza, à semelhança ou em substituição do que não está lá. E a cruz - como ler o que representa a cruz? Nalgumas igrejas, encontram-se imagens de uma figura masculina crucificada, noutras, tão-só uma cruz nua de madeira. No primeiro caso, pretende-se que a expressão de dor e sofrimento provoque nos fiéis (apenas?) a comoção e desperte a consciência da responsabilidade do peso que, diz-se, Jesus teria assumido para a nossa salvação. No segundo caso, estamos perante um símbolo, ou um índice, dado remeter para a imagem antes descrita.8 Não é

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«(...) porque representar é seguramente referir, estar por, simbolizar. Toda a obra representacionista é um símbolo (...).» (Goodman, id.:104-105).

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necessário mais para despertar a memória da narrativa da Paixão de Cristo. Mas aceita-se que a cruz de madeira representa a morte e a promessa da ressurreição de Jesus. Só para o crente é que as estátuas e a cruz representam o que a tradição cristã designa como os seus representantes. E como é representada a figura divina? Tida como omnipotente e omnipresente,

será

representável?

Pensar

no

divino,

conceber

um

conhecimento abstracto, invisível e inefável, remete-nos para o domínio do irrepresentável. Só pela escrita foi possível caracterizar Deus, as suas qualidades e manifestações, recorrendo a um discurso sublime. No tecto da Capela Sistina, na cena da «Criação de Adão», Miguel Ângelo representa Deus como um homem de cabelos e barbas brancos, pretendendo significar o tempo absoluto, a sabedoria, a venerabilidade, o respeito e a autoridade que a idade traria. Outra possível representação da entidade divina é sob a forma de um triângulo branco, representando a Santíssima Trindade: Pai, Filho e Espírito Santo. E como interpretar este através de uma pomba branca? As igrejas são, pois, representação do espaço divino e este modo simbólico de representação, classificatório e normativo, impõe ao homem o seu lugar diante de Deus, garantindo o legado perpétuo de uma ideologia e a sua regra de leitura. Entendendo-se a representação da figura humana como obedecendo à harmonia das partes, à proporção das superfícies e dos volumes, à dimensão dos membros e à sua relação com o tronco e a cabeça, ela é posta em causa quando se pensa numa figura extra-ordinária: o monstro. Mistura de seres, de partes de seres, miscelânea de órgãos e de medos e lendas aliadas a cargas simbólicas, o monstro descentra a representação: «Como estranho à ‘perspectiva’, nega este modo de ‘simbolização’ (...).» (Gil, 1994:68).

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Pode entender-se o conceito de representação como: a) reprodução na consciência de percepções passadas – as recordações; b) antecipação de acontecimentos futuros – a imaginação. Unidas, estas duas perspectivas criam uma representação de vivências do passado e antecipações do futuro que encontraremos, por exemplo, nas obras de Júlio Verne, que encantam e surpreendem pela capacidade de recriação e antevisão. É o que nos apresenta a ficção científica – a criação de futuros mundos possíveis, não sem colher elementos da realidade contemporânea, efabulando-os.9 Não é reprodução ou reflexo da realidade; inventa-a, cria um outro universo: «(…) utópico, mítico, ou apenas por vir.» (Matos, id.:213). Por isso, o Romantismo defendia o valor da individualidade do génio criador sobre a imitação de modelos, rejeitando o conceito de mimese pelo de expressão.

3. AUTO-REPRESENTAÇÃO E ENCENAÇÃO

Representar é colocar algo em vez de, é característica inata ao homem dada a sua percepção da morte, mantendo «in praesentia» uma construção de sentido diferente da realidade. A obra de arte é uma construção de algo novo segundo uma convenção, que adquire uma nova vida enquanto houver leituras e leitores, dependente da construção de vários intérpretes. A representação implica, pois, uma construção de que o construtor não é só o autor. Pensemos na fotografia: forma de documento do real, é uma representação que deverá ser estudada em comparação com obras literárias, com quadros e com outras fotografias da mesma época, como forma de

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«A arte é, antes de mais, criadora, no sentido de desencadear experiências antecipadoras e alternativas relativamente à realidade de determinado momento e circunstância.» (Matos, id.:213).

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cruzamento de dados e apuramento de um contexto epocal. A representação fotográfica permite captar o indivíduo num determinado instante, melhor ainda que o retrato pintado, tornando desnecessário que o modelo estivesse a posar várias horas para que o pintor elaborasse, atenta e pacientemente, o quadro. Mas, inicialmente, manteve-se a encenação, a pose, a construção de cenários, imaginando-se o retratado qual personagem histórica, fantasiando, pondo em cena um jogo ficcional que a fotografia guardaria. Posteriormente, o cinema virá juntar movimento e vida ao retrato. Este não é um simples reflexo da realidade: através de técnicas fotográficas, como o enquadramento e a iluminação, o fotógrafo produz uma certa imagem que permanecerá. É essa vontade de permanecer, de escapar ao desaparecimento, de deixar marcas ou sinais de si, que justifica a auto-representação, como repetição, multiplicação de imagens, exemplo de iteração e a negação da morte como motor da representação. O indivíduo percepciona-se como um ser finito e desenvolve uma capacidade de criar respostas para a sua tomada de consciência através de imagens ou textos, objectos que o façam esquecer a sua condição de mortal:

A representação do Outro ou de si surge pois como manifestação de uma presença no mundo, como ponto de vista sobre esse mundo, mas também como forma de potencialmente o recriar ou restaurar. Representar é sempre revolucionar. É sempre uma forma de protesto contra o desvanecimento do ser no tempo. (Medeiros, id.:36)

Leia-se, agora, um pequeno texto de Maria Judite de Carvalho (1975:2527), para reflectir sobre a questão da representação de si próprio:

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O GRAVADOR Eu não sabia como era a minha voz; nunca a tinha escutado a sério, com atenção... Como havia de ser se falo ao mesmo tempo? Um dia apareceu lá em casa um gravador, e ei-la a entrar-me pelos ouvidos. Isto é a minha voz? perguntei num espanto. E todos a dizerem que sim, pois claro, que era exactamente a minha voz, sem tirar nem pôr. Coisa mais misteriosa! Uma pequena máquina que rasga os véus entre nós e a nossa voz, que a fixa ali, como ela é, na fitinha castanha, até à curta eternidade das fitas magnéticas. Ali está ela, a minha voz (dizem todos que sim e eu acredito) a dizer não sei o quê há três meses e tal, uma frase qualquer sem pés nem cabeça, a que me ocorreu na altura. Coisa útil também, já pensaram? Não para gravar canções, nem conversas, nem frases sem pés nem cabeça, nada disso. Pedir às pessoas que nos são mais queridas, aos grandes amigos, àqueles que farão tudo por nós, que gravem frases tranquilizadoras que depois podemos ouvir incessantemente. Frases definitivas sobre o amor e a amizade e a lealdade e a imperecibilidade das palavras, das frases ditas num momento e logo petrificadas para todo o sempre, ali, na fitinha giratória. Hei-de gostar sempre de ti. Você sabe como eu sou seu amigo (ou sua amiga). Nunca seria capaz de uma deslealdade. Longe de ti, não sou eu. Não tem ninguém tão seu amigo (ou tão sua amiga). Coisas assim. A fitinha a voltar atrás a um simples gesto nosso, e nós tranquilos, meu Deus que tranquilidade. De olhos fechados, de sorrisos nos lábios, a ouvir, a ouvir... A acreditar, a acreditar... Na tal imperecibilidade, na tal petrificação... Hei-de gostar sempre de ti. Você sabe como eu sou seu amigo (ou sua amiga). Nunca seria capaz... E adormecer assim.

O texto é exemplo de uma auto-representação e uma reflexão sobre a possibilidade (ou desejo) de perenidade de um sujeito, permitida pela gravação da sua voz. Recorde-se o provérbio latino: «Verba volant, scripta manent» – parece que os tempos modernos reformularam este dito com o avanço da técnica que regista, para além do que é escrito, também o que é dito. Num texto que se representa confessional, uma reflexão pessoal de um «eu», há que questionar quais os limites entre a verdade e a invenção, entre a pessoa e a personagem, e qual a diferença e se há cisão entre a realidade e a ficção – quem

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escreve, oculta-se no que diz; quem fala, fala na sua ausência. Um texto de ficção é um discurso representativo com uma intenção de fingimento e uma aceitação do jogo ficcional por parte do leitor – a suspensão voluntária da descrença –, não implicando uma atitude de verificação: «(…) o que é possível é plausível (…)», afirma Aristóteles (id.:116). O funcionamento da verosimilhança consiste em incutir à ficção o «efeito de real». Neste texto, o sujeito descobre-se, tem uma revelação de si próprio, ao ouvir a sua voz gravada e apercebe-se de não ter consciência de como soa. Mais atento ao acto de falar e às reacções do receptor, não desenvolvera a capacidade de se ouvir a si próprio e necessita da confirmação dos outros. Daí, a surpresa e o desconhecimento que se tornam reconhecimento, «espanto». «Coisa mais misteriosa!»: o gravador ou a consciência de si, no rasgar de «(…) véus entre nós e a nossa voz (…)», marca do sujeito, qual pintura rupestre, legado verbal, permanência da voz, «(…) fixa ali, (...) até à curta eternidade das fitas magnéticas.». Mas será só das fitas, ou também o sujeito se consciencializa da sua efemeridade e da daqueles que lhe são queridos? Solicita-lhes, pois, que também dêem registos de si, suas representações, assinatura, como «praesentia in absentia»,10 do ser, do discurso, dos sentimentos partilhados, quando não estiverem perto, repetíveis, iteráveis, em momentos de inefável solidão e frustração humanas. «Frases definitivas», «imperecibilidade das palavras», «petrificadas», são lexemas que remetem para a ideia da morte, do sujeito, das outras pessoas, dos seus discursos, mas permanentes na memória: «(…) meu Deus, que tranquilidade. De olhos fechados, de sorrisos nos lábios, a ouvir, a ouvir... A acreditar, a acreditar... (...) E adormecer assim.».

10

«(...) a ausência é o lugar primeiro do discurso (...).» (Foucault, 1992:31).

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4. A REPRESENTAÇÃO NAS ARTES PLÁSTICAS E NO CINEMA

O Renascimento é o grande eixo em torno do qual gira a problemática da representação, com a noção de perspectiva: a projecção de um espaço dentro do espaço do quadro. No século XVI, os artistas italianos construíram a câmara escura, uma espécie de caixa escura através da qual o artista copiava sobre grandes telas o contorno das imagens invertidas que nelas se projectavam. Canaletto (1697-1768) foi o primeiro a desenhar com exactidão cenas em perspectiva, através deste processo – recriando a perfeita ilusão de espaço físico no espaço plano, representando a realidade miniaturizada numa superfície plana, reproduzia indícios de profundidade, qualquer que fosse a distância a que se encontrasse o observador. Uma ilusão torna-se realidade, a partir de um ponto (de fuga) que atrai o olhar, tal como na representação teatral um foco de luz orienta o olhar dos espectadores para o palco ou destaca um espaço ou uma personagem – a visão é o sentido verdadeiramente criador da realidade, pois a ideia de profundidade é uma construção. A introdução das noções de espaço e de tempo permitiu que a representação pictórica tivesse uma referência ao mundo objectivo, sendo a ideia de tempo, nos quadros, representada da esquerda para a direita. Quanto à representação do real, a arte grega era profundamente mimética, em busca da «mimesis» perfeita na representação da figura humana, procurando aperfeiçoar o real e transformá-lo em símbolo, ideal de força, beleza e perfeição nas proporções. Os egípcios representavam a figura humana estilizada, com ausência da tridimensionalidade, não dominando o escorço.11

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Representação de objectos em proporções menores que a realidade, efeito de perspectiva segundo o qual os objectos, vistos de frente, apresentam dimensões reduzidas.

11

Pelo

contrário,

representavam

perfeitamente

plantas

e

animais.

Por

comparação, a arte da Idade Média é religiosa, simbólica, não mimética, querendo reproduzir o divino em grandeza, valorizando e destacando o que é mais importante num tamanho maior, como na arte egípcia, dado a diferença no tamanho assinalar uma diferença na importância. Atente-se na (des)proporção das grandes catedrais que esmaga o homem. A fotografia, imagem colada ao real, instituirá uma crise na representação com o desaparecimento do «parecido», apesar de, inicialmente, ter um carácter pictórico com a tentativa de fazer quadros, recorrendo a cenários e à pose. Assiste-se ao desejo de posse da imagem, acessível a um maior número de pessoas, fruto do desejo de superar a morte e dar continuidade à vida, apropriando-se de uma memória viva que substitui o real. No seu seguimento, o cinema será a representação total e completa da realidade, ao reproduzir o movimento. Forma de documentar o real através da imagem e do movimento, o cinema deriva de uma particularidade: a persistência retiniana. Dado que o olho conserva durante uma fracção de segundo a impressão do que vê, basta passar à sua frente, com rapidez suficiente, imagens encadeadas umas nas outras para que se possa reconstituir o movimento – o olho consegue-o facilmente, pois cada imagem surge antes que a anterior tenha desaparecido da retina. Atente-se, agora, no seguinte excerto do Idílio XV de Teócrito: «Ó venerável Atena, que tecedeiras as conseguiram fazer? Que artistas puderam desenhar com tanta exactidão estas figuras? Que verdade nas posições, que verdade nos movimentos! Não parecem tecidas, parecem vivas. O homem é realmente habilidoso.» (Rodrigues, 2000:123). Não existe imagem sem o olhar, que alia e institui uma relação entre recreação e recriação (Auerbach, 12

2002:319) – perante uma tapeçaria, o observador não se cansa de exultar as características da representação (não animada) que admira, mas dotada de tal animismo que parece adivinhar um avanço técnico futuro que fixará e representará a realidade em movimento. A tapeçaria evoca a colagem de fotografias ou fotogramas que se sucedem a um dado ritmo e com uma determinada

rapidez.

Repare-se

na

caracterização:

«tanta

exactidão»,

«verdade», «parecem vivas» – apesar de imóveis nos seus gestos, as imagens parecem ganhar vida e dão ao observador a impressão de assistir a uma cena quotidiana. E será essa a missão do cinema – aliar o divertimento a representações possíveis da realidade; não reprodução do real, ilusão, mas a apresentação de histórias com que os espectadores se poderão identificar e, nesse jogo, ter um efeito catártico, permitindo os possíveis que a vida não concede. No cartaz que acompanha o filme de Alejandro González Iñárritu ressalta uma pergunta: «Quanto pesa a vida?». A resposta é o título do filme: 21 gramas (EUA, 2003). É esse, assegura a ciência, o peso que se perde no momento da morte. Vinte e um gramas separam o tudo do nada. Tão pouco e tanto. Mas o que impressiona é a possibilidade de representar a vida e, opostamente, ser possível medir, pesar, calcular o significado da morte – uma ausência de peso. E como é ele perdido? De que órgão? De que forma? Sob que forma? Voltamos à questão do irrepresentável – mas a ciência afirma... Objectivamente, parece ser facto (representado numa ficção12) qual é a diferença entre a vida e a morte. Noutro filme do mesmo ano, do realizador francês Gaspar Noe, intitulado Irréversible, é apresentado ao espectador uma história de três amigos – uma

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«‘Fabricação’ tornou-se um sinónimo de ‘falsidade’ ou ‘ficção’ por oposição a ‘verdade’ ou ‘facto’. (...) a ficção é fabricada e o facto descoberto.» (Goodman, id.:141).

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mulher, o seu namorado e o seu ex-namorado – e a sua reacção à violação dela, após a saída de uma festa. A forma inovadora de apresentação/representação deste filme é, de igual modo, recordada como a crueza do episódio central da sua história, contada do final para o princípio – isto é, quebrando a norma, a regra de contar uma história linear, do início até ao seu desfecho, aqui, o espectador é chamado a intervir, a participar, a ter um papel activo de acompanhamento, de decifração e reconstituição do que lhe é narrado, pois tem que fazer ligações constantes e permanentes entre as cenas que já viu, sabendo, no início, como acaba a história, não porque deduza de imediato ou lhe seja oferecido tão simplesmente essa conclusão, mas porque tem, logo à partida, conhecimento do final do filme que se encontra a ver. Representação da literatura realista do século dezanove emoldurada pela perspectiva do Renascimento, o cinema passou de arte de feira para os pobres para entretenimento que disputa o lugar das artes plásticas e da literatura.

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BIBLIOGRAFIA

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RESUMO

A recusa platónica da imitação, como perturbadora e deformadora da realidade, e a defesa aristotélica, que considera a imitação como criadora, marcaram os primórdios da representação simbólica da realidade. Tendo por base uma relação de equivalência que permite o reconhecimento do real, constrói-se um mundo fictício, possível, recriando metaforicamente a realidade, numa representação que a configura através de uma leitura pessoal. Através de uma regra normativa, as figuras religiosas representam o divino e a arte pictórica procurará representar o real nas suas características de espaço, tempo e profundidade. O cinema será a representação total e completa da realidade, ao reproduzir e fixar o movimento.

A actividade imitativa é um processo produtivo que implica uma relação e uma partilha, permitindo o reconhecimento e a equivalência com o real.

O conceito de representação pode ser lido como reprodução na consciência de percepções passadas – as recordações – e antecipação de acontecimentos futuros – a imaginação.

A auto-representação é manifestação de uma presença, de marcas ou sinais de si, e negação da morte através de imagens e palavras como perenidade de um sujeito.

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