O Contacto entre Portugueses e Índios do Brasil em 1500

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O Contacto entre Portugueses e Índios do Brasil em 1500:


Uma Limitada Prospeção




Filipe Nunes de Carvalho


N.B.: O texto aqui apresentado corresponde a uma das fases do processo de revisão e melhoria que estou a efetuar (visando uma futura difusão online ou a eventual edição tipográfica) de um capítulo da dissertação de Mestrado Aculturação e Resistências nos Primórdios do Brasil, discutida em provas públicas e aprovada em 1992, na Universidade Nova de Lisboa.
Uma outra versão do mesmo capítulo foi já publicada nos Arquivos do Centro Cultural
Calouste Gulbenkian, Volume XXXV, Mélanges Offerts à Frédéric Mauro, Coordenation et présentation par Guy Martinière, Lisboa-Paris, Centro Cultural Calouste Gulbenkian / Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1995, pp. 347-385.
É provável que, em breve, venha a proceder à partilha de outras versões, mais ou menos modificadas, correspondentes a diferentes etapas do processo de revisão, aperfeiçoamento e aditamento do texto.





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1. Objetivos e consequências da expedição cabralina
A 9 de Março de 1500 partia de Lisboa uma frota, composta por treze embarcações, destinada à Índia. Os objetivos que presidiram ao seu envio relacionavam-se com o interesse da coroa portuguesa em ver concretizadas as expectativas favoráveis originadas pelo sucesso da viagem que Vasco da Gama recentemente capitaneara. De facto, fora possível concluir que o Oriente oferecia vastas possibilidades à iniciativa dos Portugueses, sobretudo nos domínios comercial e religioso. A importância então conferida às missões que os embarcados na segunda armada da Índia iam cometidos justifica-se pela perceção de que os seus resultados poderiam determinar o futuro das relações marítimas entre Lisboa e o Oriente. Interessados no êxito do empreendimento estavam não apenas a realeza de Portugal como importantes círculos comerciais e financeiros que nele investiram esforços, cabedais e esperanças, além da Igreja Católica, empenhada na dilatação da sua influência.
A fim de se criarem as bases para o estabelecimento de um comércio que permitisse canalizar para Lisboa as especiarias indianas, objeto de um rendoso comércio na Europa, foi o capitão-mor da frota, Pedro Álvares Cabral, encarregado de exercer uma diplomacia adequada. Concretamente, deveria persuadir os potentados orientais seus interlocutores das vantagens lhes adviriam do estabelecimento e manutenção de relações amistosas e negócios com os Portugueses. Todavia, dado que o contacto com o Oriente que teve em Vasco da Gama o principal responsável permitira entrever dificuldades e resistências às pretensões portuguesas, a nova frota caracterizava-se, igualmente, por um potencial significativo do ponto de vista bélico, muito superior ao da esquadra precedente. As motivações religiosas subjacentes à expedição de Pedro Álvares Cabral não devem deixar de ser tidas em consideração. Note-se, a este respeito, que a experiência tornada possível pela viagem anterior criara a ilusão de ser viável realizar um trabalho missionário de efeitos rápidos e decisivos. Ora, evidentemente, tal perspetiva era aliciante, não só por motivos piedosos como pelo interesse em insinuar a presença no Oriente mediante a conquista de um papel preeminente no domínio espiritual.
Se a primeira viagem marítima à Índia representou o começo de uma nova fase no relacionamento entre Europeus e Asiáticos, a expedição de Cabral não apenas contribuiu para a definição das características de que se viriam a revestir essas ligações como deu origem ao primeiro contacto dos Portugueses com os ameríndios. De facto, embora nada de concreto indique que o capitão-mor da frota levasse a incumbência de conduzir a viagem de modo a explorar a região onde aos marinheiros se depararam terras do Brasil, seria o seu descobrimento é hoje possível afirmá-lo (desde que não nos sujeitemos a uma visão insuficiente do ponto de vista científico, meramente atida a implicações conjunturais de curta durabilidade) a consequência mais frutífera da expedição.



2. Os descobridores
O conjunto de objetivos solidários que presidiram ao envio da expedição cabralina determinou, necessariamente, a sua composição humana. Com efeito, o número e as funções sociais dos embarcados corroboram as características mercantis, diplomáticas, bélicas e religiosas da frota. Embora não seja conhecido com segurança o número de subordinados ao comando supremo de Pedro Álvares Cabral, é possível concluir que o mesmo se situaria entre os 1200 e os 1500 homens. Na sua grande maioria tratava-se de indivíduos a quem estavam atribuídas funções guerreiras. Todavia, os cronistas terão sobrestimado o número de combatentes ao afirmarem serem eles mais de mil, como faz Gaspar Correia, e 1500, caso de Damião de Góis. A frota era também integrada, como não podia deixar de ser, por tripulantes experientes no desempenho das tarefas da navegação, entre os quais pilotos e mestres. Além do responsável pelo conjunto da armada, cada navio tinha um capitão. Embora não se verifique uma coincidência absoluta entre as fontes que indicam os nomes dos capitães, o estudo que a seu respeito empreendeu Jaime Cortesão permite concluir acerca da diversidade das vivências anteriores destes participantes influentes no descobrimento do Brasil. Na verdade, se alguns navios foram comandados por nautas experimentados, outros tiveram por capitães homens cuja nomeação para tal posto se deveu, por certo, mais à proeminência das linhagens respetivas do que à relevância dos serviços até então prestados à Coroa, facto compreensível se atendermos a que não eram exigidos conhecimentos náuticos a quem desempenhava essas funções.
Temos notícia acerca de diversos fidalgos e oficiais incumbidos do exercício de cargos na feitoria de Calecute. Refletindo os objetivos diplomáticos do empreendimento e a necessidade de se estabelecer uma comunicação eficaz com as autoridades indianas, seguiam também, sob o comando de Cabral, diversos indivíduos que desempenhariam as funções de embaixadores e intérpretes. Entre estes contava-se um judeu natural da Polónia o famoso Gaspar da Gama ou da Índia , que Vasco da Gama capturara em Angediva no decurso da viagem precedente e que em Portugal se convertera ao cristianismo, além de vários pescadores indianos e um mouro cristianizado de Tânger. Embarcou também na frota elevado número de condenados ao degredo. A sua presença a bordo sintomatiza a estratégia da Coroa que consistia em pôr ao serviço dos seus interesses ultramarinos indivíduos tidos como indesejáveis no Reino. Tratava-se, na verdade, de homens considerados suscetíveis de constituir valiosos agentes facilitadores da presença portuguesa entre populações espacial e culturalmente distantes. Por outro lado, os integrados num conjunto socialmente diversificado de dependentes criados, pajens e escravos constavam da composição humana da armada, acompanhando na viagem os senhores aos quais estavam diretamente subordinados e a quem serviam.
As finalidades religiosas da expedição encontravam-se sociologicamente traduzidas pela participação de oito membros da Ordem dos Frades Menores. Um dos franciscanos, frei Henrique de Coimbra, era guardião, quatro tinham a função de pregadores e outro, um italiano, era tocador de órgão; um corista com ordens sacras e um irmão leigo completavam o núcleo dos mendicantes da segunda armada da Índia, que tornou possível o contacto geográfico e humano com os habitantes do Brasil que aqui particularmente nos interessa.

3. As fontes disponíveis: limitações e virtualidades
Os documentos de que dispomos para o estudo do primeiro contacto entre portugueses e tupiniquins estão longe de ser representativos da visão específica de todas as categorias sociais em que se repartiam os membros da expedição cabralina. Além de o seu número ser reduzido embora os respetivos autores se diferenciassem por formações e ofícios bastante diversos, de que decorrem leituras da realidade até certo ponto complementares , o interesse dessas fontes para o nosso tema é muito desigual. A chamada Relação do Piloto Anónimo, embora não se centre predominantemente nas condições da navegação como o seu título poderia fazer pensar, tem um propósito muito mais vasto que a narração dos contactos com os ameríndios. Versa os acontecimentos que marcaram a expedição desde a partida até ao retorno a Lisboa, conferindo especial destaque às experiências vividas pelos nautas no Oriente. As informações que nos faculta para o estudo do relacionamento com os tupiniquins são muito limitadas. Quanto à carta de mestre João Faras, um castelhano, bacharel em Artes e Medicina, trata-se de texto típico de um especialista em geografia e astronomia. Se lhe interessava a análise dos comportamentos humanos, o que ignoramos, não o demonstra. Tinha por motivação informar D. Manuel acerca das particularidades da terra descoberta no que respeitasse aos domínios do conhecimento em que era perito. Aliás, mesmo sob este ponto de vista, não se deve exorbitar o valor que possui. Falta referir a merecidamente célebre carta de Pêro Vaz de Caminha, datada, como a de mestre João, de Porto Seguro, a 1 de maio de 1500, e destinada também ao monarca português um texto notável pela capacidade de observação que evidencia e pelos pormenores relevantes que faculta ao nosso conhecimento, bem como pelo estilo vivo e ajustado às circunstâncias e desígnios que estão na sua génese.
Há que considerar lamentável a perda de outros testemunhos que sabemos terem sido produzidos por intervenientes do descobrimento do Brasil. A sua leitura permitiria o enriquecimento da análise a que aqui procedo e a determinação das conexões entre o discurso elaborado pelos autores respetivos e variáveis como o estatuto, a formação cultural, a experiência anterior de contactos com outros povos, a idade e a naturalidade. Contudo, a riqueza do texto de Caminha possibilita, até certo ponto, ultrapassar tais limitações e fazer luz sobre as particularidades mais significativas da vivência dos navegadores entre 22 de abril e 1 de maio de 1500. Com o seu apoio poder-se-á, outrossim, tentar superar, na medida do possível, as restrições determinadas pela ausência de obras escritas por parte da população (ágrafa) contactada. De facto, a atenção de Caminha concentra-se tão frequentemente e de forma tão minuciosa nos índios e nas suas reações e interação com os mareantes que o testemunho que proporciona ao leitor assume uma valia inestimável.
Nas análises da carta de Pêro Vaz de Caminha e, de uma forma mais genérica, no estudo do primeiro contacto entre portugueses e ameríndios verificou-se, muito frequentemente, a tendência para hiperbolizar a relevância da sua faceta idílica. Deste modo, sublinhava-se o humanismo dos intérpretes do descobrimento e exaltava-se a suposta imunidade dos Portugueses ao racismo e ao racialismo. Felizmente, nos últimos anos tem-se desenvolvido uma perspetiva de investigação mais consentânea com os imperativos científicos e, portanto, mais apta a proporcionar um conhecimento adequado da realidade. Todavia, continua a ser necessário proceder a um reexame sistemático deste encontro inicial, tendo em consideração os interesses que presidem à definição da estratégia adotada pelos navegadores no seu relacionamento com os índios tupis. A carta de Caminha contém uma narração e um conjunto de observações referentes aos acontecimentos posteriores à chegada da frota ao Brasil que, examinados detidamente, permitem vislumbrar os propósitos subjacentes à conduta pacífica dos membros de ambos os grupos humanos envolvidos. É, assim, exequível empreender o estudo do primeiro contacto entre portugueses e índios tendo em atenção não apenas a sua evidência exterior como as motivações que tornam inteligíveis os comportamentos de quem nele interveio. Na verdade, segundo creio, um estudo atento torna possível, segundo creio, uma elucidação fecunda de múltiplos aspetos, subjetivos e objetivos, deste encontro inicial.



4. A carta de Caminha: motivações e estratégia
Antes de proceder ao exame das informações que o texto de Caminha nos oferece convirá analisar, ainda que sumariamente, as motivações que presidiram à sua redação e a estratégia a que esta obedece. Em primeiro lugar, há que sublinhar que a carta, no seu conjunto, patenteia, a par de uma desenvoltura apenas possível da parte de quem tivesse uma considerável familiaridade com a língua escrita, uma curiosidade intelectual que não pode ter sido determinada exclusivamente por imperativos de carácter utilitário. Contudo, por outro lado, o que se conhece da biografia de Pêro Vaz de Caminha e o próprio texto da missiva são incompatíveis com um espírito ingénuo.
A verdade é que Caminha escreve para agradar à realeza, não apenas, como era prática corrente no Portugal coevo, procurando obter as boas graças da Coroa, mas tendo em vista uma mercê específica. O escrivão não pretende que D. Manuel favoreça a sua promoção pessoal (ou, pelo menos, não explicita tal intenção), como era frequente numa sociedade em que o desbloqueio das vias para a mobilidade ascendente dependia em boa medida da vontade do rei. A redação da carta a D. Manuel é, antes, amplamente condicionada pelo seu papel de pai e de sogro. De facto, faz preceder a respetiva conclusão, uma vez evidenciados o seu talento e o interesse das notícias que comunicava, do pedido ao monarca da «singular mercee» de ordenar o fim do degredo de seu genro, Jorge de Osório, que se encontrava na ilha de São Tomé. A solicitação é feita, de modo judicioso, na parte da carta que imediatamente precede o conveniente beija-mão epistolar ao seu destinatário e a datação da missiva. A brevidade e discrição que Pêro Vaz de Caminha denota no seu pedido permite-nos concluir que a subserviência era pecha incompatível com o seu carácter.
Um homem experimentado e observador atento da realidade como Caminha não poderia deixar de ter em consideração a utilidade para a Coroa de informações precisas sobre a vida e a cultura dos naturais da terra recém-descoberta. A experiência dos portugueses, progressivamente ampliada desde que, em 1415, se conquistara Ceuta até à recente chegada do Gama a Calecute, tornava evidente que as possibilidades que tinham de se fixarem e obterem proventos eram favorecidas ou prejudicadas em maior ou menor grau consoante as características peculiares que em cada região assumia a cultura dos autóctones e as suas específicas interações com os visitantes. Porque assim era, o escrivão estava, seguramente, consciente do interesse prático das informações que compilou e com mestria redigiu para o seu rei. Ao escrever teve, decerto, a intenção de escolher a forma mais adequada para suscitar no monarca o estado de espírito favorável à concessão da mercê que pretendia.
Todavia, o escrivão compatibiliza este pragmatismo com uma análise da realidade apenas possível a um indivíduo portador de genuínos valores intelectuais profundamente enraizados. O universo espiritual que subjaz à redação da carta de Caminha caracteriza-se, assim, por um equilíbrio entre a s preocupações com a satisfação de interesses concretos, mais ou menos imediatos os da coroa portuguesa e os da sua própria família e uma postura eminentemente estética, que o leva a fruir a contemplação da realidade fazendo dela um fim em si mesmo, sem atentar em vantagens mensuráveis. A coexistência harmoniosa de ambas estas perspetivas teve como resultado a elaboração do mais perfeito e completo testemunho de um primeiro contacto entre portugueses e uma população não europeia.
A surpresa do escrivão diante de uma terra e de um povo que completamente desconhecia constitui a tradução, ao nível individual, da surpresa experimentada pelo conjunto dos embarcados na frota em face das realidades geográficas e humanas que puderam observar. As circunstâncias específicas em que ocorreu o descobrimento do Brasil determinaram em grande medida as características assumidas pelo primeiro contacto dos portugueses com aquele litoral e os seus habitantes. A este propósito há que sublinhar que Caminha escreve como quem dá ao rei uma novidade. Nem de outro modo se compreenderiam, por exemplo, as minuciosas descrições dos tupiniquins a que se entrega em parte considerável da sua missiva. Aliás, sobressai de forma evidente a importância que o registo descritivo desempenha no conjunto do texto, refletindo, como era inevitável dadas as circunstâncias, o primado das sensações visuais na perceção que os mareantes foram tendo das realidades brasileiras. De facto, as informações recebidas por intermediação do olhar imperam indubitavelmente em relação às provenientes de outros sentidos, que quase passam despercebidas ao leitor. Obviamente, o desconhecimento do código linguístico tupi determinou em boa medida que tal sucedesse. Impossibilitados de comunicar verbalmente com os índios, os forasteiros tiveram de recorrer a outras alternativas para obterem informações. A observação atenta do aspeto e comportamento dos índios e do seu habitat representou o método mais fecundo para a obtenção do propósito visado.
No sentido de integrarem as estranhas imagens que se lhes depararam no Brasil no seu universo cultural, os mareantes procederam, como faz Caminha na sua carta, a comparações com realidades que lhes eram familiares. De facto, o escrivão serve-se de referências muito comuns aos Portugueses, com a finalidade de evocar no espírito do leitor ideias tanto quanto possível adequadas das realidades que observou. Atentemos num excerto revelador a tal respeito:

traziam ambos. os beiços debaixo furados e metidos per eles senhos osos doso bramcos de compridam dhũũa mãão trauessa e de grosura d'hũu fuso dalgodam e agudo na ponta coma furador. metem nos pela parte de dentro do beiço e o que lhe fica entre o beiço e os demtes he feito coma Roque denxadrez .

Adotando este procedimento discursivo Caminha torna acessível, a quem lê a sua carta, inteligir uma realidade estranha, valendo-se da mediação de referências culturais identificáveis pelos seus compatriotas. A menção a objetos como o fuso de algodão, o furador ou a torre do jogo de xadrez, bem conhecidos tanto pelo escrivão como pelo destinatário da missiva, propiciou a evocação no espírito de D. Manuel de uma imagem tanto quanto possível precisa dos índios de Porto Seguro que constituíam os referentes materiais a que se reportava Pêro Vaz. Outros trechos da epístola denotam a adoção do mesmo processo descritivo, aliás comum nos textos de viajantes (não apenas portugueses e europeus) que se ocupam de realidades distintas das existentes nas respetivas pátrias e incluídas no seu património civilizacional.
É particularmente significativa a forma como o escrivão alude às pinturas que ostentavam os corpos de alguns indígenas que descreve como «quartejados descaques», ou seja, com quadrados de duas cores que faziam lembrar um tabuleiro de xadrez. Trata-se da segunda referência a este jogo constante da carta, o que deixa transparecer uma muito grande familiaridade em relação a ele. Na verdade, o xadrez era parte integrante do universo cultural de muitos dos navegadores portugueses do período dos descobrimentos. Inventado na Índia, de acordo com a tese que parece merecer mais crédito da parte dos especialistas, sabe-se que foi introduzido na Península Ibérica após a invasão muçulmana de 711, não tardando a ser adotado pelos cristãos. Adquiriu um estatuto notável na corte de Afonso X, o Sábio, que se traduziu na elaboração de um magnífico códice iluminado a ele relativo. Conhecem-se referências à sua prática no Portugal medievo, provavelmente confinada às categorias sociais privilegiadas. Quando, no século XV, os portugueses começam a empreender as navegações que iriam proporcionar-lhes o conhecimento de terras, gentes, animais, plantas, mares e estrelas até então ignorados pelos Europeus, não só levaram consigo nos navios os tabuleiros e as peças ("trebelhos"), como transportaram as imagens e os conceitos associados ao xadrez como parte da sua bagagem intelectual. As alusões de Caminha a uma peça do jogo, o roque (torre) e ao aspeto do tabuleiro onde o mesmo se praticava atestam suficientemente esta realidade e permitem até conjeturar, como faz um notável historiador, que o próprio escrivão tivesse ocupado parte do seu tempo jogando xadrez no decurso da viagem que o levou ao Brasil. No século XVI autores tão diversificados como o botânico Garcia de Orta, o cronista João de Barros e o aventureiro Fernão Mendes Pinto referir-se-iam ao xadrez em termos que corroboram a ideia da sua prática frequente por muitos portugueses pertencentes às categorias sociais preponderantes.
Uma outra menção constante do texto de Caminha patenteia a importância das atividades lúdicas na vivência quotidiana dos nautas, e particularmente do próprio escrivão. Ao dar notícia dos acontecimentos que assinalaram o dia 26 de abril, refere-se ele ao rio junto do qual se encontravam como não tendo largura maior do que um «jogo de manqual», a malha ou fito, que ainda hoje preenche os momentos de ócio de muitos portugueses.
A conjugação destas alusões permite-nos concluir que a mundividência de Pêro Vaz de Caminha se situava na interseção de uma cultura própria das categorias privilegiadas, entre as quais o xadrez era praticado, e uma outra vivência, de cariz mais popular, em que se inseria um jogo como a malha. Conjugam-se no mesmo sentido, aliás, as conclusões de Jaime Cortesão acerca da origem social do autor da célebre missiva, e de Manuel Viegas Guerreiro, a respeito do estilo em que ela está redigida. Assim, nas palavras do primeiro, Caminha caracterizava-se pela pertença a uma «burocracia letrada e média, mais próxima da burguesia que da autêntica nobreza». Viegas Guerreiro, por seu turno, classifica o seu estilo como não sendo popular nem erudito. Em Pêro Vaz de Caminha confluem, portanto, elementos característicos de culturas diferenciadas nas suas origens sociológicas. De outro modo dificilmente se explicaria que ao seu espírito acudissem as imagens referidas no contexto em que ocorrem. A síntese que em Caminha se verifica de elementos culturais que em regra não se conciliam na mesma personalidade constitui, portanto, a principal chave para que possamos compreender a origem da penetração e qualidade estética das suas palavras relativas ao encontro dos embarcados na frota de Cabral com os índios tupiniquins.

5. Os preliminares de uma relação
O conceito que os embarcados na frota de Cabral puderam formular acerca dos autóctones com os quais contactaram em terras que viriam a ser parte do Brasil não surgiu súbita e espontaneamente, antes resultou de uma observação metódica que se prolongou pelo curto período, iniciado a 22 de abril (dia em que foi vislumbrado o monte Pascoal) e terminado a 1 de maio, quando foi retomada a navegação para a Índia. Tratou-se de um trabalho gradativo que mobilizou todos os recursos conhecidos dos Portugueses e por eles aperfeiçoados no decurso da sua experiência de pioneiros em contactos com populações desconhecidas dos europeus. Teve início, no que ao descobrimento humano diz respeito, com a observação, à distância, de um reduzido número de índios, e desenvolveu-se depois como que por etapas e de acordo com métodos diversificados. Somente após se proceder, a bordo da nau capitania, à inquirição cultural de dois índios capturados começaram os mareantes a contactar com os autóctones em terra. O modo como se comportavam e o seu equipamento cultural foram cuidadosamente observados. Favoreceu-se o convívio e mesmo a confraternização entre os membros de ambos os grupos humanos. Alguns índios foram presenteados e verificaram-se numerosas permutas de artigos europeus por objetos e animais sul-americanos. Estimulou-se conscientemente o mimetismo e a deferência dos índios em relação aos portugueses. Por outro lado, foi dada ordem a alguns homens para que permanecessem entre os índios, a fim de recolherem informações a seu respeito, e deliberou-se deixar naquela terra dois degredados, dos quais se esperava a obtenção de mais elementos relativos à sua cultura e modo de vida. A enumeração deste conjunto de procedimentos é, por si só, esclarecedora da existência de uma estratégia bem definida e posta em prática de acordo com as circunstâncias. As suas finalidades consistiam na obtenção de informações úteis e no incentivo de uma disposição psicológica dos índios para uma atitude de cooperação com os Portugueses. Comecemos por considerar os primeiros momentos desse relacionamento.
Foi a 23 de abril, dia imediato ao do avistamento da costa brasileira, que os marinheiros puderam lobrigar pela primeira vez alguns autóctones. À pobreza da informação que foi possível recolher a seu respeito corresponde o laconismo de Caminha, que aponta uma sua única particularidade a nudez. Quando, por decisão do conselho de capitães, Nicolau Coelho se dirigiu a terra para reconhecer o rio próximo foi possível avistar na praia cerca de duas dezenas de índios. Caminha, denotando o progresso verificado na observação do aspeto dos autóctones, alude não apenas à completa ausência de roupas que exibiam como à coloração da sua pele. O prenúncio da relação pacífica que durante uma semana envolveria navegadores e tupiniquins registou-se nessa ocasião. As atitudes então adotadas por índios e portugueses como que antemostravam também o comportamento de uns e outros nos dias seguintes. A uma conduta ativa e essencialmente determinante do rumo dos acontecimentos da parte dos portugueses corresponderia a atitude mais expectante, ainda que de modo algum indiferente, dos indígenas. Embora inicialmente os índios que se achavam na praia avançassem com ímpeto em direção ao batel, levando consigo arcos e flechas, a um sinal do capitão português, aceitaram depô-las no solo. Renunciaram assim, implicitamente, à condução dos acontecimentos, que passaram a ser determinados sobretudo pelas decisões dos visitantes, com destaque para os seus capitães.
O desconhecimento que os portugueses tinham da língua tupi, muito diversa das africanas e das orientais, de que já possuíam intérpretes, deparou-se, desde logo, como uma dificuldade de vulto ao entendimento com os índios. Além disso, não foi então possível experimentar uma outra forma de comunicação eficaz, visto que as condições do mar apenas permitiram, nesta ocasião, um contacto muito efémero. Não deixou, porém, de se verificar uma primeira troca de presentes. Ao barrete vermelho, à carapuça de linho e ao sombreiro preto oferecidos pelo capitão português retribuíram os índios com um ramal de continhas e uma cobertura para a cabeça feita de penas. Quando os barcos portugueses se afastaram daquele ponto do litoral, em demanda de um porto abrigado, já encontraram, no ponto de chegada da curta navegação, sentados, junto ao rio, uns sessenta ou setenta índios. Comprovava-se, deste modo, o interesse que suscitou entre os autóctones a chegada dos mareantes que haviam contactado com membros da tribo a que pertenciam e a visão dos navios portugueses, tão diversos das suas rudimentares almadias.
Empenhados como estavam em conhecer, tanto quanto lhes fosse possível, as idiossincrasias dos indígenas, e sobretudo as potencialidades da terra, os portugueses decidiram agir da forma que lhes pareceu mais conveniente à concretização dos seus desígnios. Em lugar de tomarem a iniciativa de um desembarque imediato, que ainda se afigurava prematuro, dada a inexistência de uma perceção nítida das características culturais dos autóctones e das suas capacidades guerreiras, os navegadores determinaram proceder a um prévio reconhecimento da realidade que se lhes depararia naquele litoral. A sua experiência permitia-lhes, com efeito, avaliar até que ponto seriam imprevisíveis as consequências de um contacto extemporâneo com uma população acerca da qual tudo ignoravam. A atitude prudente que adotaram era aconselhada pela consciência dos riscos que um desembarque decidido sem ponderação não podia deixar de acarretar.
Uma vez chegados ao então designado Porto Seguro, o piloto Afonso Lopes meteu-se num esquife e capturou dois jovens índios que levou consigo. Não se tratou, com efeito, podemos depreender, de uma ida voluntária dos autóctones à nau de Pedro Álvares Cabral. Caminha deixa-o implícito quando afirma não lhes terem valido, subentende-se que ao contrário do que teria sido o seu desejo, o arco e as flechas de um dos mancebos nem idênticos apetrechos bélicos dos índios que andavam na praia. Este procedimento era suscetível de toldar as relações com os tupiniquins, que o primeiro encontro permitira entrever como cordiais. Pedro Álvares Cabral soube, no entanto, perfilhar uma conduta adequada para evitar que aquele gesto veemente desse origem à hostilização sistemática dos portugueses pelos autóctones. Na verdade, o capitão-mor da frota mais não visava do que obter informações exatas acerca dos habitantes da terra e das riquezas eventualmente ali existentes. Compreende-se que tenha sido dispensado aos dois índios um tratamento afável, e se lhes permitisse, mais tarde, a reintegração no seu grupo tribal.

6. A bordo da nau capitania: a inquirição possível
A passagem da carta de Caminha em que este se refere aos dois índios capturados e à inquirição cultural a que foram submetidos pelos portugueses merece uma atenção particular. A sua análise é, por si só, elucidativa do cuidado posto pelos mareantes na indagação das peculiaridades dos autóctones do Brasil.
O pormenorizado retrato escrito que Pêro Vaz de Caminha traça dos dois índios tem início com a referência à cor da sua pele. Informa serem pardos a tender para o vermelho, evidenciando uma especial atenção ao elemento físico que de uma forma imediata permitia distinguir os tupiniquins dos Portugueses e dos europeus em geral. Porém, acrescenta imediatamente um outro apontamento, indicativo de não ser essa característica tradutora de uma diversidade essencial. Assim, segundo afirma, os índios possuíam «boons Rostros e boos narizes bem feitos». Esclarecia, deste modo, que não se tratava de representantes de uma qualquer humanidade caracterizada por traços físicos mais ou menos monstruosos, como poderiam ser levados a crer aqueles que, sendo embora os protagonistas do início da superação das conceções biológicas, empiricamente indemonstráveis, prevalecentes na Idade Média, não deixavam de partilhar, ainda, uma herança cultural em que o monstruoso e o maravilhoso tinham um lugar relevante. A sua atitude em relação ao aspeto físico dos índios é, aliás, análoga à do descobridor da América, Cristóvão Colombo.
Por outro lado, as palavras de Caminha acerca da perfeição dos rostos e dos narizes dos índios permitem-nos supor uma sua comparação implícita com os negros africanos, que constituem o referencial em que se irá basear para a formulação de diversas considerações que tece a respeito dos tupiniquins. Aos marinheiros da frota e ao próprio escrivão, os narizes achatados dos africanos negros e a grossura dos seus lábios, associados ao contraste radical da cor da pele destes com a sua, não podiam deixar de evocar, ainda, um sentimento de estranheza. O encontro do homem ameríndio, fisicamente mais próximo do europeu do que o negro de África, tornou possível, assim, despertar nos membros da expedição, a par da consciência da diferenciação cultural, um sentimento de relativa familiaridade.
É também significativa a insistência de Caminha em se reportar à nudez dos índios. No imaginário cristão a nudez assumia uma dupla valoração, assimilada que era ao despudor e ao pecado, mas também evocativa do paraíso terreal, um lugar mítico onde a pureza originária, ainda incorrupta, se manifestava pela não ocultação dos corpos de homens e mulheres. O autor da carta, logo que teve ocasião para observar de perto os capturados e o seu comportamento não deixou de procurar responder a esta questão: traduzia a nudez dos índios uma vivência associada ao pecado ou à pureza edénica? A sua conclusão a tal respeito foi que exibiam as suas vergonhas com a mesma naturalidade e inocência com que mostravam o rosto. Prudentemente, evitou, porém, produzir um juízo categórico em relação à moralidade dos índios, passando de imediato a fazer incidir a sua prosa no uso dos habitantes da terra que consistia em furarem os beiços e neles introduzir um osso. Todavia, quando voltou a pronunciar-se a tal propósito as suas palavras foram, ainda, no sentido de sustentar a ideia de que os índios viviam em estado de inocência.
Caminha ocupa-se em seguida dos cabelos dos autóctones e do ornamento de penas que um deles exibia. A sua descrição exata denota um exame atento do aspeto e da forma de confecionar o ornato. Antes de se referir ao modo como os índios tinham os cabelos cortados, assinala serem eles corredios, deixando assim subentendida a sua comparação com os dos negros de África, encarapinhados.
Ao retrato físico dos índios capturados por Afonso Lopes segue-se a notícia do encontro dos mesmos com o capitão-mor da frota. Pedro Álvares Cabral recebeu os dois tupiniquins com o aparato possível. O desconhecimento, quanto ao essencial, das características culturais dos aborígenes determinou, em parte, os cuidados postos na encenação do encontro. Pretendia-se impressionar os índios favoravelmente e dar dos Portugueses a imagem de portadores de uma civilização superior. Cabral vestia bem, ostentava um muito grande colar de ouro e encontrava-se sentado numa cadeira, tendo aos pés uma alcatifa, que lhe servia de estrado, onde estavam sentadas algumas das figuras mais gradas da expedição. Para dar ao encontro uma solenidade ainda maior, foram acesas tochas, antes que os índios chegassem à presença do capitão-mor. A atitude dos autóctones não correspondeu, porém, à conceção de cortesia dos europeus. Além de não manifestarem consideração pelos presentes, não se preocuparam em estabelecer diálogo com Pedro Álvares Cabral nem com qualquer dos seus subordinados.
Todavia, os indígenas não tardaram a comunicar com os mareantes, servindo-se da linguagem gestual. Sinais seus, ao verem o colar de ouro do capitão-mor e um castiçal de prata, foram interpretados pelos visitantes de acordo com os seus desejos (próprios de gente imbuída da cobiça exacerbada filha do capitalismo nascente), como sendo indicativos da existência dos preciosos metais naquela terra. Os portugueses pretenderam depois avaliar a sua reação à presença de animais diversos. Os índios revelaram familiaridade com um papagaio, indiferença em relação a um carneiro e estranheza e quase receio perante uma galinha que, contudo, acabaram por tomar nas mãos. Ficava patente que o papagaio era o único dos três animais com afinidade a uma espécie representada na fauna local.
O inquérito mudo aos índios prosseguiu com a oferta de alimentos de Portugal. Todavia, o pão, o peixe cozido, a doçaria («confejtos» e «fartees»), o mel e os figos passados não agradaram aos índios, que imediatamente deitaram fora o pouco que provaram destas iguarias. O chisco de vinho que levaram à boca foi também lançado fora. Mesmo a água que os marinheiros consumiam não lhes agradou; limitaram-se a lavar com ela as bocas e não a beberam. Duas ordens de razões permitem explicar tal atitude dos indígenas. Em primeiro lugar, ela não podia deixar de traduzir alguma suspeição a respeito dos captores, os mareantes barbaçudos chegados à sua terra. Por outro lado, a diferença do aspeto e do sabor dos alimentos portugueses em relação aos dos que constituíam o seu regime habitual não terá deixado de provocar uma sensação de estranheza que dificultou uma apreciação positiva. Compreende-se que mesmo o sabor da água, que fora armazenada a bordo mais de mês e meio antes, dificilmente poderia agradar ao paladar ameríndio.
Quando um dos índios se regozijou com umas contas de rosário e deu mostras de apreciá-las como ornamento para o corpo tornou-se patente a diferente significação e utilidade atribuída aos mesmos objetos por povos caracterizados por culturas essencialmente diferenciadas. Como os aborígenes acabassem por se deitar a dormir sobre a alcatifa, sem manifestar a preocupação de se cobrirem, Pêro Vaz de Caminha e os seus companheiros tiveram oportunidade de verificar que não eram circuncidados, o que reforçou, sem dúvida, a consciência do contraste entre a sua cultura e a dos negros islamizados de África. A observação de outros índios permitiria, posteriormente, confirmar a ausência da prática da circuncisão entre os tupiniquins.

7. Procedimentos e reações
A restituição dos dois índios capturados à sua terra, a oferta de peças de vestuário e bugigangas europeias que lhes foi feita e a sua reintegração na comunidade tribal respetiva constituíram as primeiras medidas sistemáticas visando conquistar os índios para uma atitude cordial e cooperante. A tal procedimento corresponderiam os tupiniquins com uma conduta favorável às pretensões dos portugueses. De facto, os marinheiros que foram com os índios a terra não só puderam verificar a aceitação pelos autóctones que se encontravam na praia dos seus sinais para deporem as armas como assistiram com agrado à colaboração dos tupiniquins no transporte de água. Como estes solicitassem uma contrapartida para a sua conduta cooperante, Nicolau Coelho distribuiu por eles cascavéis e manilhas. Logo depois continuaram as permutas, de acordo com uma segunda modalidade, a troca de artigos da Europa por artefactos ameríndios. Os arcos e as flechas dos índios eram retribuídos por sombreiros, carapuças e outras bagatelas. Iniciava-se, deste modo, naquele litoral, uma prática de escambo que seria desenvolvida nos dias seguintes e se enraizaria no decurso das expedições marítimas subsequentes. A sua adoção por mareantes e indígenas vir-se-ia a traduzir em significativas consequências para as relações entre europeus e autóctones.
A carta de Pêro Vaz de Caminha reflete o prazer sentido pelos mareantes quando, pela primeira vez, contemplaram os corpos nus de mulheres índias. O escrivão detém-se particularmente na descrição física de uma das moças, que nele despertou uma mais profunda sensação de estranheza. As suas palavras são, porém, elogiosas; a comparação que estabelece entre ela e muitas mulheres de Portugal é, significativamente, favorável àquela nativa do Brasil. A apreciação positiva que os navegantes fizeram da aparência das mulheres autóctones como que prefigurava uma atração mais tarde repercutida no aparecimento dos chamados mamelucos, população de mestiços que muito facilitaria o triunfo do projeto colonizador no Brasil.
Verificou-se, uma vez mais, a impossibilidade de se estabelecer comunicação verbal com os índios. O termo utilizado por Caminha para designar o modo como os autóctones se exprimiam «berberja» não apenas traduz o desconhecimento recíproco que portugueses e tupiniquins tinham do código linguístico dos seus parceiros nesta relação como expressa uma valoração negativa dos autóctones, aos quais implicitamente era atribuído o estatuto de bárbaros, de não polidos pela civilização. Tal vocábulo indicia que nos espíritos dos membros da expedição se ia reforçando uma apreciação ambivalente dos tupiniquins, considerados essencialmente idênticos aos europeus sob o ponto de vista físico, mas tidos, ao mesmo tempo, por representantes de uma cultura inferior. O prosseguimento deste contacto iria dar azo a novos sinais de aceitação da presença portuguesa da parte dos índios, que seriam acompanhados de mostras de curiosidade e de atitudes de cooperação com os forasteiros, mas também de uma evidente desconfiança a respeito da sua proveniência e intenções.
Os acontecimentos do dia 26 de abril são particularmente significativos para se avaliarem as características do primeiro contacto entre portugueses e índios. Tiveram os navegadores um encontro com certo velho autóctone de cujo beiço furado saía uma pedra, que Caminha, reproduzindo o descontentamento de quem ambicionava encontrar indícios de pedraria e metais valiosos, classifica depreciativamente. É esclarecedor que o diálogo ou melhor, a conjugação de monólogos de falantes que não se compreendiam , versasse, da parte dos portugueses, a possibilidade de existir ouro naquela terra. Nada conseguiram, no entanto, saber a tal respeito. Quando Pedro Álvares Cabral pretendeu que o índio tirasse a pedra do beiço, certamente ainda esperançado em que pudesse ser preciosa, o velho quis introduzi-la na boca do capitão-mor, o que provocou o riso dos mareantes. Um dos companheiros de Cabral deu ao indígena um sombreiro velho em troca da pedra, não por ser valiosa, mas pelo interesse que tinha como amostra, facto revelador da atitude prospetiva dos portugueses, que a terão enviado ao seu rei.
Um outro episódio é representativo das demonstrações de fraternidade que os portugueses ostentaram nos comportamentos com os autóctones, sem renunciarem à condescendência detetável nos seus sentimentos profundos. Foram avistados muitos índios que dançavam e se divertiam uns em frente dos outros, sem se tomarem pelas mãos. Nessa ocasião, certo Diego Dias, antigo almoxarife de Santarém, «homem gracioso e de prazer», fazendo-se acompanhar por um gaiteiro, dirigiu-se aos índios e dançou com eles ao som da gaita, tomando-os pelas mãos, com o que muito se comprazeram. Note-se que foram muitos os marinheiros que levaram instrumentos musicais para a viagem. Sabemos, pelo cronista João de Barros, que à partida de Lisboa eram numerosos os que tocavam trombetas, atabaques, sestros, tambores, flautas, pandeiros e gaitas. Tratava-se de um lenitivo para a tristeza provocada por travessias marítimas tão longas como a que então iniciavam. A música e a dança preenchiam, pois, uma dupla função: contribuíam para a estabilidade emocional dos embarcados e concorriam para a comunicação com os autóctones das costas visitadas, como já sucedera no decurso da anterior viagem, comandada por Vasco da Gama.
Embora os saltos acrobáticos de Diego Dias viessem a produzir nos ameríndios idênticos sentimentos de júbilo e espanto, revelaram-se insuficientes para conquistar a sua confiança, gorando-se o propósito dos portugueses. De facto, os autóctones não tardaram a assumir um comportamento retraído que a Caminha pareceu próprio de seres bravios. Se, por vezes, se mostravam sociáveis com os portugueses, de um momento para o outro, retomavam a atitude de esquiveza «coma pardaaes de ceuadoíro». Transparece da narração e dos comentários do escrivão a atitude de alguma maneira artificial que presidia às relações dos navegadores com os tupiniquins, bem ilustrada pela comparação dos índios a pardais diante de um engodo. Ficam subentendidas as intenções dos portugueses, determinantes de que os seus contactos com os habitantes da terra não constituíssem uma finalidade em si mesmos, mas um meio para a obtenção de benefícios materiais. Aliás, o loquaz escrivão não deixa de sublinhar que o modo como agiam e falavam com os índios era condicionado pelo interesse que tinham em os «bem amansar».
O autor da missiva não cessa de acumular evidências sobre a esquiveza dos indígenas, determinada, em sua opinião, por serem «gente bestial e de pouco saber». A este respeito impressionou-o, acima de tudo, o facto de não terem voltado à presença dos portugueses, apesar de haverem sido presenteados. Todavia, visivelmente, Caminha procura dar uma imagem dos autóctones tão objetiva quanto possível. Assim, refere-se, logo depois, à limpeza, robustez e formosura dos seus corpos, que reputa de inexcedíveis.
A importância conferida pelos nautas à religiosidade como forma de sedução e de domínio espiritual dos autóctones ressuma indubitavelmente em diversos trechos da carta de Pêro Vaz de Caminha. Neles se manifesta, com efeito, não apenas o grande significado assumido pelas práticas religiosas no quotidiano dos portugueses como o seu aproveitamento no sentido de suscitar o mimetismo e a subordinação dos índios.
A missa celebrada a 26 de abril, um domingo, num ilhéu daquele litoral, não foi indiferente aos indígenas. Depois de darem mostras de alegria e de observarem os portugueses, sentaram-se para assistir à cerimónia. Enquanto os nautas continuavam sentados, escutando a pregação, muitos índios, não se contendo, levantaram-se. Além de fazerem tocar os seus instrumentos musicais, entretiveram-se com saltos e danças. Tal comportamento terá dececionado os portugueses, para quem a adesão dos autóctones à sua religião era um intento fundamental. Todavia, nos dias seguintes, a conduta dos índios conheceria uma evolução significativa, que pôde fundamentar perspetivas mais otimistas quanto à expansão da influência do cristianismo entre aquelas populações.
Podemos detetar a origem da modificação no dia 28 de abril, quando o trabalho de dois carpinteiros na feitura de uma cruz suscitou a atenção de muitos índios. Pêro Vaz de Caminha pôde aperceber-se de que o seu interesse não residia tanto no símbolo da cristandade como nos instrumentos de ferro, inexistentes no rudimentar equipamento tecnológico ameríndio. Assinalou, deste modo, a perplexidade e o entusiasmo de uma população de cultura neolítica pelas conquistas de uma sociedade mais evoluída no domínio da civilização material. É provável que nos espíritos dos índios se tenha estabelecido uma associação entre os mareantes e heróis civilizadores característicos da sua mitologia, caso de Zomé, a quem atribuíam a introdução da mandioca, seu principal alimento. O certo é que, desde o referido episódio, se verificou a diminuição progressiva da sua desconfiança em relação aos forasteiros. Os tupiniquins começaram mesmo a dar mostras de reverência pelos nautas e pelos símbolos que estes veneravam.
O propósito de conquistar os índios para as práticas e valores religiosos dos portugueses determinou a ordem de Pedro Álvares Cabral no sentido de que todos os desembarcados se dirigissem à cruz, se ajoelhassem diante dela e a beijassem. Pretendia-se, com tal demonstração de respeito pelo símbolo do cristianismo, sugerir aos índios a importância que lhe conferiam e avaliar a sua reação. Os índios presentes, seduzidos por uma cultura material mais desenvolvida do que a sua, e por essa razão já dispostos a adotar um comportamento caracterizado pela deferência, a um sinal dos cristãos, imitaram-nos, beijando todos a cruz. Este gesto dos índios agradou visivelmente aos descobridores. Na verdade, ele parecia exprimir uma disponibilidade para a sujeição aos valores dos portugueses que se situava nos antípodas da contumácia geralmente demonstrada, em África como no Oriente, pelos muçulmanos. As experiências anteriores evidenciavam, com efeito, que a permeabilidade à influência e hegemonia económica, política, militar e cultural dos portugueses tendia a ser tanto maior quanto menores fossem as resistências dos diversos povos à dilatação da fé cristã. O regozijo de Caminha a este propósito leva-o mesmo, embora fosse homem sage e experiente, a ser tomado por um excessivo otimismo. Com efeito, considera ele ser tamanha a inocência dos índios que assinala como único obstáculo à sua conversão o que resultava do desconhecimento mútuo dos códigos linguísticos. Confiava, porém, que os degredados que ficariam na terra descoberta tornariam possível um conhecimento da língua dos índios que viabilizasse a sua missionação e conversão.
Antes que a frota retomasse a sua navegação rumo à Índia, cuidou Pedro Álvares Cabral de inscrever simbolicamente naquela terra uma marca da sua presença. No dia 1 de maio os membros da expedição voltaram a desembarcar, levando consigo a bandeira da Ordem de Cristo. Após a realização de um cortejo ao modo de procissão, acompanhado de cânticos e com a presença de sacerdotes e religiosos, foi implantada no solo uma grande cruz com as armas e a divisa do rei D. Manuel. Celebrou-se, com a solenidade permitida pelas circunstâncias, uma missa, junto da cruz, à qual assistiram algumas dezenas de índios que se ajoelharam como viam fazer aos forasteiros e imitaram as suas outras atitudes tomadas no decurso da cerimónia. Após a pregação que se seguiu à missa, distribuíram-se crucifixos pelos índios presentes. Antes de os poderem pôr ao pescoço foram incitados pelos nautas a fazer demonstrações de reverência por aqueles símbolos da religião cristã.
Aos embarcados na frota não há de ter passado despercebida a ausência de compreensão pelos índios do verdadeiro significado simbólico que os cristãos atribuem à cruz. Todavia, conferiam àquelas mostras de acatamento um valor como que propedêutico da iniciação nos valores e normas específicos do cristianismo, que esperavam viessem a ser assimilados pelos habitantes da terra. Um índio que se destacou nas manifestações tidas por piedosas e um seu irmão foram conduzidos à nau capitania, tratados cordialmente e presenteados com camisas. As conclusões que os membros da expedição extraíram da atitude mimética dos índios em relação ao culto cristão reforçaram a sua crença na possibilidade de entre eles se promover um fecundo trabalho missionário. Pêro Vaz de Caminha manifesta, até, a sua convicção de que a presença dos degredados entre os tupiniquins criaria as condições necessárias para que a próxima expedição permitisse concretizar os primeiros batismos de habitantes da terra.
Em suma, a julgar pelo texto de Caminha, os procedimentos utilizados pelos navegadores tendo em vista conquistar os tupiniquins para um comportamento pautado pela colaboração e pelo respeito em relação aos portugueses, se conheceram significativas resistências motivadas pela desconfiança, lograram vencê-las e suscitar naqueles índios uma propensão para ulteriores relações caracterizadas por intercâmbios e alianças.

8. Os enviados: estatuto e missão
A designação de enviados é aqui utilizada num sentido amplo, destinado a abarcar dois tipos de indivíduos. Um primeiro grupo inclui os homens mandados por Pedro Álvares Cabral junto dos índios para recolherem informações a seu respeito. Trata-se, em quase todos os casos, de condenados ao degredo incumbidos de uma missão bem específica e postos ao serviço de uma estratégia claramente definida. Contudo, sob a denominação de enviados agrupam-se aqui, outrossim, os índios que se deslocaram até às embarcações dos portugueses em iniciativas que decorrem, ao menos na aparência, mais da atitude espontânea e voluntária dos envolvidos que de uma hipotética intenção da sua comunidade à qual subjazesse o intuito de recolher de forma sistemática elementos acerca dos portugueses. A verdade, porém, é que todos cumpriram, objetivamente, idêntico papel, ao proporcionarem aos grupos humanos respetivos o conhecimento possível, baseado numa experiência vivida, da realidade do outro parceiro neste contacto inicial. É esta a razão justificativa da designação genérica que aqui se aplica a uns e outros.
O papel dos degredados que seguiam a bordo revelou-se de significativa importância na aquisição de informações sobre os índios e o seu habitat. O recurso a indivíduos condenados ao degredo para o desempenho de tais missões e para a permanência entre populações ainda quase desconhecidas era, aliás, muito frequente na época. Os degredados não só tinham papel fundamental nos contactos com as populações visitadas no decurso da escala das frotas em que seguiam como se integravam nas sociedades nativas. Homens que, na sua pátria, houvessem praticado determinadas infrações à lei eram forçados a embarcar e, muitas vezes, deixados em terras longínquas cujas potencialidades e habitantes os europeus estavam empenhados em avaliar. Poderiam, caso lograssem sobreviver, familiarizar-se com a sua forma de vida dos autóctones e acumular notícias sobre as riquezas da região onde eram abandonados. Quando viessem a ser reencontrados por navegadores seus compatriotas estariam aptos a facultar-lhes um manancial informativo de evidente importância para a avaliação do comportamento que mais conviria assumir nos contactos ulteriores com os nativos, e também do interesse económico que a terra em causa pudesse oferecer. No decurso das expedições marítimas eram atribuídas aos degredados missões específicas evidentemente arriscadas, dada a incerteza de que, as mais das vezes, se revestiam cujas motivações eram a promoção do bom relacionamento com os habitantes dos litorais visitados e a obtenção de elementos a seu respeito.
No dia 25 de Abril, por ordem de Pedro Álvares Cabral, o jovem degredado Afonso Ribeiro fez a primeira tentativa para permanecer entre os tupiniquins, a fim de se informar acerca da sua vida e cultura. Os índios não quiseram, todavia, aceitar a sua presença e mandaram-no embora. Porém, nada tomaram dos presentes que deveria entregar ao senhor dos índios. Manifestavam, deste modo, as reservas que punham ao convívio com os brancos, ao mesmo tempo que evitavam hostilizá-los. Todavia, por ordem de Bartolomeu Dias, os presentes foram dados a um índio idoso cujo aspeto é comparado por Caminha, inspirado no imaginário que lhe era próprio, ao de São Sebastião trespassado por setas, devido às muitas penas que tinha pegadas ao corpo.
Na reunião de todos os capitães em que se deliberou enviar a Lisboa um navio que levasse a D. Manuel a notícia do encontro daquela terra, Pedro Álvares Cabral pôs à consideração dos seus subordinados a possibilidade de se capturarem dois índios para os remeter ao monarca. Chegou-se, porém, à conclusão de que tal medida se revelaria inútil e até contraproducente. A experiência ensinava aos navegadores que indivíduos tomados pela força diziam haver na sua terra tudo aquilo sobre que eram inquiridos. Acrescia ainda que a língua dos índios era ininteligível para os portugueses e que os eventuais capturados demorariam a aprender o seu código verbal. Os capitães terão ponderado, igualmente, as eventuais desvantagens decorrentes de uma tal atitude. O certo é que os procedimentos dos mareantes revelam claramente o propósito de não prejudicar as relações futuras com aqueles aborígenes, acerca dos quais muito pouco sabiam ainda. Em contrapartida, decidiu-se que fossem deixados na terra dois degredados que poderiam vir a proporcionar informações preciosas para a escolha da estratégia a observar em relação ao território recém-descoberto e aos seus habitantes. Patenteia-se distintamente, portanto, a relevância das funções atribuídas aos degredados como agentes preparadores da presença portuguesa em terras de além-mar.
Entretanto, como a permanência da frota se prolongasse por mais alguns dias e Cabral não desistisse de procurar recolher desde logo o máximo de informações relativas ao modo de vida dos índios, ordenou, pela segunda vez, que o degredado Afonso Ribeiro se lhes juntasse. Contudo, ainda que, desta feita, consentissem na sua presença durante algum tempo, voltaram a mandá-lo embora. A entrega de arcos e flechas que lhe fizeram e o facto de não terem tomado nada do que levava consigo, se traduziam uma atitude pacífica, não permitiam ilusões acerca da desconfiança que ainda manifestavam quanto aos nautas. A principal indicação resultante da breve presença do degredado entre os tupiniquins foi a de possuírem pequenas choupanas. Começava deste modo a dissipar-se a ideia de que os índios da terra não tinham habitações, depois completamente refutada pela observação das suas malocas.
A persistência de Pedro Álvares Cabral nas suas intenções e métodos revelou-se ao dar nova ordem a Afonso Ribeiro para que, desta vez acompanhado por dois outros degredados e pelo prazenteiro Diego Dias, voltasse ao convívio dos índios. Os três condenados deveriam pernoitar entre eles. Foi-lhes possível conhecer uma povoação composta por nove ou dez casas, cada uma delas de comprimento semelhante ao da nau capitânia. Tratava-se das malocas, habitadas, cada uma delas, por diversas famílias índias, que se agrupavam em povoações designadas tabas. Caminha, embora não as tenha visto, traça das habitações uma imagem realista, reportando-se aos materiais com que eram construídas, à sua altura, à ausência de divisões dentro delas, às redes em que os seus utilizadoress dormiam, aos fogos que acendiam no seu interior, às entradas destas casas e ao número dos seus ocupantes. A carta inclui também dados relativos à alimentação dos índios, especificando o inhame como um dos componentes do seu regime alimentar. Na verdade, os degredados terão confundido o cará com o verdadeiro inhame, que os portugueses conheciam da África Ocidental, dado que só posteriormente esta planta viria a ser introduzida no Brasil pelos próprios portugueses.
Não tardou que os índios decidissem pôr fim à permanência dos homens enviados por Cabral à sua comunidade. Antes de se juntarem aos seus, os degredados tiveram, no entanto, oportunidade de trocar por cascavéis e outros objetos (que consideravam ninharias), animais da terra e artigos indígenas. Cumpre notar a especial atenção que desde logo despertaram entre os navegadores as araras vermelhas e os tuins, aves que viriam a constituir, nos decénios seguintes, uma das motivações subsidiárias das aportadas de europeus àquele litoral. Segundo Gaspar Correia, o navio enviado por Cabral para dar a D. Manuel a notícia do descobrimento terá transportado toros de pau-brasil, devidamente aparados, o que parece pouco plausível se atentarmos nas condições em que decorreu o contacto de 1500 e nas características da ocorrência da árvore em questão na mata atlântica. Do que não há dúvida é que o primeiro contacto dos portugueses com a costa brasileira constituiu o marco inicial no conhecimento dos europeus, sem o qual não seria viável o ulterior desenvolvimento das relações com o território. Ora, o contributo dos degredados foi decisivo para esse efeito.
O capitão-mor da frota voltou a dar ordem, no dia 28, para que dois degredados e um outro membro da expedição permanecessem entre os índios. Competia-lhes visitar a povoação de cuja existência já tinham conhecimento e a ida a outras que eventualmente se localizassem nas suas proximidades. O grande empenho de Cabral no êxito destas diligências prospetivas é confirmado pela sua determinação no sentido de os incumbidos de tal diligência não irem pernoitar às naus, ainda que os índios não quisessem admitir a sua presença. Subjacente a esta política tenaz andava, seguramente, não apenas o propósito de alcançar notícias sobre a existência de ouro, como o de obter o máximo de informações estratégicas suscetíveis de permitirem traçar o rumo mais adequado para a rendibilização do descobrimento daquela terra. Pedro Álvares Cabral não tomava decisões movido por uma mera curiosidade; bem pelo contrário, a sua orientação é motivada por interesses pragmáticos que visam criar, desde logo, as condições que possibilitassem à Coroa determinar o papel do Brasil no projeto expansionista português.
A preocupação de Caminha em descrever as armas usadas pelos índios e a remessa de exemplares das mesmas no navio enviado a Lisboa para dar a notícia do descobrimento devem ser entendidas como reflexos da mesma estratégia. Com efeito, a observação das condições da terra há de ter permitido entrever o interesse da sua colonização num futuro mais ou menos próximo. Convinha, pois, começar a avaliar a capacidade de resistência dos autóctones. Ora, a visível rudimentaridade do seu potencial bélico parecia favorecer uma previsível conquista portuguesa do território. A recolha de indícios que apontavam nesse sentido apresentava-se, portanto, como um dever de Cabral e dos seus subordinados.
A verdade, porém, é que os índios, não obstante as mostras de amizade e cooperação que continuavam a dar aos portugueses, se aperceberam dos inconvenientes que lhes poderiam advir do consentimento da presença de membros da expedição nas suas povoações, razão pela qual se opuseram a que os enviados de Cabral com eles pernoitassem. O único resultado concreto desta diligência foi, assim, a obtenção de mais alguns exemplares de aves sul-americanas, que tinham a valia de curiosidades, mas não satisfaziam a ambição dos portugueses de obter riquezas significativas. Não deixa de ser revelador que os tupiniquins, ao mesmo tempo que se opuseram à presença dos forasteiros no seio das suas comunidades, procurassem, também eles, informar-se acerca do modo de vida dos portugueses. Assim, alguns índios propuseram-se acompanhar o capitão Sancho de Tovar quando este recolheu à nau. Tratava-se, com efeito, de uma fase de estudo recíproco por parte de ambos os grupos intervenientes neste contacto.
Os portugueses eram herdeiros de uma tradição cultural e de uma literacia (com o muito que esta propiciava de conhecimento de múltiplas experiências nos mais diversos períodos e regiões do mundo), que lhes permitiu uma melhor definição das estratégias a eleger no relacionamento com populações ignotas. Puderam, consequentemente, assumir um papel mais ativo do que os aborígenes e rendibilizar convenientemente as informações recolhidas. Quanto aos tupiniquins, embora sem possuírem as referências nem o capital de experiência dos navegadores, nem por isso deixaram de procurar conhecer as características da civilização dos descobridores e de averiguar as suas intenções. Assim, o primeiro contacto entre Portugueses e tupiniquins proporcionou o início de uma descoberta recíproca; se os portugueses começaram a desvendar a cultura dos índios, também estes principiaram a conhecer a dos navegadores barbaçudos e a deixar-se seduzir por ela, embora de forma limitada.
Sancho de Tovar selecionou de entre os candidatos à permanência a bordo dois jovens que lhe pareceram distinguir-se pela aparência física e pelo estatuto. Uma vez na nau, dispensou-lhes muito bom acolhimento. A conduta dos índios revelou-se diversa da manifestada pelos tupiniquins capturados por Afonso Lopes, conduzidos à presença de Cabral cinco dias antes. Não apenas comeram todos os alimentos que lhes foram dados como se divertiram, contrastando com os outros dois índios, que se tinham recusado a ingerir comida portuguesa e se mostraram menos extrovertidos. No dia seguinte, 30 de abril, Sancho de Tovar levou os dois tupiniquins à nau capitânia. Depois de sentados em cadeiras, continuaram a experimentar com agrado a culinária portuguesa. Apreciaram sobretudo a carne de porco cozida e o arroz que comeram, embora se tratasse do primeiro contacto com tais alimentos, não encontráveis na sua terra. A experiência de Sancho de Tovar no dia anterior determinou que não lhes fosse dado vinho, bebida que, inicialmente, desagradou ao paladar indígena.
O bom acolhimento dispensado aos dois índios inseria-se na conduta dos portugueses no sentido de conquistar as boas graças dos habitantes da terra. Nesse mesmo dia, quando os mareantes continuaram a beneficiar das vantagens que aquele litoral oferecia como escala para a carreira da Índia, procedendo a novo desembarque, destinado à obtenção de água e lenha, os dois hóspedes foram devolvidos ao seu habitat. O prazer que a oferta de um dente de porco-montês suscitou num deles fez medrar nos espíritos dos portugueses circunstantes (sofisticadíssimos, obviamente), o sentimento de condescendência cultural originado na sequência de episódios anteriores do contacto entre representantes dos dois povos que temos vindo a acompanhar.

9. As conclusões de Caminha
Pêro Vaz de Caminha, traduzindo os resultados, mas também as limitações, da experiência dos portugueses no conhecimento dos índios, sintetiza alguns dos traços da sua forma de vida que considera essenciais. Implícita às suas afirmações deteta-se uma comparação com as realidades dos Europeus e de outros povos frequentados no decurso das viagens marítimas, cujo resultado é desfavorável à cultura material dos índios. O seu discurso a este respeito é, significativamente, sobretudo uma enumeração de ausências. Assim, pronuncia-se, aliás erroneamente, acerca da inexistência de práticas agrícolas por parte dos tupiniquins, refletindo a ignorância dos mareantes em relação ao recurso pelos índios à agricultura de coivara. Já as suas afirmações quanto à ausência de pastoreio e da domesticação de animais exprimem, no essencial, uma realidade objetiva. Na verdade, o significado económico da domesticação era irrelevante entre aquelas populações. O papel fundamental da mandioca na alimentação tupiniquim passou despercebido a Caminha, que não faz menção a essa raiz. Pelo contrário, o escrivão atribui ao inhame termo que incorretamente usa para designar o cará uma importância que este vegetal não tinha nos seus hábitos alimentares. Em suma, o lugar relevante que as práticas recoletoras assumia na economia indígena é exorbitado pelo escrivão, que as faz coincidir com a totalidade das estratégias usadas pelos tupiniquins para angariarem a subsistência. Todavia, Caminha reconhece a boa qualidade da alimentação dos indígenas, que, assevera, lhes proporcionava uma aparência e uma saúde física que o trigo e os legumes não davam aos seus compatriotas.
O escrivão não encerra a sua carta sem proceder a um balanço em que sumaria as conclusões que uma semana de contacto com o Brasil e os seus habitantes lhe permitiu formular. Embora se trate de uma avaliação pessoal, não pode deixar de traduzir, em larga medida, as ideias da generalidade dos membros da expedição que, apesar das suas diferenças ditadas pelo estatuto social, a biografia, o saber e a experiência acumulada específicos, se caracterizavam por referências culturais essencialmente idênticas, das quais resultaria uma perceção das realidades brasileiras com muitos pontos em comum.
A sua atenção concentra-se inicialmente nas qualidades da terra, que considera ser extensa e muito arborizada. Ocupando-se em seguida das suas riquezas, é forçado a reconhecer não ter sido possível confirmar a existência de ouro, prata, ferro ou de outro qualquer metal, nem sequer colher notícias positivas nesse sentido. Passa a elogiar a bondade dos ares e do clima da terra, que compara ao de Entre Douro e Minho, que lhe era tão familiar. Acrescenta, ainda, referências à grande abundância de águas circunstância a ter em consideração quando se pensasse em colonizar o território e promover a agricultura.
Como seria expectável, tendo em atenção o discurso oficial e oficioso característico da época e da sociedade em que Pêro Vaz de Caminha se formou, este não deixa de considerar serem as possibilidades abertas à evangelização o principal benefício que o descobrimento do Brasil tornava possível vislumbrar. Na verdade, outros trechos da missiva permitem esclarecer o seu pensamento a tal respeito. Presumia que os tupiniquins eram desprovidos de quaisquer conceções religiosas e completamente inocentes. Considerava-os tabula rasa, meros recetáculos ou pacientes do verbo e da ação dos portugueses. Não pôde, ou não quis, prever as resistências que posteriormente ofereceriam à colonização do território. Duas ordens de razões permitem compreender o seu discurso otimista. A primeira decorre de aos descobridores do Brasil apenas ter sido possível observar a faceta amistosa dos índios, aos quais a chegada dos navegadores, em si mesma, não prejudicou. As expectativas geradas entre os tupiniquins, contraditórias, é certo, foram, segundo parece, sobretudo positivas, o que explica o seu comportamento. A segunda linha interpretativa das palavras de Caminha sobre a matéria em apreço, complementar da anteriormente mencionada, prende-se com a intenção de agradar ao rei. Importa não esquecer que da concretização de tal desígnio dependia em boa medida o futuro do genro degredado em São Tomé e, pode-se supô-lo, o bem-estar da filha. Assim, é congruente que quisesse ser portador de notícias que, sem deixarem de ter um grau de veracidade que as tornasse úteis à elaboração dos planos da Coroa relativos ao Brasil, não comportassem afirmações pessimistas que desvalorizassem o descobrimento do território e a sua própria missiva. As palavras otimistas de Caminha afiguram-se, pois, como plenamente compreensíveis à luz da sua experiência e dos intuitos que presidiram à redação do notável documento.
Caminha não conclui as suas considerações relativas às vantagens que aquela terra podia oferecer à coroa portuguesa sem aludir à possibilidade do seu aproveitamento como pousada, para a carreira da Índia. As décadas seguintes iriam mostrar que não se enganava a tal respeito. De facto, a sua utilidade não tardaria a revelar-se; mesmo antes de ser empreendido o primeiro esboço de colonização sistemática, na sequência da instituição das capitanias-donatarias, a partir de 1534, o valor estratégico do Brasil para os Portugueses decorreria em certa medida da sua localização, compatível com a aportada das embarcações que viajavam entre Lisboa e o Oriente e que empreendiam a torna-viagem. Posteriormente, o litoral brasileiro nunca deixaria de revelar-se providencial, pelo recurso que permitia às escalas programadas e às arribadas impostas pelas vicissitudes da navegação, no contexto da realidade, a muitos títulos fundamental e de excecionalmente longa duração, que a carreira da Índia constituiu.

10. As possíveis ilações
O exame detido dos comportamentos adotados pelos membros da expedição de Cabral e pelos índios tupiniquins que interpretaram o primeiro contacto entre portugueses e habitantes do Brasil de que há prova documental é a diversos títulos elucidativo. As conclusões que podemos extrair da sua análise podem ser formuladas sinteticamente.
O primeiro aspeto deste encontro que devemos ter em consideração prende-se com a conduta mais ativa que os mareantes nele desempenharam. De facto, são os membros da expedição que assumem o papel de visitantes, circunstância que, em si mesma, reflete e implica um comportamento mais dinâmico que o assumido pelos indígenas, que assistiram à sua chegada e os acolheram no território por eles habitado. Por outro lado, e conexamente, é notório que os episódios deste contacto são determinados, sobretudo, pelos próprios portugueses. Reveladora, a este respeito, é a iniciativa tomada no dia 24 de abril que consistiu em capturar dois tupiniquins e de proceder ao seu exame cultural. É certo que os índios, por seu turno, fizeram, também eles, o possível para se informar acerca das características da civilização e modo de vida dos navegadores. Todavia, as suas atitudes suscetíveis de serem interpretadas nesse sentido, praticamente limitadas à ida voluntária às embarcações portuguesas, estão longe de obedecer a um programa concertado visando a recolha sistemática de informações úteis, parecendo, antes, ser condicionadas por uma curiosidade mais ou menos espontânea.
Na verdade, a limitação das experiências integradas na memória coletiva tupiniquim, no contexto da qual eram elaboradas as respostas a cada situação concreta, impedia que se determinasse o procedimento que mais convinha eleger e assumir perante um evento radicalmente inovador como foi a chegada da frota de Cabral. Acrescia ainda a precariedade das estruturas políticas da comunidade tupiniquim, que, associada à exigência de assembleias dos principais responsáveis pela tomada de decisões, tornava morosas e pouco eficazes possíveis medidas tendentes à adoção de um comportamento de todos os membros do grupo que convergisse para uma finalidade comum.
Assim, embora os índios estivessem longe de ser meros espectadores da ação dos marinheiros, as suas atitudes foram menos decisivas para o desenrolar dos episódios e a definição das peculiaridades do primeiro encontro com os visitantes do que as destes. Se, em certo sentido, podemos falar no início de um processo de descobrimento mútuo dos dois povos em causa, há que relevar a ideia de que os resultados deste primeiro contacto, como dos que se lhe seguiram, foram, mercê da experiência acumulada e da disparidade cultural existente, mais proveitosas para se determinarem as condições que tornariam viável a colonização do Brasil pelos portugueses do que para a preparação da resistência pelos autóctones.
O papel dinâmico dos nautas neste contacto inicial tem, portanto, íntima conexão com as suas preocupações prospetivas tendentes a um conhecimento da realidade geográfica e humana com que se depararam na América do Sul; dependia, em última análise, da intenção de tornar possível à Coroa a inclusão do território no seu programa expansionista. Objeto de particular interesse foi a inquirição acerca da eventual existência de metais preciosos, especialmente o cobiçado ouro, fonte de enriquecimento rápido por excelência. Se não se logrou recolher indícios positivos que confirmassem as expectativas dos nautas, a verdade é que tudo sugere existir confiança quanto à sua comprovação em época posterior.
Os contornos assumidos pelo primeiro contacto entre portugueses e índios foram amplamente determinados pelas dificuldades de comunicação verificadas. De facto, cada um dos grupos humanos nele envolvidos desconhecia o código verbal do outro. Os portugueses souberam, todavia, tomar as medidas convenientes para que, na medida do possível, se ultrapassasse tal limitação. O inquérito cultural mudo a que submeteram os índios, confrontando-os com objetos e animais diversos, as trocas que promoveram e o recurso à música, à dança, a saltos acrobáticos e a lutas corporais amigáveis mostram a sua capacidade para incentivar a comunicação e para a subordinar aos seus interesses gerais e específicos. O abandono de degredados que se esperava viessem a inserir-se na sociedade autóctone com a finalidade de poderem, mais tarde, servir de intermediários no relacionamento entre os dois povos denota uma intenção de aprendizagem da língua tupi que constitui o reconhecimento da necessidade de comunicação verbal como instrumento impulsionador dos desígnios da coroa portuguesa.
A atribuição a aborígenes do estatuto de pajens, isto é, de servidores pessoais de certos capitães da frota, permite concluir que os navegadores agiram tendo em vista propiciar a atração de, ao menos, alguns tupiniquins pela sua cultura, ou seja, ressocializá-los de acordo com as normas e os valores europeus. Esta medida constituía uma via suplementar do recurso aos degredados que permaneceriam na terra para se imbuírem da cultura autóctone. Quer os índios que se subordinaram aos nautas quer os portugueses que ficaram degredados naquelas paragens longínquas foram postos ao serviço da comunicação entre ambos os povos. Todavia, estes procedimentos (que em outras circunstâncias poderiam favorecer uma aproximação mutuamente vantajosa), por serem determinados pelos planos de expansão dos Portugueses, contribuíram para criar as condições preliminares não apenas para o que de positivo caracterizaria os contactos com os índios como para a produção das consequências nefastas para as sociedades tribais que a colonização outrossim acarretaria.
Importa igualmente notar que os mareantes tiveram oportunidade de se aperceber da existência de conflitos que opunham os tupiniquins com os quais contactaram a outros habitantes da terra que não chegaram então a conhecer. Tal informação, embora permitisse entrever atitudes de resistência à presença portuguesa no Brasil, indiciava também a possibilidade de aproveitamento dos confrontos intertribais como método de afirmação dos futuros colonizadores. A experiência anterior dos portugueses no relacionamento com as populações africanas não podia deixar de ser elucidativa da eficácia de uma tal estratégia. Ora, a evolução do comportamento dos tupiniquins constituía como que a promessa de uma aliança, que de facto se viria a concretizar. Ao longo dos dias em que a frota permaneceu no litoral brasileiro, os índios foram abandonando parte substancial da sua desconfiança e esquivez iniciais e dando mostras de interiorização dos preceitos que os Portugueses desejavam ver respeitados nos seus encontros. Sinais inequívocos nesse sentido são as demonstrações de respeito pelo culto e o símbolo do cristianismo e a prática que adquiriram de depor voluntariamente as armas no solo quando os visitantes se aproximavam.
O balanço, confessadamente muito incompleto, que os membros da expedição cabralina puderam fazer das potencialidades da terra por eles descoberta, refletido na parte final da carta de Pêro Vaz de Caminha, comporta uma série de conclusões extraídas da observação metódica do panorama natural e humano que se lhes deparou, as quais, antemostravam, já, alguma da relevância que o Brasil viria a assumir no contexto do império português. Sob o ponto de vista das relações entre representantes das culturas portuguesa e tupi, este contacto pode também ser considerado o prenúncio do que sucederia desde então. Se o relacionamento entre os descobridores e os índios foi pacífico e aparentemente se revestiu de características idílicas, não deixou de corresponder ao momento fundador de uma atitude de condescendência em relação aos membros das sociedades autóctones. O paternalismo de que a atividade dos jesuítas seria a principal manifestação, por um lado, e, por outro, um discurso laico que tendia a considerar o índio como ser cuja condição se aproximava ou era assimilada, à bestialidade, constituem de facto, segundo creio, os dois índices mais típicos dessa mentalidade.
Todavia, este primeiro encontro tornou igualmente pertinente extrair a conclusão da exequibilidade de um relacionamento frutuoso com os índios baseado em vantagens mútuas. As décadas que imediatamente se seguiram ao descobrimento representaram a confirmação dessa possibilidade, ao mesmo tempo que preparavam a imposição do domínio português em termos que se revelariam dramáticos para as sociedades autóctones.
Além dos degredados que se deliberou que permanecessem na terra recém-descoberta para se informarem das suas potencialidades e das idiossincrasias dos índios, ficaram ali dois grumetes que fugiram da frota. Se os votados ao degredo são referidos pelo autor da chamada Relação do Piloto Anónimo como tendo assistido a chorar à partida das embarcações, os desertores terão pressentido ser o Brasil um lugar propício para a sua realização pessoal ou, no mínimo, um refrigério da aspereza do quotidiano a bordo. Inaugurava-se, assim, uma prática de deserção naquela costa que, se contrariava os interesses imediatos dos responsáveis pelas expedições, carecidos de pessoal para o desempenho das tarefas necessárias à navegação e vida a bordo, se viria, em contrapartida, a traduzir pelo estabelecimento de laços humanos entre as culturas portuguesa e tupi. A aproximação aos índios de que os desertores foram responsáveis contribuiria para criar as condições sem as quais a colonização do território encontraria obstáculos ainda maiores do que aqueles que viria a enfrentar.














Ainda que as fontes quinhentistas não sejam unânimes quanto ao número de navios que integraram a armada de Pedro Álvares Cabral, a autoridade das informações convergentes do próprio rei D. Manuel, do autor da chamada Relação do Piloto Anónimo, de Vespúcio, Crético, Valentim Fernandes, Lunardo da Chá Masser, e dos cronistas portugueses Castanheda, João de Barros, Damião de Góis e Gaspar Correia, que referem treze embarcações, não é refutável pelos escassos e menos valiosos testemunhos divergentes. Mostra-o, claramente, Damião Peres, na sua História dos Descobrimentos Portugueses, 3.ª edição, Porto, 1983 (1.ª ed., 1943), pp. 328-332. A minha análise do problema no capítulo «A expedição cabralina e a revelação do Brasil à Europa», in Joel Serrão e A. H. de Oliveira Marques (direção de), Nova História da Expansão Portuguesa, volume VI, O Império Luso-Brasileiro. 1500-1620 (coordenação de Harold Johnson e Maria Beatriz Nizza da Silva), Lisboa, 1992, pp. 39-41, que tem em consideração o progresso do conhecimento das fontes coevas entretanto verificado, confirma tal conclusão.
É elucidativa a este propósito a carta de D. Manuel aos reis de Castela e Aragão dando-lhes conta do bom sucesso da viagem de Vasco da Gama. As duas versões desta missiva, uma de 12 de julho de 1499 e a outra de data desconhecida, mas que se sabe anterior, foram publicadas por João Martins da Silva Marques, Descobrimentos Portugueses. Documentos para a sua História, volume III, Lisboa, 1971 (de que há Reprodução Fac-Similada, Lisboa, Instituto Nacional de Investigação Científica, 1988), pp. 671-674.
Cf. o «Regimento da Viagem de Pedro Álvares Cabral», in ibidem, pp. 572-583, principalmente nas pp. 573-575. Elucidativos da estratégia da Coroa são também os documentos, desconhecidos ao tempo da preparação da coletânea de Silva Marques, publicados e estudados por Alexandre Lobato, «Dois Novos Fragmentos do Regimento de Cabral para a viagem da Índia em 1500» (Comunicação lida à Classe de Letras da Academia de Ciências de Lisboa em 24 de outubro de 1968), in Stvdia, n.º 25, dezembro, 1968, pp. 31-50.
Tal suposição baseava-se em larga medida no facto de os participantes na primeira viagem marítima à Índia terem interpretado como cristãs práticas religiosas ligadas ao hinduísmo. Julgou-se, pois, que bastaria completar a doutrinação dos indianos para que a conformidade religiosa entre eles e os Portugueses fosse total. Cf. «Regimento…», in Silva Marques, ob. cit., vol. III, p. 573.
O debate entre os adeptos da ideia de ter sido a chegada de Cabral ao Brasil o resultado de uma navegação deliberadamente conduzida com esse escopo e os defensores da não intencionalidade do descobrimento não está encerrado. Pelo seu carácter periférico em relação ao nosso propósito, não o analiso aqui. O exame que fiz do tema em outro estudo leva-me a considerar extremamente improvável que a Cabral houvessem sido dadas ordens para descobrir terras no Atlântico Ocidental. Parece-me também não provada a tese segundo a qual se verificou um pré-descobrimento português do Brasil anterior a 1500. Abordei com algum pormenor estas questões, distintas, mas conexas, no supracitado capítulo «A Expedição Cabralina…», pp. 62-74.
Veja-se a este propósito Damião Peres, op. cit., p. 333.
Cf. Jaime Cortesão, A Expedição de Pedro Álvares Cabral e o Descobrimento do Brasil, 2.ª edição, Lisboa, 1967 (1.ª ed., 1922), pp. 78-96.
A figura e o papel de Gaspar da Índia ao serviço dos interesses portugueses são analisados por Franz Hümmerich, «Studien zum 'Roteiro' der Entdeckunsfahrt Vasco da Gama 1497-1499», in Revista da Universidade de Coimbra, vol. Décimo, n.os 1-4, 1927, pp. 93-137. Posteriormente, Elias Lipiner divulgou o resultado das suas pesquisas sobre o tema; Gaspar da Gama. Um Converso na Frota de Cabral, Rio de Janeiro, 1986. Em estudo mais recente, também Artur Teodoro de Matos se ocupa desta figura histórica, destacando o seu papel como negociante de pedras preciosas no Oriente; «Aspectos do Comércio Português no Malabar: Cochim e as 'Mercadorias Miúdas' (1506-1508)» (Comunicação apresentada no V Seminário Internacional de História Indo-Portuguesa, realizado em Cochim de 29 de Janeiro a 1 de Fevereiro de 1989), seguido da publicação do Livro das Partes das Cousas Meudas (1506-1508), in A. T. Matos, Na Rota da Índia. Estudos de História da Expansão Portuguesa, s. l., Instituto Cultural de Macau, 1994, pp. 15-58.
Cf. a lista, necessariamente muito incompleta, de embarcados na frota cabralina elaborada por Rubens Viana Neiva no «Ensaio de crítica náutica sobre a viagem transatlântica de Pedro Álvares Cabral», in Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, vol. 287, abril-junho de 1970, pp. 59-61 (também incluída por Max Justo Guedes, a título de homenagem, no capítulo «O Descobrimento do Brasil», in História Naval Brasileira, Primeiro Volume, Tomo I, Rio de Janeiro, 1975, p. 151). Corrigi os dados referentes às funções desempenhadas pelos franciscanos, recorrendo à obra setecentista em que as mesmas são mencionadas; Fr. Fernando da Soledade, Historia Serafica Chronologica da Ordem de S. Francisco na Provincia de Portugal, Tomo III, Livro Quinto, Cap. II, Lisboa, 1705, pp. 489-490.
Sobre a identificação dos índios contactados pela expedição de Cabral como sendo os tupiniquins veja-se Gabriel Soares de Sousa, Tratado Descritivo do Brasil em 1587, Edição castigada pelo estudo e exame de muitos códices manuscritos existentes no Brasil, em Portugal, Espanha e França, e acrescentada de alguns comentários por Francisco Adolfo de Varnhagen, quinta edição, comemorativa dos quatrocentos anos da obra, São Paulo, 1987, Primeira Parte, Cap. XXXIV, p. 82.
A Relação do Piloto Anónimo foi editada por Jaime Cortesão, na obra clássica A Expedição…, pp. 228-262. A origem da denominação desse texto prende-se com a circunstância de a sua primeira retroversão para a língua portuguesa ter sido feita, por desconhecimento do manuscrito original, a partir do texto inserto por Ramusio nas suas Navigationi et viaggi, publicadas pela primeira vez em Veneza no ano de 1550, sendo que, nesta obra, a autoria do texto é atribuída a um piloto anónimo português. Todavia, como nota Luís de Albuquerque, Os Descobrimentos Portugueses, s. l., 1985, p. 172, nada indica que a Relação tivesse realmente sido escrita por um especialista em matéria de navegação.
Publicou esta carta Jaime Cortesão, op. cit., pp. 225-227. Para a identificação de mestre João Faras como sendo o mestre João autor da carta escrita do Brasil a D. Manuel foram decisivas as diligências de Joaquim Barradas de Carvalho. Veja-se o convincente resumo dos seus argumentos no artigo «João, mestre (ou mestre João Farás)», in Joel Serrão (Direção de), Dicionário de História de Portugal, reedição, Volume III, Porto, 1981, pp. 381-382.
Neste capítulo acompanha-se pari passu a edição da carta de Caminha publicada por Silva Marques, op. cit., vol. III, pp. 592-607. Quanto às deficiências constantes de outras edições da famosa epístola veja-se António Alberto Banha de Andrade, «As incorrecções da carta de Pêro Vaz de Caminha», in Stvdia, n.os 30-31, Agosto-Dezembro de 1970, pp. 57-69. São em grande número as publicações deste texto. Já no princípio da década de setenta do século XX foram inventariadas 78 por Leonardo Arroyo, A Carta de Pêro Vaz de Caminha. Ensaio de Informação à Procura de Constantes Válidas de Método, São Paulo — Rio de Janeiro, 1971, pp. 135-139. A quantidade edições disponíveis da carta, destinadas a públicos mais vastos ou restritos, viu-se consideravelmente acrescida. Uma das que merecem referência especial é a de José Augusto Vaz Valente, A Certidão de Nascimento do Brasil. A Carta de Pêro Vaz de Caminha, São Paulo, 1975 excelente modelo para a publicação de textos essenciais.
Pêro Vaz de Caminha inicia a sua carta a D. Manuel afirmando que Pedro Álvares Cabral e outros capitães também escreveriam a dar notícia do descobrimento (cf. ed. cit., p. 595). Idêntica informação consta da carta de mestre João; de acordo com as suas palavras, tanto Aires Correia «como todos los otros» escreveram largamente ao monarca sobre a experiência do primeiro contacto com a terra que tinham descoberto (cf. ed. cit., p. 225).
Sobre a distinção entre racismo (teoria) e racialismo (prática) veja-se o sociólogo John Rex, Raça e Etnia (tradução portuguesa de M. F. Gonçalves de Azevedo), Lisboa, 1988 (ed. original em inglês, 1986), p. 185. Tal destrinça conceptual parece-me útil, visto possibilitar o estudo de situações concretas em que a existência de preconceitos raciais não se traduz visivelmente em atitudes discriminatórias. Julgo que haveria interesse em reavaliar sob este ponto de vista os primórdios do relacionamento dos Portugueses com populações não europeias.
Já António Pedro Pires, no seu trabalho Vida e Morte nas Terras do Pau-Brasil e do Açúcar. Ensaio Antropológico sobre a Carta de Pêro Vaz de Caminha, Lisboa, 1980, p. 10, considera que o valor desta missiva não reside tanto na descrição que nos proporciona dos usos e costumes dos índios como no exame das relações entre descobridores e descobertos que torna possível. Desenvolvendo esta ideia de A. Pedro Pires, cumpre salientar que diversos visitantes europeus viriam, anos volvidos, a ter condições para produzir testemunhos sobre o modo de vida dos índios que superam em profundidade de análise e precisão descritiva a carta do escrivão que viajava para o Oriente. Em contrapartida, Caminha continua a ser um autor incontornável para quem se proponha estudar o primeiro contacto aqui examinado. Pode não se afigurar, portanto, ser, a este propósito, adequada a opinião do autor de uma obra que a muitos títulos permanece fundamental, Jaime Cortesão, para quem «o que mais assombra em Caminha é a sua intuição de etnógrafo, a rara capacidade para definir uma humanidade nova e situá-la dentro da sua idade cultural própria.» (Cf. A Carta de Pêro Vaz de Caminha, 2.ª edição, Lisboa, 1967 (1.ª ed., 1943), p. 120). Todavia, se considerarmos a sua conceção da ciência etnográfica no quadro dos cânones interpretativos e terminológicos dominantes no período em que se formou, e contextualizarmos devidamente a sua noção de idade cultural, chegaremos, porventura, à conclusão de que a substância do seu pensamento não é, afinal, incompatível com as interpretações mais recentes. Registe-se que a ideia citada perpassa por todo o livro, constituindo como que o fio condutor da análise de Jaime Cortesão.
João Rocha Pinto chamou justificadamente a atenção para o facto de a conduta pacífica dos portugueses ter sido determinada pelo interesse em efetuar uma «sondagem prévia da real força do ameríndio» e não por «um excessivo zelo humanístico». Veja-se, deste autor, A Viagem. Memória e Espaço. A Literatura Portuguesa de Viagens. Os primitivos relatos de viagens ao Índico. 1497-1550, «Cadernos da Revista de História Económica e Social», 11-12, Lisboa, 1989, p. 222.
Parece fora de dúvida que Caminha se exprimia frequentemente por meio do código escrito. Aliás, o recurso à escrita, tal como a sua aprendizagem, era muito comum numa cidade como o Porto, caracterizada por um dinamismo mercantil indiscutível e onde tal tipo de comunicação assumia grande importância. Registe-se que, neste período, o ensino elementar era, segundo parece, uma realidade com maior significado nos centros urbanos do que nos meios rurais. Veja-se, a este propósito, Rogério Fernandes, «Ensino Elementar e suas Técnicas no Portugal de Quinhentos», in Francisco Contente Domingues / Luís Filipe Barreto (organização de), A Abertura do Mundo. Estudos de História dos Descobrimentos Europeus Em homenagem a Luís de Albuquerque, Volume I, Lisboa, 1986, p. 54. Cumpre assinalar que Pêro Vaz de Caminha foi escolhido pelos membros do concelho do Porto para redigir os capítulos do município às cortes que deveriam vir a reunir-se em 1489 (mas não vieram a ter lugar). (Cf. A. De Magalhães Basto, O Porto e a Era dos Descobrimentos, Barcelos, 1932, p. 71).
A biografia de Pêro Vaz de Caminha, nascido ou criado desde muito novo na cidade do Porto, tem vindo a suscitar, desde o século XIX, o interesse de diversos historiadores. O pioneiro neste domínio foi Sousa Viterbo, a quem se seguiram Magalhães Basto, António Cruz, Jaime Cortesão e A. J. Dias Dinis. Sublinhe-se o contributo, especialmente valioso, de Jaime Cortesão em A Carta… («Cap. III — Caminha, Cidadão do Porto», pp. 49-83). Baseado nas investigações eruditas dos seus predecessores, este autor enquadrou o escrivão na ambiência social em que se formou, caracterizando a sua origem social.
«Carta…», ed. cit., p. 607.
Numerosos autores têm chamado a atenção para as qualidades de observação subjacentes à carta de Caminha. É o caso de Hernâni Cidade, que na obra A Literatura Portuguesa e a Expansão Ultramarina, Volume I, Séculos XV e XVI, 2.ª edição, Coimbra, 1963 [1.ª ed., 1943], p. 146, sintetiza o seu pensamento nos seguintes termos: «É de Cabral o Descobrimento do caminho, de Pêro Vaz de Caminha o Descobrimento da terra. Ou, se se preferir, se foi o primeiro que achou, ao segundo coube revelá-la com sua flora e fauna, o íncola, os seus costumes, nada escapando à agudeza de um olhar, que tudo fixou em imagens nítidas, que a pena reproduziu sem trair.» (Os itálicos são de H. Cidade).
A confluência e harmonização de valores que em regra se opõem são também notórias nos escritos do pioneiro na revelação da América ao Velho Mundo, Cristóvão Colombo (que, como é sabido deveu muito da sua formação ao convívio com os portugueses). Verifica-se que o facto de subordinar todas as realidades aos ideais cristãos, considerando-as apenas como meios suscetíveis de serem utilizados em prol dos mesmos, não o impede de proceder à descoberta da natureza como finalidade que se justifica a si própria, pelo que descobrir a terra se torna uma «acção intransitiva». Cf. a este respeito Tzvetan Todorov, A Conquista da América. A Questão do Outro (tradução de Beatriz Perrone Moisés), 2.ª edição brasileira, São Paulo, 1988 (ed. original em francês, 1982), p. 12.
Nem por isso, como já referi, a carta de Caminha deixa de ter óbvias, mas inevitáveis, limitações, ditadas pela mentalidade etnocêntrica, partilhada pelo autor, e pelas condições em que foi produzida. Como nota M. Viegas Guerreiro, na «Introdução» à obra Carta a el-rei D. Manuel sobre o achamento do Brasil (1 de «Maio» de 1500), com anotação e atualização também da sua responsabilidade e leitura paleográfica de Eduardo Nunes, Lisboa, 1974, p. 21: «É magra, com lacunas se não inexacta, a notícia sobre modos de vida, alimentação, religião e sociedade […]».
«Carta…», ed. cit., pp. 596-597. Os itálicos foram introduzidos por mim.
O primeiro encontro entre portugueses e índios é condicionado por um «vazio referencial» que os seus intérpretes procuram colmatar por meio da formulação de analogias que suscetíveis de estabelecer relações de identidade e dissemelhança entre as realidades estranhas e outras que fossem familiares à cultura de cada um dos grupos humanos em presença. Veja-se a este propósito Luís Filipe Barreto, Descobrimentos e Renascimento. Formas de ser e pensar nos séculos XV e XVI, Lisboa, 1983, pp. 173-174.
«Carta…», ed. cit., p. 597.
O papel do jogo de xadrez como uma das atividades lúdicas apreciadas no Portugal medievo é assinalado por A. H. de Oliveira Marques, A Sociedade Medieval Portuguesa. Aspectos da Vida Quotidiana, 4.ª edição, Lisboa, 1981 [1.ª ed., 1964], p. 194. O autor chama a atenção para o interesse em que era tida a prática do xadrez como forma de preparação intelectual dos guerreiros, dadas as suas analogias com uma batalha.
Jaime Cortesão, A Carta…, p. 312.
Garcia de Orta, Colóquios dos Simples e Drogas da Índia, 2 vols., edição dirigida e anotada pelo Conde de Ficalho, Lisboa, 1891-1895, republicado em fac-simile pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda (1987). Mereceu o xadrez ao autor desta obra uma abordagem particularmente interessante. Um dos intervenientes nos diálogos, Orta, considerando a curiosidade do seu interlocutor, um xadrezista europeu, pelo tema, permite-se abandonar a matéria «física» a que os Colóquios são consagrados e faz uma incursão no domínio do xadrez. Alude à sua prática pelos muçulmanos, sem deixar de registar as diferenças entre o jogo tal como o praticavam os Europeus, por um lado, e os mouros orientais, por outro. (Cf. Volume I, pp. 124-125).
Leia-se a narração por João de Barros do episódio em que Diogo Lopes de Sequeira, que jogava xadrez na sua nau, no final da primeira década do século XVI, em Malaca, correu sério risco de perecer com os seus, vítima de uma traição de muçulmanos. O cronista aproveita o pretexto para se pronunciar acerca da origem do jogo. Afirma também que tivera em tempos a intenção de usar o xadrez para divulgar os princípios económicos de Aristóteles. A sua escolha deveu-se ao facto de o xadrez ser um dos três jogos mais praticados na corte, sendo os outros as távolas e as cartas. (Cf. Ásia. Segunda Década, 4.ª edição, conforme a edição princeps, iniciada por António Baião e continuada por Luís F. Lindley Cintra, Lisboa, 1974 [reeditada em fac-símile pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda, em 1988], Livro Quarto, Cap. IV, pp. 173-178).
Atente-se, por exemplo, na menção a um terreiro de Pequim cujas lajes, pretas e brancas, são caracterizadas por Fernão Mendes Pinto como estando assentadas ao modo de xadrez. (Cf. Peregrinação, transcrição de Adolfo Casais Monteiro, Lisboa, 1983, Cap. CX, p. 320).
«Carta…», ed. cit., p. 600.
Jaime Cortesão, A Carta…, p. 43.
M. Viegas Guerreiro, op. cit., p. 25. O mesmo autor, em trabalho mais recente, A Carta de Pêro Vaz de Caminha Lida por Um Etnógrafo (Conferência pronunciada em Belmonte no dia 22 de Abril de 1985), Lisboa, 1992, p. 17, afirma que Caminha não busca «galas de estilo». Tenham-se em conta, também, as palavras de Duarte Leite, «A Carta de Pêro Vaz de Caminha», in História dos Descobrimentos. Colectânea de Esparsos, organização, notas e estudo final de V. Magalhães Godinho, Volume I, Lisboa, 1958, p. 542, que considera ser a linguagem de Caminha de «formação popular».
O autor da chamada Relação do Piloto Anónimo refere expressamente que nenhum dos embarcados na frota de Cabral compreendia a língua dos índios. (Cf. a edição deste texto da responsabilidade de Jaime Cortesão, in A Expedição…, p. 229). Esta observação permite conjeturar que os navegadores tiveram inicialmente a expectativa de que a gente da terra possuísse afinidades com outra população humana já conhecida dos Portugueses. Tudo leva a crer, de facto, que Pedro Álvares Cabral deu ordem aos intérpretes que seguiam sob o seu comando no sentido de procurarem estabelecer diálogo com os tupiniquins. O insucesso de tal diligência teve seguramente como resultado o desenvolvimento da convicção de não existiam relações entre aqueles índios e outros povos até então visitados no decurso das viagens portuguesas.
Tais permutas constituíam, aliás, prática correntemente utilizada pelos navegadores portugueses e espanhóis que pretendiam a colaboração de populações com as quais contactavam. Veja-se, a título de exemplo, o relato da primeira viagem de Colombo à América, publicado por Consuelo Varela (ed., prólogo e notas de), Cristóbal Colón. Textos y documentos completos…, 2.ª edição, Madrid, 1984 (1.ª ed., 1982), p. 30.
Caminha assinala que algumas das penas desta cobertura se assemelhavam às dos papagaios, afirmação indiciadora do conhecimento que os mareantes tinham da costa africana e da respetiva fauna. (Cf. «A Carta…», ed. cit., p. 596).
A sua conduta a este respeito não era, ao menos no essencial, inovadora. Note-se que já aquando da permanência da primeira armada da Índia no rio de Santiago (hoje Berg River) foi levado à nau de Vasco da Gama um autóctone. Depois de ter sido sentado à mesa do capitão-mor português e de comer de tudo o que lhe ofereceram, foi-lhe dado, no dia seguinte, vestuário de muito boa qualidade, antes de ser devolvido à sua terra. É muito possível que nesta circunstância se tenha procedido a um inquérito cultural idêntico àquele a que Pedro Álvares Cabral submeteu os dois primeiros índios conduzidos à sua embarcação; a diferença principal residirá, porventura, na parcimónia de Álvaro Velho no relato de pormenores, no que contrasta com o minucioso Caminha. Veja-se o «Relato da Viagem», in José Pedro Machado / Viriato de Campos, Vasco da Gama e a sua Viagem de Descobrimento, com edição crítica e leitura atualizada do relato anónimo da viagem, Lisboa, 1969, p. 116.
«Carta…», ed. cit., p. 596.
O contributo das viagens portuguesas dos séculos XV e XVI para a superação da ideia da existência de homens monstruosos não se traduziu em efeitos decisivos imediatos. É sintomático que, em pleno século XVIII, Lineu classificasse crianças encontradas em florestas, vítimas da privação de contactos com os seus semelhantes e por esse motivo impossibilitadas de se desenvolverem normalmente dos pontos de vista físico, afetivo e intelectual, como Homo ferus. De facto, o sábio sueco pensava tratar-se de seres pertencentes a uma espécie diferente da verdadeiramente humana, constituída por anões brutos e raros. Cf. Ruth Benedict, Padrões de Cultura (tradução portuguesa de Alberto Candeias), Lisboa, s. d. [a 1.ª ed. americana da obra é de 193], p. 25.
Como assinala J. H. Elliott, O Velho Mundo e o Novo. 1492-1650 (tradução portuguesa de Maria Lucília Filipe), Lisboa, 1984 (ed. original em inglês, 1970), p. 37: «Quando Colombo pousou pela primeira vez os olhos sobre os habitantes das Índias a sua reacção imediata foi verificar que não eram monstruosos, nem anormais, ou seja, foi a reacção natural de um homem que ainda acreditava em parte no mundo de Mandeville.» Confirme-se esta afirmação com o relato da primeira viagem de Colombo à América, publicado por Consuelo Varela, op. cit., pp. 30-31.
A comparação, mais ou menos implícita, da realidade física e cultural dos índios com a dos negros da Guiné que a carta de Caminha reflete é notada e analisada por Jaime Cortesão, A Carta…, pp. 119-120.
A ideia da inocência dos índios é reiterada por Caminha ao longo da missiva. A obra preparada por Sílvio Baptista Pereira, Vocabulário da Carta de Pero Vaz de Caminha, Seguido da reprodução fac-similar e da leitura diplomática do manuscrito autógrafo, que integra o «Dicionário da Língua Portuguesa. Textos e Vocabulários», Coleção organizada e Dirigida por A. G. Cunha, s. l., 1964, p. 62, regista as diversas ocorrências do vocábulo que a exprime, bem como as significativas variantes registadas, além de permitir uma cómoda remissão para os trechos respetivos, tal como foram redigidos pela pena do escrivão.
Anos depois a aquisição de araras tornar-se-ia uma das motivações suplementares dos marinheiros embarcados nos navios que demandavam o Brasil para carregar madeira tintória. Não deixa de ser significativo que logo no mapa dito de Cantino, de 1502, o território surja ilustrado simbolicamente não só pelas árvores que lhe deram o nome como por aquelas aves.
Converge com as palavras de Caminha a propósito das mulheres indígenas a opinião do autor da chamada Relação do Piloto Anónimo, ed. cit., p. 230, que, após assinalar a sua nudez afirma que «são bem feitas de corpo, e trazem os cabellos compridos».
De facto, como observa J. S. da Silva Dias, Os Descobrimentos e a Problemática Cultural do Século XVI, Lisboa, 1982 [1.ª ed., Coimbra, 1973], p. 144, o relato de Caminha «insere-se no quadro ideológico que assimila a noção de indígena à de bárbaro, e no quadro político de uma análise das populações ultramarinas em termos de fácil ou difícil cooperação com os portugueses.»
«Carta…», ed. cit., p. 601.
João de Barros, op. cit., Primeira Década, 4.ª edição, revista e prefaciada por António Baião conforme a edição princeps, Coimbra, 1932 [de que foi publicada fac-símile pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda, em 1988], Livro Quinto, Cap. I, p. 171.
A música e a dança eram frequentemente utilizadas pelos navegadores como meios de promoção do relacionamento pacífico com outros povos. Pêro Vaz de Caminha relata-nos um outro episódio em que índios e portugueses dançaram ao som de um tamborim. Ainda em vida do infante D. Henrique, Alvise da Cadamosto teve, em África, no chamado «país do senhor Budomel», uma experiência cujo relato é elucidativo das vantagens que decorriam para os marinheiros do recurso às gaitas-de-foles nos seus contactos com as populações visitadas: «Também se admiravam com o tocar de uma destas nossas gaitas de fole do campo, que eu fiz tocar a um marinheiro meu, pois daquele instrumento não conheciam nada; e vendo-a revestida de couro e com retalhos à cabeça, persuadiram-se de que fosse qualquer animal vivo que assim cantasse com diversas vozes. Com ela muito prazer e espanto tinham, ao mesmo tempo. Pelo que, vendo o seu erro, disse-lhes que aquilo era instrumento feito à mão, diziam ser coisa celeste e que Deus a tinha feito por suas mãos, pois tão suavemente tocava com tantas e diferentes vozes; e diziam nunca terem visto mais bela coisa.» (Viagens de Luís Cadamosto e Pedro de Sintra, edição prefaciada por Damião Peres, Lisboa, 1988, reedição do texto de 1948, «II Parte», p. 143; cotejar com o original em italiano, «I Parte», p. 49). Também Álvaro Velho, reportando-se à primeira viagem de Vasco da Gama à Índia, faz referência a um episódio em que membros da expedição e centenas de negros confraternizaram dançando e tocando os instrumentos musicais respetivos, na Angra de São Brás. Veja-se «Relato da Viagem», ed. cit., p. 122. Na Ásia, a música viria igualmente a favorecer a aproximação entre portugueses e autóctones. Tal fenómeno, se em muitas circunstâncias era premeditado pelos responsáveis políticos e religiosos portugueses, noutros casos podia ser fruto de decisões individuais espontâneas, como sucedeu com certo Gaspar Meireles, cujos talentos de tocador de viola e cantor o tornaram pessoa particularmente estimada pelos chineses de Quansi. (Cf. Fernão Mendes Pinto, op. cit., Cap. CXVI, p. 335).
«Carta…», ed. cit., p. 601.
Ibidem.
Ibidem, p. 602.
Também esta prática era comum aquando da chegada de navegadores portugueses e espanhóis a paragens até então desconhecidas dos Europeus. Desde o tempo de D. João II, os navegadores portugueses passaram a recorrer a padrões de pedra para simbolizar o seu domínio sobre tais territórios. O recurso a uma cruz de madeira quando da chegada de Cabral ao Brasil tem sido considerado por diversos autores como prova, ou pelo menos indício, da ausência de padrões a bordo dos navios que comandava, e de que, portanto, não existiam propósitos descobridores por parte dos responsáveis pelo envio da segunda armada da Índia. A título de exemplo veja-se T. O. Marcondes de Sousa, O Descobrimento do Brasil, 2.ª edição, São Paulo, 1956 (1.ª ed., 1946), p. 158.
Eram numerosas, na época, as representações pictóricas do santo e do episódio referido por Caminha, a cujo espírito terá acudido, logo que viu o índio que chamou a sua atenção, a imagem de algum quadro que lhe fosse familiar.
Note-se, porém, que, compreensivelmente, Caminha não utiliza os termos tupis maloca (ou oca) e taba para se referir às casas e povoações dos índios. Neste, como em outros trechos desta obra, utilizo vocábulos que só mais tarde seriam conhecidos pelos visitantes e colonos e passaram a constituir parte do património da língua portuguesa.
Veja-se a tal respeito Jaime Cortesão, A Carta…, op. cit., nota (57), pp. 331-332 e a bibliografia citada por este autor. Cf. também Luís da Câmara Cascudo, História da Alimentação no Brasil, Primeiro Volume, Cardápio Indígena, Dieta Africana, Ementa Portuguesa (Pesquisas e Notas), São Paulo, 1967, pp. 79-82. O sabor do cará tem semelhança com o do inhame, mas o seu formato é diverso, além de ser mais rijo e consistente. Note-se que também o autor da Relação do Piloto Anónimo incorre em confusão idêntica à de Pêro Vaz de Caminha. (Cf. a edição supracitada deste documento, p. 230).
Gaspar Correia, Lendas da Índia, Volume Primeiro, Introdução e revisão de M. Lopes de Almeida, Porto, 1975, Cap. II, p. 152.
A própria divulgação tardia da carta de Pêro Vaz de Caminha, apenas publicada pela primeira vez no século XIX, pode ser entendida como motivada pelo interesse da coroa portuguesa em não tornar públicas informações que pudessem suscitar propósitos de intrusão de outros europeus no Brasil. Como refere António Alberto Banha de Andrade, Mundos Novos do Mundo. Panorama da Difusão, pela Europa, de Notícias dos Descobrimentos Geográficos Portugueses, Lisboa, 1972, p. 229: «Não consta que o texto da carta haja transpirado, sequer, para fora da Corte. Ficamos, pois, em presença de mais um notável documento que importava ter-se escrito e precedeu o Mundus Novus de Vespúcio na minúcia de narração dos costumes autóctones, mas não alcançou a divulgação que a importância do facto em si postulava.»
Como sempre, Caminha especifica o que foi oferecido aos tupiniquins, revelando também a este respeito, grande minuciosidade. De facto, como observa Manuel de Sousa Pinto, Pêro Vaz de Caminha e a Carta do «Achamento» do Brasil, Lisboa, 1934, p. 74: «Pela Carta do Achamento pode fazer-se, com todo o rigor dum inventário, a lista dos objectos que os portugueses deram ou trocaram e das coisas que foram, ou deviam ter sido, mandadas ao Rei […]».
Sublinhe-se, contudo, que, contrariamente ao que outrora os historiadores supuseram, o Brasil não viria desde logo a constituir uma escala frequente para as embarcações da carreira da Índia. Duarte Leite concluiu que, das seis frotas imediatamente posteriores à de Cabral, apenas a primeira parece ter atingido intencionalmente o Brasil, sendo que, em relação às outras apenas há notícia da passagem da última por aquele litoral, ainda assim motivada por circunstâncias fortuitas. (Cf. «As Armadas da Índia e o Brasil», in op. cit., vol. II, pp. 687-696). Por sua vez, José Roberto do Amaral Lapa pôde afirmar que apenas há registo de 22 embarcações que, além das que compuseram a esquadra de Pedro Álvares Cabral, tenham aportado à Baía no decurso de viagens de ou para o Oriente, durante o século XVI. (Cf. O Brasil e a navegação portuguesa para a Ásia (Séculos XVI, XVII e XVIII), Separata de Estudos Históricos, n.º 7, Marília, 1968, p. 101). Merecem igualmente atenção os resultados da pesquisa de Joaquim Veríssimo Serrão sobre a matéria (O Rio de Janeiro no Século XVI, I, Estudo Histórico, Lisboa, 1965, pp. 16-18. Mais recentemente, Artur Teodoro de Matos sintetizou o estado do conhecimento do tema nos seguintes termos: «Por razões várias, a Baía foi, até aos começos da década de 60 do século XVII, uma escala ocasional da carreira da Índia. Consentida nos primeiros anos de quinhentos, já em meados da centúria as disposições régias procuravam contrariar a paragem brasileira pelo atraso que acarretaria à viagem.» (Escalas do Atlântico no Século XVI, Separata da Revista da Universidade de Coimbra, vol. XXXIV, 1988, pp. 157-183, Lisboa, série separatas do Centro de Estudos de História e Cartografia Antiga do Instituto de Investigação Científica e Tropical, n.º 197, 1989, pp. 160-161). De facto, conhece-se uma estipulação de 1565 contrariando a invernada no Brasil, atendendo aos seus inconvenientes. Cf. A. Teodoro de Matos, «Subsídios para a História da Carreira da Índia. Documentos da nau S. Pantalião (1592)», in Boletim do Arquivo Histórico Militar, 45.º vol., Lisboa, 1975 (de que se editou separata), p. 19. Posteriormente este trabalho foi republicado na supracitada coletânea do autor, Na Rota da Índia…, pp. 109-235 (com atualização, principalmente na bibliografia).
Veja-se Florestan Fernandes, «Os Tupi e a Reação Tribal à Conquista» (Escrito para a História Geral da Civilização Brasileira, obra dirigida por Sérgio Buarque de Holanda), in A Investigação Etnológica no Brasil e outros Ensaios, Petrópolis, 1975, pp. 20-21.
Já M. Viegas Guerreiro, Carta a el-rei…, p. 23, sem deixar de sublinhar a predisposição dos embarcados na frota de Cabral para tratarem os índios de forma amistosa, considera que o seu cuidado em lhes dispensar um bom tratamento se destinava a amansá-los e que esta forma de proceder se inseria numa «política de Estado» consagrada no regimento da viagem.
É elucidativa a este propósito a Carta de Mestre João, publicada por Jaime Cortesão, A Expedição…, pp. 225-227. Cf. p. 226: «Ayer casy entendjmos por aseños […] que de otra ysla vyenen aqui almadjas a pelear com ellos, e los llevan catjvos.»
Efetivamente, já na carta de Pêro Vaz de Caminha é possível detetar uma progressiva degradação da imagem que dos índios foram tendo os navegadores. Mostra-o em termos convincentes Luís Filipe Barreto, op. cit., pp. 181-183.
Ed. cit., p. 232.
Um importante documento, datado de 1503, confirma a precocidade dos benefícios decorrentes da permanência de portugueses entre os índios; não só a frota que se deslocou àquele litoral na sequência da descoberta, com o objetivo de proceder a uma operação de reconhecimento, encontrou um língua (ou seja um intérprete), tornando possível os primeiros batismos, como Valentim Fernandes pôde recorrer a dois portugueses que se tinham demorado vinte meses naquela região do mundo, os quais lhe permitiram conhecer o relato de «dois homens anciãos da terra sobredita» que está na origem da sua notícia. Se assim não fosse jamais se redigiria o mencionado «Auto», de que constam valiosas informações sobre o modo de vida dos índios, e evidencia já um progresso notável em relação aos conhecimentos que aos navegadores comandados por Pedro Álvares Cabral tiveram condições para obter. (Veja-se António Alberto Banha de Andrade, «O Auto Notarial de Valentim Fernandes (1503) e o seu significado como Fonte Histórica», in Arquivos do Centro Cultural Português, Volume V, Paris, 1972, pp. 521-545; cf. pp. 544-545).
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