O conflito como forma de estabelecimento do poder episcopal no século IV: Uma análise dos escritos de Ambrósio de Milão

August 22, 2017 | Autor: Laura Barcia | Categoria: Ancient History, Catholic Church History
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UNIVERSIDADE FEDEREAL DE SÃO PAULO– ESCOLA DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS Laura Barcia de Carvalho Gonçalves

O conflito como forma de fortalecimento do poder episcopal no século IV: Uma análise dos escritos de Ambrósio de Milão.

Guarulhos 2014

Laura Barcia de Carvalho Gonçalves

O conflito como forma de fortalecimento do poder episcopal no século IV: Uma análise dos escritos de Ambrósio de Milão.

Monografia apresentada no curso de graduação à Universidade Federal de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas para conclusão do curso de História. Orientação: Profa. Dra. Rossana Alves Baptista Pinheiro.

Guarulhos 2014

Agradeço aos meus orientadores, Prof°. Dr°. Carlos Augusto Ribeiro Machado, que me orientou durante o período em que fui bolsita do Cnpq, e me apresentou a obra de Ambrósio de Milão, e a Profa. Dra. Rossana Alves Baptista Pinheiro que me orientou nesta monografia.

Dedico este trabalho aos meus pais, Domingos e Adriana, que me proporcionaram tudo para que esta monografia fosse concluída.

BARCIA de C. GONÇALVES, Laura. O conflito como forma de fortalecimento do poder episcopal no século IV: Uma análise dos escritos de Ambrósio de Milão. Laura Barcia de C. Gonçalves – 2014. 64 f. Trabalho de conclusão de curso (Bacharelado em História) – Universidade Federal de São Paulo, Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Guarulhos, 2014. Orientação: Profa. Dra. Rossana Alves Baptista Pinheiro 1.Império Romano. 2. Ambrósio de Milão. 3. Antiguidade Tardia. I. Prof. Dr. Rossana Alves Baptista Pinheiro. II. O conflito como forma de fortalecimento do poder episcopal no século IV: Uma análise dos escritos de Ambrósio de Milão.

LAURA BARCIA DE C. GONÇALVES O CONFLITO COMO FORMA DE FORTALECIMENTO DO PODER EPISCOPAL NO SÉCULO IV: UMA ANÁLISE DOS ESCRITOS DE AMBRÓSIO DE MILÃO. Trabalho de conclusão de curso apresentado à Universidade Federal de São Paulo como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em História Área de concentração: História Antiga

Aprovação: ____/____/________

Profa. Dra. Rossana Alves Baptista Pinheiro Universidade Federal de São Paulo

Prof. Dr. Instituição

Prof. Dr. Instituição

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO -------------------------------------------------------------------------------------09

Cap. 1- Nicenos e Arianos, as heresias nos escritos de Ambrósio de Milão. -----------28

Cap. 2 O conflito contra os pagãos nos escritos de Ambrósio de Milão: O caso do Altar da Vitória no senado romano e a petição de Símaco. -------------------------------------41

Cap. 3 A construção da autoridade episcopal: O achado das relíquias de Gervásio e Protásio por Ambrósio de Milão. -------------------------------------------------------------52

Conclusão -----------------------------------------------------------------------------------------60

Referência Bibliográfica ------------------------------------------------------------------------62

RESUMO Este trabalho tem como objetivo analisar e discutir a obra de Ambrósio de Milão, Livro 10, o último da coleção de compilações organizada por Ambrósio em vida. Com intuito de apontar para o fortalecimento do poder episcopal tomando como exemplo o importante bispo da cidade de Milão, Ambrósio. A partir da análise de cartas, orações e sermões escritos por Ambrósio sublinhamos o conflito como base de autoafirmação deste bispo da vertente nicena. Nesta monografia estabelecemos os conflitos que Ambrósio travou contra os arianos, principal vertente em oposição aos nicenos, e contra os pagãos, que pouco a pouco perderam seus privilégios diante do imperador. Ao fim numa tentativa de estabelecer um análise sobre os pilares do poder episcopal baseado na obra da historiadora Claudia Rapp, analisamos em cada capítulo as tentativas de Ambrósio de afirmação da tríade de autoridade que segundo Rapp configuram um Bispo exemplar. Sendo as autoridades: espiritual, ascética e pragmática.

ABSTRACT This work aims to analyze and discuss the work of Ambrose of Milan, Book 10, the last collection of compilations organized by Ambrose in life. In order to point the strengthening of Episcopal power, taking as example the important bishop of Milan, Ambrose. From the analysis of letters, prayers and sermons written by Ambrose underline the conflict as the basis of this self-affirmation of the Nicene bishop present. This monograph established the conflicts that Ambrose fought against the Arians, as opposed to main stream Nicene, and against the pagans, who gradually lost their privileges before the emperor. After an attempt to establish an analysis on the pillars of episcopal power based on the work of historian Claudia Rapp, analyzed in each chapter attempts to Ambrose affirmation of the triad of authority which according to Rapp configure an exemplary Bishop. Authorities being: spiritual, ascetic and pragmatic.

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INTRODUÇÃO

A ascensão do cristianismo no Império Romano é um dos temas mais investigados entre os historiadores dedicados ao estudo da Antiguidade Tardia. Neste processo, a conversão de Constantino (306-337) é tida como fator de grande impulso para o fortalecimento do cristianismo no Ocidente, uma vez que a partir deste evento o cristianismo passaria de uma religião clandestina e marginalizada para ser a religião do Imperador. Outra questão importante largamente debatida entre os historiadores modernos é a tentativa de se traçar, a partir da conversão de Constantino, uma relação entre “Igreja e Estado” 1. Essas tentativas geram uma série de problemas interpretativos sobre a relação entre Constantino e a sua nova religião e desta com o Estado2. Uma dessas tentativas é bem representada pelo historiador francês Paul Veyne, que em seu livro Quando nosso mundo se tornou cristão3, escrito em 2007, inicia sua análise justamente com um capítulo intitulado “O salvador da humanidade: Constantino”. Vejamos a importância e o “desfecho” do grande marco que foi a conversão de Constantino para Veyne: Um dos acontecimentos decisivos da História ocidental e até mesmo da história mundial deu-se no ano de 312 no imenso Império Romano. A Igreja cristã tinha começado muito mal4 esse século IV de nossa era [...]5 .

No parágrafo seguinte, o autor atribui o “papel de herói” a Constantino. Veyne diz: “Ora, no ano seguinte, 312, deu-se um dos acontecimentos mais imprevisíveis: outro dos coimperadores, Constantino, o herói dessa grande história, converteu-se ao cristianismo depois de um sonho.” 6 Logo, concluímos que o trabalho de Veyne volta-se para uma história na qual o imperador Constantino é um herói e na qual existe uma dicotomia entre cristianismo e paganismo, que pode ser vista, em linhas gerais, na atribuição de valores positivos ao cristianismo e negativos ao paganismo. Segundo Veyne, o grande sucesso do cristianismo é sua característica de persuasão. Diferente do paganismo e do judaísmo, a persuasão teria

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The Cambrigde History of Christianity, origens to Constantine. Vol. 1. Edited by Margaret M. Mitchell and Frances M. Young. Cambrigde University Press, 2008. P.524. 2 Idem: “church and state”; to transfer this scheme to early Christian times would definitely involve the danger of introducing a great many anachronisms which tend to obstruct our understanding of the real challenges of those days. 3 Veyne, Paul. Quando Nosso Mundo se Tornou Cristão [312-394], Rio de janeiro Ed. Civilização Brasileira, 2010. 4 Aqui o autor refere-se às perseguições sofridas pelos cristãos nos anos de 303 e 311. Idem p. 11. 5 Idem p. 11. 6 Idem p.11.

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garantido o alargamento e a consolidação do cristianismo no Império Romano. Neste sentido, podemos perceber um aspecto do debate acerca da cristianização do mundo romano que pode favorecer-nos perspectivas novas: a questão da retórica dos detentores de poder do aparelho da Igreja Cristã ainda em tentativa de consolidação. Ao longo da obra de Veyne, muitas outras questões acerca da relação entre “Estado e Igreja” se apresentam, sobretudo nas ocasiões nas quais a Igreja parecia se impor politicamente: “E seria a Igreja um sustentáculo do Império ou um rival?”7. Mais uma vez, Veyne compara a religião cristã com as demais existentes do Império Romano do século IV e para ele a relação “trono e altar” é o cerne do debate entre a Igreja e o Império8, já que é algo novo, pois para ele, os pagãos ignoravam esta relação. Para compreender a complexidade das relações entre o cristianismo e o Império Romano, muitas simplificações foram feitas, e com elas, dicotomias, que separavam o paganismo e o cristianismo em blocos homogêneos contrapostos, ou que tornava exclusivo o interesse da Igreja pelos assuntos públicos do Império. Veremos que estas sistematizações que tornam o quadro de relações de poderes dentro do Império “mais inteligíveis” causaram alguns problemas interpretativos. Nosso intuito é contribuir para uma reflexão que descentraliza a imagem de Constantino como “herói” do sucesso da fé cristã. Robert Markus, em seu livro O fim do Cristianismo Antigo

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escrito em 1924, e

traduzido para português apenas em 1997, parece ter uma interpretação da qual Veyne compartilhou posteriormente em sua obra citada anteriormente, ao afirmar: “A conversão de um imperador, seguida pela cristianização em larga escala de sua sociedade dentro de poucas gerações, parecia transformar dramaticamente as condições da existência cristã”

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. Em

seguida: A era inaugurada por Constantino e de modo especial, as décadas em torno de 400, que seguiram aos grandes passos dados pelo establishment teodosiano para impor a ortodoxia cristã ao império, pareciam marcar novo divisor no tecido inconsútil dessa idade última11.

Neste trecho do capitulo da obra de Markus, intitulado “Os últimos tempos”, o cristianismo aparece como um definitivo divisor de águas, que divide o mundo ocidental nas eras pré-cristã e pós-cristã. É a partir disso que o autor afirma o “triunfo do cristianismo” no século IV. 7

Idem p.119. Ao longo desta monografia adotaremos a palavra Império, ao invés de Estado, como sugeriu Veyne. 9 Robert A. Markus, O Fim do Cristianismo Antigo, São Paulo, Ed. Paulus, 1997. 10 Idem p.97. 11 Idem p.97. 8

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Veremos através da análise da fonte proposta para este trabalho, que esta afirmação não pode ser validada, já que o conflito entre cristãos e pagãos no século IV, estava justamente em torno das atenções que o paganismo possuía antes e durante o reinado de Constantino e seus sucessores ao longo de todo o século IV. O debate historiográfico acerca deste período entre os principais historiadores especialistas no Império romano do século IV aponta para outro velho problema: O declínio e a queda do Império Romano

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, título da obra do historiador inglês Edward Gibbon, escrita

entre 1776 e 1788, publicada em seis volumes. O autor procura responder positivamente à pergunta: teria o cristianismo contribuído para esta queda? A ascensão do cristianismo e a queda do Império Romano estariam intimamente ligadas? Para Gibbon sim, a ascensão do cristianismo seria o elemento enfraquecedor das instituições romanas, que já não estariam mais em seu auge. Para Gibbon, a fé cristã, assim como para Veyne e Markus, já estava predestinada ao sucesso, devido a excelência de seu grande Autor. Os autores citados até agora, procuraram afirmar que a conversão de Constantino ao cristianismo e o sucesso das alianças estabelecidas entre Império e Igreja, que se davam, sobretudo por meio de seus bispos, convergiram em um processo de desgaste das estruturas políticas do Império Romano Ocidental que o levou ao declínio e queda. Neste processo, o paganismo teria perdido sua força em detrimento do cristianismo em “crescente expansão”. Neste ponto, os autores até agora apresentam uma reflexão um tanto quanto superficial acerca das vozes pagãs que ainda se faziam presente. Como veremos através da fonte, o bispo Ambrósio, da cidade de Milão, está em um forte conflito com os senadores pagãos do senado romano. Veremos por meio deste conflito quais os interesses que estes dois grupos, pagãos e cristãos, representados pelo senador Símaco e pelo bispo Ambrósio sustentavam diante do imperador Valentiniano II (375-392)13. Os bispos cristãos estabeleceram bases firmes, aliaram-se aos imperadores e aristocratas influentes, mas é difícil de acreditar que o paganismo fora totalmente “destruído”, uma religião, se é que podemos assim chamar o paganismo, que teria permanecido no Império por centenas de anos, e fazia parte da cultura, tradições, costumes, das instituições e do direito daquela comunidade14. Desta forma, o cristianismo como elemento “finalizador” tanto do império quanto do paganismo, ainda é uma questão presente nas discussões sobre o período. Nossa cautela diante desta proposição vem no sentido de pensar a contrariedade dos pagãos 12

Título em inglês: The History of the Decline and Fall of the Roman Empire.1776-1788. Assunto a ser desenvolvido mais profundamente no capítulo 2 desta monografia. 14 Coulanges, F. de. A cidade Antiga. Ediouro, Rio de Janeiro, 2004. 13

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em aceitarem a proibição de seus cultos, e verem seus privilégios se esvaírem e, em contrapartida, serem oferecidos à Igreja cristã. Diante disso, é impossível pensar que os pagãos foram “destruídos” no século IV com o fortalecimento do cristianismo. O capitulo final do livro de Fustel de Coulanges15 de 1864, A cidade Antiga, intitulado “O cristianismo altera as condições de governo” abre-se com a seguinte frase: “A vitória do cristianismo marca o fim da sociedade antiga16”. Vitória essa marcada logo quando Constantino em 312 se converte ao cristianismo. Fernand Braudel em seu livro muito bem conhecido pelos historiadores, Memórias do Mediterrâneo: Pré-História e Antiguidade17 dedica uma pequena parte ao final no livro para falar sobre a “Fundação de Constantinopla e a irrupção do cristianismo”. Vejamos a citação seguinte: “[...] Sem a decisão de Constantino, qual teria sido a sua sorte”, referindo-se ao cristianismo, Braudel delimita o “sucesso” da fé cristã no império romano ao seu “herói”, como denominou Veyne, Constantino. Mais uma vez a ligação entre “Igreja e Estado” aparece, marcando a Igreja como uma instituição interessada nos assuntos políticos. O parágrafo final da obra de Braudel assinala o legado cristão que o Império Romano deixou para o presente. Que marca outra questão importante para os debates acerca do estabelecimento do cristianismo no ocidente até os dias atuais. Mas a religião cristã não se torna a religião do Estado sem se ter comprometido com a política, a sociedade e até a civilização de Roma. Esta civilização do Mediterrâneo é assumida pela juventude do cristianismo. Resulta para este e múltiplos compromissos, fundamentais, estruturais. E é com este rosto, esta mensagem, que a antiga civilização chega até nós18.

Historiadores que tiveram suas obras publicadas mais recentemente tem um duplo trabalho de reflexão sobre seus objetos de estudos na Antiguidade Tardia. O primeiro esforço encontra-se em questionar as linhas interpretativas dos historiadores anteriores, que muitas vezes contribuíram de forma teleológica para as reflexões históricas do período. E um segundo esforço de “revisionismo” destas obras, para se propor novas abordagens, que parecem apresentar muito mais questões e debates do que sistemas fechados de desenvolvimento da Igreja como uma instituição conhecida atualmente. Vejamos a citação a seguir de Claudia Rapp, na crítica sobre os historiadores franceses e italianos. 15

Primeira publicação em 1864. Idem p.449 17 Braudel, Fernand. Memórias do Mediterrâneo: Pré-História e Antiguidade. Ed: Multinova, Rio de Janeiro. 2001. 18 Idem: p. 343. 16

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Estudiosos franceses e italianos, muitos deles enraizados na tradição católica, tendem a adotar uma perspectiva teleológica e bem-vindos à nova função, pública Bispos depois de Constantino como pavimentando o caminho para a ascensão do papado 19.

A tendência destes historiadores descrita pela autora é de não impor questionamentos sobre a natureza do poder político episcopal. Como se a nova função assumida pelos bispos ao longo do século IV fosse naturalmente acontecer devido à importante função religiosa e política que desempenhavam na Comunidade. Os estudos mais recentes tendem a mudar esta percepção de uma linha divisória que separa o religioso do secular20. É preciso pensar na coexistência de duas forças que estavam em constante conflito político. A tendência de procurar uma causa para uma consequência delimita a reflexão histórica. Seria muito simples dizer que o cristianismo se impôs de tal forma no Império Romano do século IV, que acabou com qualquer vestígio dos cultos pagãos, e que a Igreja fora a grande força que derrubou as instituições do Império. A complexidade dos eventos e dos homens que fizeram parte deste processo, quando averiguados de perto, sem necessidade de se encontrar uma consequência, proporciona estudos mais conscientes, sem a ânsia de dar respostas fechadas, proporcionando mais debates e questionamentos e menos “soluções”. O historiador inglês Peter Brown talvez seja o mais conhecido nos estudos sobre a Antiguidade Tardia, devido à grande quantidade de obras publicadas sobre o período. Em seu livro O fim do Mundo Clássico: De Aurélio a Maomé21 de 197122, Brown parece pertencer ao grupo de historiadores que guia suas interpretações a partir da ruptura imposta pelo cristianismo ao mundo Romano. A “Nova Roma”, fruto da ultima revolução romana nos séculos III23 e IV24, traz consigo a marca que o cristianismo imprime nessa sociedade, e que trazemos até hoje.

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Claudia Rapp, Holy Bishops in Late Antiquity: The nature of Christianian leadership in an age of transition. University of California Press. California.2005 p.8. Original em ingles: French and Italian scholars, many of them rooted in the Catholic tradition, tend to adopt a teleological perspective and welcome the new, public role of bishops after Constantine as paving the way for the rise of the papacy. 20 Idem p.16 21 Brown, Peter. O fim do Mundo Clássico. De Aurélio a Maomé. Editorial Verbo, Lisboa 1972. 22 Título original públicado em 1971: The world of Late Antiquity. 23 Segundo Brown o século III é marcado por uma Revolução Militar, na qual “A aristocracia senatorial é excluída dos comandos militares, em 260. Os aristocratas veem-se obrigados a servir como soldados profissionais, que haviam subido pouco a pouco”. Idem. p. 26. 24 A revolução do século IV, na obra de Brown pode se resumir em: “Após a conversão de Constantino, em 312, os imperadores e a maioria de seus familiares são cristãos. A facilidade com que o cristianismo se impõe às altas classes do Império Romano, no século IV, é devida a Revolução que coloca a corte imperial no centro da

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Acreditava-se, por muitos cristãos desde Constantino, que a cristianização do Império tinha chegado a depender da autoridade de um imperador Militans pro Deo (Ambrosio, Ep. 17). Inevitavelmente, a desestabilização dos cultos pagãos oficiais de Roma, por Graciano, em 382, e, finalmente, por Teodósio, tomou a forma de um ato definitivo da autoridade pública. Na verdade, este exercício de autoridade do Imperador foi realizado pelos contemporâneos a ser tão importante que Prudêncio, em sua “Contra Símaco” de 402, pode representar o fim do paganismo em Roma como tendo ocorrido em uma atmosfera de legalidade impecável, de acordo com as tradicionais formas romanas: em uma reunião do Senado, presidida pelo imperador Teodósio, Júpiter foi derrotado por Cristo em uma divisão da casa!25

A passagem acima mostra uma importante problematização da historiografia do período sobre a cristianização dos imperadores, o entendimento do que “culminou” na cristianização do império são as medidas dos imperadores pro Deo. No entanto, para Peter Brown, essas medidas eram só mais uma forma de afirmação da sua autoridade imperial. Sendo apenas um exercício de sua autoridade, ou não, os imperadores da Tempora Christiana, como Valentiniano II, seu pai Teodósio e seu irmão Graciano, em grande parte, favoreceram o cristianismo. Como podemos ver neste período, houve um evidente movimento de favorecimento de ordem econômica, material, organizacional e doutrinária da Igreja, apoiado no poder imperial e vice e versa. Nesta passagem, o autor também demonstra sua interpretação sobre a ascensão do cristianismo em contraponto ao “fim do paganismo”. Ele cita o episódio de conflito com Símaco, importante senador Romano pagão, que aparece como um líder da aristocracia pagã preocupada com a delimitação de seus privilégios. O conflito em especial marcaria a disputa entre cristãos e pagãos, pois o senado parecia estar dividido por homens das duas fés. Na “divisão da casa” senadores pagãos e cristãos disputam pelas atenções e privilégios que o Imperador poderia oferecer a esses grupos. Este episódio é analisado por Peter Brown, em um esquema de blocos contrapostos num quadro político que favorece os cristãos. Mas isso é

sociedade do , o qual acha comparativamente fácil abandonar as crenças conservadoras pela nova fé dos dominadores. Idem. p 28. 25 It had been believed, by many Christians since Constantine, that the Christianization of the Empire had come to depend on the authority of an emperor militans pro Deo (Ambrose, Ep. 17). Inevitably, the disestablishment of the official pagan cults of Rome, by Gratian in 382, and, finally, by Theodosius, took the form of a definitive act of public authority. Indeed, this exercise of authority by the Emperor was held by contemporaries to be so important that Prudentius, in his Contra Symmachum of 402, could represent the end of paganism in Rome as having taken place in an atmosphere of impeccable legality, according to the traditional Roman forms: in a meeting of the Senate, presided over by the Emperor Theodosius, Jupiter was defeated by Christ in a division of the house! Brown, Peter. Christianization and Religious Conflict. Cambridge University Press, 2008. p. 2

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suficiente para afirmar que as medidas legais tomadas pelos imperadores Graciano e Teodósio acabaram com o paganismo? Ao final do capítulo três, intitulado Christiana Tempora, do livro de Peter Brown citado acima, o autor conclui que o processo que garantiu o fim do paganismo e a vitória do cristianismo culmina no fim do Império, já que a Igreja como instituição se sobrepunha a ele. O argumento sustentado por Brown divide todo este processo em três blocos homogêneos: a Igreja em plena expansão, o império decadente e favorecedor da Igreja, e o paganismo desbotado e sem voz. Essa nos parece uma forma simplista de separar o cristianismo do paganismo e esses dois do Império Romano. Como essa separação ajudaria a visualizar o quadro político e religioso do século IV? Parece-nos que não muito, ela só descarta as possibilidades de pensar em como essas três forças se articulavam e debatiam entre si num período de transformações que foi o século IV, justamente o que nos propomos a fazer nesta monografia. Em uma obra mais recente, A autoridade e o sagrado: aspectos da cristianização do Mundo Romano26, Brown encaminha seus estudos para uma reelaboração do que havia proposto em suas obras anteriores: “quando nos voltamos para a cultura pública do século IV, somos confrontados por uma série de disjunções aparentes que nos obrigam a repensar o que entendemos por ‘cristianização’ nesse período27”. Esta nova perspectiva que descobre “novas disjunções aparentes” parece nos encaminhar para uma perspectiva diferente de debate sobre a cristianização do Mundo Romano ocidental. Atualmente, vemos uma grande tendência na centralização da imagem do Bispo, e o desenvolvimento de seu poder político e religioso como um fator de compreensão da estabilização e elevação do cristianismo, que agora também não apresenta mais caracteriscas de uma instituição triunfante impusionada por seu “herói”. O século IV ainda representa um período de grandes mudanças e de favorecimento ao cristianismo. A historiadora inglesa Averil Cameron em seu livro O baixo Império Romano: 284-430 d.C28 diz: “O simples fato de ter um imperador cristão no trono não produziu uma conversão em massa, a cristianização da sociedade ocorreu lentamente. Mas a perseguição29 aos cristãos já tinha sido interrompida e a Igreja Cristã agora foi favorecida”.30 26

Brown, Peter. Authority and Sacred: Aspects of the Christianisation of the Roman World. Cambridge University Press. 1997. 27 Idem: when we turn to the public culture of the fourth century, we are faced by a series of apparent disjunctions that force us to re-think what we mean by 'christianisation' in this period. p.11. 28 Averil, Cameron. El Bajo Imperio Romano: 284-430 d. de C. Encuentro Ediciones. Madrid. 2001. 29 Ver lista de perseguições sofridas pelos cristãos de 64 a 313 d.C. Em: Paganism and Christianity. 100-425 C.E. A sourcebook. Editors: Ramsay MacMullen and Eugene N. Lane. Fortress Press, Minneapolis. 1992. p. 218-219

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Em outra obra31, Cameron ressalta a figura dos bispos em um movimento de aproximação com os estados romanos. E assim como nós acreditamos, não descarta a importância do cristianismo como um fator de transformação da sociedade. Contudo, não o único, pois ainda estava longe de ser a fé da maioria: Nos oitenta e tantos anos que decorreram entre o chamado Edito de Milão (AD 313) e da legislação anti-pagã de Teodósio I, que culminou com AD 391-2,1 a igreja cristã e seus bispos tinha ganhado uma posição forte no interior do estado romano. A maioria dos historiadores concorda também que o cristianismo em si foi até agora um fator poderoso na sociedade em geral, apesar de ter sido ainda muito longe de ser universalmente adotado32.

É inegável a valorização que Constantino deu ao cristianismo após a sua conversão em 312. A questão que se põe é: Basear o “sucesso” e a expansão do cristianismo na conversão de Constantino não diminui as demais relações que a Igreja cristã precisou estabelecer, bem como os enfrentamentos pelos quais teve que passar? Atribuir a função de herói a Constantino justifica automaticamente o triunfo da fé cristã. Foram estas indagações que nortearam nossa aproximação dos escritos de Ambrósio, bispo de Milão. Sobretudo aqueles compilados no Livro 1033, traduzidos do latim para o inglês pelo historiador Liebeshuetz. Acreditamos que os conflitos estabelecidos por este bispo indicam os artifícios utilizados por essas figuras para o assentamento da Igreja cristã em todos os seus aspectos, começando pela consolidação da fé cristã junto ao império, pela consolidação de uma organização interna e, sobretudo pela homogeneização da teologia cristã, que no caso de Ambrósio se afirma na fé nicena. Veremos como os textos de Ambrósio indicam esses três movimentos de consolidação e é interessante notar como ele faz isso. Quais são seus meios, e com quem dialoga para estabelecer rede de relações que o favorecem. Nossa interpretação dos escritos de Ambrósio baseia-se na noção de conflito, pois apesar das diferentes temáticas de seus documentos, a disputa está sempre presente. 30

Cameron, Averil. El Bajo Imperio Romano: 284-430 d. de C. Encuentro Ediciones. Madrid. 2001. P. El solo hecho de tener a un emperador cristiano en el trono no produjo una conversión masiva y la cristianización de la sociedad se produjo lentamente. Pero la persecución de los cristianos ya se había interrumpido y la Iglesia cristiana se veía ahora favorecida. p. 40 31 Cameron, Averil. The mediterranen world in Late Antiquity. AD. 395-600. Routledge, London. 1993. 32 In the eighty or so years which elapsed between the so-called Edict of Milan (AD 313) and the anti-pagan legislation of Theodosius I, culminating in AD 391–2,1 the Christian church and its bishops had gained a strong position within the Roman state. Most historians would also agree that Christianity self was by now a powerful factor in society at large, even though it was still very far from universally embraced. Idem. p.57. 33 J. H. W. G LIEBESCHUETZ, Ambrose of Milan, Political Letters and Speeches Liverpool University Press, Liverpol, 2005.

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Em primeiro lugar, torna-se fundamental entender quem foi Ambrósio, importante figura no quadro político do século IV, e quais caminhos percorreu até chegar ao episcopado de Milão, uma das cidades mais importantes do Império durante o século IV. Ambrósio (340397) nasceu em Trier, seu pai era responsável pela administração da prefeitura da Gália. Teve uma educação liberal em Roma, e como bem podemos observar em seus escritos, possuía uma sólida educação retórica. De família de tradição cristã, a irmã de Ambrósio, Marcelina, a quem ele endereça muitas de suas cartas como veremos mais a frente 34, seguiu “voto de virgindade” e recebeu o véu destinado as pertencentes a este segmento da Igreja por volta de 350. A primeira ocupação pública de Ambrósio foi como advogado na corte do prefeito pretoriano de Sirmium. Esta posição favoreceu um salto em sua carreira que, em seguida, o levou ao seu primeiro cargo imperial como assessor do prefeito pretoriano Petrônio Probus35. A ascensão de Ambrósio como bispo da cidade de Milão (384) se deu meio a um quadro complicado de controvérsias teológicas, a chamada “Controvérsia Ariana”. Vertente teológica de interpretação da matéria e da divisão dos corpos de Deus e Cristo consistia no problema de definir a unidade de Deus Pai e Jesus Filho. O assunto havia sido discutido no concílio de Niceia em 325, e a partir de então, estabeleceu-se que Pai e Filho seriam da mesma substância (homoousios)

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, Tal vertente ficou conhecida como nicena, e as demais formas de

interpretação, que apontavam uma dessemelhança de natureza entre Pai e Filho, como Ariana37. A maioria dos bispos do Império ocidental compartilhava da interpretação nicena e os que se negavam a fazê-lo eram exilados. Apesar da decisão do Concílio de Nicéia, as tensões entre nicenos e arianos não havia se extinguido durante o século IV. Muito pelo contrário. Como veremos mais a frente com o estudo mais detalhado das cartas de Ambrósio, a tensão ainda é forte. Uma das cartas enviadas por Ambrósio trata sobre a herética mãe de Valentiniano II, Justina, que era adepta da vertente do bispo Ário. Ambrósio foi aclamado38 pela população após o exílio do bispo Auxêncio, que em 364 foi acusado de heresia por Hilário de Poitiers e depois condenado ao exílio pelo papa Damásio. Após o exílio de Auxêncio, dois sínodos foram convocados pelo papa Damásio, os quais condenaram o bispo herético. Em 374, Auxêncio morreu, dando início ao conflito entre 34

Ep. 76 (Maur. 20), Ep 76 (Maur. 20). In: J. H. W. G LIEBESCHUETZ, Ambrose of Milan, Political Letters and Speeches Liverpool University Press, Liverpol, 2005. 35 Ver: J. H. W. G LIEBESCHUETZ, Ambrose of Milan, Political Letters and Speeches Liverpool University Press, Liverpol, 2005. 36 Pai e Filho eram a mesma substância. Idem. 7. 37 Deteremos-nos nesta questão com mais atenção no capítulo 1 desta monografia. 38 Acclamations: the formalised and rhythmical shouting with which groups (for instance the people assembled in a theatre, bishops assembled in a council, or the senate) expressed their approval or disaproval. Acclamation might be said to heve taken the place of voting in the Late Empire. idem p.400.

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Homoians39 e Nicenos acerca de quem deveria suceder o falecido bispo. Evidentemente, cada lado desta disputa exerceu sua pressão para elevar seu candidato ao bispado de Milão. “Ambrósio, em sua capacidade de governador provincial, entrou na igreja para restaurar a calma. Ele foi bem sucedido, mas apenas porque as duas facções se uniram para aclamá-lo. Ambrósio tentou vários dispositivos para escapar da eleição, mas em vão” 40. Ambrósio fora “aclamado” por ambas as partes conflitantes no jogo de poder, e como sabemos também, pela população41. Ambrósio apareceu como uma solução pacificadora. Sua posição não era fácil, sua preparação como bispo foi feita às pressas, e a sua comunidade estava dividida. Sua ascensão ao bispado de Milão, provavelmente aconteceu devido a sua linhagem de aristocratas, o que garantia a ele legitimidade política. Tenhamos em mente que a função de um bispo não se resume ao seu aspecto religioso. Além das funções que dizem respeito as atividade da diocese, Ambrósio também assume um papel de autoridade dentro da cidade, no que diz respeito às relações externas, educação e administração de interesses da cidade. Diante disso, muitos historiadores42 afirmam que é no século IV, que os bispos começam a substituir quase todos os papéis políticos fundamentais de uma cidade do Império Romano43. A realidade sociocultural começa a mudar, apontando cada vez mais o seu centro para a figura do bispo. A citação abaixo de Claudia Rapp ilustra alguma das funções civis de um bispo, que iam além da pastoral: Suas responsabilidades como a administração de uma diocese envolviam-no em assuntos muito mundanos, de administração financeira para a construção de obras, enquanto seus deveres como o pastor do seu rebanho implicam tais obrigações religiosas como pastoral, a preservação da unidade doutrinária, e a celebração da liturgia e outros ritos cristãos.44

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Pai e Filho eram feitos de substâncias distintas. Jesus fazia parte da criação de Deus, portanto estava em uma posição inferior a seus pai na hierarquia divina. Idem. p. 8. 40 Ambrose, in his capacity of provincial governor, entered the church to restore calm. He succeeded, but only because the two factions united to acclaim him. Ambrose tried various devices to escape the election, but in vain. Idem p. 10. 41 Também podemos ver este episódio em Ratti, Stéphane. Polémiques entre Païens et Chrétiens. Paris, Ed. Les Belles Latres, 2012. 42 Claudia Rapp e Stéphani Gioanni 43 Ateliê de estudos ministrado pelo Prof. Dr. Stéphani Gioanni (École française de Rome) na UNIFESP. Em 22 de Agosto de 2013. “L'hagiographie italienne et le renforcement de l'autorité épiscopale dans le haut Moyen Âge : l'exemple de l'hagiographie ambrosienne.” 44 His responsibilities as administration of a diocese involve him in very mundane matters from financial administration to building works, while his duties as the shepherd of his flock entail such religious obligations as pastoral care, the preservation of doctrinal unity, and the celebration of the liturgy and other Christian rites. Claudia Rapp, Holy Bishops in Late Antiquity: The nature of Christianian leadership in an age of transition. University of California Press. California. 2005. p.8.

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Segundo a autora, no período de formação da Igreja, o papel dos bispos que assumiam cada vez mais funções públicas foi fundamental para selar a relação entre o Império e a religião cristã. E para isso acontecer, evidentemente, o poder imperial possibilitou esta abertura, garantindo a união entre o poder episcopal e o imperial nas questões cívicas45. A importância de um estudo dedicado às obras de Ambrósio pode elucidar questões importantes em voga no século IV. O que pretendemos apontar na análise desses documentos é como, através da retórica e da circulação e impacto das obras de Ambrósio, se consolida a autoridade episcopal composta de uma tríade de autoridades tal qual proposta pela historiadora Claudia Rapp46. Para esclarecer as relações de poder estabelecidas por Ambrósio através de cartas, sermões e orações propomos uma leitura direcionada, em que estes documentos permitem esclarecer e demonstrar como se dá o fortalecimento da autoridade episcopal, na Itália, em uma das principais cidades do império no Ocidente, por um bispo de destacada importância. Este fortalecimento ou consolidação não se dá sem embates e controvérsias, sobretudo porque, o século IV não pode ser considerado um século de triunfo inequívoco e irreversível do cristianismo, tal qual é nossa meta demonstrar. Este trabalho está organizado de maneira a propor uma tentativa de demonstrar estes embates para a consolidação, ao mesmo tempo, de uma determinada perspectiva cristã (contra os arianos e pagãos) e da autoridade episcopal na sua relação com o Império. A apresentação das cartas pode ser feita a partir do estabelecimento da sua composição, datação, dos temas possíveis que dali emergem e da rede de relações que enunciam a proposta de leitura e de reclassificação das cartas, tendo em vista nosso objeto de pesquisa. Propomos uma reorganização do livro completo, inclusive dos anexos e apêndices daquela proposta inicialmente pelo organizador e tradutor do Livro 10, J. H. W. G Liebesshuetz. Na obra Ambrose of Milan, Political Letters and Speeches, Liebeschuetz reúne algumas das cartas, discursos e orações, produzidas por Ambrósio ao longo de sua vida como bispo da cidade de Milão. Estes escritos foram compilados pelo bispo ainda em vida, e tal reunião resultou na produção de 10 livros, considerados os melhores escritos que havia produzido, mas reunidos por seu filho Símaco, logo após a morte de Teodósio I, entre 395 e 397. Neste trabalho, portanto, sugerimos o estudo desta compilação, ainda que, conforme dissemos, sob uma nova organização que leve em conta a disputa travada por Ambrósio e 45

Ver: Claudia Rapp, Holy Bishops in Late Antiquity: The nature of Christianian leadership in an age of transition. University of California Press. California. 2005. 46 Idem.

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outros bispos que desfrutavam de certa influência política no século IV, para o fortalecimento tanto da autoridade episcopal quanto da vertente nicena. Encontramos um discurso que se constrói sobre a afirmação da positividade do cristianismo diante do paganismo que deveria ser “ultrapassado”

47

. A partir disso, pensaremos na questão da construção de um discurso

legitimador do cristianismo que neste momento procura se definir por meio da autoridade episcopal e dos ditos mártires da Igreja. Veremos como a imagem dos mártires é trabalhada na Epístola 77 (22), na primavera ou verão de 386 d. C, na carta endereçada a sua irmã Marcelina, que descreve o achado das relíquias dos mártires Gervásio e Protásio. A partir desta carta, apontaremos como a descoberta das relíquias dos mártires suporta o discurso de Ambrósio e garante a ele a chamada Autoridade Espiritual. Antes de estabelecer o debate aqui proposto, procuramos conhecer bem a fonte, e saber como ela se forma, em sua organização cronológica e temática. O método utilizado para análise e compreensão dos escritos de Ambrósio, para assim estabelecer um diálogo entre os objetos tratados nas cartas, pretende identificar os argumentos principais que perpassam os assuntos tratados nas cartas, orações e discursos. Propomos um recorte transversal, de maneira que possamos identificar este discurso que se repete e se afirma. Desta forma, um organograma com assunto, datação e interlocutores foi feito com o intuito de visualizar mais claramente como as relações de Ambrósio se traçam numa rede de interesses políticos e religiosos. Neste organograma, nos esforçamos por verificar, de maneira cronológica, os anos em que ele escreveu as cartas, orações ou discursos, bem como delinear uma ligação entre esses escritos, e determinar de que maneira ou em que nível eles estavam relacionados. Acreditamos que desta forma a visualização e compreensão de seus escritos podem ser percebidos de maneira mais ampla e contextualizada. Vejamos a organização original da disposição dos escritos de Ambrósio no Livro 10, traduzidos por Liebeschuetz: Coleção principal de documentos: Cartas sobre os problemas decorrentes do Concílio de Cápua48 Ep. 70 (56) de 392 d.C. endereçada a Teófilo, bispo de Alexandria, sobre o cisma de Antióquia. Ep. 71 (56a) de 393 d.C ao bispo da Macedônia, sobre o Bispo Bonosus, que foi acusado de ensinar que o que a Virgem Maria deu à luz filhos depois de Jesus49. 47

Assunto que será trabalhado mais detidamente no capítulo 2 desta monografia. J. H. W. G LIEBESCHUETZ, Ambrose of Milan, Political Letters and Speeches Liverpool University Press, Liverpol, 2005. Letters on Matters Arising from the Council of Capua. p. 49 48

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Cartas sobre o Altar da Vitória50 Ep. 72 (Maur. 17) de 384 d.C. endereçada ao imperador Valentiniano II; Ep. 72a (Maur. 17a), que não foi escrita por Ambrósio, mas por Símaco, o famoso terceiro Relatio, pedindo a retenção do altar de Vitória; Ep. 73 (Maur. 18), uma resposta formal de Ambrósio, para Símaco. Os três documentos constituem um único dossiê que documenta o sucesso de Ambrósio na para a antecipação do imperador da restauração do altar da Vitória para a câmara do senado. Sendo só a Ep. 72 uma verdadeira carta51. Cartas sobre a destruição da Sinagoga de Calínico52 Ep. 74 (Maur. 40) de 388 d.C, endereçada ao imperador Teodósio sobre a destruição da sinagoga em Calínico. Appendix: Espistula Extra Collectionem1 (Maur. 41), endereçada a irmã de Ambrósio, Marcelina (388/89) (aparece em forma de sermão a Teodósio na Extra Collectionem, Ep. ex. 1) 53. Conflito de Ambrósio com a imperatriz Justina em Milão54 Ep. 75 (Maur. 21) foi endereçada ao imperador Valentiniano II em Janeiro ou Fevereiro de 386. Ep. 75a (Maur. 21a) conhecida como: Contra Auxentium, e trata-se de um sermão. Ep 76 (Maur. 20) endereçada à irmã de Ambrósio, Marcelina, próximo à páscoa de 386, e incluem textos de sermão. “juntos os três documentos registram a história do conflito de Ambrósio com o tribunal e sua resistência para repetir exigências que ele deveria entregar a igreja para um serviço, ou serviços, do setor Homoian, que teria a presença do imperador.”55

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Idem: Ep 70 (56) of AD 392 addressed to Theophilus, bishop of Alexandria, on the subject of the schism at Antioch and Ep. 71 (56a) od AD 393 to the bishops of Macedonia, concerning Bishop Bonosus, who was alleged to teach that that the Virgin Mary had given birth to sons after jesus. (p.36) 50 Idem: Letters on the Altar of Victory. P. 61. 51 Ep. 72 (17 of AD 384 addressed to the emperor Valentinian II; Ep. 72 (17a) which is not by Ambrose at all, but by Symmachus, the famous Third Relatio, pleading for the retention of the altar of victoty; and Ep. 73 (18), Ambrose´s formal reply to Symmachus. The three documents constitute a single dossier documenting Ambrose´s success in prevening the emperor from restoring the altar of Victory to the senate chamber. 52 Idem: Letters on the Destruction of the Synagoge at Callinicum. P.96. 53 Ep. 74 (40) of AD 388, is adressed to the emperor Theodosius on the subject of the destroyed synagogue at Callinicum. 54 Idem: Ambrose's Conflict with the Empress Justina at Milan p. 124. 55 Idem: Original em ingles: together the three documents record the story of Ambrose's conflict with the court and his resistence to repeat demands that he should hand over a church for a service, or services, of the Homoian sect, which would be attended by the emperor. (p.37)

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Oração sobre a morte de Teodósio56: escrito em Fevereiro de 395 d.C. Ambrósio proferiu a oração em Milão, enquanto o corpo de Teodósio era enviado para o funeral em Constantinopla. Ambrósio faz elogios a Teodósio, como um imperador cristão exemplar. Ep. 77 (22), na primavera ou verão de 386 d. C, carta endereçada a sua irmã Marcelina, incorpora o texto de um sermão, e descreve o achado das relíquias dos mártires Gervasius e Protasius. Documentos fora da coleção principal: Duas series de cartas foram separadas da Coleção principal, e direcionadas para a Extra Collectionem. O primeiro grupo consiste em documentos do mesmo tipo da coleção do Livro 10, e são todas endereçadas ao imperador, com exceção de uma, que é endereçada a sua irmã, sobre o incêndio da sinagoga de Calinico. Este grupo consiste das seguintes epístolas: Ep. ex. 1, Ep. ex 2 (Maur.61) e 3 (Maur.62) (endereçadas a Teodósio) Ep. ex. 4 (Maur.10), 5 (Maur. 11), 6 (Maur.12), 8 (Maur.14) e 9 (Maur.13) que são cartas endereçadas a Graciano, Valentiniano II e Teodósio, sobre o concílio de Aquiléia de 381. E a Ep. 7 endereçada a Graciano e a Valentiniano II sobre o sínodo com os imperadores. Esta última em especial, trata de um assunto essencial para o debate das relações entre bispos e imperadores, pois diz respeito à consolidação de uma “jurisdição clerical”. O segundo grupo é mais heterogêneo, inclui a Ep. 11, carta endereçada a Teodósio, sobre o massacre de Tessalônica, Ep. 13, um sermão da data da Páscoa. Ep. sir e Ep.ex 15 são destinadas ao papa Siricius. (longo debate sobre quando deveria ser comemorada a Páscoa) Apêndices: Appendix I: Ambrósio e Magnus Maximus (data incerta) depois do conflito contra Justina. (386) carta que reporta a Valentiniano II seu serviço de embaixada com o usurpador Maximus. Ep. 30 (MAUR. 24) Ambrósio para o imperador Valentiniano II. Appendix II: Oração Fúnebre proferida no funeral Valentiniano II (392)

O tradutor dos documentos apresentados por Ambrósio adverte para um detalhe importante acerca da documentação, sobretudo sobre as cartas. Nem todas as cartas ou orações foram enviadas. Algumas delas foram escritas por Ambrósio e tiveram interlocutores

56

Oration of the Death of Theodosius I. Idem p. 174

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específicos, mas nunca foram enviadas, ou circularam pelo Império. A carta escrita para uma resposta formal a Símaco, por exemplo, nunca foi enviada a seu destinatário e o bispo só a escreveu depois de saber da decisão de Valentiniano II contra a restauração do Altar57. Ambrósio parecia escrever algumas de suas cartas somente para registro pessoal, mas o que chama atenção é; por que em forma de carta? Ele poderia ter registrado em outro suporte de texto. E por que ele a escreveu se não tinha intenção de enviá-la? Ou por algum motivo desconhecido não a enviou no ultimo momento? Acreditamos que Ambrósio escrevera cartas e discursos nunca enviados para registro próprio, e para guardar sua memória para a futura compilação de seus escritos. Como o fez, segundo Liebeschuetz, em 395 d.C58. Tendo esta organização, apresentada por Ambrósio e seguida na tradução crítica de Liebeschuetz, propomos então uma reorganização desses documentos, rearranjando-os em uma lógica que liga os assuntos, entre as cartas que pertencem à coleção principal e as que foram deixadas para o apêndice, diminuindo desta maneira essa separação organizativa, e propondo uma maior interação entre os documentos. Tomemos como exemplo a Ep. 74 (40) de 388, endereçada a Teodósio sobre a destruição da sinagoga de Caliníco. O mesmo assunto se repete na Ep. ex. 1, em forma de sermão. O que tem de diferente nesses dois documentos? Um em formato de carta e outro de sermão? Por quais motivos Ambrósio acha necessário repetir o assunto em outro suporte textual? Além da ligação de assuntos, pretendemos estabelecer uma ligação de datas, para contextualizar o período e ver como os assuntos dos documentos se inserem e dão contorno a esta contextualização pretendida. Ainda podemos analisar a ligação de remetentes. Nesta análise, veremos como Ambrósio mantém sua rede de relações pessoais com seus destinatários, e como seu discurso se perfaz diante de cada um deles, e por fim quais são os assuntos tratados com cada um deles. Desta forma, poderemos estabelecer um debate, tanto da coleção principal, quanto os do apêndice, de maneira a fazer com que dialoguem entre si e proporcionar uma análise mais completa. Para compreender a organização proposta por Ambrósio na compilação do Livro 10 precisamos saber que a lógica proposta por ele é feita pelo grau de importância que ele atribui aos documentos. Diferente da proposta feita pelo próprio Ambrósio, nós nos concentraremos no exercício de fazer outro caminho, a fim de estabelecer um panorama que esclareça a problemática que buscamos investigar com esta monografia. Separamos a documentação 57

J. H. W. G LIEBESCHUETZ, Ambrose of Milan, Political Letters and Speeches. Liverpool University Press, Liverpool, 2005 p. 78. 58 Idem. p.28.

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primeiramente por assunto, procurando relacioná-las e estabelecer um corte vertical para acompanhar os argumentos de Ambrósio em um determinado conflito. Este rearranjo também indica os documentos que utilizaremos para nossas reflexões neste trabalho e a disposição que determinamos para nossos capítulos. Não trabalharemos todos os documentos apresentados mais acima. Nos deteremos aos documentos que julgamos mais ricos em informações para o nosso intuito. Dessa maneira o organograma que se propõe é o seguinte. 1. Assuntos: a. Sobre heresias e contra arianos: Grupo de documentos sobre o conflito com a Imperatriz Justina. Tratam-se dos documentos. Ep. 75 (Maur. 21) escrita por Ambrósio em 386, enviada ao imperador Valentiniano II. Ep. 75a (Maur. 21a) Conhecida como Contra Auxentium (386) Ep. 76 (Maur. 20) enviada à irmã de Ambrósio, Marcelina sobre o ataque da Basílica Ambrosiana pelos soldados do Império, a mando da imperatriz Justina. (386). Ep. 77 (Maur. 22) enviada a, Marcelina, sobre o achado das relíquias dos mártires Gervasius e Protasius. (386) Ep. 71 (56a) de 393 d.C ao bispo da Macedônia, sobre o Bispo Bonosus, que foi acusado de ensinar que o que a Virgem Maria deu à luz filhos depois de Jesus59. (393) b. Contra pagãos: Ep.72 (Maur. 17) Sobre o Altar da vitória. Enviada ao imperador Valentiniano II em 384. Ep.72a (Maur. 17a)60 escrita por Símaco, importante senador pagão romano a Valentiniano II em 384. Ep. 73 (Maur.18) (384) Resposta formal de Ambrósio a Símaco.61 Epistula extra collectionem 10 (Maur. 57) enviada ao usurpador Eugênio em 394 que foi reconhecido como imperador no Ocidente em 392. Ambrósio evitou contato com Eugenio, pois considerava que ele fez concessões aos cultos pagãos de Roma.62

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Idem: Ep 70 (56) of AD 392 addressed to Theophilus, bishop of Alexandria, on the subject of the schism at Antioch and Ep. 71 (56a) od AD 393 to the bishops of Macedonia, concerning Bishop Bonosus, who was alleged to teach that that the Virgin Mary had given birth to sons after jesus. (p.36) 60 Idem. Conhecida como “Symmachus’ Third Relatio to Valentinian II. P.69. 61 Idem. Ambrose’s formal reply to Symmachus. P.78 62 Idem. p. 255.

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c. Documentos que apontam as relações entre Ambrósio e os imperadores, bem como de outros bispos do Império com os imperadores. Oração da morte de Teodósio Ep. ex. 1, Ep. ex 2 e 3 (endereçadas a Teodósio) Ep. ex. 4, 5, 6, 8 e 9 (cartas endereçadas a Graciano, Valentiniano II e Teodósio, sobre o concílio de Aquiléia de 381). O segundo grupo é mais heterogêneo, inclui a Ep. 11, carta endereçada a Teodósio, sobre o massacre de Tessalônica Apologia a Davi63, que não se encontra no Livro 10, mas que foi inserido neste organograma para abrir o debate sobre as relações entre Teodósio e Ambrósio no século IV. Os capítulos que seguem são uma tentativa de articulação do material selecionado para a reflexão acerca do fortalecimento do ofício episcopal no século IV. Acreditamos que as obras de Ambrósio de Milão possibilitam um entendimento de que as relações tanto Ambrósio quanto os demais bispos do Império se davam num quadro de estabelecimento da fé cristã que, como vimos, ainda não era a fé da maioria, e ainda não se encontrava em bases completamente seguras, e por isso ainda precisava fazer-se presente de forma persuasiva e convincente. Já que nosso eixo de reflexão encontra-se na ideia de conflito, estabelecemos nossas reflexões apontando para: Por que se dava o conflito? Contra quem Ambrósio direcionava sua autoridade por meio do embate e da afirmação do cristianismo niceno? Quais eram as ocasiões em que isso acontecia? E quando? Todas estas perguntas estão centralizadas para a defesa de nosso argumento de que o fortalecimento do poder episcopal no século IV pode ser evidenciado pelas obras de Ambrósio de Milão. E que este poder é a base da consolidação do cristianismo no Império Romano durante o século IV. Tentando responder a essas perguntas iniciais propomos uma separação do material em 3 eixos. Primeiramente, procuraremos entender como Ambrósio colocava-se diante dos “heréticos”, tomando sua fé como a “ortodoxa”. Neste capítulo, propomos uma discussão e relação entre as fontes do organograma do grupo “sobre heresias e contra os arianos”. Nossa análise procura compreender como Ambrósio utiliza-se de seus argumentos para desqualificar os heréticos e, sobretudo a fé ariana, contra os quais constantemente se opõe. Por meio desse material, um movimento duplo pode ser avaliado. Primeiramente, o conflito com o “outro” delimita o que/quem se é. E ainda, a desqualificação do outro qualifica o seu interesse automaticamente. Após a tentativa do Concílio de Niceia para definição da teologia cristã em

63

Ambroise de Milan. Apologie de David. Les Éditions Du Cerf. Paris, 1977.

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torno da noção de consubstancialidade do Pai e do Filho64, esta perspectiva passa a ser defendida por seus adeptos como “ortodoxa”, mas nem por isso as demais, como por exemplo, o arianismo, deixaram de ter força e continuar com seus defensores, tanto no Ocidente como no Oriente. Uma das adeptas da fé ariana é justamente a mãe do imperador, forte aliada da fé de Ário, que a defendia junto a seu filho Valentiano II. A discussão entre Justina e Ambrósio65 é o ponto alto das discussões que envolvem o império, os arianos, e os nicenos. Junto à coleção indicada para este capítulo veremos como se dão os argumentos de Ambrósio contra Justina e contra os arianos. Num segundo eixo de análise, veremos o segundo conflito que Ambrósio estabelece, agora contra os pagãos, os quais ainda representavam uma parcela importante entre a população romana, sobretudo dentro da aristocracia culta. A argumentação contra os pagãos evidencia que Veyne e Gibbon estavam equivocados ao afirmar que com a ascensão do cristianismo o fim do paganismo estava posto. Se Ambrósio dedica cartas para persuadir o imperador a não restaurar o Altar da Vitória no senado Romano é porque os pagãos ainda tinham voz. Um conflito entre Ambrósio e Símaco precisou ser travado para que a decisão de Valentiniano II fosse tomada. A ordem não altera a importância, tanto o embate contra os heréticos, como contra os pagãos, ajuda-nos a perceber a imposição da autoridade episcopal. Por fim, no terceiro e último capítulo, nos concentraremos em demonstrar através da fonte, as cartas que estão diretamente relacionadas com assuntos entre os imperadores Graciano, Valentiniano II e Teodósio. Veremos como Ambrósio se comporta diante das situações que envolviam os imperadores mais diretamente. Dentro deste capítulo, selecionamos uma carta que é considerada de extrema importância para as reflexões das relações entre imperador e bispo: a Epístola. 11, endereçada a Teodósio, sobre o massacre de Tessalônica, que será articulada com outra obra não contida no Livro 10, a Apologia a Davi. Nesta carta, Ambrósio adverte e pune Teodósio pelo massacre de civis em Tessalônica, comandada por um general romano. Neste documento especificamente podemos ver o poder de influência que Ambrósio exerce sobre o imperador cristão Teodósio. Neste capítulo, veremos como a tríade de poderes do bispo num período de transição como o século IV é proposta pela historiadora Claudia Rapp66. Acreditamos que a figura central deste trabalho,

64

Ver: R. P. C. Hanson. The Search for the Christian Doctrine of God. The Arian Controversy, 318-381. Baker Academic. London, 2006. P. 152. 65 J. H. W. G LIEBESCHUETZ, Ambrose of Milan, Political Letters and Speeches. Liverpool University Press, Liverpol, 2005 p.124. 66 Claudia Rapp, Holy Bishops in Late Antiquity: The nature of Christianian leadership in an age of transition. University of California Press. California. 2005.

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Ambrósio, é possuidor dos três poderes que um bispo ideal deveria possuir: o Pragmático, que comporta ações destinadas para o benefício do próximo; o Espiritual, que é concedido pelo Espírito Santo; e por fim o Ascético proveniente do esforço pessoal, demonstrado pelo comportamento exemplar e intimamente ligado ao voto de castidade. Veremos que em todas as fontes trabalhadas, em todos os capítulos, há evidências de como Ambrósio é possuidor de tais poderes. O que centralizaremos neste capítulo é o desfecho do conflito com o a imperatriz Justina, e o descobrimento das relíquias dos mártires Gervásio e Protásio, indicados pelo Espírito Santo a Ambrósio através de uma visão num sonho. Veremos que essa visão só poderia ser concedida a um individuo em contato direto com Deus, e que lhe confere um valor especial. Por meio destes três capítulos, que articulam as fontes, mesmo que separados por assuntos diferentes, não será difícil perceber como Ambrósio argumenta contra seus opositores e ao mesmo tempo, como reúne ao seu redor seus pares. A argumentação deste material é repetitiva, pois todos os seus argumentos, seja contra pagãos, seja contra heréticos e arianos, baseiam-se na afirmação de sua fé cristã nicena em constante condenação dos que se negam a segui-la.

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CAPÍTULO 1 Nicenos e Arianos, as heresias nos escritos de Ambrósio de Milão.

Tende cuidado para que ninguém vos faça presa sua por meio de filosofias e vãs sutilezas, segundo a tradição dos homens, segundo os rudimentos do mundo, e não segundo Cristo. (Colossenses 2.8)

A citação acima do livro bíblico de Colossenses explicita uma grande questão, mal resolvida, entre as autoridades cristãs do século IV. As filosofias geradas pelos homens no plano mundano distorcem o que foi ensinado por Cristo. Meio as várias interpretações que dividem o clero do século IV, Ambrósio tenta afirmar a interpretação de sua vertente, a nicena, como o dogma mais próximo de Cristo. Nossa proposta evidentemente não tem intenção de estabelecer esta relação de proximidade, mas sim analisar os argumentos deste bispo, perceber como ele os manipula, e como difunde seu credo como o “verdadeiro” diante das demais vertentes com as quais ele estabelece um conflito. Para o historiador R. P. C. Hanson67 os fatos históricos do século IV não podem ser separados da formação da doutrina cristã. O autor propõe que a história da doutrina ariana, principal vertente teológica que estabeleceu conflito com os nicenos e, portanto, com Ambrósio, seja vista dentro de seu contexto de formação. Em seu livro A busca pela doutrina cristã de Deus: a controvérsia ariana, o autor percorre um caminho de análise de fontes sobre o Concílio de Niceia e demais documentações sobre o credo ariano, numa desconstrução do que é considerado como a “Controvérsia ariana” que segundo ele é um grave equívoco. “Houve um longo período de confusão e incerteza entre 341-357, quando estava longe de ser claro o que era a controvérsia, se é que havia uma controvérsia”

68

. A negação e condenação

daqueles que seguiam a chamada Vertente de Ário é obviamente um julgamento proveniente daqueles que se opunham a ela. “Todos os lados acreditavam que eles tinham a autoridade das Escrituras a seu favor. Cada qual descreveu os outros como heterodoxo, não tradicional e não bíblico”

69

. Exatamente como fez Ambrósio em sua condição de bispo niceno que impunha

sua ortodoxia diante do inimigo teológico e político.

67

R. P. C, Hanson. The search for the Christian doctrine of God: the Arian controversy. Edinburg: T&T Clark, 2006. 68 There was a long period of confusion and uncertainty from 341 to 357 when it was far from clear what the controversy was about, if there was a controversy. Idem.p.18. 69 All sides believed that they had the authority of Scripture in their favor. Each described the others as unorthodox, untraditional and unscriptural. Idem. p.18.

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Em 325, o chamado Concílio de Niceia reuniu grande parte dos bispos que representavam Sés de cada parte do Império Romano. Procurou-se discutir a relação de substância entre Deus (Pai) e Cristo (Filho), com o intuito de formular uma interpretação teológica unificada para acabar com as divisões da Igreja. Em Niceia, determinou-se que Pai e Filho seriam constituídos da mesma substância (homoousios)70 contra aqueles que defendiam uma espécie de dessemelhança entre as duas pessoas da Trindade. Esta vertente ficou conhecida como Nicena, e as demais formas de interpretação bíblica, como a ariana, por exemplo, que travou maior embate contra os nicenos, passavam a ser consideradas heresias71. O objetivo doconcílio seguindo um precedente estabelecido em Antioquia foi a formulação de uma declaração de fé agradável para todas as partes. Desde este sínodo, todo mundo tinha chegado a aceitar a necessidade e, dada a pressão para a unidade que vem doimperador, a inevitabilidade de produzir um credo de fé que destilou a verdade sobre Deus 72.

A maioria dos bispos do Império ocidental passou a aceitar a interpretação saída de Niceia, mas muitos ainda se recusavam a fazê-lo. A estes, o castigo era o exílio. Apesar da decisão do Concílio de Nicéia, as tensões entre nicenos e aqueles que não pregavam a consubstancialidade da Trindade, não se extinguiram. Muito pelo contrário. Como podemos ver através dos escritos de Ambrósio no Livro 10, a disputa ainda é forte na segunda metade do século IV e outros concílios foram convocados ao longo deste período para ainda dar conta da questão.

70

Ver: R. P. C, Hanson. The search for the Christian doctrine of God: the Arian controversy. Edinburg: T&T Clark, 2006. p. 436. 71 Hérésie: n. f. (bas lat. Hérésis, du gr. Haïresis, choix, puis école philosophieque, secte religieuse) 1. Idée ou doctrine opposes à l’orthodoxie d’une religion instituée, et condamnées en tant que tells. Syn. D’hétérodoxie. Le manichéisme et le catharisme sont des heresies. À partir du moment où eles se sont detáchées du tronc religieux comme branches separées, les sectes sont hérétiques. Une doctrine que réussit à se constituer em religion indépendente perd son caractere d’hérésie (et de sect.): tel fut le cas du christianisme lui-même qui a d’abord été une sect juive. La théologie catholique définit strictement l’héresie comme ume erreur libre et obstinée contre une vérité révélée de l apartd’um Chrétien ayant déjà reçu le don de la foi. 2. Par extension, toute opinion qui s’oppose aux idées et valeurs généralment admises. Dictionnaire de philosophie. Christian Gortin. Éditions du Temps. France. 2003. 72 The council's objective, following a precedent set at Antioch, was the formulation of a statement of faith agreeable to all parties. Since that synod, everyone had come to accept the necessity and, given the pressure for unity coming from the emperor, inevitability of producing a creed of faith that distilled the truth about God. In: Galvão-Sobrinho, Carlos. Doctrine and Power: Theological Controversy and Christian Leadership in the Later Roman Empire. University of California Press. London. 2013. p. 85.

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Ao analisar as cartas do Livro 10, percebemos uma série de embates de Ambrósio com a vertente ariana e as demais vertentes igualmente julgadas por Ambrósio como heréticas, que se repete tantas vezes ao longo de seu discurso, que se torna parte importante de seus argumentos e imprime uma marca de guerra contra as vertentes heréticas. Uma das cartas que exemplifica um conflito de Ambrósio contra uma interpretação julgada como herética é: “Ascetismo e dissensão em Vercelli e o caso de Joviniano.” 73 escrita por Ambrósio em 396, na ocasião da morte do Bispo Limenius de Vercelli. No momento em que Ambrósio escreveu a carta, um sucessor ainda não havia sido apontado para substituir Limenius após a sua morte, e o conteúdo desta carta trata justamente de um debate sobre as eleições e discordâncias para eleger o novo bispo de Vercelli. O termo asceticismo74 aparece no título da carta, uma vez que um dos temas da carta é justamente a propagação do discurso de Jovianiano, por meio de dois monges que negavam o valor religioso da vida ascética e do estatuto privilegiado da virgindade. Joviano havia sido um monge que após viver alguns anos em um regime ascético percebeu que tal mortificação não determinava o verdadeiro cristianismo75. Em 390, publicou

73

Limenius de Vercelli, Asceticism and dissension at Vercelli and the affair of Jovinianus. In: J. H. W. G. Liebeschuetz. Ambrose of Milan, Political Letters and Speeches, vol. 43.Ed. Liverpool University Press.Liverpool, 2005. p. 292. 74 The word asceticism comes from the Greek askesis which means practice, bodily exercise, and more especially, athletic training. The early Christians adopted it to signify the practice of the spiritual things, or spiritual exercises performed for the purpose of acquiring the habits of virtue. At present it is not infrequently employed in an opprobrious sense, to designate the religious practices of oriental fanatics as well as those of the Christian saint, both of whom are by some placed in the same category. It is not uncommonly confounded with austerity, even by Catholics, but incorrectly. For although the flesh is continuously lusting against the spirit, and repression and self-denial are necessary to control the animal passions, it would be an error to measure a man's virtue by the extent and character of his bodily penances. External penances even in the saints, are regarded with suspicion. St. Jerome, whose proneness to austerity makes him an especially valuable authority on this point, thus writes to Celantia: Be on your guard when you begin to mortify your body by abstinence and fasting, lest you imagine yourself to be perfect and a saint; for perfection does not consist in this virtue. It is only a help; a disposition; a means though a fitting one, for the attainment of true perfection. Thus asceticism according to the definition of St. Jerome, is an effort to attain true perfection, penance being only an auxiliary virtue thereto. It should be noted also that the expression "fasting and abstinence" is commonly used in Scripture and by ascetic writers as a generic term for all sorts of penance. Neither should asceticism be identified with mysticism. For although genuine mysticism can not exist without asceticism, the reverse is not true. One can be an ascetic without being a mystic. Asceticism is ethical; mysticism, largely intellectual. Asceticism has to do with the moral virtues; mysticism is a state of unusual prayer or contemplation. They are distinct from each other, though mutually co-operative. Moreover although asceticism is generally associated with the objectionable features of religion, and is regarded by some as one of them, it may be and is practised by those who affect to be swayed by no religious motives whatever.Fonte: Catholic Encyclopedia. www.newadvent.org. Acessado em 19/01 ás 1:28pm. 75 J. H. W. G. Liebeschuetz. Ambrose of Milan, Political Letters and Speeches, vol. 43.Ed. Liverpool University Press.Liverpool, 2005. p.294.

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um tratado teológico justificando seu ponto de vista. Em 393, o Papa Siricius informou a Ambrósio que havia excomungado Joviano. Apesar de sua excomunhão, sua interpretação teológica estava espalhada entre alguns monges que ainda pregavam os ensinamentos de Joviano em Vercelli em 396 causando a chamada dissensão na Sé de Vercelli. Pois eu ouvi que Sarmatio e Barbatianus vieram até vós, homens que tagaleram absurdos, que dizem que não há mérito em abstinência, que não há graça em austeridade, nem na virgindade, que todos os homens são valorizados pelo mesmo preço, que são loucos os que disciplinam a sua carne com o jejum, a fim de trazê-lo em sujeição à mente.76

A passagem acima da carta de Ambrósio, enviada a Vercelli, indica qual são os dogmas ensinados pelos dois monges seguidores do credo de Joviano. O argumento principal do dogma de Joviano se baseia na seguinte passagem bíblica77: O Espírito diz claramente que nos últimos tempos alguns abandonarão a fé e seguirão espíritos enganadores e doutrinas de demônios.Tais ensinamentos vêm de homens hipócritas e mentirosos, que têm a consciência cauterizada.E proíbem o casamento e o consumo de alimentos que Deus criou para serem recebidos com ação de graças pelos que creem e conhecem a verdade.78

Como podemos ver no trecho de Timóteo citado acima, é posto o estatudo da virgindade em contraposição ao casamento, e a prática do jejum em contraposição ao consumo de alimentos que foram criados por Deus com objetivo de serem consumidos pelos homens. Diante deste confronto entre Ambrósio e Joviano, o autor Neil Burnett, defende a ideia de que os bispos que lutam contra a negação da vida ascética se afirmam como figuras de identidade santa, baseados nos exemplos de Cristo e Maria, que não foram obrigados a guardar a castidade, mas que o fizeram por símbolo maior de sua santidade. Vou mais longe, sugiro que o túmulo pós-constantiniano e a "crise de identidade", descrito por Robert Markus na sua obra "fim do cristianismo antigo", é o que produziu a tensão psicológica enorme

76

For I hear that Sarmatio and Barbatianus have come to you, men who jabber nonsense, who say that there is no merit in abstinence, that there is no grace in austerity, none in virginoty, that all men are valued at the same price, that they are mad who discipline their flesh with fasting in order to bring it into subjection to the mind.Idem.P. 298. 77 Ver: Burnett. Neil. Jovian: A monastic heretic in Late Four Century Rome. University of British Columbia. 1996. 78 1 Timóteo 4.1-3.

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que vemos nas cartas destes dois bispos79; o entusiasmo asceta estava sendo abraçado como um meio de garantir uma identidade "santa" [...]80.

Burnett usa o argumento do historiador já citado nesta monografia, Markus, e acrescenta um importante debate do século IV: juntamente a ideia de “crise de identidade” estabelecida na era pós Constantiniana, Burnett atribui a este momento uma tensão entre os bispos que defendem a vida ascética como um meio de garantir sua própria identidade santa e com isso sua autoridade espiritual. Ambrósio utiliza-se do conflito contra o discurso dos monges seguidores de Joviano para construir argumentos muito bem embasados. Aproveitando a presença dos monges que pregam a favor do discurso de Joviniano contra a vida ascética, Ambrósio soma a importância da vida ascética e da castidade à sua causa, ao mesmo tempo em que aponta um candidato de sua preferência para ocupar a sé vacante de Vercelli: “Por enquanto, há dissensão entre vós como podemos tomar qualquer decisão ou optar por ninguém,ou aceita ralguém eleito, ou alguém concordar em realizarem uma comunidade dividida ao papel que é malgerenciável em uma harmoniosa81?” No trecho citado, Ambrósio marca a divisão entre o clero, e argumenta a favor de um candidato que possa unir a comunidade em cisma. Esta carta mostra como Ambrósio podia influenciar em eleições de outras dioceses, pois a carta é endereçada ao episcopado de Vercelli. A eleição de um candidato niceno poderia garantir o controle religioso/teológico, político e territorial dos nicenos em Vercelli. Assegurar um cargo com um bispo da vertente nicena é de extrema importância para Ambrósio, consolidar um bispado niceno garante uma rede de relações entre os clérigos de mesma vertente, e ainda enraíza e difunde a teologia considerada e defendida por Ambrósio como “ortodoxa”. Praticamente todos os argumentos da carta de Ambrósio giram em torno da defesa da prática do asceticismo. Ambrósio defende que os que viveram ou vivem em regime ascético possuem uma vida exemplar, o que é de grande interesse para os bispos deste período, a nosso ver, pois constitui uma das bases da autoridade episcopal. A “identidade santa” como disse Burnett, deve ser assegurada por aqueles que precisam se afirmar politicamente:

79

Os exemplos são de Ambrósio de Joviano. Burnett. Neil. Jovian: A monastic heretic in Late Four Century Rome. University of British Columbia. 1996.p. 910 81 Idem: For as long as there are dissension among you how can we make any decision, or you elect anybody, or anyone accept election, or anyone agree to undertake in a divided community the role which is barely manageable in a harmonious one? p.296. 80

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Que vocês tenham o prazer desta vida com uma boa consciência, a paciência em face dos mortos através da esperança de imortalidade, a garantia da ressurreição através da graça de Cristo, a verdade com a inocência, a verdade com a confiança, a abstinência com a santidade, a indústria com sobriedade, sociabilidade com a autocontenção, aprendendo, sem vaidade, a sobriedade do ensino verdadeiro, sem a embriaguez de heresia82.

Neste ultimo parágrafo da carta de Ambrósio, ele afirma que a vida com uma boa consciência deve ser vivida dentro dos limites que ele cita a seguir, ditado pelo “verdadeiro ensino”, que podemos traduzir por niceno, ou ortodoxo, ou ainda como dissemos antes, o mais próximo de Cristo. E claro recusar as heresias, neste caso, o dogma contra a vida ascética de Joviano. A carta trás em seu conteúdo o embate entre os seguidores de Joviano e os nicenos para a decisão de sucessão de uma sé que se encontra em cisma. Esta situação é muito semelhante à vivida pelo próprio Ambrósio quando foi “aclamado” em 374 como bispo de Milão, para tranquilizar uma comunidade que também estava dividida. Esta função pacificadora e unificadora da comunidade exercida por Ambrósio pode ser assinalada como marca efetiva da função episcopal no século IV. Desta maneira, a função episcopal pode ser compreendida além da pregação da palavra cristã na comunidade. Como podemos ver a eleição de um novo bispo para a Sé de Vercelli é um assunto de extrema importância para Ambrósio, que precisa assegurar a figura de um bispo que reúna os fiéis em torno de si, como símbolo maior da Igreja naquele território. Ao mesmo tempo precisa somar a esta figura um aliado, que favoreça o credo niceno e o difunda como verdadeiro. Esta carta que incorpora um debate teológico do período e uma discussão sobre a sucessão de uma Sé foi divulgada entre os clérigos, e para toda a comunidade cristã. Trata-se de um documento eloquente que pretende convencer que a vertente nicena é a verdadeira, acabar com as divergências de interpretação julgadas heréticas, e por fim eleger seu candidato e pacificar a comunidade em cisma. E como em muitos desfechos de outros documentos apresentados pela fonte, Ambrósio sai vitorioso e seu candidato, Honorato, é eleito. Outros documentos também mostram claramente o embate entre nicenos e os considerados heréticos por Ambrósio. São o conjunto de cartas selecionadas e intituladas 82

May you have enjoyment of this life with a good conscience, patience in the face of the dead through the hope of immortality, assurance of resurrection through the grace of Christ, truth with innocence, truth with trust, abstinence with holiness, industry with sobriety, sociability with self-restraint, learning without vanity, the sobriety of the truthful teaching, without the inebriation of heresy.In: J. H. W. G. Liebeschuetz. Ambrose of Milan, Political Letters and Speeches, vol. 43.Ed. Liverpool University Press.Liverpool, 2005. p.336.

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pelo tradutor Liebeschuetz -como “O conflito de Ambrósio com a Imperatriz Justina em Milão de 385-38683”. Neste momento de tensão, Ambrósio corria o risco de exílio eminente. As crises existentes entre Ambrósio e arianos, que desta vez estavam protegidos por Justina, eram um processo que já acontecia há alguns anos, e a demanda da Basílica Ambrosina e a ameaça de exílio de seu bispo foi um episódio mais profundo dentro do quadro de disputa que se instalou entre esses dois grupos. A coleção é composta por quatro cartas e uma oração de morte. As Epístolas são: 75, 75 A, 76 e 77. Sendo que as Epístolas 76 (MAUR. 20) e 77 são endereçadas a Marcelina. Também encontramos a “Oração de morte de Teodósio I”

84

escrita

em Janeiro de 395, e, portanto destacada temporalmente das demais Epístolas da coleção que datam de 385-386. A primeira carta, Ep. 75 (MAUR. 21) é endereçada a Valentiniano II (375-392). Neste documento, Ambrósio explica ao imperador a impossibilidade de sua participação na reunião convocava pelo próprio imperador, a qual foi convidado a participar para estabelecer um diálogo e um possível acordo com Auxêncio, bispo de Durostorum, representante da vertente ariana na cidade de Milão. O consistório convocado pelo imperador tinha como propósito estabelecer um ambiente de discussão e até mesmo acordo entre Auxêncio e Ambrósio, que representavam neste momento autoridades que defendiam dogmas distintos e contrapostos. A questão mais importante a ser abordada neste ponto é: por que era importante estabelecer o diálogo e o acordo? Se o imperador abriu um espaço para discussão entre essas duas figuras, era por que ele não poderia simplesmente impor sua vontade, ou a de sua mãe Justina, tomando a Basílica Ambrosiana para uso dos arianos. A iniciativa de proporcionar um diálogo mostra-nos a importância e a influência de Ambrósio nas decisões imperiais. O argumento de Ambrósio para sua ausência no sínodo era de que assuntos da Igreja não podem ser discutidos em consistórios seculares:

Eu teria vindo imperador, para o consistório de sua clemência para fazer essas observações em pessoa, se tanto os bispos ou as pessoas tivessem me permitido, mas eles continuaram dizendo que a discussão 85 acerca da fé deve ser realizada na igreja, na presença do povo .

83

J. H. W. G. Liebeschuetz. Ambrose of Milan, Political Letters and Speeches, vol. 43.Ed. Liverpool University Press.Liverpool, 2005. p. 125. título original em inglês: Ambrose’s conflict whith the empress Justina at Milan in 385-386. 84 Oration on the death of Theodosius I. In: J. H. W. G. Liebeschuetz. Ambrose of Milan, Political Letters and Speeches, vol. 43.Ed. Liverpool University Press.Liverpool, 2005. P. 175. 85 J. H. W. G. Liebeschuetz. Ambrose of Milan, Political Letters and Speeches, vol. 43.Ed. Liverpool University Press.Liverpool, 2005.P. 141.I would have come, emperor, to the consistory of your clemency to make these

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No final da carta a Valentiniano, Ambrósio justifica sua negativa ao convite por meio da vontade do clero e do povo, que exige que os assuntos da igreja sejam tratados no seio da Igreja, e não em uma reunião proposta pelo poder político. O assunto a ser debatido no consistório não interessa a Ambrósio, ele pretende se afirmar como protetor de sua fé e de sua basílica através do apoio dos fiéis. Ambrósio conclui seus argumentos com aseguinte afirmação: “gostaria que fosse patentemente claro para mim que a igreja em nenhuma circunstância será entregue aos arianos86”. E finalmente ele diz que poderá aceitar qualquer sentença pronunciada contra ele. Pede que o imperador aceite a sua negativa ao convite de participação para o consistório, e que ele não é capaz de lutar por sua causa dentro do palácio, o qual possui segredos que ele não sabe e nem deseja saber87. A partir destas afirmações pode-se perceber que Ambrósio não aceita participar da convocação de Valentiniano para evitar embates mais profundos, dos quais poderia sair vunerável. Por meio das cartas,Ambrósio se impõe e se faz presente, já que esteve ausente do concílio, e não deixa margem para um ataque mais direto. Ao falar sobre os “segredos do palácio”, Ambrósio refere-se provavelmete ao alinhamento de Justina, mãe do jovem imperador Valentiniano II, com a vertente ariana, e sua tentativa de estabelecer sua convicção. A imposição de Justina como ariana dentro do império também nos mostra a importância da basílica Ambrosiana na cidade de Milão, pois sua intenção é de tomá-la para as atividades do grupo ariano. As cartas que seguem a nagativa de Ambrósio a participar do consistório convocado por Valentiniano II são uma sucessão de argumentos explicativos da sua ausência. Apesar de não ter ido ao consistório convocado por Valentiniano II, Ambrósio não está em desvantagem. A nosso ver, sua tática de permanecer junto à congregação que lhe dava apoio, ajudou-o a assegurar seu poder como bispo da Basílica de Milão junto àqueles que apoiam a estabilização do seu episcopado. O conflito não está na rejeição de Ambrósio ao convite do Imperador, mas sim na intenção demonstrada por Valentiniano II em substituir Ambrósio por uma Bispo ariano. Para se afirmar como um bispo de autoridade superior a do bispo ariano, Ambrósio precisou terminar este conflito de maneira que pudesse extinguir as possibilidades de ser subistituído, e ver o credo que defendia perder força na importante cidade de Milão. Este desfecho é a descoberta das relíquias, evento o qual Ambrósio se mostrou dotado de remarks in person if either the bishops or the people had allowed me, but they kept saying that discussion concerning the faith should be held in church in the presence of the people. 86 Idem: would that it were patently clear to me that the church in no circumstances will be handed over the Arians. 87 Idem p. 142.

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certa divindade, pois fora tocado pelo Espírito Santo, que lhe concedeu em uma visão a informação do local de sepultamento dos mártires. Este evento certamente somou forças através do apoio dos fiéis e acabou com a possibilidade de ser substituído por um bispo ariano que não possuía os mesmos poderes divinos que ele. A carta seguinte do bloco de documentos selecionados por Ambrósio é a Ep. 75A (MAUR. 21A) Contra Auxentium que segundo Liebeschuetz, na realidade trata-se de um sermão proferido à congregação no momento em que passavam por uma espécie de cerco. “Os soldados em torno de nós, o choque de armas com as quais a Igreja está cercada não pode assustar a minha fé [...]”88. Este trecho do sermão descreve o momento em que os soldados do império cercam a Basílica Ambrosiana. Auxêncio era formalmente bispo de Durostorum, e estava neste momento estabelecido em Milão como bispo dos arianos. Neste período, Valentiniano II, assim como sua mãe, Justina, era um ariano, e permaneceu como tal até 387, quando se viu forçado a procurar ajuda do imperador do oriente Teodósio, que era adepto da vertente nicena. O centro deste sermão é a questão da garantia de liberdade de culto aos arianos e as acusações feitas a Ambrósio, que estava sobre pressão de exílio. Para Ambrósio, as provações passadas neste momento são enviadas porque ele foi escolhido para este embate como representante da vontade divina. Claramente, se o senhor me escolheu para este concurso, é em vão para vocês vigiar tantos dias e noites sem dormir. A vontade de Cristo será cumprida. Por nosso Senhor Jesus omnipotente. Isso é o que nós acreditamos, e, portanto, tudo o que ele ordena será cumprido, e não é para vocês para obstruiremo propósito divino89.

“Ambrósio usa os argumentos usuais para a vista de Nicéia da divindade de Cristo. Ele acredita e defende a doutrina da geração eterna do Filho [...]” 90. Na seguinte citação podemos ver como Ambrósio usa a expressão do entendimento filosófico da unidade da matéria do Pai e do Filho:

88

The soldiers all around us, the clashing of weapons by which the church is hemmed in do not frighten my faith […] Idem. p. 144. 89 Clearly, if the lord has chosen me for this contest, it is in vain for you keep watch so many days and nights without sleep. The will of Christ will be fulfilled. For our Lord Jesus is imnipotent. That is what we believe; and therefore whatever he ordains will be fulfilled, and it is not for you to obstruct the divine purpose. Idem. p. 146 90 Ambrose uses the usual arguments for the Nicene view of the divinity of Christ. He believes in and defends the doctrine of the Son's eternal generation. Galvão-Sobrinho, Carlos. Doctrine and Power: Theological Controversy and Christian Leadership in the Later Roman Empire. University of California Press. London. 2013. p. 84.

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[...]em referência a que Deus disse: Façamos o homem à nossa imagem conforme a nossa semelhança. Essa é a imagem do que está escrito: Cristo, o esplendor da sua glória e imagem da sua substância. Nessa imagem que eureconheço o Pai, como o Senhor Jesus mesmo disse: "Quem me vê, vê tambémo Pai". Paraque a imagemnão é destinto doPai, e ele me ensinou a unidade daTrindade, dizendo: Eu eo Pai somos um, adicionou: Tudo o que o Pai tem é meu, esobre o Espírito Santo, que o Espirito é se Cristo, e recebeu de Cristo, como os registros das Escrituras: ele receberá do que é meu e vou anunciá-lo.91

As passagens em itálico são citações bíblicas que Ambrósio incorpora em seu discurso para fudamentar sua vertente teológica nos escritos sagrados. Como podemos ver, sua interpretação aponta para a unidade da Trindade a partir da afirmação de que Cristo é: “o esplendor da sua glória e imagem da sua substância”. Nessa imagem que eu reconheço o Pai”. Não é difícil ver nas passagens selecionadas para o sermão de Ambrósio, as possíveis interpretações sobre a consubistancialidade da Trindade que elas podem causar. Ambrósio precisa afirmar a sua fé e estabelecer uma base segura de confronto contra os arianos que lhe ameaçavam de exílio e de tomada de sua basílica. No início deste capítulo falamos sobre a pena assegurada a partir do concílio de Niceia, que previa um possível castigo em forma de exílio para aqueles que contradissessem a interpretação teológica tomada como verdadeira a partir de 325. Neste ponto torna-se necessário retomar o que disse o historiador Hanson, quando afirmou que o período que envolve esta documentação encontrava-se numa névoa de confusão e incerteza, o período a que o autor se refere é o de 341-357, ou seja, pósconcílio de Niceia, o que nos evidencia a não resolução do cisma teológico dentro da Igreja. O que era um castigo direcionado para aqueles que divergissem das decisões do Concílio de Niceia, agora torna-se uma possibilidade para aquele cujo dogma era tomado como verdadeira para tal Concílio até o momento. Deste modo, podemos ver a impossibilidade de gerar um dogma homogêneo neste período de “confusão e incerteza” como descrito por Hanson. Se a vontade de Cristo será cumprida tal qual afirma Ambrósio, o desfecho deste conflito já está pré-destinado à sua vitória. Como este texto trata-se de um sermão, o discurso baseado na tarefa divina de proteger a Basílica Ambrosiana é importantissimo para inflamar a 91

[…]with reference to which God said: Let us make man in our image after our likeness, That is the image of which it is written: Christ, the splendour of his glory and the image of his substance. In that image I regcognise the Father, as the Lord Jesus himself has said: 'he who sees me, also sees the Father'. For that image is not distinct from the Father, and he has taught me the unity of the Trinity, by saying: I and the Father are one, and futher on: All that the Father has is mine, and by saying about the Holy Spirit, that the Spirir is if Christ, and has received from Christ, as the Scripture records: He will take what is mine and declare it to you. In: J. H. W. G. Liebeschuetz. Ambrose of Milan, Political Letters and Speeches, vol. 43.Ed. Liverpool University Press.Liverpool, 2005. P. 157-158.

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congregação contra a ameaça de ocupação da basílica pelos arianos. “As Assembléias da Igreja eram, por natureza, "populares"- se não sempre bem atender. Nessas assembléias, as escrituraseram lidas, interpretadas, e ensinadasao povo, embora ainda fosse necessário para os pregadores fazer tais reuniões atraentes e interessantes”92. Nesta passagem do livro de Galvão-Sobrinho, destaca-se a importância dessas congregações que envolvem os fiéis em um ambiente participativo nas questões da Igreja, tornando-as assim mais interessantes. A Ep. 76 (MAUR. 20) ecrita para a irmã de Ambrósio, Marcelina, descreve o confronto entre Ambrósio e Justina na demanda da Basílica Ambrosiana para uso dos arianos. Nesta carta, Ambrósio narra à sua irmã todos os eventos que procederam após o convite para o consistório para o debate entre nicenos e arianos diante do imperador. A narrativa começa com a explicação do motivo pelo qual Ambrósio não poderia comparecer à reunião e em seguida, dia por dia, ele narra à irmã os eventos que se sucederam após a demanda da Basílica Ambrosiana pelos arianos. Neste documento, encontramos alguns detalhes do conflito que se deu entre os populares adeptos a vertente nicena e os arianos: Enquanto eu estava fazendo a oferta, eu ouvi que as pessoas tinham feito prisioneiro um homem chamado Castulus, a quem os arianos chamam de padre. Eles passaram a deparar com ele na rua a caminho. Bem no meio do ofertório eu comecei a chorar lágrimas amargas, e pedir a Deus para virem nosso auxílio, e impedir que o sangue de alguém seja derramado em uma disputa eclesiástica, ou pelo menos que fosse o meu sangue, que seria derramado, não só para a salvação das pessoas, mas também em nome dos próprios arianos93.

Como podemos ver nesta passagem, o conflito envolveu profundamente a população cristã nicena que perseguiu e fez prisioneiro um padre ariano. A nosso ver as dimensões deste conflito trouxeram ainda mais notoriedade para Ambrósio, que fez o seu papel de pacificador mais uma vez:

92

Church assemblies were by nature "popular" - if not always well attend. In these assemblies, scripture was read, interpreted, and taught to the people, though it was still necessary for preaches to make such meetings attractive and interesting. In: Galvão-Sobrinho, Carlos. Doctrine and Power: Theological Controversy and Christian Leadership in the Later Roman Empire. University of California Press. London. 2013. P. 47. 93 While I was making the offerin , I learnt that people had made a prisoner of some man called Castulus, Whom the Arians call a priest. They happened to have come across him in the street on their way. Right in the middle of the offertory I started to weep bitter tears, and to beg God to come to ouraid, and prevent anyone's blood being shed in an eclesiastical dispute, or at least that it was my blood which would be shed, not only for the salvation of the people, but also on behalf of the Arians, themselves. In: J. H. W. G. Liebeschuetz. Ambrose of Milan, Political Letters and Speeches, vol. 43.Ed. Liverpool University Press.Liverpool, 2005.p. 162.

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Fui chamado para pacificar o povo. Eu respondi que estava no meu poder despertá-los, mas pacificá-los estava com Deus. Afinal, se o imperador realmente acreditava que era eu o instigador, ele deveria ter me punido imediatamente, ou ter me transportado para qualquer parte desolada do mundo que quisesse. Dizendo isso, eles partiram94.

Os acontecimentos posteriores ao convite para o consistório convocado por Valentiniano II colocaram Ambrósio em uma situação de destaque e de liderança da fé nicena. Uma imagem pública, pacificadora, e de grande influência como Ambrósio, encontrou um desfecho vitorioso para acabar com este conflito e estabalecer em Milão o seu poder. Sua autoridade estava estabelecida em bases firmes. Como vimos,o povo era um forte aliado da causa de Ambrósio e da Basílica Ambrosiana em poder dos Nicenos. Ao fim, Ambrósio não foi exilado, e permaneceu bispo da Sé de Milão até sua morte. Ambrósio precisou afirmar a sua fé e estabelecer uma base segura no confronto contra os arianos que lhe ameaçavam de exílio e de tomada de sua basílica. A decisão do concílio de Niceia a favor da fé Nicena, como podemos ver, não garantiu a extinção da vertente ariana, que tinha fortes aliados, como a mãe do imperador, Justina. Acreditamos que a liderança episcopal é exercida em seu ponto mais fundamental em momentos de conflito, os quais, os bispos assumem de forma mais veemente seu poder perante a comunidade que lidera e ainda sobre a cidade e o Império. Como vimos, por meio da fonte citada, a tentativa de Ambrósio de lutar contra os Arianos, que apesar, de estarem “protegidos” por Justina, foi bem sucedida. Depois de rejeitar o convite do imperador para o sínodo com os Arianos, Ambrósio encontra-se em uma situação delicada, mas mesmo assim precisa continuar e se manter firme em sua opção e procurar meios de apoio para evitar riscos. Não queremos apontar para uma sequência de fatos que culmina numa “vitória óbvia”, mas pelo contrário, diante do poder imperial e de interesses conflitantes, Ambrósio joga com as possibilidades num limite que ainda não está estabelecido, pois não sabemos até onde vai o poder de um bispo diante do poder imperial. A última carta deste bloco (Epístola 77 (MAUR. 22)) é também endereçada à irmã de Ambrósio, Marcelina.Trata-se de um relato não muito detalhado da descoberta das relíquias de Gervásio e Protásio, esta carta não será tratada neste capítulo, pois será inserida no debate

94

I was called upon to pacify the people. I replied that it was in my power no to ruse them, but pacify them lay with God. After all, if the emperor really believed that was the instigator, he ought to have me punished straight way, or to have me transported to whatever desolate part of the world he pleased. On my saying this, they departed. Idem.p. 164.

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sobre a afirmação da autoridade espiritual nos escritos de Ambrósio de Milão95. Esta última carta traz a este bloco uma espécie de desfecho para o conflito estabelecido contra os arianos em Milão. Com a descoberta dos corpos dos Mártires Gervársio e Protásio, Ambrósio dá o ultimo golpe contra os arianos e se afirma detentor do poder espiritual, poder que o guiou através de um sonho para o caminho das relíquias. Certamente esta descoberta lhe conferiu o poder que ele precisava para somar forças à sua luta contra Justina e os arianos. No capítulo 3 desta monografia avançaremos para uma análise mais detalhada da carta enviada a Marcelina numa perspectiva que procura alinhar o conflito entre Ambrósio, e os arianos numa consolidação da autoridade episcopal que se baseia na descoberta das relíquias. Mas não sem antes apresentarmos outra linha de frente na qual Ambrósio lutou: contra o paganismo96.

95

Capítulo 3 desta monografia. Capítulo 2 desta monografia.

96

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CAPÍTULO 2 O conflito contra os pagãos nos escritos de Ambrósio de Milão: O caso do Altar da Vitória no senado romano e a petição de Símaco.

Após o término da batalha de Actium em 31 a.C o imperador Augusto estabeleceu no senado o Altar da Vitória. Este altar era usado pelos senadores para fazer libações aos deuses e juramentos, particularmente o de lealdade ao imperador, antes do começo das sessões. Em 357 Constâncio II, imperador cristão, tirou o Altar da Vitória do senado, e logo, no governo de Juliano, em um “período de tolerância”, evidentemente tendenciado ao paganismo 97, o Altar foi restaurado ao senado. Os imperadores que o sucederam não se preocuparam muito com esta questão, Joviano e Valentiniano I não tomaram nenhuma medida em relação ao Altar que durante seus governos continuou no senado. Em 382, o imperador Graciano rompeu com seus predecessores no que diz respeito à política de tolerância aos ritos da religião tradicional na cidade de Roma. Graciano tomou medidas mais extremas do que simplesmente a retirada de um altar. Desviou as receitas dos sacerdotes pagãos romanos para atender aos gastos públicos, confiscou propriedades particulares tanto de sacerdotes quanto de funcionários dos templos, e acabou com vários de seus privilégios. Graciano renunciou ao título de Pontifex Maximus, portanto, deixou vaga a “chefia” da religião pagã. Esta atitude de Graciano causou grande indignação no senado, constituído pela maioria pagã98. O ano de 384 trouxe mudanças, no verão o Imperador Graciano morreu, deixando como sucessor, ValentinianoII, o qual se torna imperador com apenas 13 anos de idade 99. Também neste ano, Símaco acabara de se tornar prefeito de Roma assim como presidente do senado romano. Neste capítulo nos deteremos à análise e reflexão dos documentos do bloco denominado “Cartas sobre o Altar da Vitória100”, constituído por três documentos. O primeiro é uma carta (Ep. 72 (Maur. 17) escrita em 384 por Ambrósio e endereçada ao imperador Valentiniano II. Nesta carta, sua intenção principal é desqualificar a petição do senador romano Símaco, que neste momento é líder dos senadores pagãos romanos, bem como evitar a restauração do Altar da Vitória no senado romano. O segundo documento, o Terceiro

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Herbert Bloch, El renacimiento del paganismo em occidente a Fines del siglo IV. In El conflito entre el paganismo y el cristianismo em elsiglo IV. Ed. Alianza Editorial. p. 209. 98 Idem.p. 3 e 4. 99 J. H. W. G LIEBESCHUETZ, Ambrose of Milan, Political Letters and Speeches. Liverpool University Press, 2005.p. 62. 100 Letters on the Altar of Victory. Idem. P.61.

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Relatio101 (Ep. 72A Maur. 17A), é uma petição escrita por Símaco e enviada para o imperador Valentiniano II, em nome do senado romano, e antecede temporalmente a Ep. 72 Maur. 17. Sendo assim, a Ep. 72 (Maur 17) é na verdade de uma resposta à Submissão de Símaco (Terceiro Relatio). É importante assinalar que o Terceiro Relatio exposto no Livro 10, de Ambrósio, é uma suposição do que Símaco teria enviado a Valentianiano II: “Ambrósio ouviu que a petição havia sido enviada, e imediatamente escreveu uma carta (Ep.72) para o imperador se opondo ao pedido do senado”.102 Mas por algum motivo Ambrósio coloca sua carta em resposta à petição de Símaco antes mesmo dela, provavelmente para impor à ordem dos documentos a importância do seu. O terceiro e último documento, a Ep. 73 (Maur. 18) é uma “Resposta formal de Ambrósio para Símaco”

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, na qual mais uma vez Ambrósio refuta os argumentos de Símaco para a

restauração do Altar da Vitória no senado romano, esta oração foi escrita depois que Valentiniano II já havia negado a restauração do Altar da Vitória no Senado, portanto a sua função é de reforçar o poder de influência que Ambrósio possuía sob o imperador, e ainda expor argumentos que “descreditassem a antiga religião de uma vez por todas”

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. Os três

documentos constituem um único dossiê que documenta o sucesso de Ambrósio no processo de convencimento do imperador em não restaurar o Altar da Vitória na câmara do senado. Sendo só a Ep. 72 (MAUR. 17) uma verdadeira carta105. A ordem original da documentação, como podemos ver, não corresponde a apresentada por Ambrósio em sua obra. A ordem por datação seria a seguinte: 1. Terceiro Relatio (Ep. 72A (MAUR. 17A): petição enviada por Símaco ao Imperador Valentiniano II, solicitando em nome dos senadores romanos a restauração do Altar da Vitória no senado romano. 2. Ep. 72 (MAUR. 17): Carta escrita por Ambrósio para o Imperador Valentiniano II refutando o pedido de Símaco e dos senadores romanos. 3. Ep. 73 (MAUR. 18): Oração de Ambrósio escrita quando o imperador Valentiniano já havia refutado o pedido de Símaco. 101

Submission of Symmachus. Idem. P. 71. Ambrose heard that the petition had been sent, and immediately wrote a letter (Ep. 72) to the emperor opposing the senate's request. Idem. P 62. 103 Epistula 73 (MAUR. 18): Ambrose’s Formal Reply to Symmachus (384) Idem. p. 78. 104 […] discredit the ancient religion once and for all. Idem. 78. 105 Ep. 72 (MAUR 17) of AD 384 addressed to the emperor Valentinian II; Ep. 72 (17a) which is not by Ambrose at all, but by Symmachus, the famous Third Relatio, pleading for the retention of the altar of victory; and Ep. 73 (18), Ambrose´s formal reply to Symmachus. The three documents constitute a single dossier documenting Ambrose´s success in prevening the emperor from restoring the altar of Victory to the senate chamber. Idem p. 70. 102

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A ordem apresentada acima é a ordem de leitura e análise que propomos neste capítulo. Nosso interesse é de avaliar a petição de Símaco enviada ao Imperador, mesmo que esta versão seja segundo Ambrósio. E em seguida avaliar a carta de Ambrósio Ep. 71 (MAUR. 17) juntamente com a oração: Ep. 73 (MAUR. 18). Pois acreditamos que estas duas últimas são na verdade documentos complementares, sendo o primeiro uma resposta rápida a petição de Símaco, rebatendo os pontos mais centrais, e a oração que fecha o bloco, um documento mais profundo, que apresenta melhor o que já ele já havia dito em sua carta anteriormente. Neste capítulo, que pretende estabelecer uma análise do conflito entre pagãos e cristãos, representados pelas figuras de Ambrósio e Símaco, e suas respectivas obras contidas na fonte traduzida, o Altar da Vitória ganha um lugar central, pois é em torno deste símbolo pagão do senado romano que Ambrósio trava seu confronto direto contra Símaco e o grupo que ele representava. Acreditamos que através dos argumentos apresentados tanto por Ambrósio, quanto por Símaco, em suas cartas muitíssimo bem elaboradas e ricas em argumentos bem embasados, podemos visualizar uma disputa não só religiosa, ou uma tentativa de imposição de uma religião sobre a outra. Evidentemente isso acontecia, mas o foco central percebido por nós é a disputa política. Um dos pontos centrais de ambas as cartas é a questão dos benefícios e isenções dados aos sacerdotes e templos pagãos em épocas passadas e que no período de um imperador cristão, foram reduzidos ou definitivamente retirados. O que é esse debate senão um debate político? Quem tem benefício ou isenção dos impostos, tem mais influência política?106 Consideramos os argumentos usados por Ambrósio e Símaco no decorrer das cartas enviadas ao imperador Valentiniano II, argumentos estes que estão envolvidos em um debate específico, o debate sobre a retirada ou a restauração do Altar dedicado à deusa Vitória, importantes para a compreensão das relações de poder entre as religiões conflitantes, o cristianismo e o paganismo. O debate sobre a retirada do Altar da Vitória do senado romano nos leva a duas dimensões inseparáveis para nossa análise, a religião e a política. Através da carta escrita por Ambrósio, nesta ocasião em especial, fica evidente a confrontação entre pagãos e cristãos. Ambrósio mais uma vez precisa fazer presente seus interesses, os interesses da Igreja cristã. O cristianismo ainda pode ser visto como algo novo, desprovido de raízes de 106

Ver: From Emperor to Bishop: The Self-Conscious Transformation of Political Power in the Fourth Century. Classical Philology, Vol. 81, No. 4. (Oct, 1986).

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tradição romana, não está completamente enraizado, ao contrário, ainda precisa se fazer presente de forma a garantir seu papel dentro do Império. O episódio do Altar da Vitória em 384, envolvendo Simaco, Ambrósio e o imperador Valentiniano II, nos mostra como Ambrósio se impõe diante de seus interlocutores para ver sua vontade ser feita, e assim assegurar sua autoridade de bispo da vertente nicena não só na cidade de Milão, na qual era bispo, mas também em Roma. Tentamos estabelecer, assim, um esquema comparativo entre as cartas de Ambrósio e as do senador pagão Símaco, seu rival, o que nos levou a uma reflexão sobre o período e sobre as disputas políticas entre cristianismo e paganismo sob a ótica destes dois importantes líderes políticos e religiosos. Os argumentos de Ambrósio e Símaco contrapostos e analisados a seguir nos mostram o longo processo em que o cristianismo e o paganismo vinham disputando a atenção dos imperadores e com isso os privilégios concedidos a uma ou outra religião. A carta de Ambrósio aponta para as perseguições sofridas pelos cristãos antes de Constantino107, e para a proibição do direito de pregação. E as pessoas que estão agora reclamando suas despesas são os mesmos homens que nunca pouparam o nosso sangue, que demoliram os muros de nossas igrejas. As mesmas pessoas que por uma lei de Juliano, não muito tempo atrás, negaram o direito dos nossos portavozes de falar e de ensinar o que é comum a todos, sem também pedirlhe privilégios, privilégios os quais tem sido frequentemente utilizados para prender os cristãos.108

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The reign of Constantine (306–37 ce) was momentous for Christianity. Before it, and indeed during Constantine’s first years, Christians continued to suffer persecution; after it, all but one emperor followed Constantine’s example in supporting Christianity. Christianity did not become the official religion of the empire under Constantine, as is often mistakenly claimed, but imperial hostility had turned into enthusiastic support, backed with money and patronage. However, some of Constantine’s actions opened up splits between the Christians themselves. The term the ‘peace of the church’, used by Christians to denote the ending of persecution,1 is something of a misnomer in light of the violent quarrelswhich followed during the rest of the fourth century and after. Nevertheless, Constantine’s patronage of the church set it on an altogether different path and made it in a real sense a public institution with a legal presence and official recognition. In: The Cambridge History of Christianity: Origins to Constantine. Edited by: Margaret M. Mitchell and Frances M. Young. Cambridge University Press, 2008. P. 538. 108 And the people who are now complaining of their expenses are the same men who never spared our blood, who demolished the very walls of our churches from the foundations. The same people who by a law of Julian, not long ago, denied our spokesmen the right of speaking and teaching which is common to all, no also ask you 108 for privileges, for privileges moreover which have frequently been used to entrap Christians. J. H. W. G. Liebeschuetz. Ambrose of Milan, Political Letters and Speeches, vol. 43.Ed. Liverpool University Press.Liverpool, 2005. p.64.

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A nosso ver esta afirmação é uma tentativa de estabelecer que o tempo de perseguição e proibição das práticas cristãs foram superadas, mas no momento presente os cristãos deveriam ser recompensados pelas atribulações do passado. Este argumento é retomado por Ambrósio nesta ocasião provavelmente para estabelecer quem foram os perseguidores, e quem foram os perseguidos, e como este quadro está invertido no momento do conflito em torno do Altar da Vitória. Os outros pontos importantes do argumento de Ambrósio são a afirmação da fé de Valentiniano II, que deve seguir o exemplo de seu pai e irmão, Valentiniano I e Graciano, também imperadores de fé cristã, que favoreceram o cristianismo diante do paganismo, o argumento de que os cultos pagãos são ímpios, e quem os favorece também está cometendo um ato ímpio. Segundo o tradutor da obra de Ambrósio, Liebeshuetz, o centro que articula os argumentos de Ambrósio nesta carta ao imperador é: “Seu argumento básico é que se o altar for restaurado na a câmara do senado, ele vai novamente queimar incenso sobre ele, e os senadores cristãos de fato serão obrigados a participar do culto pagão”109. Os argumentos de Ambrósio são muito bem manipulados, um exemplo nítido da manipulação das informações que ele põe em suas cartas é sobre o pai de Valentiniano II, Valentiniano I, que manteve em seu governo uma política de neutralidade nas questões religiosas, e permitiu que o Altar da Vitória permanecesse no senado 110. Apesar de cristão, Valentiniano I não favoreceu o cristianismo tanto quanto Ambrósio desejava, mas na carta de refutação a petição de Símaco, enviada a ValentinianoII, o argumento é de que o seu pai fora um grande cristão, que beneficiou muito a fé cristã, e por isso Valentiniano II deveria fazer o mesmo. Já os argumentos de Símaco têm outros pontos centrais, o principal é o da tradição. Percebemos que a tradição é muito importante nos argumentos tanto de Ambrósio quanto de Símaco. Apesar de argumentar contra a importância da tradição pagã como religião do império, Ambrósio também se baseia na tradição para sustentar o seu argumento, a diferença é que a ideia de tradição de Ambrósio se assegura na família de Valentiniano II, pelo menos o pai e o irmão, que segundo Ambrósio eram exemplares imperadores cristãos. Na carta111 escrita por Ambrósio a Valentiniano II, ele contra argumenta a questão das tradições do culto pagão no Império supostamente defendidas por Símaco em sua petição: “Mas Símaco diz: ‘o culto de nossos ancestrais deve ser preservados’. E sobre o fato de que

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Idem. p.69. Epistula 73 (MAUR. 18) Idem: P. 80.

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desde aqueles dias todas as coisas evoluíram para melhor?112”. Esta passagem da carta de Ambrósio nos mostra como ele sabe exatamente do que se trata a petição escrita por Símaco ao imperador, a argumentação de Ambrósio diante da noção de preservação da tradição do culto ancestral é “No início do dia não era brilhante, mas o decurso do tempo, com o aumento da luz, tornou-se clara e quente113” Ou seja, numa aproximação do livro bíblico de Gênesis, Ambrósio compara o paganismo à escuridão, e o cristianismo à luz. Numa evolução do credo, o cristianismo é melhor do que o paganismo, pois junto com todas as demais coisas do Império ele representa uma melhoria. Apesar de não ter tido contato direto com a petição enviada por Símaco ao imperador ValentinianoII, Ambrósio parece argumentar com cada ponto apresentado por Símaco, como se soubesse exatamente o que ele iria dizer. Quando Ambrósio envia sua carta ao imperador, e o fez o mais rápido que pode114, pede uma cópia da petição de Símaco, “Como Bispo Rogovos: Deixe-me ser dada umacópia da comunicação que foi submetido115”. Mas não sabemos se afinal a obteve, pois não sabemos se houve uma carta resposta de Valentiniano II, tanto para Ambrósio, quanto para Símaco. Na petição de Símaco, Ambrósio localiza, provavelmente através de informações obtidas junto a pessoas que tinham informações privilegiadas do governo e as quais ele possuía alguma influência. Três pontos na petição de Símaco; o primeiro são os cultos antigos; o segundo são os salários que devem ser pagos aos sacerdotes e às virgens vestais; e o terceiro, a fome ocasionada pela falta de pagamentos aos sacerdotes pelo corte de seus salários116. Ambrósio diz que quando os imperadores eram pagãos, os sacerdotes reivindicavam todo subsídio para eles, e agora que o imperador é cristão, eles acham que ele deve dividir o subsídio dos cristãos com os pagãos. Ambrósio questiona os privilégios que atende, mas diversas funções do império em contraponto à função eclesiástica. Enquanto um decurião tem direito à isenção, a Igreja não pode pedir isenção para o padre. “De todos os homens, apenas o clero é excluído desse direito comum, embora em nome de todos os homens, só ele oferece orações e apoio aos deveres

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But Symmachus says: “the cult of our ancestors must be preserved. What about the fact that since those days all things have progressed for the better?.Idem p. 89. 113 In the begining the day wanot bright, but the course of the time, with thein crease of light, it became bright and warm. Idem p.89. 114 Idem p.80. 115 As a Bishop I appeal toyou: Let me begiven a copy of the communication that was submitted. Idem p. 85. 116 Idem . p. 81.

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comuns117”. A cobrança de impostos, as taxas e as isenções são um dos assuntos tratados por Ambrósio em sua carta, Ambrósio parece saber detalhadamente de todas as taxas cobradas pelo Estado à Igreja ou aos templos pagãos. Ao longo da carta Ambrósio apela para uma ameaça. Caso Valentiniano II decida a favor dos senadores pagãos do senado romano, restaurando o Altar da Vitória, Ambrósio afirma que não irá impedir Valentiniano II de continuar a frequentar a igreja, mas não encontrará nenhum padre a sua disposição. Diante da ameaça de um distanciamento do clero e da Igreja, privando ao imperador a atenção dos padres e bispos, é possível averiguar que o poder de influência de Ambrósio se estende ao imperador de forma a poder pressioná-lo e ameaçá-lo de tal maneira. Apesar disso, Ambrósio sabe que depende das decisões do imperador favoráveis à Igreja, mesmo impondo-se de forma independente, sua intenção não é de distanciar o imperador, mas ao contrário, de trazê-lo para o seio da Igreja cristã com uma aliança política. Ambrósio lembra a Valentiniano II que havia sido recentemente confiado à embaixada do Império Romano118, isso nos mostra a importância política deste bispo que além de grande influência religiosa também possuía grande influência política, e estava atrelado diretamente aos interesses do Estado romano. A carta de Ambrósio gira, portanto nestes eixos centrais: a fé cristã, os benefícios e isenções de impostos cobrados pelo Estado aos templos cristãos, a tradição cristã da família de Valentiniano II, o caráter ímpio dos cultos pagãos, e as consequências da decisão de Valentiniano II, caso ele decida em favor da restauração do Altar da Vitória no senado romano. A petição de Símaco é mais curta e direta, e seu eixo central é a preservação da tradição ancestral dos cultos pagãos, que segundo ele, trouxeram muitas vitórias para o império romano. O Altar da Vitória é um altar dedicado a libações aos deuses e também de juramento de fidelidade ao imperador, e os cultos preservam a eternidade da imagem do imperador, Símaco diz: “Deixe sua eternidade ser lembrada por outras ações de outros imperadores, que são mais dignos de sua imitação119”. Sempre numa rememoração do 117

Of all men, only the clergy is excluded from this common right, though on behalf of all men, he alone offers up communal prayers and shoulders communal duties. Idem.p.85. 118 “And thus remembering the embassy that was recently entrusted to me. Note: The first embassy to the usurper Maximus, on wich Ambrose seems to have persuaded Maximus not to invade Italy in 382”. (see McLynn 1994,160 -62) The point is that Ambrose had done a very important service to regime of Valentinian II, which he suggests has earned him a favourablehearning. Idem.p. 67. 119 Let your Eternity be reminded of other actions of the same emperor, which are more worthy of your imitation. Idem p. 73.

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passado Símaco procura a base do seu argumento nos dias em que os cultos aos deuses eram reconhecidos como parte do Império Romano. “Nós olhamos para as mesmas estrelas. Nós compartilhamos o mesmo céu. O mesmo universo nos rodeia. Que importa com o que filosofia cada indivíduo procura a verdade 120”. Esta passagem resume muito bem um dos argumentos centrais da petição de Símaco, a livre escolha da religião e de culto. Diferente de Ambrósio, Símaco sustenta a escolha de culto sem culpa, sem condenação, o que para Ambrósio não é possível, pois a escolha da veneração de deuses pagãos implica diretamente na condenação. Apesar disso argumenta: “Todos devem ser livres para defender a convicção sincerade sua mente e para segurá-la121” Ambrósio parece compartilhar este argumento também escrito na petição enviada por Símaco, apesar de ter um tom bem diferente, no sentido de que cada um pode acreditar e cultuar o que quiser, mas os que cultuam os deuses pagãos são “racionalmente imaturos122” e vivem na escuridão. A perda dos financiamentos que o Estado dedicava aos templos pagãos prejudicou, evidentemente, a difusão dos cultos. Isso alertou os importantes adeptos do paganismo, ou seja, os aristocratas cultos, como Símaco, que se viram ameaçados pela depreciação dos cultos pagãos pelos imperadores cristãos, e ao favorecimento do cristianismo em ascensão. É importante ressaltar que o cristianismo ainda não havia triunfado completamente sobre o paganismo. O caso do Altar da Vitória, e a petição de Símaco representando os senadores romanos, tentava embasado no argumento de legitimação do poder imperial praticado por centenas de anos pelos romanos, reafirmar e reforçar sua importância tanto religiosa quanto política. “O período da Antiguidade Tardia testemunhou vários experimentos mediante a sociedade em geral, de normas religiosas se detidos por um grupo determinado e articulado123” Esta passagem do capítulo de Peter Brown124, em The Cambrigde Ancient History afirma a relação entre os grupos religiosos contrapostos, os pagãos representados pelo importante senador Símaco, e Ambrósio, bispo de Milão, que competiam politicamente para influenciar o Estado. Esta afirmação, que separa em dois blocos contrapostos, cristãos e pagãos, gera uma interpretação favorável aos cristãos, que saem vitoriosos, pois Valentiniano II decide por retirar definitivamente o Altar da Vitória do senado romano. 120

We look at the same stars. We share the same sky. The same universe surrounds us. What does it matter with what philosophy each individual seeks for the truth. Idem p. 74. 121 Everybody ought to be free to defend the sincere conviction of his mind and to hold onto it. Idem p.65. 122 Idem p.90. 123 The late antique period witnessed several experiments in their position, up on a wider society, of religious norms up held by a determined and articulate group. In: Peter Brown, Christianization and Religious Conflict, Cambridge University Press, 2008. p. 635. 124 Idem.

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Apesar da vasta documentação sobre os pagãos influentes no Império Romano do século IV, que ainda tinham voz, e ansiavam por um espaço de liberdade para seus cultos, nossa monografia não se estenderá a esses objetos. Nosso intuito é mostrar como através da disputa entre Ambrósio e pagãos, assim como entre arianos e heréticos, ele afirma sua posição política no Império Romano. O fim do paganismo é visto, em termos concretos como uma tragédia de atos distintos: inclui a remoção do Altar da Vitória e a privar da dotação financeira dos cultos romanos por Graciano em 382, o recurso abortivo de Símaco em 384. A súbita mudança de eventos da elevação de Eugenio em 392, e o acontecimento trágico da derrota e o suicídio de Flaviano na batalha dos Frigidus, em 394. As provas restantes para a tensão aguda entre cristãos e pagãos foi agrupado, quase instintivamente, em torno desses pontos de viragem125.

Na passagem acima, do historiador Peter Brown, é assinalado o fim do paganismo como uma soma de “atos distintos”, nos quais estão incluídos a remoção do Altar da Vitória e o fim dos privilégios financeiros concedidos aos templos e sacerdotes pagãos, eventos que marcaram o governo do imperador Graciano, e que lhe concedem a excelência do “imperador cristão exemplar” diante de Ambrósio. Como dito anteriormente, nossa intenção não é delimitar o que foram ou não os agentes causadores do fim do paganismo, ou então, propulsores do cristianismo, e com isso seguir os esquemas interpretativos de autores como Peter Brown. Nossa intenção é de apontar na documentação apresentada os aspectos do exercício do poder episcopal nos escritos do bispo Ambrósio. O período em que se instalou a disputa entre Símaco e Ambrósio é caracterizado por Peter Brown como um período de grande poder da Igreja cristã. Não só ele, como outros historiadores126 reforçam a ideia de que o século IV mostra fatos de grande importância para a Igreja. Para nós esta afirmação não pode ser feita desconectada da ascensão do poder episcopal, no século IV, os bispos assumem papel primordial no fortalecimento da Igreja. Cabe a eles exercer influência diante do poder político para assegurar às bases do poder da Igreja. 125

The end of paganism is seen, in concrete terms. as a tragedy of distinct acts : it includes the removal of the Altar of Victory and the disendowment of the Roman cults by Gratian in 382, the abortive appeal of Symmachus in 384. The peripaetia of the elevation of Eugenius in 392, and the tragic knouement of the defeat and suicide of Flavianus at the battle of the Frigidus, in 394. The remaining evidence for acute tension between Christians and pagans has been grouped, almost instinctively, around these ' turning-points '. In: P. R. L Brown. Aspects of the Christianization of the Roman Aristocracy.The Journal of Roman Studies, Vol. 51, Parts 1 and 2.(1961), p.3. 126 Claudia Rapp, Holy Bishops in Late Antiquity: The nature of Christianian leadership in an age of transition. University of California Press. California. 2005

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Como afirma Peter Brown na citação a seguir, a aristocracia pagã no Império Romano passava por uma transformação no século IV. O que fica bem claro para nós diante da análise dos documentos do bloco sobre o Altar da Vitória. No entanto Símaco e seus companheiros pagãos viveram em uma época de mudança religiosa rápida. Alegremente descrito por seus contemporâneos cristãos como o cumprimento das profecias do Antigo Testamento. No século seguinte, seus descendentes continuaram a representar os pars Melior generis humanitas como cristãos. Assim, uma questão foi colocada de forma aguda pelo estado do nosso conhecimento atual, o que temos reconstruído é a coerência dos elementos conservadores da aristocracia romana tardia, o que ainda é preciso explicar é a sua transformação gradual na Tempora Christiana127.

Peter Brown continua sua explanação sobre como o conflito entre pagãos e cristãos se deu em um ambiente de desestabilização do paganismo diante de imperadores que favoreceram o cristianismo. Exatamente como fez Valentiniano II ao negar a restauração do Altar no senado romano. Apesar do desfecho da disputa entre Ambrósio e Símaco, não afirmaremos como Peter Brown, que neste momento “Júpiter fora derrotado por Cristo”. O que defendemos é que o esforço evidente de Ambrósio em argumentar contra a restauração do Altar da Vitória diante do Imperador, recorrendo a até mesmo a ameaças e imposições de poder, nos mostra como o paganismo ainda é forte entre os senadores romanos. Ambrósio não pode se calar diante da petição de Símaco, foi preciso comover o Valentiniano II ao seu favor e mostrar como ele deveria se portar como um verdadeiro imperador cristão, o que nos mostra que provavelmente ele ainda não sabia. Acreditava-se, por muitos cristãos desde Constantino, que a cristianização do Império tinha chegado a depender da autoridade de um imperador Militans pro Deo (Ambrose, Ep. 17). Inevitavelmente, a desestabilização dos cultos pagãos oficiais de Roma, por Graciano em 382, e, finalmente, por Teodósio, tomou a forma de uma to definitivo da autoridade pública. Na verdade, este exercício de poder pelo imperador foi realizado pelos contemporâneos a ser tão 127

Yet Symmachus and his fellow-pagans lived in an age of rapid religious change, gleefully described by their Christian contemporaries as the fulfillment of the prophecies of the Old Testament. In the next century, their descendants continued to represent the pars Melior Generis Humani-but as Christians. Thus a question has been posed acutely by the state of our present knowledge; what we have reconstructed is the coherence of the conservative elements in the Late Roman aristocracy; what we still need to explain is their gradual transformation in the tempora Christiana.P. R. L Brown. In: Aspects of the Christianization of the Roman Aristocracy.The Journal of Roman Studies, Vol. 51, Parts 1 and 2. (1961), p.2.

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importante que Prudêncio, em seu Contra Symmachum de 402, poderia representar o fim do paganismo em Roma como tendo ocorrido em uma atmosfera de legalidade impecável,de acordo com as tradicionais formas romanas: em uma reunião do Senado, presidida pelo imperador Teodósio, Júpiter foi derrotado por Cristo em uma divisãoda casa!128

A passagem acima mostra uma importante problematização da historiografia do período sobre a cristianização dos imperadores, o entendimento do que “culminou” na cristianização do império são as medidas dos imperadores pro Deo, no entanto para Peter Brown essas medidas eram só mais uma forma de afirmação da sua autoridade. Sendo apenas um exercício de sua autoridade ou não, os imperadores da Tempora Christiana, como Valentiniano II, seu pai Teodósio e seu irmão Graciano, em grande parte adotaram medidas favoráveis ao cristianismo. Este favorecimento visível não pode nos deixar negligenciar a importante tentativa dos pagãos em manter seus cultos, mesmo que aqui representados por uma pequena elite, liderada por Símaco, e sua importância no debate instalado entre estes e o bispo Ambrósio.

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It had been believed, by many Christians since Constantine, that the Christianization of the Empire had come to depend on the authority of an emperor militans pro Deo (Ambrose, Ep. 17). Inevitably, the disestablishment of the official pagan cults of Rome, by Gratian in 382, and, finally, by Theodosius, took the form of a definitive act of public authority. Indeed, this exercise of authority by the Emperor was held by contemporaries to be so important that Prudentius, in his Contra Symmachum of 402, could represent the end of paganism in Rome as having taken place in an atmosphere of impeccable legality, according to the traditional Roman forms : in a meeting of the Senate, presided over by the Emperor Theodosius, Jupiter was defeated by Christ in a division of the house! Idem, p.2

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CAPÍTULO 3: A construção da autoridade episcopal: O achado das relíquias de Gervásio e Protásio por Ambrósio de Milão.

Neste capítulo pretendemos discutir a construção da memória dos mártires como uma das bases de afirmação do poder episcopal no século IV, mais especificamente uma das bases que consideramos como formadoras do poder episcopal, o poder espiritual. Para isso, analisaremos a fonte: Ep. 77 (22) Carta sobre a descoberta das relíquias de Gervásio e São Protásio, escrita pelo Bispo da cidade de Milão, Ambrósio, e enviada em 386 a sua irmã Marcelina. Lembrando que esta carta encontra-se no bloco de cartas denominado pelo autor Liebeshuetz como: O conflito de Ambrósio com a imperatriz Justina129, tratado no capítulo 1 desta monografia. Selecionamos esta carta especificamente para tratar do assunto aqui proposto, pois acreditamos que esta documentação poderia ser mais bem trabalhada no que diz respeito à formação da autoridade episcopal nos escritos de Ambrósio de Milão. Esta carta é essencial para compreender o desfecho do conflito entre Ambrósio e os arianos. Com a descoberta das relíquias por Ambrósio, o conflito tem fim, Ambrósio sai vitorioso e com mais apoio público do que nunca. Diante de um bispo dotado de tamanho “poder divino” podendo prever o local de sepultamento dos corpos dos mártires, a imperatriz Justina e o grupo de arianos liderados em Milão pelo bispo Auxêncio não tinham mais chance de confronto. Por meio desta carta podemos perceber uma série de elementos que mostram a importância dos mártires para a afirmação do discurso de autoridade espiritual em Ambrósio de Milão. A descoberta dos corpos dos mártires Gervásio e Protásio na cidade de Milão beneficiaria Ambrósio, seu bispado e sua basílica, em um contexto de disputas e conflitos entre Ambrósio e uma vertente teológica oposta a sua, o arianismo, cujo grupo era liderado por Justina, mãe do imperador Valentiniano II. Neste momento de tensão, Ambrósio corria o risco eminente de exílio. As crises existentes entre Ambrósio e o grupo da vertente protegida por Justina era um processo que já acontecia há alguns anos, e a demanda da Basílica Ambrosina para os usos do grupo ariano, e o exílio de seu bispo foram um episódio mais profundo dentro do quadro de disputa que se instalou entre esses dois grupos. Neste capítulo vermos como o conflito travado entre Ambrósio e o grupo ariano e as demais documentações propostas, nos aponta para a ligação da imagem de Ambrósio a dos mártires pode ele descobertos. 129

J. H. W. G. Liebeschuetz. Ambrose of Milan, Political Letters and Speeches, vol. 43.Ed. Liverpool University Press. Liverpol, 2005. P. 125.

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Este episódio também pode ser visto em outros autores da época como Agostinho, Rufino e Paulino, este último, diácono da diocese de Milão e secretário de Ambrósio. Nesses relatos, os autores não se detêm na disputa pela basílica, mas relatam a perseguição sofrida por Ambrósio e seus pares e descrevem a campanha da imperatriz contra Ambrósio130. Mas à frente veremos como este ponto sublinhado por estes autores está associado aos usos da memória do martírio tal qual feito por Ambrósio. Para atingir nosso objetivo de análise, veremos como a ideia de mártir aparece em outras duas obras. Uma delas, também produzida por Ambrósio, foi escrita em razão do “Massacre de Tessalônica”, episódio de assassinato de inúmeros civis na cidade de Tessalônica, ao comando de um general do Império Romano sob o governo do Imperador Teodósio. Em resposta, Ambrósio escreveu uma carta a Teodósio repreendendo-o pelo ocorrido e exigindo que fizesse penitência pública para purgar o grave pecado de assassinato. Motivado por tal penitência ou para dar mais argumentos para sua realização, Ambrósio escreveu o sermão: Sobre a apologia do profeta David a Teodósio Augusto131. Neste texto Ambrósio justificou o pecado do rei Davi pela sua significação moral e explicou como ele fora absolvido por Deus, pelo julgamento de si mesmo e pelo arrependimento. Em direta comparação com Davi, Teodósio seria absolvido por Deus, pois se arrependera. O verso 21 deste sermão, no qual nos detemos especificamente é uma interpretação da visão de João em Apocalipse. Acreditamos que a mesma ideia do Apocalipse de injustiça relacionada à vida terrena, e a justiça na figura de Cristo e da reencarnação é feita na apologia a Davi, ou seja, na absolvição de Teodósio ao se arrepender de seu pecado. Para compreender a lógica do martírio é preciso compreender a lógica da injustiça terrena em contra posição a justiça divina. Relacionaremos esta obra com o livro bíblico do Apocalipse, conhecido como “manual dos mártires em potencial”, o qual relata a certeza de ressurreição em Cristo dos mártires injustiçados, que encontram a justiça em Jesus. A visão de João narra à primeira ressurreição, destinada àqueles que passaram por atribulações, e as etapas seguintes até a consumação final, o julgamento final. A relação entre memória dos mártires e autoridade episcopal pode ser vista com clareza na carta de Ambrósio enviada a sua irmã que narra, de maneira sucinta, desde a descoberta dos corpos em Milão até o funeral das relíquias na Basílica Ambrosiana. Vejamos na passagem seguinte como Ambrósio começa a narrar a descoberta das relíquias a sua irmã:

130 131

Idem. p. 125. Ambroise de Milan. Apologie de David. Les editions Du Cerf. Paris, 1977.

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[...] Eu quero que você também saiba que encontramos os santos mártires. Foi assim: quando eu tinha consagrado a basílica, um grande número de pessoas como num acordo começaram a interromper os procedimentos gritando: Consagrai a basílica como você fez a basílica in Romana! Eu respondi: "Eu vou se eu encontrar relíquias dos mártires". E imediatamente senti uma emoção como se de previsão.132

Como podemos ver na passagem acima, além da descoberta das relíquias, o apoio popular a causa de Ambrósio é um importante fator da legitimação da autoridade episcopal de Ambrósio. Incitado pela congregação Ambrósio faz uma promessa, a de encontrar os corpos dos mártires perdidos, e consagrar a Basílica Ambrosiana, assim como fez com a Basílica in Romana. A descoberta dos mártires por Ambrósio foi mostrada a ele através de um sinal, num sonho133. A partir disso Ambrósio se sentiu inspirado a encontrar os corpos dos mártires Gervásio e Protásio. No episódio de retirada dos corpos da antiga tumba, um homem cego foi curado e outros milagres de exorcismos se seguiram134. Ambrósio descreve em seguida à irmã como ele pensou no sermão do funeral dos mártires em sua basílica, e seu conflito com os arianos que duvidavam da originalidade dos corpos, e que, segundo ele, invejavam os mártires. A relação entre os mártires e Ambrósio, confere importância ao discurso cristão e à autoridade de seu descobridor, prova a importância da memória dos mártires para a Igreja neste momento de conflito entre Ambrósio e Justina. Através da fonte e de sua análise podemos perceber como Ambrósio faz uso desta memória a seu favor e a favor de sua diocese como forma de resolução do conflito e fortalecimento de sua vertente cristã. O Senhor abriu os nossos olhos vemos os protetores por quem sempre fomos defendidos [...] E assim, porque estávamos com medo, o senhor, por assim dizer, nos disse: Olha o que o poderoso vos tenho dado135.

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[...] I want you also to know that we have found holy martyrs. This was how: when I had consecrated the basilica, a large number of people as with on accord began to interrupt the proceedings shouting: Consecrate the basilica as you did the Basilica in Romana! I replied: 'I will if I found relics of martyrs'. And immediately I felt a thrill as if of foresight. In: H. W. G. Liebeschuetz. Ambrose of Milan, Political Letters and Speeches, vol. 43.Ed. Liverpool University Press. Liverpol, 2005. P. 204. 133 According to Augustine. Civ. Dei 22.8, the martyrs were revealed in a dream. Idem. P. 204. 134 Idem. P. 206. 135 The lord opened our eyes we see the auxiliaries by whom we have always been defended. We now to see them but we had them nevertheless. And so because we were fearful, the lord, as it were, told us: Look what mighty I have given you. Idem. P. 208.

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Nesta citação podemos ver que Ambrósio sustenta ao longo de seu sermão, o fato de que os mártires protegem aos adeptos de sua fé, que estão com medo da perseguição. Para ele, Deus concede a graça de ter encontrado os mártires como um presente a aqueles que estão sendo injustiçados. A mesma ideia é apresentada em Apologia Prophetae David ad Theodosium Augustum, na seguinte citação podemos ver como a ideia de injustiça, martírio, e justiça em Cristo se fundem com o argumento de Ambrósio ao afirmar que a vontade de Deus está ao seu lado por meio de sua convicção, a nicena. Bem-aventurados os que sofrem perseguição por causa da justiça. A justiça é Cristo. Consequentemente, o sacrifício de Cristo, diz ele, será aprovado pelo Pai é sobre o sujeito que disse anteriormente: "Sacrifique um sacrifício de justiça e espere pelo Senhor.136

Como podemos ver ser injustiçado não é todo mal, pelo contrário, ser injustiçado é uma marca de sacrifício, sacrifício este que garante um lugar junto ao Senhor. Uma linha interpretativa pode ser traçada entre a descoberta dos corpos dos mártires por Ambrósio, que lhe confere uma autoridade especial, dada por Deus diretamente a um indivíduo específico, que é capaz de ter visões inspiradas pelo espírito santo (pneuma), a chamada autoridade espiritual. A visão que foi concedida a Ambrósio para a descoberta dos Mártires, só pode ser revelada a ele, por meio do pneuma, que é atribuída aos religiosos em contato direto com Deus. Autoridade espiritual é a autoridade que vem da posse do Espírito Santo. Na sua forma mais pura, é recebido como um dom divino, sem qualquer parcicipação ou preparação no lado do receptor. O envolvimento ativo do indivíduo para se preparar para a recepção deste dom, ou para melhorar o presente que já foi recebido, cai sob a alçada do que chamo de autoridade ascética.137

136

Heureux ceux qui souffrent persécution à cause de la justice. La justice, c'est le christ. En conséquence le sacrifice du Christ, affirme-t-il, sera agréé par le Père est c'est à ce sujet qui'il dit plus haut: "Sacrifiez un sacrifice de justice et espérez dans le Seigneur". Ambrósio. Apologia Prophetae David ad Theodosium Augustum Les editions Du Cerf. Paris, 1977. P. 187. 137 Spiritual Authority is the authority that comes from the possession of the Holy Spirit. In its purest form, it is received as a divine gift, without any participation or preparation on the side of the recipient. The active involvement of the individual to prepare himself for the receipt of this gift, or to enhance the gift that has already been received, falls under the purview of what I call ascetic authority. Claudia Rapp, Holy Bishops in Late Antiquity: The nature of Christianian leadership in an age of transition. University of California Press. California. 2005. P. 56.

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Essa autoridade espiritual é única, e difere o possuidor dos demais138. No contexto de disputa no qual Ambrósio estaria sendo “injustiçado” pela corte e pelos religiosos da vertente ariana. Lembrando que injustiça é o sofrimento que transforma o homem comum em mártir. Em um trecho da carta enviada a sua irmã Ambrósio escreve: “Graças avocê, Senhor Jesus, que nos santos mártires levantou para nós tão efetivos espíritos guardiões, num momento em que a sua igreja precisa de maiores defensores139”. Os mártires defenderam a Igreja e por isso foram injustiçados, persseguidos e mortos. A Basílica Ambrosiana, e o próprio Ambrósio vinham sofrendo uma injustiça e assim como os mártires, e através deles atigiu Cristo encontrando a justiça. A narrativa de João em Apocalipse trata de uma visão, assim como a que Ambrósio teve antes de encontrar os mártires. João descreve a aclamação dos mártires: “Senhor santo e verdadeiro, até quando tardarás em fazer justiça, vingando o nosso sangue contra os habitantes da terra140?”. Vê-se nessa citação, retirada do livro bíblico do Apocalipse, que os mártires ainda esperam por justiça, sendo a vingança contra aqueles os transformaram em mártires, um modo de alcança-la. O livro de Apocalipse é extremamente complexo, trata-se da narrativa de uma visão, cheia de símbolos e de imagens que para o homem antigo tinha outros significados e diziam coisas representativas, as quais não podemos enxergar tão nitidamente. Tentar compreender a apropriação do discurso bíblico em Ambrósio, sobretudo no Verso 21, da Apologia a Davi, e por sua vez, o que significa a descoberta dos mártires por um bispo do século IV, se constrói na história da Antiguidade Tardia como uma tentativa de conhecer as manobras políticas que o discurso religioso poderia exercer na comunidade cristã e, sobretudo na corte imperial. A tentativa de conhecer e analisar a construção do discurso de Ambrósio baseado em sua descoberta dos mártires aponta diretamente para um discurso de poder, autoridade e de revanche sobre aqueles que o perseguiam. Ambrósio descreve os mártires na carta para sua irmã, como troféus: Embora este seja um presentede Deus, eu não posso negar o ato de graça que o Senhor Jesus tem conferido nos tempos do meu

138

Ver: Claudia Rapp, Holy Bishops in Late Antiquity: The nature of Christianian leadership in an age of transition. University of California Press. California. 2005. 139 Thanks be to you, Lord Jesus, that in the holy martyrs you have raised for us such effective guardian spirits, at a time when your church needs greater defenders. J. H. W. Liebeschuetz. Ambrose of Milan, Political Letters and Speeches, vol. 43.Ed. Liverpool University Press. Liverpool, 2005. p. 207. 140 Apocalipse 5-6.

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episcopado; porque eu não mereço ser um mártir, adquiri esses mártires para você.141

Ambrósio joga com a possibilidade de ser considerado um mártir, alega que não pode ser, mas sua relação de “descobridor” relaciona sua figura a dos mártires. O fato de ter mencionado que não merece ser considerado como tal já revela a possibilidade de pensar em tal relação. Através da negação e modéstia, Ambrósio demonstra a capacidade retórica do seu discurso. Como sabemos através da fonte, os corpos dos mátires foram enterrados no altar da basílica Ambrosiana, onde ele mesmo foi enterrado quando morreu. Se em vida ele se negou a ser considerado como um mártire, em morte esteve junto a eles. O período de 385-6 é marcado pelo conflito entre Nicenos e Arianos no Império Romano liderado por Valentiniano II no Ocidente, e seu irmão Teodósio no Oriente. A dificuldade de análise apresentada pelos estudiosos do assunto é a sequência de acontecimento apresentados nos escritos de Ambrósio, o quebra-cabeça de cartas do período ainda não foi solucionado, e novas perspectivas sobre o assunto são debatidas. A sequência de eventos é primordial para a compreensão do jogo político em que Ambrósio estava envolvido no período em que foi bispo da cidade de Milão. As cartas de Ambrósio fornecem um bom panorama do conflito, mas ainda existem lacunas. Para Liebeshuetz, qualquer tentativa de reconstrução do conflito deve começar pela discussão da cronologia das cartas.142A ordem das cartas pode alterar a interpretação dos eventos. No caso da organização apresentada na tradução de Liebeshuetz, tudo parece caminhar para uma “resolução do conflito”, na qual Ambrósio sai vitorioso. Notemos que esse bloco de cartas trata especificamente do embate estabelecido entre Nicenos e Arianos nos anos de 385 a 386. Mas um documento interrompe a sequencia, “oração sobre a morte de Teodósio143”, escrito em 395, portanto, muito tempo depois dos demais documentos que compõe este bloco específico de documentação sobre o conflito de Ambrósio e os Arianos, que neste momento encontravam-se liderados pela figura de Justina e Auxêncio. Acreditamos que a oração proferida no funeral de Teodósio está inserida neste contexto, afim de, exaltar a imagem de um “cristão exemplar”, Teodósio era cristão niceno, e ao longo de sua vida se dedicou a seguir a fé de Ambrósio. Este discurso forjado em torno de um imperador acrescenta a importância de sua fé na corte imperial, de maneira a reforçar sua influência sob 141

Although this is a gift of God, I cannot deny the act of grace which the Lord Jesus conferred on the times of my episcopacy; because I do not deserve to be a martyr, I have acquired these martyrs for you. J. H. W. Liebeschuetz. Ambrose of Milan, Political Letters and Speeches, vol. 43.Ed. Liverpool University Press. Liverpol, 2005. p. 208. 142 Idem. p.125 143 Oration on the death of Theodosius idem. p.174

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os imperadores. O grande poder político e influência que Ambrósio exercia sobre a assembleia de fieis de sua diocese tornou possível muitas das atitudes tomadas nos momentos de crise. Ambrósio foi um dos primeiros bispos a experimentar o poder de pressionar a corte imperial a seu favor e torná-los “colaboradores” de suas dioceses. A segunda metade do século IV viu a figura do bispo se concretizar na sociedade, tanto no âmbito religioso quanto no político, que tornam-se indissociáveis a natureza episcopal a partir deste período. A historiadora Claudia Rapp, em seu livro: Santos Bispos na Antiguidade Tardia, a natureza da liderança cristã numa época de transição144, descreve a tríade de autoridades que ela considera constituintes da natureza do ofício episcopal do século IV, elas são as seguintes: autoridade espiritual, que é concedida por Deus, é autossuficiente e invisível. A autoridade ascética, que é proveniente do esforço pessoal, evidenciada pelo comportamento exemplar e é visível. E por fim a autoridade pragmática que é baseada em ações públicas, essa autoridade marca a posição social do bispo e sua riqueza econômica. Para Rapp a soma dessas três autoridades é a base do poder episcopal. A autora analisa diversos documentos sobre as “diretrizes do ofício episcopal” produzidas no século II, desde o livro bíblico de Timóteo até autores contemporâneos a Ambrósio para explicitar essas autoridades se formaram. A autora percorre um caminho de construção dessas ideias de autoridade propostas por ela, que se assentam de acordo com a profissionalização do ofício episcopal e da estratificação hierárquica mais profundamente no período de governo de Justiniano (527-565). No ultimo capítulo de sua obra citada. A partir da tríade de autoridades e o fortalecimento do ofício episcopal a autora desenvolve uma relação da figura do bispo com cidade, o bispo como cidadão exemplar, começa a substituir a figura do prefeito e demais figuras políticas do cenário urbano145. E até mesmo na corte imperial, como no caso de Ambrósio que tinha funções de embaixador imperial. Dessa maneira procuramos traçar uma linha de paralela entre a figura do mártir e a perseguição sofrida por Ambrósio pelos Arinos e por Justina. Acreditamos que o uso da memória dos mártires está relacionada à questão do martírio, e da ideia de injustiça sofrida por aqueles que são leais a sua fé. Num exercício de comparação com a ideia de justiça e injustiça, podemos estabelecer, mesmo que em níveis diferentes, que o argumento de 144

Claudia Rapp, Holy Bishops in Late Antiquity: The nature of Christianian leadership in an age of transition. University of California Press. California. 2005. 145 Idem 274.

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Ambrósio gira em torno de seu sofrimento pela injustiça causada pelo imperador ao ameaçalo de exílio. A obra de Rapp se mostra interessante para nossos estudos no sentido de que é facilmente visível nas obras de Ambrósio até aqui apresentadas, marcas dos exercícios desses poderes estabelecidos pela autora. No primeiro capítulo desta monografia quando tratamos do conflito entre Ambrósio e as vertentes heréticas, as quais citamos duas, a de Joviano, e os arianos protegidos por Justina, trabalhamos com a dissensão em Vercelli, situação em que a comunidade desta cidade se encontrava dividida entre adeptos de duas vertentes, sendo uma delas a de Joviano, que estava sendo propagada por dois monges. Neste episódio especifico, vimos como Ambrósio precisou afirmar-se como um protetor do ideal ascético, demonstrando dessa maneira sendo um possuidor exemplar desta modalidade de autoridade, que é dado a aqueles que seguem uma vida exemplar diante da comunidade. No segundo capítulo desta monografia, quando tratamos do conflito de Ambrósio contra o senador Símaco, percebemos que sua tentativa de proteger os senadores cristãos que tomam assento no senado junto com os pagãos e por isso podem ser influenciados por seus costumes, revela o exercício da chamada autoridade pragmática, que visa o bem de todos, por meio de ações públicas. Nossa tentativa neste trabalho não foi de tentar encaixar exatamente os episódios em que Ambrósio participou ativamente com as autoridades estabelecidas por Rapp. O que faz sentido a nosso ver, é a existência de uma forma específica de embate para cada tipo de conflito que Ambrósio travou contra inimigos políticos e religiosos, que nos chama atenção para a argumentação de Rapp. Obviamente, de acordo com o embate, os argumentos deveriam mudar, deveriam ser moldados de acordo com cada situação, de maneira que o favorecesse.

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CONCLUSÃO

Nesta monografia procuramos contribuir para a reflexão do processo de enraizamento do cristianismo no Império Romano ocidental a partir da autoafirmação dos bispos da Igreja cristã. A figura do bispo Ambrósio de Milão e sua obra, o Livro 10, nos proporcionou um estudo baseado na afirmação deste bispo que se estabelece em forma de conflitos. Ao analisar a obra de Ambrósio selecionada para esta monografia, foi possível pensar na confrontação deste bispo com os seguidores da vertente de Joviano, na ocasião das eleições para o bispo da sé de Vercelli. E no conflito com a imperatriz Justina e os arianos que desejavam tomar a Basílica administrada por Ambrósio. Ainda foi possível identificar o conflito estabelecido contra os pagãos no evento da decisão da retirada definitiva do Altar da Vitória do Senado Romano. A partir das reflexões acerca destes conflitos, foi possível concluir que além de tentar estabelecer seu credo cristão, diante dos imperadores, e assim garantir os privilégios da Igreja junto ao Império, e sua vertente tomada a partir do Concílio de Niceia como ortodoxa, Ambrósio exercia a afirmação de sua autoridade, que para nós se apresentou em três facetas, a autoridade espiritual, a pragmática e a ascética. Baseada na obra da historiadora Claudia Rapp foi possível identificar a tentativa de afirmação destas autoridades nos conflitos estabelecidos entre Ambrósio e herético e contra os pagãos. Como discutimos inicialmente, a tendência entre os historiadores na atualidade é de centralizar a figura do bispo como chave de compreensão da estabilização da Igreja no Império. Através da imagem do bispo historiadores tem cada vez menos estudado o quadro religioso e político no Império Romano do século IV como elementos destacados. Propiciando um ambiente de debate mais alargado sobre o processo de cristianização o historiador Peter Brown afirma: “Os elementos clássicos e cristãos não são simplesmente incompatíveis, nem o seu grau relativo de presença ou ausência deve ser tomado como um indicador de um processo de cristianização.”146 Afirmar a vitória da fé cristã não é mais a preocupação dos historiadores nos dias atuais. Por isso os estudos sobre a estabilização do ofício episcopal e do exercício de poder dos bispos se mostra essencial para a compreensão do período em questão. A obra de Ambrósio de Milão nos favorece no sentido de que nos faz pensar as relações estabelecidas

146

Brown, Peter. Authority and the Sacred: Aspects of the Christianisation of the Roman World. Cambridge University Press. New York. 1997. p.13.

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entre a figura do bispo em um processo de consolidação de seu ofício, e o poder imperial, no século IV.

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