O Congueiro - etnografia e documentação audiovisual

May 23, 2017 | Autor: Jo Name | Categoria: Ethnography
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José Otavio Lobo Name - Professor de Antropologia Visual, Fotografia e Vídeo do Departamento de Desenho Industrial - Centro de Artes da Universidade Federal do Espírito Santo - Vitória, ES, Brasil. email: [email protected]

O Congueiro - etnografia e documentação audiovisual
por José Otavio Lobo Name

Resumo
O Congueiro divulga, nas redes sociais, produções audiovisuais do projeto de pesquisa Holoteca digital do congo capixaba, servindo de meio de compartilhamento de material etnográfico acerca do congo do Espírito Santo. Atuando entre a etnografia e o antropologia fílmica, o projeto pesquisa técnicas e linguagens que não só documentam as pessoas, práticas e objetos do congo, como também servem de instrumento de diálogo entre conguistas e entre estes e a sociedade.
Palavras-chave: congo capixaba; etnografia; antropologia fílmica.

Este artigo apresenta os primeiros resultados em termos de dados oriundos da observação e da experiência empírica do projeto de pesquisa Holoteca digital do congo capixaba, atualmente em desenvolvimento na Universidade Federal do Espírito Santo. A pesquisa se concentra na produção audiovisual de O Congueiro, que é um conjunto de páginas de redes sociais construído para a difusão do material produzido e para o estabelecimento de interação com os grupos estudados e o púbico em geral.
A pesquisa se propôs, inicialmente, a identificar abordagens metodológicas e técnicas audiovisuais, com o objetivo de registrar as pessoas, as práticas e os objetos da cultura do congo. Neste momento, em que estabelecemos algumas estratégias fílmicas que serão instrumento da etapa que se pretende realizar a seguir, cabe a revisão crítica do trabalho realizado. A etapa seguinte será caracterizada pelo o uso efetivo do audiovisual como ferramenta para a produção de conhecimentos sobre congo a serem partilhados entre o pesquisador e os sujeitos do congo.
Há registros de mais de sessenta bandas de congo em atuação, nos dias de hoje. Dentre elas, o projeto já obteve registros de cerca de 20 bandas, algumas de forma bastante pontual. Cerca de cinco bandas têm tido uma documentação mais sistemática; e, em especial, a Banda de Congo Amores da Lua, do bairro de Santa Martha, em Vitória, se constitui como o universo principal da pesquisa.
A produção de O Congueiro segue o que Claudine de France chama de "método de exploração" em antropologia fílmica (MATSUMOTO, 2003, p.224), que consiste em usar, efetivamente, o audiovisual como ferramenta de coleta de dados, por meio de "esboços" do objeto, para posterior análise. Ao longo dos últimos dois anos, estabelecemos os parâmetros de captação, edição e difusão das imagens, possibilitando conhecer o discurso audiovisual presente na construção do corpo, indispensável à sua leitura como fonte de conhecimento do outro e de sua visão do mundo (Associação Brasileira de Antropologia, 2015, p. 20). Como Roberta Matsumoto afirma, em seu estudo sobre a mis en scène da capoeira, o audiovisual pode ser usado como o instrumento de pesquisa em si, e não apenas para a apresentação de resultados obtidos por ferramentas de pesquisa convencionais (MATSUMOTO, 2003, p. 223). Mas, para isso, é preciso que o pesquisador-cineasta tenha controle sobre as possibilidades e limitações do meio. Ao longo do estudo, várias técnicas e abordagens foram experimentadas, buscando os meios mais adequados a esta documentação; o que ditou a experimentação, no entanto, foi a mis en scène das bandas, espaço/tempo em que a devoção, a tradição e as identidades se manifestam mais intensamente.
Isto vem apoiar a concepção de que não é um conjunto fechado de regras e de procedimentos que irá garantir a validade de um material audiovisual em pesquisa. Antes, é necessário que se estabeleça que saberes podem ser produzidos por este meio. No presente caso, o processo se deu de maneira mais intensa, provavelmente devido à experiência do pesquisador em produção audiovisual. Para o produtor experiente, é fácil perceber o que "funciona" ou não. A questão que a pesquisa abordou foi justamente a de definir a que "função" o trabalho deveria servir.
A atuação como documentarista tem permitido ver que, muitas vezes, o pesquisador entende o objeto, mas não conhece as formas de produção audiovisual; outras vezes, é o documentarista que não possui as ferramentas conceituais para a abordagem do objeto, apesar de dominar a técnica. É necessário, então, que ambos os parâmetros de pesquisa sejam estabelecidos ao mesmo tempo, ou a priori, de modo que o trabalho analítico leve em consideração o exercício fílmico em si. Assim, junto com o que se mostra do objeto, é necessário que se explicite a posição do olhar de quem registra, não se deixando enganar pela ilusão de "realidade" do material audiovisual (idem, p. 224)
A reconstrução narrativa da realidade, que a antropóloga e documentarista Clarice Peixoto chama de filme espetáculo, em que a interferência do criador é total, a ponto de dirigir as cenas, os personagens (que agem como atores) e a ação, não lhe diminui seu valor documental, se tal direcionamento for fiel à observação e ao que se quer narrar. Ao mesmo tempo e por outro lado, é no filme etnográfico, aquele que registra a ação contínua do grupo, onde a presença do pesquisador e de sua câmera mais influenciam a ação. (PEIXOTO, 1994, p.21). Nesta linha, o filme etnográfico é aquele que apoia a observação etnográfica, obedecendo às suas regras, ou seja: o pesquisador envolve-se com o grupo observado de forma consensual; estabelece, com o grupo, os procedimentos de registro da observação; e apresenta e discute os registros com o grupo. Assim, os significados que se produzem a partir da observação e de seu registro são criados com a participação dos membros do grupo observado. Reside aqui um ponto importante nesta pesquisa, o de estabelecer um conjunto de saberes que reflita o pensar-o-mundo das pessoas que estão diretamente ligadas às práticas do congo.
Claude Bailblé, ao comentar sobre os conceitos éticos por detrás do trabalho do documentarista, destaca a importância do relacionamento entre as pessoas filmadas e o realizador, não só para o resultado imediato ("estético"), mas, principalmente, com relação à fidelidade ao assunto e às pessoas que o representam. Ele relaciona, também, o que chama de "contratos", entre o documentarista e as diversas instâncias. O documentarista tem um contrato, em primeiro lugar, consigo mesmo, com sua consciência. Deve equilibrar a vaidade do ego, a dúvida metodológica e a noção subjetiva da sua posição no conjunto de processos criativos. Tem também um contrato com seu objeto, construir uma relação de conhecimento e envolvimento com o tema, questionando-se continuamente sobre o que sabe e o que deseja saber. Outro contrato é com as pessoas com quem filma, os sujeitos do filme, que às vezes têm que se submeter às perguntas constrangedoras ou rememorar momentos sofridos. Deve ter empatia para com os envolvidos, mas com a distância necessária para poder alcançar o depoimento desejado. Há o contrato com os produtores, financiadores ou distribuidores do filme, que podem ter interesses paralelos e por vezes conflitantes. E, por fim, um contrato com seu espectador, que é, afinal, a quem se dirige o filme. (BAILBLÉ, 2012, p. 9-17).
Podemos apresentar a trajetória das atividades de documentação audiovisual, até agora, em três períodos distintos: a primeira fase vai de 2013 até o fim de 2014, embora se estenda até o fim dos festejos de São Benedito daquele ano, no domingo de Páscoa de 2015; a segunda fase inicia-se na Quaresma de 2015, quando foi estabelecido, oficialmente, o projeto de pesquisa, e encerra-se na Páscoa de 2016; e finalmente, que vem do início de 2015, com a captação de imagens para o documentário "O que é meu vem a mim", selecionado para a Mostra Competitiva do 7º Festival Internacional do Filme Etnográfico do Recife, em setembro de 2016.
Desde que o projeto iniciou, já foram documentados praticamente três anos litúrgicos do congo: 2013-2014, 2014-2015, e 2015-2016. Cada nova "saída" foi apresentando seus desafios, contornados, na medida do possível, com ajustes no equipamento ou na técnica de captação das imagens - e do som. As maiores mudanças, ao longo do projeto, foram feitas na postura do operador no momento da captura. Conforme se familiarizava mais e mais com o desenrolar dos eventos, mais intuitiva foi sendo a decupagem prévia da captura, ou seja, as decisões relativas ao posicionamento da câmera, aos ângulos de captura, e mudanças de posição passaram a acompanhar mais fluidamente o desenvolvimento das performances das bandas. Atualmente, percebe-se que, embora tenha-se a edição como destino do material captado, este, muitas vezes, já apresenta, na câmera, uma fluidez de movimentos que dispensaria a edição. Além disso, cada captura pode ser entendida como o "esboço" da seguinte, contribuindo, com sua releitura, para a maior familiaridade do realizador para com o que se irá desenrolar frente à câmera (COMOLLI, 2009, p. 25).
Com a crescente familiaridade do realizador para com a "narrativa" dos rituais do congo, o planejamento da edição também se desenvolveu na direção de melhor refletir os elementos narrativos presentes nos rituais. Apesar de ser uma performance coletiva, em certos momentos alguns "atores" tomam a frente do rito. É preciso estar atento a isso durante a captura, e certificar-se de que a edição preserva a história narrada.
A edição dos vídeos incorporou, logo no início do projeto, uma série de decisões formais, que dizem respeito ao ritmo da montagem, à plástica das imagens, e aos elementos de pós-produção. No corte das cenas, procurou-se preservar, dentro dos limites da representação audiovisual, o encadeamento da narrativa dos cortejos. Ou seja, embora sejam momentos de música e dança, as festas do congo são, antes de tudo, momentos de devoção e louvor, não cabendo, por isso, a imposição de uma montagem de clipe musical. É um equilíbrio muito sutil, aquele entre a agilidade da comunicação audiovisual contemporânea e a representação de um tempo religioso, voltado a uma outra fruição. Do mesmo modo, optou-se por não usar variações da percepção do tempo na edição: não há cortes em paralelo, nem flash-backs, nem câmeras lenta ou rápida.
Em termos plásticos, a edição procura preservar as cores originais, sem a ilusão de que o material filmado as reproduza fielmente. A fidelidade, no caso, é a da aliança, ou seja, o realizador partilha da mesma intencionalidade do rito documentado: procura-se ressaltar a riqueza de detalhes das roupas e adereços, a saturação das cores dos estandartes, as formas e os volumes de que se compõem os cortejos. Este envolvimento do realizador é oriundo da convivência com os integrantes das bandas, principalmente os mestres, quando de procura entender as motivações dos agentes do rito.
Em suas versões finalizadas, os vídeos não possuem créditos de autoria, recebendo apenas, em seus segundos iniciais, uma legenda a título de "rótulo", com duração de cerca de dez segundos, identificando a banda, o evento em pauta, e a data, coma assinatura "O Congueiro", que se repete ao final. Espera-se, com isso, que a atenção se volte à ação que ocorre no vídeo, e não ao que seria o resultado de uma intencionalidade cinematográfica.
Entendemos que a pesquisa tem à frente duas tarefas: intensificar a interlocução com os componentes das bandas acerca do material produzido, buscando, neste diálogo, identificar as relações entre a performance e a devoção; e produzir documentários que explorem mais profundamente aspectos que não são explícitos na mis en scène. Os desdobramentos do projeto deverão ir na direção do fortalecimento das possibilidades de interação entre os praticantes e devotos do congo, por meio de exibições dos vídeos e entrevistas, e a produção de documentários que permitam a exploração de temas mais focados, como a genealogia das bandas, e a autoria das toadas.
O resultado do trabalho, até agora, não se limita ao corpo documental produzido, mesmo levando-se em conta que, a despeito de sua importância cultural, são ainda escassos os registros audiovisuais sobre o congo. É na performance que se revelam muitos dos significados do congo, o que exige um certo rigor metodológico por parte do pesquisador/cineasta nas ações de captura da mis en scène que vão além do espetáculo audiovisual.

Referências bibliográficas
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ANTROPOLOGIA. Protocolo de Brasília: Laudos antropológicos: condições para o exercício de um trabalho científico. Rio de Janeiro: Associação Brasileira de Antropologia, 2015.
BAILBLÉ, Claude. "Contratos e convenções do documentário". In: PONJUAN, M. e MÜLLER, M. (orgs.). Documentário: o cinema como testemunha. São Paulo: Intermeios, 2012. p. 9-17.
MATSUMOTO, Roberta. "Espaço e tempo na capoeira: estudo de uma técnica do corpo em antropologia fílmica. in FREIRE, Marcius e LOURDOU, Philippe (orgs.). Descrever o visível: cinema documentário e antropologia fílmica. São Paulo: Estação Liberdade, 2003.
NEVES, Guilherme Santos. Coletânea de estudos do e registros do folclore capixaba: 1944-1982. Vol. 2. Vitória: Centro Cultural de Estudos e Pesquisas do Espírito Santo, 2008.
NICHOLS, Bill. Represententing reality. Bloomington: Indiana University Press, 1991.
PEIXOTO, Clarice. "Filme etnográfico e documentário". in MONTE-MÓR, Patrícia E PARENTE, José Inácio (orgs.). Cinema e antropologia: Horizontes e caminhos da antropologia visual. Rio de Janeiro: Interior Produções, 1994. pp. 9-29.
RAMOS, Fernão Pessoa. Mas afinal... o que é mesmo documentário? São Paulo: Editora SENAC, 2013.
ROUCH, Jean. "Camera and man" in HOCKINGS, Paul (org.). Principles of visual anthropology. Berlim, Nova York: Mouton de Gruyter, 2003.
ZOETTL, Peter Anton. "Aprender cinema, aprender antropologia". in Etnográfica, vol. 15, n. 1. Lisboa: CRIA / ISCTE-IUL, 2011. pp. 185-198.

Páginas de O Congueiro na internet
http://www.ocongueiro.com - portal, em construção, com o objetivo de reunir toda a produção do projeto.
http://www.youtube.com/ocongueiro - canal dos vídeos do projeto no YouTube.
http://www.facebook.com/ocongueiro - página do Facebook destinada ao compartilhamento do material da pesquisa e interação entre praticantes e interessados.



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