O Contador e o Imperador: a evolução contábil na Era Mauá (1850 – 1860)

July 16, 2017 | Autor: R. De Oliveira Leite | Categoria: History, Accounting
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O Contador e o Imperador: a evolução contábil na Era Mauá (1850 – 1860) The Accountant and the Emperor: accounting evolution during the Maua Era (1850 – 1860) Rodrigo de Oliveira Leite1, Natan Szuster2, Fortunée Szuster3.

Resumo: Na segunda metade do Século XIX houve a chamada Era Mauá, capitaneada pelo Visconde de Mauá, que fora treinado como contador segundo os padrões anglo-americanos de contabilidade. Com o seu grande poder econômico ele influenciou a legislação contábil brasileira durante o Século XIX. Este artigo tenta estudar estas influências do Visconde de Mauá, bem como também a influência dos padrões e legislações contábeis anglo-americanas. Serão abordados neste artigo o Código Comercial de 1850, a Lei sobre Aulas de Comércio (1856) e a Lei 1083 e o Decreto 2679, ambos de 1860. É apresentado também o Balanço da Companhia do Gás de 1859, publicado em 1860, como amostra da contabilidade de excelente qualidade ainda no Século XIX. Palavras-chave: historiografia contábil; Era Mauá. Abstract: During the second half of the XIXth Century, there was, in Brazil, the so-called Maua Era, a peak of industrialization. The Viscount of Maua, an accountant himself, was the great power during this era. This article tries to explore the legislation in this period to find if he influenced the process of law-making regarding accounting standards, and also if his Anglo-American training served as influence in this process. The legislations analyzed in this article are the Commercial Code (1850), the Commerce Classes regulation of 1856, and both the Law No. 1083 and the Decree No. 2679 (1860). To support the claims made an analysis of the 1859 Financial Statements from the Gas Company, founded by the Viscount of Maua, is made. Keywords: accounting historiography; Maua Era.

1 INTRODUÇÃO Durante a segunda metade do século XIX o Brasil viveu a época que se nomeou a “Era Mauá”, neste período houve um surto industrial no Brasil, capitaneado por Irineu Evangelista de Souza, primeiro Barão de Mauá (1854) e depois elevado a Visconde de Mauá (1874). Durante este período as atividades comerciais e industriais sofreram uma guinada no Brasil imperial, e como estes negócios se baseiam mais no cálculo do custo para aferição do lucro do que as atividades agrícolas à época, a contabilidade também deu um salto considerável de qualidade neste período. Durante este período destacam-se as aprovações do Código Comercial de 1850 e da Lei 1083/1860 e a emissão do Decreto 1763/1860. Tais regulações revolucionaram a contabilidade, tanto dos pequenos negócios comerciais, quanto dos grandes empreendimentos que começavam a surgir no Brasil, já que a regulação contábil no Brasil anteriormente era inexistente. Portanto, este artigo visa demonstrar dois pontos: que o Brasil conseguiu ter uma contabilidade de qualidade e focada na área gerencial já no século XIX, e que o Visconde de Mauá teve posição de destaque e liderança nestas conquistas.

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Graduado em Ciências Contábeis pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Mestrando em Administração pela Fundação Getúlio Vargas (EBAPE/FGV). E-mail: [email protected]. 2

Doutor em Contabilidade pela Universidade de São Paulo, e Livre Docente pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Professor Titular da UFRJ, e Professor Assistente da UERJ. 3

Pós-graduada em Gestão de Negócios pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e Mestre em Ciências Contábeis pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

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2 O VISCONDE DE MAUÁ O Visconde de Mauá foi uma figura central no desenvolvimento do Brasil, este fato é demonstrado pelas homenagens após a sua morte: uma cidade no interior do Estado do Rio de Janeiro foi dedicada em seu nome (Visconde de Mauá), em 1910 inaugurou-se uma estátua em sua homenagem no Centro do Rio de Janeiro (área hoje denominada Praça Mauá), entre 1936 e 1938 seu rosto foi estampado na moeda de 200 Réis (com a Locomotiva Baronesa no reverso), nos anos de 1963 e 2010 seu busto foi estampado em selos dos Correios, e em 1999 sua história foi contada no filme “O Imperador e o Rei”. Ele foi formado como guarda-livros, um antigo nome do profissional da contabilidade no século XIX (CALDEIRA, 1995). Portanto, ele tinha uma sólida formação contábil-financeira antes de se tornar um dos empreendedores mais influentes da história do Brasil. A sua formação foi baseada na contabilidade inglesa, já que ele foi empregado em uma empresa cujo sócio era inglês, fortemente marcada pelo regime de competência e proteção aos acionistas. Mesmo após de já ser independente, seu capital ainda vinha de fontes inglesas e seus sócios eram, majoritariamente, ingleses. Em 1867 os ativos da Casa Mauá & Cia., a holding das empresas de Mauá, somavam ativos totais de 115:186:879$206, ou seja, mais de 115 mil contos de Réis, enquanto o orçamento do Império para o mesmo ano foi de 97 mil contos de Réis (IUDÍCIBUS e FILHO, 2002). Uma comparação (parcialmente espúria) pode ser feita para que se possa ter uma ideia da magnitude de tal valor, se esta empresa existisse em 2014 e mantivesse a mesma razão entre ativos e orçamento do país, os ativos somariam cerca de 3 trilhões de reais! Porém esta comparação é parcialmente espúria devido a não controlar o tamanho do Estado Brasileiro perante sua economia em 1867 e 2014, entretanto ela serve para dar uma ideia da importância de Mauá no cenário econômico brasileiro da época. Um exemplo que pode corroborar com a importância de Mauá e sua influência inglesa é que em 1846 a formação para os profissionais da contabilidade exigia que o aluno falasse francês e inglês (nesta ordem), depois em 1856 mudou-se o requerimento para inglês e francês (SOARES et al., 2011). A inversão do francês com o inglês em 1856 em comparação em 1846 mostra a importância que esta língua ganhou durante esta década, e foi justamente durante esta década que Mauá (financiado com capital inglês) floresceu no Império, recebendo, inclusive, o título de Barão em 1854. 3 O CÓDIGO COMERCIAL DE 1850 Em 1850 foi estabelecido o Código Comercial no Brasil. Este código comercial continua a valer em parte (a parte terrestre foi revogada, mas a marítima continua a vigorar) no Brasil atual. O Código regulamenta as obrigações contábeis comuns a todos os comerciantes em apenas 11 artigos (artigos de 10 a 20). Esta foi a primeira legislação a sistematizar a regulação e as normas contábeis no país. Serão analisados os artigos contábeis do Código na seção 3.1, e na seção 3.2 será analisada a possível influência do Visconde de Mauá sobre estes regulamentos. 3.1 A Contabilidade no Código Comercial O Código Comercial de 1850 foi um marco na contabilidade empresarial brasileira sendo a primeira lei que determinou as obrigações contábeis dos comerciantes. No seu artigo décimo, já há a obrigação da escrituração dos livros contábeis e da formação anual de um balanço anual, dividido em ativos e passivos, constando todos os direitos e bens do comerciante, bem como suas obrigações. O artigo décimo primeiro complementa o décimo ao indicar os dois livros obrigatórios do comerciante: o Diário e o Copiador de Cartas. O livro Diário é praticamente igual ao que 2

conhecemos hoje, e os lançamentos, de acordo com o décimo segundo artigo, devem obedecer ao Regime de Competência, embora tal expressão não apareça no Código. Ainda no décimo segundo artigo há a menção ao Copiador de Cartas, que deveria conter as cartas missivas do comerciante. De certa maneira, guarda semelhança com o antigo livro Ricordanze de Pacioli, no qual deveriam ser registradas coisas relacionadas à sua atividade das quais o comerciante não poderia esquecer-se (SANGSTER et al., 2012). Assim, este livro pode ser encarado como uma mistura de contabilidade e arquivologia. Os artigos décimo terceiro a décimo sexto tratam de questões burocráticas referentes ao modo que os livros deveriam ser registrados (no Tribunal de Comércio), conservados (sem rasuras, espaços em branco ou dobras) e escritos (em idioma português). O artigo décimo sétimo é, provavelmente, o mais interessante de todo o Código Comercial. Ele estabelece o “secretismo” dos livros contábeis, que seriam verdadeiras “caixaspretas”, não podendo serem examinados por nenhuma autoridade do Poder Público, nem para verificar se os impostos estavam sendo recolhidos de forma correta. Este artigo só veio a ser revogado em 1938, através do Decreto-Lei 385/1938, portanto o secretismo dos livros contábeis para empresas de capital fechado vigorou por 88 anos! O artigo décimo oitavo esclarece para quem era feita a contabilidade: os sócios. Apenas os herdeiros de um sócio, em caso de sucessão, poderiam requerer vistas aos livros e registros contábeis. Iudícibus e Ricardino Filho (2002) destacaram que a quantidade de sociedades na época era extremamente pequena, quase inexistente. Portanto, a contabilidade no século XIX era voltada a fins gerenciais, com o comerciante realizando a contabilidade do seu negócio da maneira que fosse melhor para gerir o seu comércio, já que os únicos que poderiam ter acesso eram os sócios do negócio, criando assim uma contabilidade cujos usuários eram apenas os sócios. Os artigos décimo nono e vigésimo estabelecem apenas preceitos legais e penas para comerciantes no caso de se recusar a abrir os seus livros nos casos previstos pelo Código. 3.2 A influência de Mauá no Código Comercial Logo após a criação do Código Comercial de 1850, mais precisamente em 1851, Mauá fundou o Banco Comercial e Industrial do Brasil, Caldeira apud Iudícibus e Ricardino Filho (2002, p. 12) diz que “uma empresa como aquela não poderia ser fundada sem o novo Código Comercial (...) mas o industrial travestido de redator de leis sabia o que queria quando insistiu em colocar a ideia no texto”. Podemos ver, portanto, que o Código Comercial sofreu a influência de Mauá, que pretendia que o novo Código propiciasse uma oportunidade para que novas indústrias e comércios pudessem surgir no Brasil. A fundação do Banco Comercial e Industrial era uma aplicação de um método de instituição bancária que já havia sido consolidado em outros países, principalmente na Inglaterra e Estados Unidos. O Correio Mercantil de 23/24 de fevereiro de 1851 destacou, em sua capa, que a publicação dos estatutos “não poderia deixar de ser favoravelmente acolhida”, já que tais exemplos de bancos “são os mais poderosos instrumentos de riqueza das nações e encerram as condições práticas de uma civilização progressiva”. A edição do Correio Mercantil de 26 de março de 1851 diz, na sua capa, que bancos, tais como o Banco Comercial e Industrial do Brasil, “podem ser estabelecidos com o fim principal de regular a circulação monetária no país, como faz atualmente o de Londres (...) e podem ter todos estes fins como os do sistema adotado em New York.” Vemos, então, a grande influência de Mauá na criação do Código Comercial Brasileiro. Assim sendo, não é de se estranhar que o Código protegesse os sócios e acionistas (lhes outorgando o direito de observar os livros contábeis, direito esse que nem o governo tinha) e adotasse um modelo contábil focado no gerenciamento do negócio. Estas influências podem ser atribuídas ao treinamento anglo-americano que Mauá recebeu, sendo prova disso a criação do 3

Banco Comercial e Industrial, inspirado nos bancos fomentadores de empreendimentos em Londres e Nova Iorque.

4 AS PRIMEIRAS LEIS DAS SOCIEDADES ANÔNIMAS NO BRASIL Durante os anos de 1860 duas legislações foram aprovadas que suplementaram o Código Comercial de 1850. Essas leis regulavam as Sociedades Anônimas, que pelo seu tamanho e impactos na sociedade mereciam uma legislação à parte, que regulassem aspectos estatutários, de impostos e também aspectos contábeis. Pois, estas legislações são a Lei 1083/1860 e o Decreto 2679/1860. Enquanto a primeira legislação regula muito poucos aspectos contábeis, mais especificadamente o fim do “secretismo” dos livros contábeis e a forma da distribuição de dividendos, a segunda vai muito além, trazendo modelos de balanços e observações que são bastante interessantes e inovativos, até para os dias de hoje. 4.1 A Lei 1083/1860 Em 22 de agosto de 1860 é publicada a Lei nº 1083, que visa regular os bancos emissores de papel-moeda criados a partir de 1858. Portanto, tal lei se foca nos Bancos, Caixas Econômicas, Montes de Socorro e outras instituições financeiras, embora as obrigações menos específicas também se aplicavam às sociedades anônimas não-financeiras. Esta lei é tida como a “primeira lei das sociedades anônimas no Brasil” (Iudícibus e Ricardino Filho, 2002, p.7). Assim sendo, é um marco na história do desenvolvimento da Ciência Contábil no Brasil. Esta lei não entra muito nos detalhes e regulações contábeis, citando a figura do balanço apenas no seu artigo segundo, parágrafo nono, que obriga as companhias abertas e sociedades anônimas a remeter ao Poder Público o balanço anual. No artigo primeiro, parágrafo sétimo e inciso nono, é anulada a prerrogativa do secretismo dos livros contábeis, podendo o fiscal do governo examinar os livros sempre que for do interesse público, criando assim mais um mecanismo de proteção aos acionistas. Entretanto, a parte que pode ser considerada mais contabilmente interessante nesta legislação é o artigo primeiro, parágrafo oito na qual determina que os dividendos somente podem ser distribuídos com os lucros líquidos das “operações efetivamente concluídas” no semestre em questão. O que se pode entender por “operações efetivamente concluídas”? Levando em conta que a Lei em questão trata, principalmente, de Bancos, Caixas Econômicas e Sociedades Financeiras, as “operações efetivamente concluídas” são aquelas que se converteram em caixa. Este mecanismo legal servia para evitar que sociedades anônimas pagassem muitos dividendos em receitas futuras e incertas, visto que não havia a figura da Provisão para Créditos de Liquidação Duvidosa à época. Uma outra linha de raciocínio que chega à mesma conclusão é que, caso as “operações efetivamente concluídas” fossem apenas as operações das quais se espera receber (como por exemplo um empréstimo tomado no semestre, mas sem nenhuma parcela paga ainda), utilizando o reconhecimento através do Regime de Competência, tal parágrafo seria irrelevante, visto que tais lançamentos já são contemplados no Código Comercial de 1850. Portanto podemos chegar à conclusão de que as Sociedades Anônimas estavam obrigadas a ter a escrituração no regime de competência, mas no momento de cálculo dos dividendos, o regime a ser seguido deveria ser o de caixa. Desta maneira podemos ver que a Lei 1083/1860 tem um forte caráter de proteção ao acionista, com a figura do fiscal de governo que poderia fiscalizar as operações das sociedades anônimas, bem como promover investigações nos livros destas empresas, além disto a lei 4

protegia os acionistas contra empresas que poderiam atrair investidores incautos com altos dividendos que seriam insustentáveis a longo prazo. 4.2 O Decreto 2679/1860 Para regular os balanços das sociedades anônimas, em 3 de novembro de 1860, o Imperador D. Pedro II decreta os modelos de balanços que as sociedades anônimas deveriam seguir. Nesse decreto constam modelos para Bancos (com ou sem emissão de papel-moeda), Companhias Anônimas, Companhias de Seguros, Fábricas, Companhias de Navegação, Companhias Empreiteiras, Veículos de Transporte Terrestre e Praças. Essas categorias englobavam todas as companhias abertas existentes no Brasil nesta época. Em nenhuma lei da época se estabelece a obrigatoriedade do Demonstrativo de Ganhos e Perdas (também chamado de Demonstrativo de Lucros e Perdas ou Demonstrativo de Receitas e Despesas) porém, quase todas as companhias de capital aberto que publicavam os seus balanços em jornais da época, também publicavam os seus Demonstrativos de Ganhos e Perdas, que só seria obrigatório a partir de 1940. Assim podemos notar que, embora não houvesse uma regulação formal do Estado quanto a algumas normas contábeis, as próprias empresas já se regulavam para tentar atrair acionistas demonstrando a rentabilidade do seu negócio. Também o Demonstrativo de Ganhos e Perdas não é invenção do Brasil, mas uma aplicação do Profit & Loss Statement (hoje chamado de Income Statement) que já era usado na Inglaterra, Estados Unidos e outros países. Uma curiosidade que aparece nos modelos de balanços são as “observações”, que deveriam explicar alguns pontos do negócio das sociedades anônimas (sendo assim elas poderiam ser consideradas os embriões das notas explicativas), porém a utilização de tais observações pelas companhias era praticamente nula. Abaixo temos o Modelo de Balanço para Fábricas, presente no Decreto, no qual pode-se notar as Observações:

Quadro 1: Modelo de Balanço para Fábricas Ativo

Passivo

Caixa

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Capital

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Prédio da Fábrica

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Fundo de Reserva

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Produtos do Estabelecimento

$

Credores Gerais

$

Matéria Prima

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Letras a Pagar

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Devedores Gerais

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Dividendos a Pagar

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Letras a Receber

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Lucros e Perdas

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Acionistas

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Total do Passivo

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Total do Ativo

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Observações Produtos da Fábrica neste mês

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Ditos vendidos

$

Custeio da Fábrica

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Fonte: BRASIL. Decreto nº 2679, de 3 de novembro de 1860

Vê-se que o balanço já é extremamente evoluído, separando-se os acionistas e os dividendos a pagar, bem como explicitando informações adicionais que ajudariam o investidor 5

no seu processo decisório, como o valor do custeio da fábrica, o valor dos produtos produzidos no mês e os ditos vendidos.

4.3 A influência de Mauá nas legislações de 1860 Embora não possamos categoricamente afirmar a influência do Visconde de Mauá no processo de elaboração e aprovação das legislações de 1860, podemos enxergar influências da contabilidade anglo-americana nessas legislações. Uma primeira influência que pode ser reconhecida é a extrema prudência no cálculo dos dividendos, evitando assim a possível criação de uma bolha especulativa. Uma segunda influência se dá pelo fim do “secretismo” dos livros contábeis, que um fiscal do governo poderia examinar os livros se fosse do interesse público. Uma outra possível influência é a tentativa de incluir outras informações além do balanço para ajudar no processo decisório do investidor. Todas essas possíveis influências são no sentido de proteger o acionista, tendência essa crescente nos Estados Unidos e Inglaterra dos séculos XVII e XIX. Na Inglaterra houve uma grande bolha especulativa feita pela Companhia do Mar do Sul (South Sea Company) entre 1711 e 1720, levando a criação de uma legislação para evitar bolhas a Bubble Act of 1720. A partir deste ponto, a Inglaterra tentou proteger mais o acionista, e evitar as bolhas especulativas. Nos EUA uma bolha imobiliária estourou em 1837, também influenciada pela emissão descontrolada de papel-moeda pelos bancos estaduais nos anos anteriores. Em 1858 os bancos brasileiros foram autorizados a emitir papel moeda (IUDÍCIBUS e FILHO, 2002). Após isso os EUA aumentaram sua regulação sobre os bancos emissores de papel-moeda. Podemos concluir, portanto, que os EUA e Inglaterra já adotavam medidas para proteger o acionista, assim como também o mercado. A legislação brasileira também refletiu esta mesma preocupação no seu texto.

5 O BALANÇO DA COMPANHIA DO GÁS DE 1859 Em 1860 o Visconde de Mauá publicou o Balanço da sua Companhia do Gás do ano de 1859, balanço esse que pode ser descrito como “a pedra fundamental da contabilidade privada no Brasil” (SZUSTER; SZUSTER; LEITE, 2015, p.16). Este balanço foi publicado no jornal Correio da Tarde de 16 de fevereiro de 1860 (curiosamente o mesmo ano da Lei 1083 e do Decreto 2679), no qual o próprio Visconde de Mauá (na época ele ainda era Barão) escreve uma carta aberta aos acionistas, dizendo (preservando o Português da época):

Srs acionistas, é com grande prazer e satisfação que venho hoje cumprir o dever de patentear-vos o estado de nossa associação, submettendo ao vosso exame e critério o balanço geral fechado em 31 de Dezembro próximo passado. Por elle vereis que é próspero o estado da companhia, e que um futuro brilhante nos aguarda; porquanto continua com regularidade a demanda da bela e econômica luz, que nossa empreza tem por missão fornecer aos habitantes da capital do Império. (SOUZA, 1860, p.1)

Além de tais “melodiosas” palavras, Mauá tenta provar que a “Companhia do Gás” era uma empresa próspera por mostrar, na carta, que o número de lampiões públicos da empresa que operavam no Rio saltou de 1487 em 1855 para 4649 em 1860, e apenas 950 casas tinham gás em 1855 enquanto em 1860 o fornecimento de gás operado pela companhia chegava a 4828 6

residências. Depois disso Mauá lança mão de um índice de análise de demonstrações contábeis (em 1860!), o valor do Patrimônio Líquido dividido pelo número de ações, que no 1º semestre de 1855 era de 12$500, enquanto no 2º semestre de 1859 chegava a 21$000 (um aumento de 67% em 5 anos). Após a apresentação do Balanço, é apresentado a Demonstração da Conta de Lucros e Perdas, demostrando que a Companhia do Gás auferiu Lucro Líquido de 227:229$290 no 1º semestre e 236:181$750 no 2º semestre, quantias extremamente significantes para a época. Podemos identificar, portanto, já em 1860 temos a figura de uma carta do presidente do conselho de administração, uso de “proto-notas” explicativas para explicar o funcionamento e operação da companhia, além de uso de índice de análise de Balanço e apresentação da Demonstração da Conta de Lucros e Perdas (uma antecessora da Demonstração do Resultado do Exercício). Esta é um conjunto de extrema qualidade contábil para o Século XIX!

5 CONCLUSÃO Este estudo visou analisar as evoluções contábeis ocorridas durante a Era Mauá, principalmente entre os anos de 1850 e 1860. Vemos que neste período de 10 anos houve muitas mudanças na contabilidade brasileira. Durante este período foi instituído o Código Comercial Brasileiro (1850), houve uma mudança no currículo das Aulas de Comércio (1856) e foram aprovadas a Primeira Lei das Sociedades Anônimas (1860) e o Decreto dos Balanços das Sociedades Anônimas (1860). Além disso verificou-se que nas legislações houve sempre uma preocupação em proteger o acionista e em usar a contabilidade para fins gerenciais. Ademais, estes mecanismos de proteção já eram adotas anteriormente nos EUA e Inglaterra, para prevenir bolhas do sistema financeiro e emissão descontrolada de dinheiro por parte dos bancos emissores de papel moeda. No campo das Aulas de Comércio o Inglês ganhou preponderância sobre o Francês. Para finalizar, este artigo procurou influências do Visconde de Mauá sobre estas legislações e verificou-se que ele exerceu uma influência, embora de difícil mensuração, sobre a aprovação do Código Comercial e da Lei 1083. Isso pode verificado pelo uso de contabilidade de alta qualidade nas Demonstrações da Companhia do Gás de 1859, publicada em 1860 pelo Correio da Tarde.

7 AGRADECIMENTOS Esta pesquisa surgiu na disciplina de Estudo Orientado do Curso de Ciências Contábeis da Faculdade de Administração e Finanças da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FAF/UERJ), na qual o aluno Rodrigo de Oliveira Leite foi orientado pelo Profº Dr. Natan Szuster e pela Profª MSc.Fortunée Szuster. Os autores gostariam de agradecer à Biblioteca Nacional que facultou o acesso dos autores às edições do Correio da Tarde e do Correio Mercantil, publicados entre 1850 e 1860, bem como à Universidade do Estado do Rio de Janeiro que financiou esta pesquisa através do Programa de Iniciação Acadêmica (PROINICIAR). Os autores ainda agradecem ainda o Profº Dr. Ricardo Lopes Cardoso, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Fundação Getúlio Vargas, e Patrick Del Bosco de Sales, mestrando em Administração pela Fundação Getúlio Vargas (RJ), pela ajuda na formulação da pesquisa, incentivo e horas cedidas para discussão.

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8 BIBLIOGRAFIA

BRASIL. Lei nº 1083, de 22 de agosto de 1860. Contendo providencias sobre os Bancos de emissão, meio circulante e diversas Companhias e Sociedades. Livro das Cartas de Leis e Decretos do Poder Legislativo, fl. 58. BRASIL. Decreto nº 2679, de 3 de novembro de 1860. Impõe aos Bancos e outras Companhias e sociedades anônimas a obrigação de remeter em certas épocas às competentes Secretarias de Estado seus balanços e outros documentos. Coleção de Leis do Império do Brasil – 1860 Vol. I Pt. II, p. 702. CALDEIRA, J. Mauá - Empresário do Império. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. CORREIO MERCANTIL. Rio de Janeiro, 23/24 de fevereiro de 1851. CORREIO MERCANTIL. Rio de Janeiro, 26 de março de 1851. IUDÍCIBUS, S.; RICARDINO FILHO, A. A. A Primeira Lei das Sociedades Anônimas no Brasil: Lei no 1.083 - 22 de Agosto de 1860. Revista Contabilidade & Finanças, n. 29, p. 7 - 25, maio/ago. 2002. SANGSTER, A. et al. Pacioli's forgotten book: the merchant's Ricordanze. The Accounting Historians Journal, v.39, nº2, p. 27-44, dez. 2012. SOARES, S. V. et al. Evolução do currículo de Contabilidade no Brasil desde 1809. Revista Catarinense da Ciência Contábil, v. 10, n. 30, p. 27-42, ago./nov. 2011. SOUZA, I. E. de. Demonstrações Contábeis de 1859 da Companhia do Gás. Correio da Tarde, 16 de fevereiro de 1860, p.1. SZUSTER, N.; SZUSTER F.; LEITE, R. de O. The 1859 Maua's Gas Company financial report: a cornerstone of Brazilian private accounting. The Accounting Historians Notebook, v. 38, nº1, p. 13-14, abr. 2015.

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