\"O conteúdo da lei, a justiça\" - Decisão e norma em Carl Schmitt e Hannah Arendt

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* Comunicação apresentada no XIV Congresso Nacional de Filosofia Contemporânea da PUCPR, realizada entre os dias 16 e 18 de Novembro de 2016.
Anna Jurkevics acredita que Arendt o tenha lido em 1952, em razão de comentários sobre o livro em seus diários de pensamento (JURKEVICS, 2015, p. 17, n. 2). Todos os meus comentários sobre a marginalia estão baseados na análise empreendida por Jurkevics e em uma discussão com Jerome Kohn, a quem devo a indicação desse artigo.
A questão se torna ainda mais importante e problemática se lembrarmos as acusações que frequentemente se dirigem contra o 'vazio' da teoria política arendtiana, a qual, tentando estabelecer a distinção entre o público e o privado, não permitiria que temas concernentes às necessidades da vida (questões como moradia, transporte, trabalho, gênero, etc.) fossem consideradas politicamente. Segundo Richard Wolin, "para Arendt, não são tanto os fins da política – a felicidade, o bem-estar público, a justiça, etc. – (...) que ocupam lugar de honra" (WOLIN, 1995, p. 262). Também nisto, Arendt faria companhia a Schmitt: "A sistemática incompreensão das exigências igualitárias da modernidade política prejudica o panorama de toda uma geração de intelectuais" (WOLIN, 1995, p. 273). A respeito do problema da justiça no pensamento arendtiano, veja-se PITKIN (1991); D'ENTREVÉS (1994); BENHABIB (1996).
A tentativa de pintar o pensamento arendtiano como um clamor pela extinção de toda norma, em nome de um ilimitado poder criativo do homem, faz com que Jay atribua a ela, de modo pouco cuidadoso, "uma mentalidade existencialista a qual proclama que tudo é possível e permitido" (JAY, op.cit., p. 156, minha ênfase). Coloca-se assim na pena de Arendt o moto totalitário que ela constantemente repreende.
Utilizo a tradução espanhola de "The Political Existentialism of Hannah Arendt", publicado primeiramente na Partisan Review, em 1978, e reproduzido em Permanent Exiles. Essays on the Intellectual Migration from Germany to America. New York: Columbia UP, 1986.
Como afirma Andreas Kalyvas, a leitura da relação entre Arendt e Schmitt pode ser compreendida em duas grandes posições antagônicas: de um lado, aqueles que os aproximam, apontando com isso um déficit normativo na teoria arendtiana (é o caso de Jay e Wolin); de outro, aqueles que a defendem sublinhando suas considerações sobre o juízo reflexivo e suas críticas ao voluntarismo e a noção de soberania (aqui encontram-se, principalmente, Habermas e Benhabib). Ambas as posições estão em acordo a respeito do decisionismo: ele seria "uma ameaça e um vício que deve ser expelido de qualquer teoria política com um conteúdo normativo" (KALYVAS, 2004, p. 321).
Sigo aqui a interpretação de Anne Phillips, segundo a qual, para Arendt, "não é como se fôssemos humanos, pudéssemos 'provar' isto apontando para nossos espíritos, nossa racionalidade ou nossa capacidade para a 'ação' e, por causa disso, fossemos considerados iguais. Pelo contrário, nós nos tornamos iguais por meio de nossas ações e decisões" (PHILLIPS, 2015, pp. 62-63).
O exemplo de Butler são as manifestações de imigrantes de origem latina que cantavam o hino nacional norte-americano em espanhol, reivindicando seu pertencimento à comunidade através de um ato ao qual eles não tinham direito.


"O CONTEÚDO DA LEI, A JUSTIÇA"
DECISÃO E NORMA EM HANNAH ARENDT E CARL SCHMITT*

Rodrigo Ponce Santos
Doutorando no PPGFIL – UFPR

Resumo: Embora existam apenas referências esparsas em sua obra, sabemos hoje, com a abertura de seu acervo pessoal, que Hannah Arendt foi uma dedicada leitora de Carl Schmitt. Ele, por sua vez, a cita em artigo publicado nos anos cinquenta. Contudo, nunca se estabeleceu entre eles um verdadeiro debate. Nosso esforço será o de construi-lo. Mais precisamente, trata-se de avaliar tanto as leituras que buscam aproximá-los sob o signo do "decisionismo existencial", como fazem Martin Jay e Richard Wolin, quanto aquelas que buscam 'salvar' a teoria arendtiana recusando a ideia de uma decisão soberana e também inflacionando seu conteúdo normativo, como faz Anna Jurkevics na esteira das interpretações oferecidas por Jünger Habermas e Seyla Benhabib. A leitura da teoria política arendtiana que buscarei apresentar então é a seguinte: nem decisão sem norma, nem norma sem decisão. Trata-se, portanto, de pensar em que medida a teoria arendtiana postula uma decisão como princípio da vida política. Tomo aqui como referência a interpretação de Judith Butler sobre o moto arendtiano do direito a ter direitos. Para ela, esta enigmática expressão não se refere a um princípio universal e abstrato, mas a um princípio revelado apenas na situação concreta, isto é, no exercício do direito. Trata-se então de nos perguntar qual seria o estatuto de uma norma que advém da decisão, ou ainda, qual é o sentido da anotação feita por Arendt nas margens de um livro de Schmitt, afirmação segundo a qual o conteúdo da lei é a justiça.

Palavras-chave: lei; justiça; decisão; norma; princípio.


Nas páginas de Origens do Totalitarismo, Hannah Arendt faz três breves referências a Carl Schmitt. As duas primeiras o situam no contexto de uma discussão sobre a relação entre os partidos e os movimentos totalitários, enquanto a última o toma como exemplo da apropriação dos intelectuais alemães pelo regime nazista (ARENDT, 1985, p. 251, 266, 339). Já em 1946, em artigo publicado na revista Commentary, Arendt o havia mencionado ao tratar da 'cientificidade' do nazismo (ARENDT, 2008, p. 230). Salvo engano, estas são as únicas alusões ao pensamento de Carl Schmitt em toda a obra publicada. Ele, por sua vez, a cita também muito rapidamente em artigo publicado nos anos cinquenta e adicionado aos apêndices de O Nomos da Terra.
No entanto, existe uma importante semelhança em seus projetos teóricos que nunca é explicitada. Ambos pensam o liberalismo como força anti-política e, partindo desta crítica às modernas democracias liberais, assumem a tarefa de repensar a política em sua especificidade, garantindo sua autonomia não apenas em relação às demais atividades humanas, mas também a princípios e valores advindos de outras esferas. Portanto, tanto para Schmitt quando para Arendt, o político assume uma realidade e uma função, por assim dizer, excepcional. Este é o ponto de partida das interpretações que buscam aproximá-los – e criticá-los – sob o signo do decisionismo, como as bem conhecidas leituras de Martin Jay e Richard Wolin. No entanto, como espero deixar claro a seguir, há inúmeras diferenças entre os dois projetos de afirmação do político.
Em O Conceito do Político, Schmitt defende que o Estado, a entidade política de um povo, manifesta-se no conflito com o outro, o estranho. O Estado simplesmente "existe ou não existe" (SCHMITT, 1976, p. 44) e sua existência é determinada na decisão sobre quem é o inimigo. Esta é a distinção fundamental do político; sua experiência fundamental é a guerra. Arendt recusa essa ideia. Não se trata de negar a possibilidade da guerra, mas de não a tomar como núcleo da vida política – o que diz respeito a seus conhecidos esforços para distinguir poder e violência. A constituição de uma entidade política não aparece em primeiro lugar pelo conflito com outra entidade, um povo existencialmente distinto, mas mediante um pacto, um acordo entre uma comunidade que afirma sua própria existência. Podemos dizer que, para Arendt, o modelo segundo o qual a comunidade vem à luz não é uma declaração de guerra, mas uma declaração de independência – o que se torna claro especialmente em sua análises sobre a fundação de novas comunidades políticas (ARENDT, 2011).
Não se trata apenas de negar a distinção amigo-inimigo como critério do político e a guerra como possibilidade que funda o Estado. Para Arendt, o próprio conceito de Estado-nação parece incapaz de responder aos dilemas de um mundo que está, de fato, tornando-se um só. Quando escreve sobre o moderno imperialismo europeu, um dos elementos ou origens do totalitarismo, ela afirma que uma das características que o distinguem do antigo império é que o imperialismo seria incapaz de impor uma "lei comum" sobre outros povos, uma vez que o Estado-nação "carecia de tal princípio unificador" (ARENDT, 1985, p. 125). Então, qual poderia ser, na teoria arendtiana, um novo princípio? Como poderia se dar, em nosso tempo, a coesão de um povo, a formação de uma comunidade? Qual deve ser a força unificadora da política?
Em Origens, encontra-se interditado o apelo por uma "substância nacional". Mas outra resposta aparece em artigo publicado em 1946.

Cada comunidade é (...) o resultado de uma decisão, de um consentimento para viver, trabalhar e funcionar juntos. Quantos indivíduos singulares ela pode abraçar e se eles pertencem a um único povo ou a povos diferentes, isto dependerá de sua estrutura constitucional e, em menor grau, de sua capacidade econômica (ARENDT, 1946, pp. 601-602, minha ênfase).

Aqui a comunidade não está baseada no caráter nacional, que não pode se estender a outros povos, mas na decisão sobre quem são os cidadãos e no consentimento em viverem juntos. Mas também em Origens encontra-se resposta similar: a ideia de participação. Arendt apresenta ali, de modo breve e pouco articulado, uma definição de lei segundo a qual esta não seria imposta obrigatoriamente mas "estabelecida pelo homem de acordo com padrões humanos de certo e errado"; uma lei que não "flui diretamente do poder absoluto" do Estado, mas emana da "participação na condução dos assuntos públicos que envolvem todos os cidadãos" (ARENDT, 1985, p. 141).
A conexão entre decisão e participação coloca mais um problema para as leituras que tentam aproximar Arendt do "decisionismo existencial" de Schmitt. É verdade que a tentativa de restaurar a dignidade da política, encontrando aquilo que lhe é específico e a distingue das demais atividades humanas, pode ser compreendida em comparação com o projeto schmittiano de afirmação do político. No entanto, como vimos, eles divergem profundamente no que diz respeito ao papel que o conflito ou a guerra exercem na constituição do político, bem como naquilo que cada um entende como decisão. Diferença que encontra seu cerne no conceito de soberania.
Em Teologia Política, Schmitt descreve a soberania como instância que decide sobre o estado de exceção e este é compreendido em analogia com o conceito teológico de milagre. A comparação busca indicar o caráter arbitrário da lei, o fato de que a decisão soberana – assim como a vontade divina – é livre de qualquer determinação. Nas palavras de Schmitt: "A decisão se liberta de todas as amarras normativas e torna-se o verdadeiro sentido absoluto", "independente de seu conteúdo" (SCHMITT, 1985, pp. 12, 34). A suspensão das normas indica a transcendência do estado excepcional sobre a vida ordinária. Se toda norma exige uma vida normal, cotidiana, a exceção é aquilo que está fora e acima da norma, aquilo que dá sentido a ela.Parece que caminhamos para uma aproximação entre os autores. Basta lembrarmos que Arendt também utiliza o milagre como metáfora de uma ação política extraordinária cuja realização conferiria sentido para a existência humana. Este é novamente o caminho trilhado por Jay e Wolin.
O que fica negligenciado nesta justaposição é o fato de que Arendt pensa o milagre como dependente da comunidade, não o contrário. O milagre não é imposição de uma vontade soberana, mas algo que só pode aparecer em público e sobre o qual o indivíduo não tem controle. O caráter comunitário do milagre mostra que a apropriação deste conceito teológico não a torna companheira inseparável de Schmitt. Arendt não faz coro ao lamento de que a "vontade pessoal do governante", isto é, "o elemento personalista e decisionista da soberania" tenha se perdido; e está longe de reduzir a função do Estado a uma decisão que não precisa justificar a si própria (SCHMITT, 1985, pp. 24, 48, 66). Resumindo: o poder supremo é pensado por Schmitt em analogia com o poder divino e sua ação milagrosa. Para Arendt, trata-se antes de garantir a participação das pessoas na atividade política que decide sobre o milagre, isto é, que dá sentido à vida.
Seguindo os escritos de Schmitt, encontram-se outras divergências. A partir dos anos trinta, seu decisionismo se desdobra em uma teoria do direito internacional fundada sobre a ideia de solo. A culminação deste projeto é O Nomos da Terra, de 1950. Arendt o leu atenciosamente logo após a publicação de Origens, fazendo diversas anotações em suas margens. A análise dessa marginalia, tornada pública recentemente, coloca outros problemas sobre o temas da decisão e da norma.
O Nomos da Terra pretende "mostrar que a lei, quando vinculada à concretude da terra e do território, evita o universalismo abstrato do liberalismo" (JURKEVICS, 2015, p. 4). Em sentido concreto, não metafórico, o solo é fundamento da lei. Não se trata do solo simplesmente dado, como se a lei tivesse sido fornecida pela natureza, mas da ação humana sobre ele. Schmitt entende nomos, a palavra grega para lei, como o ordenamento da terra em três etapas: a apropriação, a distribuição e a utilização. Estes seriam os "atos primários da história humana" (SCHMITT, 2006, p. 351).
A compreensão da lei como produto da ação humana parece, mais uma vez, aproximar nossos autores. Contudo, para Arendt, a resposta de Schmitt ignora os processos interpessoais no estabelecimento da lei. Nas margens do livro, ela contesta a "inabilidade" do autor para compreender a constituição como contrato e reclama repetidas vezes que ele teria excluído as pessoas de sua narrativa. Para Arendt, a lei também brota da ação; mas de uma ação entre os homens. Jurkevics sustenta então que o conceito arendtiano de lei agrega a noção romana de lex, a qual diz respeito a capacidade de fazer acordos e promessas. (JURKEVICS, op.cit., p. 3).
Mas a descrição da lei como acordo ou decisão coletiva deixa aberta a questão sobre seu conteúdo. Nas margens de Nomos, Arendt rebate a tentativa de superar o universalismo abstrato afirmando que Schmitt também cairia em "generalizações técnico-legais", em um "completo relativismo", uma vez que sua interpretação da lei como apropriação faz com que "a questão sobre o certo e o errado seja completamente descartada" e "qualquer conteúdo torne-se aceitável". O resultado desse esvaziamento da lei é a injustiça. Cito então uma pequena anotação de Arendt em que se encontra o centro do nosso problema: "a divisão da terra (...) fundada apenas no Nomos. Aqui fica flagrantemente clara a tentativa de remover o conteúdo da lei, a justiça". (ARENDT apud JURKEVICS, op.cit., p. 6, minha ênfase). Mas o que significa dizer que a justiça é o conteúdo da lei? Como esta afirmação se insere na discussão sobre o papel da decisão e da norma e sobre sua relação?
Schmitt pensa a ordenação da Terra em três etapas, sendo a primeira delas a apropriação, depois a distribuição e o uso. Arendt, por sua vez, inverte os dois primeiros momentos, afirmando em suas anotações que "a divisão vem antes da conquista e dela surge o direito" (ARENDT apud JURKEVICS, op.cit., p. 8, minha ênfase). Mas esta não é uma afirmação de todo óbvia. Afinal, como pode alguém distribuir o que não tem? Não há muitas pistas para o sentido desta inversão. Jurkevics a toma como motivo não apenas para negar a ideia de decisão soberana, como também para inflacionar o conteúdo normativo da teoria arendtiana. Este caminho é diametralmente oposto ao de Martin Jay, para quem a intenção de Arendt é garantir a autonomia da política, a qual "não [estaria] submetida a nenhuma classe de restrições normativas ou instrumentais, uma posição que frequentemente se conhece como 'decisionismo'" (JAY, 2000, p. 153). Jurkevics recusa o "suposto decisionismo" de Arendt ressaltando o fato de que, para ela, a lei não brotaria da conquista ou de um ato voluntário e soberano, mas de processos interpessoais de acordos e promessas mútuas. Mais do que isso, ela busca 'salvar' a teoria arendtiana afirmando haver nela um "núcleo normativo" (ibid., pp. 6, 15). Neste sentido, abre-se caminho para a compreensão do conteúdo da lei, a justiça, como algo que já se conhece e resta ser aplicado. A justiça é o cumprimento de um dever; e o contrato através do qual firma-se a lei é o meio para cumpri-lo. Eu gostaria, no entanto, de sugerir que pensássemos de outro modo a relação entre a lei e a justiça.
Em suas anotações, Arendt afirma que o direito, isto é, a lei surge da divisão e que seu conteúdo é a justiça. Voltamos então a perguntar: o que é justiça? Podemos tomá-la a) como a correta distribuição dos bens, em que cada um recebe o que é seu por direito; b) como o cumprimento de pactos e acordos; ou c) como a tentativa de estabelecer a igualdade. O primeiro sentido parece interditado pela afirmação de que a divisão vem antes da conquista, isto é, ela é a divisão de algo que não se possui e, portanto, não é um direito – a divisão estabelece o direito. Como escreve Jurkevics, aparentemente sem notar a radicalidade dessa sentença, "o momento contratual da lei é primeiro em relação ao momento da propriedade" (JURKEVICS, op.cit, p. 15). O cumprimento dos contratos, por sua vez, é justo apenas na medida em que corresponde à justiça, mas ele não é a própria justiça. Parece-me então que a construção da igualdade é o sentido mais próximo daquilo que pensava Arendt naquele momento. Pode-se objetar que esta seria ainda uma concepção da justiça como cumprimento da norma; uma norma segundo a qual todas as pessoas são iguais. Assim, a justiça seria ainda o meio para se alcançar um fim. Penso, em vez disso, que a relação entre justiça e igualdade não deve ser tomada como uma relação entre meios e fins.
Em Origens do Totalitarismo, Arendt afirma que a igualdade "não é dada, mas é o resultado da organização humana na medida em que ela é guiada pelo princípio da justiça." (ARENDT, 1985, p. 301). Ora, se a justiça é o princípio que guia a construção de uma igualdade que não está dada, pode a justiça ser algo que se encontra à mão, algo que já se conhece? O que significa dizer que a justiça está no princípio? Isto não significa, penso eu, que a justiça é uma norma cujo cumprimento nos levará a igualdade. Tampouco significa que exista na natureza humana uma igualdade fundamental que deva ser traduzida pela lei. Não se trata de apontar para algo e dizer: somos iguais por causa disto. A igualdade não está dada, nem pode ser demonstrada.
Para entendermos a afirmação de que a justiça é o conteúdo da lei devemos pensar, de modo radical, o que significa a divisão de nenhuma propriedade, ou seja, o compartilhamento em si mesmo. Aqui o contraste com Schmitt é mais uma vez elucidativo. Para ele, o acesso ao direito está mediado pelo Estado, assim como a Verdade é mediada pela Igreja. Se a Igreja existe em razão da onipotência divina, o Estado existe pela vontade do soberano. Também para Arendt o direito é possível apenas por uma mediação, mas esta não ocorre em primeiro plano pela instituição política ou religiosa, nem pelo poder soberano que representam, mas pela participação dos homens em uma comunidade. O acesso ao direito – e também à verdade – é mediado pelo ser-comum. É o poder assim compreendido – como divisão, partilha, ação em concerto – o que estabelece o direito.
Parece-me então que a justiça em Arendt seja tão somente a igualdade na elaboração da lei, o direito à participação e ao pertencimento em uma comunidade ou, em uma expressão bem conhecida de seus leitores, o direito a ter direitos. Como argumenta Judith Butler, esta enigmática expressão não se refere a um princípio moral universal e abstrato. Trata-se de um princípio que revela-se apenas na situação concreta. Se é assim, podemos dizer que a igualdade não está no fim, mas no princípio. A justiça é o princípio que estabelece a igualdade imediatamente. Tal princípio não existe antes da sua aplicação. A justiça – assim como a liberdade e a igualdade – revela-se em ato, na divisão que cria o direito. Por isso, não por um suposto elitismo, Arendt diz que a política só pode ocorrer entre aqueles que já se consideram iguais, isto é, que agem com justiça.
Se tal exercício deve se dar para além das formas juridicamente reconhecidas, isto significa que o exercício da justiça encontra-se, por assim dizer, fora da lei – não no sentido de uma exceção à qual a lei não se aplica, mas como criação de um direito que ainda não existe: a justiça "começa por exercer aquilo que reivindica" (BUTLER e SPIVAK, 2007, p. 68).


Referências
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