O Conceito Moderno de Constituição e a Teoria do Poder Constituinte: Origens e Desenvolvimento

July 28, 2017 | Autor: David Gomes | Categoria: Direito Constitucional, Teoria do Direito, Teoria da Constituição
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David Francisco Lopes

O Conceito Moderno de Constituição e a Teoria do Poder Constituinte: Origens e Desenvolvimento ___________ SUMÁRIO: 1 – Introdução; 2 – A Constituição na Antigüidade e no Medievo; 3 – A Revolução Americana e a Revolução Francesa; 4 – Weimar, a Crise como Possibilidade; 5 – Do Pós-Segunda Guerra aos Dias de Hoje; Referências. RESUMO: este artigo aborda a origens e o desenvolvimento da Teoria do Poder Constituinte e do conceito moderno de Constituição, visando reconstruir a relação entre o Direito e Política no contexto da Modernidade. Em primeiro lugar, discute-se o conceito de Constituição para a Antigüidade e para a Idade Média. Logo após, enfoca-se o processo históricos da Revolução Americana e da Revolução Francesa. Em seguida, parte-se para uma reconstituição do debate teórico da República de Weimar. Finalmente, apresenta-se uma compreensão contemporânea, acerca da Constituição e do poder constituinte, adequada ao Estado Democrático de Direito. PALAVRAS-CHAVE: Constituição, Poder Constituinte, Direito, Política. ABSTRACT: this article approaches the origins and the development of the Constituent Power Theory’s and of the modern concept of Constitution, aiming at reconstruct the relationship between Law and Politics LQ WKH FRQWH[W RI  WKH 0RGHUQLW\ $W ÀUVW LW GLVFXVVHV WKH FRQFHSW RI  Constitution to the Antique Age and the Medieval Age. After that, it focuses the historical process of the American Revolution and the French 33

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Revolution. Next, it sets out to a reconstitution of the theoretical debate of the Weimar Republic. Finally, it presents a contemporary comprehension about the Constitution and about the constituent power adequate to the Constitutional Democracy. KEY WORDS: Constitution, Constituent Power, Law, Politics.

1. Introdução Se realmente existe algo a que se pode atribuir o nome de Modernidade, e se esse algo pode ser tomado, dentre outras coisas, FRPRXPSHUtRGRKLVWyULFRGHFRQWRUQRVPDLVRXPHQRVDPSORVWUrVDÀUPDo}HVLQLFLDLVSDUHFHPSRVVtYHLV(PSULPHLUR lugar, essa Modernidade não pode ser entendida como conseqüência ou efeito direto de um ou mais fatores isoladamente considerados, mas apenas como produto complexo da convergência de distintos acontecimentos que têm lugar no mundo SHORPHQRVGHVGHRÀQDOGRVpFXOR;, (PVHJXQGROXJDUD0RGHUQLGDGHQmRFRQVWLWXLXPWRGRKRPRJrQHRQRHVSDoRHQRWHPSRKLVWyULFRVVHQGRDQWHVXP SURFHVVRSOXUDOHKHWHURJrQHRTXHDOFDQoRXGHPDQHLUDGLIHrente partes diversas do globo, cada qual em momentos relatiYDPHQWHVLQJXODUHVGD+LVWyULD (PWHUFHLURH~OWLPROXJDUHVVHSURFHVVRQmRVHUHÁHWLXHP XPD RX RXWUD HVIHUD HVSHFtÀFD GD VRFLHGDGH DOFDQoDQGR DR contrário, várias, para não dizer todas, as dimensões da vida KXPDQD ,VVR QD YHUGDGH JHUD XP SUREOHPD DR TXDO +HUPDQQ+HOOHU1MiKDYLDPXLWREHPDOXGLGRDRGLVFRUUHUVREUHR PpWRGRDGHTXDGRDXPD7HRULDGR(VWDGR$ÀQDOVHRVSURFHVVRVKLVWyULFRVHVRFLDLVVmRGLDOpWLFRVRWUDEDOKRFRQFHLWXDO  

 +(//(5 +HUPDQQ Teoria do Estado 7UDG /\FXUJR *RPHV GD 0RWD 6mR 3DXOR (GLWRUD0HVWUH-RXS

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que se desenvolve sobre eles também deve ser. Porém, é impossível, a um só tempo, discorrer sobre o todo, sobre todas as partes que o compõem e sobre o entrelaçamento desses dois PRPHQWRVXQLYHUVDOHSDUWLFXODU2TXHQmRVLJQLÀFDpFODUR TXHDSUHWHQVmRGHXPGHVHQYROYLPHQWRGLDOpWLFRGDUHÁH[mR DFHUFDGHDVVXQWRVKLVWyULFRVHVRFLDLVGHYDVHUGHL[DGDGHODGR 7HQGRSRUKRUL]RQWHDTXHODVWUrVDÀUPDo}HVHHVVD~OWLPDDGYHU última advertência, mas sendo obrigado a respeitar os limites da linguagem e do próprio espaço material DHOHGHVWLQDGRHVWHDUWLJRHVFROKH uma, talvez duas, das dimensões da vida em que a Modernidade, como processo de mudança, se fez presente: a autoridade das normas jurídicas e a legitimidade do poder político. Em suma, a relação entre o Direito e a Política, relação essa que, no limite e em termos modernos, pode ser expressa pelo surgimento de um novo campo de estudo: a Teoria do Poder Constituinte. Para a reconstrução das origens e do desenvolvimento dessa teoria e do conceito moderno de Constituição a ela ligado, o presente texto começa com uma breve exposição sobre a Constituição na Antigüidade e na Idade Média. Na seqüência, discorre sobre as revoluções nas colônias inglesas da América do Norte HQD)UDQoD/RJRDSyVUHÁHWHVREUHRFRQWXUEDGRHSURItFXR SHUtRGRGH:HLPDU3RUÀPGLVFXWHRHVWDWXWRFRQWHPSRUkQHR da Teoria do Poder Constituinte e a leitura do conceito moderno de Constituição no marco do Estado Democrático de Direito.

2. A Constituição na Antiguidade e no Medievo À pergunta acerca do que seria uma Constituição, as respostas são várias e proliferam polissemicamente desde que as primeiras delas foram elaboradas na Grécia do século IV antes de Cristo. A polis passava, então, por uma crise que ameaçava a solidez de suas bases. De um lado, notava-se a mercantilização 35

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do espaço público e o predomínio de relações econômicas sobre a dimensão da vivência política. De outro, emergiam particularismos e discórdias entre grupos distintos no interior da própria polis2. Frente a esse quadro de caos iminente, tem início uma problePDWL]DomRHPEXVFDGHLGHQWLÀFDUHSUHVFUHYHUDPHOKRUIRUPD de governo, ou seja, um arranjo capaz de impedir que aquele FOLPD GH LQVWDELOLGDGH À]HVVH VXFXPELU D HVWUXWXUD SROtWLFR VRFLDOJUHJDeQHVVHFRQWH[WRTXHVHHQFRQWUDPDVUHÁH[}HV jurídico-políticas de autores como Platão, Aristóteles e Políbio. (QWHQGHQGRSRUIRUPDGHJRYHUQRDWRWDOLGDGHKLVWRULFDPHQWH dada da ordenação política e social de uma comunidade, na qual ela mesma e seus poderes públicos são vistos como indiYLVtYHLVHUHÁH[LYRVHQWUHVL3, aquilo que os gregos buscavam – isto é, exatamente a meOKRUIRUPDGHJRYHUQR²UHFHEHULDR nome de politeía. Embora difícil de ser traduzido, e tendo sido LQWHUSUHWDGRFRPGLIHUHQWHVVHQWLGRVDRORQJRGD+LVWyULD, o termo pode ser tomado como sinônimo de Constituição. No esforço de apresentar soluções aos problemas concretos daquele período, a Constituição antiga seria marcada por seu caráter misto. Nem o elemento democrático, nem o aristocrático, nem o monárquico deveria prevalecer um sobre os outros. Somente uma forma de governo que pudesse assegurar o equilíbrio entre as distintas forças sociais teria condições de se manter legítima e estável. E é exatamente dentro dessa lógica que deve ser entendido o mito da patrios politeía, a Constituição dos antepassados. Não possuindo um início marcado no 2 3 36

FIORAVANTI, Maurizio. Constitución: De la antiguedad a nuestros dias. Trad. Manuel Martinez Neira. Madrid: Trotta, 2001, p. 15. FIORAVANTI, Maurizio. Constitución: De la antiguedad a nuestros dias. Trad. Manuel Martinez Neira. Madrid: Trotta, 2001, p. 16-17.

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WHPSRKLVWyULFRHODQmRVHPDFXODYDSHODYLROrQFLDQHPSHOD XQLODWHUDOLGDGHGHQHQKXPDGDVIRUoDVVRFLDLVPDVSRGLDVHU entendida como uma obra compositiva e plural, consolidada lenta e progressivamente. Nela, a partir da referência a um passado imemorial, tornava-se possível equilibrar os componentes democrático, aristocrático e monárquico. A Idade Média traria mudanças importantes no que diz respeito a essa compreensão. Se, para os antigos, a Constituição aparecia como uma forma de governo, uma ordenação política ideal, para o Medievo ela era uma ordem jurídica dada. Não algo a ser buscado, mas preservado. Enquanto na Antigüidade seu papel era legitimar a existência dos fortes poderes públicos, da IRUoDVVRFLDLVUHFRQKHFLGDVFRPRH[LVWHQWHVQDVRFLHGDGHQR período medieval sua função era exatamente oposta, a saber, a GHOLPLWDULQWULQVHFDPHQWHDTXHOHVPHVPRVSRGHUHV3RUÀP os antigos buscavam uma Constituição que se pudesse opor à crise trazida pelo fortalecimento das relações econômicas e das trocas comerciais diante da dimensão propriamente política da polis, ao passo que a Idade Média via nas relações econômicas e patrimoniais o ponto de apoio a sustentar a ordem jurídica que compreendia a Constituição. Entretanto, não obstante a existência de relevantes diferenças, DOJXQVWUDoRVSHUPDQHFHUDPVHPHOKDQWHV(PSULPHLUROXJDU o caráter misto e a idéia de uma Constituição como auto-representação da sociedade e de seus componentes fundamentais. Em segundo lugar, a Constituição continuava tendo como pólo de referência um passado imemorial, um tempo pretérito irresgatável e, apesar disso, ou talvez por isso mesmo, muitas vezes naturalizado como perfeito. 

),25$9$17,0DXUL]LRConstitución: De la antiguedad a nuestros dias. Trad. Manuel Martinez Neira. Madrid: Trotta, 2001, p. 37-38. 37

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3. A Revolução Americana e a Revolução Francesa 4XDQGR GR LQtFLR GR 6HJXQGR &RQJUHVVR GD )LODGpOÀD HP PDLRGHDKLSyWHVHGHXPDUXSWXUDHQWUHFRO{QLDVHPHtrópole inglesa ainda era considerada radical e distante. De igual maneira, a França daquela época era bem diferente da imagem que caracterizaria as ruas de Paris a partir de 1789. ToGDYLDXPROKDUUHWURVSHFWLYRUHYHODTXHDOJXPDFRLVDMiHVWDYD em curso, e que não demoraria muito para emergir à superfície dos acontecimentos. Até então, o exercício do poder político, bem como a força QRUPDWLYDGDVOHLVKDYLDVLGRDVVHJXUDGRSHODWUtDGHURPDQD da tradição, da religião e da autoridade.5 Essa tríade, porém, TXH KDYLD PDQWLGR VHX SRWHQFLDO OHJLWLPDQWH PHVPR DSyV D queda do Império Romano do Ocidente e a conseqüente ascensão da Igreja Católica ao poder secular, encontrava-se em processo de esfacelamento. Assim, uma vez não sendo possíYHOÀQFDUDVXVWHQWDELOLGDGHGRSRGHUHGDVOHLVQXPSDVVDGR LPHPRULDOQXPDWUDMHWyULDKLVWyULFDPDLVRXPHQRVVDFUDOL]Dda ou mesmo na vontade de Deus, o problema com o qual se deparariam os revolucionários dos dois lados do Atlântico era, observado do kQJXORGHYLVmRHVFROKLGRSRUHVWHWUDEDOKR, o de como (re)fundar a legitimidade da Política e a autoridade do Direito. A resposta francesa a essa questão apareceria de modo originário no próprio ano de 1789, a partir da publicação de “O quepR7HUFHLUR(VWDGR"µSDQÁHWRHVFULWRSHORDEDGH6LH\qV6.  6 38

$5(1'7+DQQDKEntre o passado e o futuro. Trad. Mauro W. Barbosa. 5a ed.. São Paulo: Perspectiva, 2000, p. 127-187. SIEYÈS, Emannuel. A Constituinte Burguesa – O que é o Terceiro Estado? Org. e Int. AuUpOLR:DQGHU%DVWRV7UDG1RUPD$]HUHGRDHG5LRGH-DQHLUR/XPHQ-~ULV

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Nesse texto, em que se misturam fundamentação teórica e retórica política, seriam delineados os contornos do que passaria j+LVWyULDFRPR7HRULDGR3RGHU&RQVWLWXLQWHDRPHQRVHP VXDYHUVmRFOiVVLFD­1DomRFRPRWRWDOLGDGHVRFLDOKRPRJrnea e entendida como macro-sujeito capaz de querer e agir, era atribuída a plenitude do poder constituinte. Ela era ilimitada e ilimitável em sua natureza, e poderia tudo, menos deixar de VHU1DomR1HQKXPDOHLDVXMHLWDULDSRLVWRGDOHLWHULDRULJHP em sua vontade. Por conseguinte, a Constituição que ela elaborasse vincularia somente os poderes constituídos aos quais VHYROWDYDPDVMDPDLVVXMHLWDULDD1DomRPHVPD,VVRVLJQLÀFD que o poder constituinte permaneceria latente na sociedade, à HVSHUDGHTXHDTXDOTXHUPRPHQWRD1DomRÀ]HVVHGHOHRXVR TXHOKHFRQYLHVVHQRH[HUFtFLRGHVHXTXHUHU Não é difícil perceber em que consiste basicamente a estratégia GH 6LH\qV 'LDQWH GR YD]LR GHL[DGR SHOD SHUGD GH XPD UHIHrência absoluta tanto para a Política quanto para o Direito, o que o abade francês faz é nada mais do que substituir aquele absoluto, religioso e transcendente, por um novo absoluto, secularizado, é verdade, mas nem por isso menos transcendente: ao rei, que se apoiava na vontade de Deus, sucede a Nação, que se apóia em sua própria vontade. $VFRQVHTrQFLDVGHVVDFRQFHSomRSDUDD)UDQoDVmRFRQKHFLdas. A instabilidade institucional que marcaria todo o período revolucionário e se estenderia até mesmo ao século XX encontra aí uma de suas raízes. Pois, todas as vezes em que alguém, IRVVHXPJUXSRRXPHVPRXP~QLFRKRPHPFRQVHJXLVVHFKHJDUDXPSRVWRWDOTXHOKHSHUPLWLVVHVXSRVWDPHQWHIDODUHP nome da Nação, a vontade desta seria manipulada ao sabor dos ímpetos de quem a dizia representar, o que não deixa de valer WDQWRSDUD1DSROHmR%RQDSDUWHTXDQWRSDUD&KDUOHVGH*DXOOH 39

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Na outra margem do oceano, a solução para o problema do esfacelamento da trindade romana e da ausência de um fundamento absoluto para o poder e para as normas seria completamente distinta. E tão distinta que permitiria questionar VHKDYHULDPDLVVHPHOKDQoDVRXGLIHUHQoDVHQWUHDTXHODVGXDV UHYROXo}HV TXH D KLVWRULRJUDÀD DFRVWXPRXVH D WUDWDU VRE D mesma epígrafe, ao mesmo tempo reducionista e falaciosa, de Revoluções Burguesas ou Revoluções Liberais. Em verdade, não se pode corretamente falar de uma Teoria do Poder Constituinte nas então Treze Colônias. E é curioso que as referências, expressas ou implícitas, ao poder constituinte sejam tão raras em uma obra como “O Federalista”7&RQKHcendo bem a literatura da Antigüidade Clássica, sobretudo os WH[WRVHDKLVWyULDSROtWLFDGH5RPDRVFRORQRVQmRFRPHWHULDP R PHVPR HUUR GRV IUDQFHVHV 2X PHOKRU FURQRORJLFDmente falando, eles não antecipariam aquele erro, pois sabiam muito bem que autoridade e poder jamais poderiam residir no mesmo lugar. Se na França ambos localizavam-se na Nação, TXHGHWLQKDRSRGHUGHDJLUHDDXWRULGDGHSDUDOHJLWLPDUVHXV próprios atos, a resposta americana ao problema jurídico-político central trazido pela Modernidade distinguiria corretamente potestas de auctoritas.8 O poder residiria no povo: a ele caberia a existência fática das normas, através do exercício do poder político. Diferentemente da Nação, ele não deveria ser compreendido como um todo KRPRJrQHRPDVFRPRJUDQGH]DFRPSOH[DHPVXDSOXUDOLGDde. Não é demais lembrar que a palavra people só pode ser conjugada no plural. 7  

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