O contexto [9033] da Praça da Figueira (Lisboa) e a circulação de produtos oleiros em Olisipo

July 24, 2017 | Autor: R. Banha da Silva | Categoria: Amphorae (Archaeology), Roman ceramics, Ceramica Romana, Roman Archaeology
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O CONTEXTO [9033] DA PRAÇA DA FIGUEIRA E A CIRCULAÇÃO DE PRODUTOS CERÂMICOS EM OLISIPO Rodrigo Banha da Silva Cristina Nozes Pedro Miranda

Estudos e relatórios de Arqueologia Tagana, 2

LISBOA [2006] 2015

O CONTEXTO [9033] DA PRAÇA DA FIGUEIRA E A CIRCULAÇÃO DE PRODUTOS CERÂMICOS EM OLISIPO Rodrigo Banha da Silva (CAL-CML; CHAM-FCSH/UNL e UAç) [email protected]

Cristina Nozes (CAL-CML) [email protected]

Pedro Miranda (CML) [email protected]

NOTA DOS AUTORES: O texto, aqui apresentado sem alterações, foi entregue em 2007 para publicação no volume de Actas do Seminário Simpósio “A Costa Portuguesa e a Rota Atlântica em Época Romana”, realizado em Peniche em Novembro de 2006. Infelizmente, e por razões que se ignoram, o volume digital previsto nunca foi publicado. Passada quase uma década, os autores adoptaram esta solução digital de divulgação dos dados.

RESUMO No decurso da intervenção arqueológica urbana da Praça da Figueira (Lisboa) foi identificado um contexto contendo um conjunto diversificado de classes cerâmicas, incluindo cerâmicas finas (terra sigillata, lucernas e “paredes finas”), comuns e contentores (ânforas e dolia). O estudo das cerâmicas finas, em particular da terra sigillata, permitiu avançar com uma proposta consistente de datação do conjunto, situável entre as décadas de ´60 e ´70 do século I d.C. O material anfórico, pese embora fragmentário, documenta a importação de fabricos béticos a par do consumo de produtos lusitanos. Entre estes destacam-se os exemplares provenientes do centro oleiro de Peniche, que atestam o consumo dos seus produtos em Olisipo, reforçando a ideia, já antes sugerida pelos estudos sobre o material análogo de Santarém, de que o Tejo terá funcionado como seu eixo difusor no âmbito dos intercâmbios regionais.

ABSTRACT In the archaeological intervention of Praça da Figueira, a context revealed various pottery classes including fine wares (terra sigillata, oil lamps and thin walled/colour coated ware), coarse pottery, amphorae and dolia. The study of the fine wares, particularly terra sigillata, dated the moment of the deposition of the artefacts in the ´60´s-early 70´s of the first century A.D. The amphorae documented the imports of Baetican products, along with Lusitanian ones. Amongst these, some vessels produced in Peniche potteries reveals the consumption of its products in Olisipo, observation already acknowledged in Santarém, reinforcing the idea that the Tagus river was one of the axis on its distribution in the regional commercial circuits.

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1. Introdução. O contexto [9033] foi objecto de escavação durante a campanha de 2000 da intervenção arqueológica urbana da Praça da Figueira (Lisboa), dirigida por um dos signatários (RBS), coadjuvado por Marina Carvalhinhos. Embora tenha sido parcialmente cerceado pela instalação dos muros periféricos de construção do parqueamento automóvel subterrâneo, e sujeito aos imperativos de prazos a que o enquadramento dos trabalhos sempre obrigou, as amostragens colhidas foram isoladas das restantes no momento da recolha por logo lhes terem sido reconhecidas alta valia informativa, tópica, mas também pelo contributo que aportam para o conhecimento da economia de Olisipo em pleno século I d.C. Integrando “classes” cerâmicas variadas, atinge igualmente alguma expressão quantitativa. Neste sentido, e porque foi possível uma aferição cronológica, constitui um indicador dos circuitos comerciais que a cidade romana integrava, razão porque foi eleito para a apresentação no âmbito deste Seminário. 2. Enquadramento do contexto. A área da Praça da Figueira fora objecto de intervenção arqueológica em 1961, por Irisalva Moita (Moita 1967), e em 1962 por Bandeira Ferreira (Ferreira 1962; Branco 1961), momentos em que se procedeu à identificação de uma parcela de um espaço funerário em funcionamento em Época Imperial romana (Idem). A área da intervenção que se desenrolou entre 1999 e 2001 incidiu sobre uma extensão localizada a sul daquela escavada arqueologicamente em 1962 (Ferreira 1962), sendo quase contígua a esta. Tal como naqueles trabalhos, infelizmente ainda inéditos (Ribeiro 1994), foi identificado um troço de uma importante via conectada com o perímetro propriamente urbano da cidade romana, dotada de uma largura de tabuleiro próxima dos 6,00 m. Pelo seu trajecto, este deverá corresponder a um troço da via XVI do “Itinerário Antonino”, mas que preferimos, no momento, designar por “Via Norte de Olisipo”, atravessamento longitudinal da zona suburbana ocidental da cidade ubicada no Vale da Baixa (fig. 1). Sensivelmente a meio da área escavada em 1999-2001 foi detectado um troço de outra via que entroncava com aquela, cujo carácter secundário parece denunciado pela menor largura do seu tabuleiro (fig. 2). Este eixo viário desenvolvia-se para ocidente da “Via Norte de Olisipo”, e, ou originalmente, ou em momento mais avançado da sua existência, conduziu ao circus que hoje sabemos ter existido no subsolo do Rossio de Lisboa (Vale e Fernandes, 1997; Vale e Sousa, 2003; vide também fig. 1). Apresentando sucessivas remodelações, este troço viário secundário encontrava-se limitado lateralmente por dois muretes (fig. 3), tendo aquele localizado a norte sido desactivado para a construção de um outro a cota mais elevada, e o terreno envolvente nesta área sujeito a uma terraplanagem que obliterou também o topo da fossa [9033] (fig. 4). O interesse do Página 2

desta reverte, portanto, para o conhecimento da vida deste eixo viário, e, de forma indirecta, para a do circus. SANTANA

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25 4A

P34435

1B

P34435

Circus

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1A

P34435

NORTE 37 36

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CASTELO DE S.JORGE

1

75

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P

BAIXA 25 5 30 24

Thermae 4 Cassiorum

Theatrum 2

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ALFAMA

3

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Templum

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Forum 7

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S.ª Mª Madalena

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S.António

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P

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us ?

Decumanus Maxim

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S.Martinho

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Criptopórtico

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1 actus

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50 m

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Figura 1- Leitura hipotética do urbanismo alto-imperial de Olisipo (seg. Silva, 2005: fig.2). B

C

D

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I

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K

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N

P

1

Edificado

NORTE

2

Pavimentos viários Estruturas negativas (Sepulturas)

3

4

5

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Figura 2- Planta de síntese e simplificada da fase III da ocupação romana da Praça da Figueira (seg. Silva, 2005)

7

Contexto [9033]

8

9

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0 11

Página 3

5m

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Figura 3- Aspecto da escavação de [9015], no interior da fossa [9033].

D8

D7

D6 5.00 m

Muro de limite lateral da via

4.00 m

Via secundária 3.00 m

[9014] [9015] [9038] [9033]

2.00 m

Figura 4- Leitura do perfil estratigráfico oeste em D 6/8 com a fossa [9033] e as respectivas U.E.s de enchimento assinaladas a cinzento. 3. Definição funcional e cronológica do contexto [9033]. A fossa [9033] foi escavada em unidades estratigráficas de cronologia mais antiga ([8542, …]), que foram interpretadas como correspondentes à preparação para a instalação da primeira fase do urbanismo romano da área (Fase II- Silva, 2005). Este terá contemplado ambas as vias acima citadas, não se conhecendo quaisquer elementos que suportem uma utilização funerária da área nesta altura, e uma cronologia associada situável entre um momento inicial situado no principado de Tibério e perduraria até Cláudio, pelo menos (Idem). Seria apenas nos momentos iniciais da Fase III definida para a Praça da Figueira que se terão instalado espaços e monumentos funerários em torno da “Via Norte de Olisipo”, tendo esta sofrido uma importante reforma que comportou uma ligeira alteração no traçado do troço situado mais a Sul (Idem). Esta leitura parece corroborada pela revisão das cronologias dos mobiliários funerários recuperados por Irisalva Moita nos edifícios depois escavados por Bandeira Ferreira em 1962 (Moita, 1967; Ferreira, 1962; Silva, 2005), e que apontam para o principado de Nero, com maior probabilidade em torno da década de 60 do séc. I d.C. (Silva, 2005).

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O conjunto objectual e ecofactual que integrava as U.E.s de enchimento da fossa [9033] parece relacionar-se com esta utilização do espaço próximo, preferencialmente funerária. Embora não se tenha recolhido nenhum elemento que permita sustentar categoricamente uma utilização daquele tipo, a composição do conjunto poderá conectar-se com outras práticas funerárias que se terão realizado nas imediações, sobretudo se se atender à escassez de elementos de macrofauna recolhidos (ovicaprídeos e bovinos) e anfóricos, à quase ausência de olaria de construção, à maior representatividade atingida pelas cerâmicas ditas finas e ao estado de conservação e funcionalidades prevalentes das cerâmicas comuns. Em sentido inverso, outras indicações como a observação da inexistência de qualquer tipo de cuidado especial na forma como os artefactos foram depostos e a fragmentariedade elevada de alguns dos elementos, constituem óbices a uma hipótese que, apesar de apelativa, carece de outras evidências que permitam discernir, de forma definitiva, a funcionalidade do contexto. Já de um ponto de vista cronológico, a dinâmica estratigráfica fixa um terminus posde quem de Cláudio, como vimos supra. Os elementos objectuais recolhidos permitem uma caracterização mais fina, em particular as “marcas de oleiro” em terra sigillata (vide infra, Quadro 1), mas também a datação atribuída a algumas das “cerâmicas finas” e à morfo-tipologia dos bordos de algumas das ânforas.

OCK 1212.25

Polak B69

~ Polak L15

Polak P11

Polak M12

Quadro 1- “Marcas de oleiro” em terra sigillata recolhidas no contexto [9033]. Desta forma, e tomando “em bruto” os indicadores cronológicos mais avançados da maioria dos “elementos datantes”, um momento mais tardio dentro do principado de Nero ou já nos inícios do de Vespasiano parece corresponder ao episódio de formação do contexto (vide Quadro 2, infra). Classe

Tipologia

Terra Sigillata OCK 1212.25

Quadro 2- Lapsos cronológicos de “elementos datantes” seleccionados de [9033].

Origem < 10 1 Pisa

Terra Sigillata

Polak B69

La Grauf.

Terra Sigillata

Polak L15

La Grauf.

Terra Sigillata

Polak M12

La Grauf.

Terra Sigillata

Polak P11

La Grauf.

Paredes finas

Mayet XXIV

Campânia

Paredes finas

Mayet XXXIV

Bética

Paredes finas Mayet XXXVII

Bética

Paredes finas Mayet XXXVII b

Bética

Ânfora

Martin-Kilcher 6

Bética

Ânfora

Martin-Kilcher 10

Bética

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20

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Ainda no mesmo sentido, a natureza da presença de determinados artefactos, como o vaso de “paredes finas” em fabrico de “casca de ovo”, as características do cálice tardo-itálico em terra sigillata e a morfologia dos bordos de ânforas Dressel 20 parecem corroborar esta leitura, podendo apontar-se como mais provável uma data situada dentro da década de ´60 do século I d.C. 4. Composição do conjunto cerâmico. O tratamento quantitativo do conjunto seguiu os procedimentos recomendados pelo “protocolo de Beuvray” (Arcelin, Tuffreau Libre, 1998), tendo-se contabilizado os elementos por número mínimo de indivíduos (NMI). Face a esta metodologia, procedeu-se à adaptação de se terem também contabilizado aqueles elementos dentro de cada “classe” cerâmica representados apenas por fragmentos de parede mas que, pelas características da pasta, puderam ser também individualizados. 4.1. Terra sigillata (Figura 5). O conjunto de terra sigillata é formado por dezassete vasos distintos, correspondentes a uma produção itálica, quinze vasos sud-gálicos e um da produção tardo-itálica. O vaso itálico deverá corresponder a um skiphos da forma Conspectus 38.3 (Ettlinger et al., 1990), oriundo de Arezzo, estando representado por dois fragmentos. Trata-se de um elemento mais antigo em relação ao restante do conjunto, podendo ser interpretada a sua presença como residual, resultado da sua remobilização de U.E.s de formação mais antiga, recordando-se aqui que a fossa [9033] foi aberta em U.E.s compatíveis com a sua cronologia, ou por ter sido objecto de manuseamento mais cuidado por se tratar de um recipiente mais “especializado” e de maior raridade na época. Os quinze vasos sud-gálicos são, pelas “marcas de oleiro“ que ostentam e pelas características macroscópicas, produtos oriundos exclusivamente de La Graufesenque. Os oleiros representados não se repetem, estando atestados cinco distintos: Billicatus, Maccarus, Licinus, Passienus e (…)QE(…) (respectivamente pelas impressões do tipo Polak B69, L15, M12, P11- conf. Polak, 2000; vide Quadros 1 e 2, supra), aludindo assim à variedade de aprovisionamento patente em Lisboa (Silva 2005). De um ponto de vista das tipologias patenteadas (vide Quadro 3), estão presentes em equilibrada proporção pratos do tipo Drag.15/17 e Drag.18, e um maior número de tigelas do tipo Drag.24/25 face a um único exemplar do tipo Drag.27. Considerando a relação do binómio destas formas estandartizadas predominantes, pode-se considerar ser a proporção de formas compatível com a datação atribuída para a formação do contexto em causa e dotada de bastante coerência. O mesmo comentário é extensível à presença da tigela do tipo Ritt.8 e da taça decorada Drag.30. Numa perspectiva funcional, este conjunto gálico demonstra uma sugestiva harmonia, Página 6

dada a presença de 9 pratos, 5 tigelas, 1 taça de servir, aspecto que poderá considerar-se sugestivo face a uma possível leitura funcional funerária do contexto. 5 4 4 3

3

3 2 2 1

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Drag. 27

1 0 Consp. 38.3 Skyphos Cálice

Prato

Drag. 15/17

Drag. 18

Drag. 24/25

Ritt. 8

Drag. 30

Prato

Prato

Tigela Tigela Tigela

Taça

QUADRO 3- Histograma da distribuição morfo-funcional do conjunto de terra sigillata do contexto [9033].

O cálice tardo-itálico recolhido constitui um contributo original e relevante para o conhecimento desta produção. Trata-se de um pé completo com vestígios da parede (ou copa), da qual não é possível descortinar a gramática decorativa. A “marca de oleiro” identifica a sua origem nas oficinas de Sextus Murrius Festus, localizadas em Pisa, tratando-se de morfologia de vaso não repertoriada até ao momento nesta olaria (OCK 1212; Pucci, 1985), e que permite recuar o início da laboração para um momento mais recuado em função dos dados contextuais e da tipologia do vaso, conectando-a assim com as restantes produções iniciais dos fabricos denominados tardo-itálicos (conf., por exemplo, Pucci, 1985 ou Sepúlveda, 2004).

Esc. 1/3 Figura 5 - “Conjunto de terra sigillata do contexto [9033] Página 7

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5

4.2.“Cerâmica de paredes finas” (figura 6). Foram recolhidos quatro vasos de “paredes finas” no contexto, sendo patente nesta pequena amostragem uma variedade de formas e de produções, com o predomínio das originárias da Bética (3 exemplares) face às da Península Itálica (1 exemplar). Os exemplares béticos correspondem a uma taça com decoração em “granitado arenoso” do tipo formal Mayet XXXVII, uma outra ostentando decoração fitomórifica em barbotina do tipo Mayet XXXVIIb e uma em produção “casca de ovo” do tipo Mayet XXXIV, cuja produção se terá iniciado sob Nero. O exemplar itálico corresponde a três fragmentos de um copo campano de cronologia mais recuada, da primeira metade do século I d.C., sendo de considerar aqui a hipótese, novamente, de se tratar de um vaso objecto de manuseamento mais cuidado até ao momento do seu descarte.

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5

Cm

Esc. 1/3 Figura 6 - “Cerâmica de Paredes Finas” do contexto [9033]

4.3. Lucernas (figura 7). O número de lucernas recolhido corresponde a sete exemplares em distintos estados de conservação. A fragmentariedade da maioria dos elementos, e a circunstância de apenas um dos individuos conservar a porção do bico, impede uma atribuição formal. A mesma observação é válida para os discos, que se apresentam lisos ou ausentes, não permitindo assim estabelecer paralelos com base iconográfica. No conjunto estão representados três exemplares atribuíveis à Península Itálica pelas características da pasta e do engobe, e, com o mesmo fundamento, quatro exemplares béticos. Nestes últimos merece destacar-se a pláusivel atribuição a Andújar de um conjunto de três lucernas de orla decorada com métopas e, no único fragmento de bico presente, um exemplar do denominado tipo “Rio Tinto-Aljustrel”.

Página 8

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Esc. 2/3 Figura 7 - “Conjunto de lucernas do contexto [9033]

4.4. Ânforas (figura 8). Os contentores anfóricos estão representados por oito exemplares distintos, exclusivamente de origem bética e lusitana. As produções oriundas do Vale do Guadalquivir mostram a importação de produtos oleícolas, dada a equivalência a dois exemplares da classe 25/ Dressel 20 (Peacock-Williams, 1986). Com a mesma origem provincial foi contabilizado um outro contentor, da forma Dressel 7/, que pelas características macroscópicas da pasta é atribuível à Baía de Cádis. Página 9

Os envases lusitanos estão representados por cinco exemplares distintos, mas também por quatro testos. Também o conjunto lusitano apresenta origens distintas. Com base nas características macroscópicas da pasta, os testos e duas das ânforas são atribuíveis às produções dos Vales do Tejo ou Sado, de qualquer das formas envases de produtos piscícolas enquadráveis seguramente na forma “lusitana antiga” . O remanescente deste conjunto encerra um interesse especial por se tratar de três contentores originários das olarias do Morraçal da Ajuda-Peniche (Cardoso et al., 2005 e 2006), mostrando duas distintas variantes de bordo e, num caso, um grafito na parte superior do bojo (de difícil leitura, eventualmente, ONSSILA ?). As morfologias dos exemplares que conservam o bordo podem representar formas possivelmente diferentes, que vêm sendo classificadas como Dressel 7/11-Béltran I, Haltern 70, Dressel 14 (Idem), parecendo pertinente a aplicação nalguns casos da designação de “variantes” do primeiro tipo (Bugalhão, 2005). A questão, actual, encerra algumas problemáticas e implica um âmbito de reflexão mais profunda que não cabe na presente apresentação (Arruda et al., 2006: p. 232). A presença dos três exemplares oriundos do Morraçal da Ajuda constitui, portanto, um contributo relevante para o maior conhecimento da difusão dos produtos desta olaria e, também, uma aportação relevante para a fixação das cronologias das variantes morfológicas detectadas nos contextos do centro oleiro.

Lusitânia (Tejo/Sado)

Bética (Gualdalquivir)

Esc. 1/4

Lusitânia (Peniche)

Figura 8 - Conjunto anfórico do contexto [9033]. Página 10

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5

4.5 Cerâmica comum (figuras 9 e 10). Como acontece para a maioria das restantes “classes” cerâmicas patenteadas pelo contexto [9033], a cerâmica comum evidencia distintas origens. Constitui o conjunto mais numeroso e funcionalmente diversificado, o que seria de esperar dados os contornos difusos que definem a “classe”. Com a consciência de se cometer aqui um “vício” “clássico e tradicional” dos estudos de arqueologia clássica, o tratamento aqui devotado foi bastante preliminar por não ter sido possível recorrer aos meios que a “classe” exige, nomeadamente o recurso a análises arqueométricas. Ainda assim, optou-se por individualizar algumas produções mais específicas e ensaiar proceder a atribuições de origem com base na observação macroscópica simples e por comparação com evidências já bem estabelecidas, e de igual modo mostrar a diversidade de categorias morfofuncionais patentes. Os resultados deverão ser, portanto, lidos com as limitações que encerram e que aqui se expuseram. Foram contabilizados sessenta e quatro indivíduos distintos, correspondentes a três agrupamentos de centros produtores, constituidos apenas por conveniência de discurso: itálicos, béticos e lusitanos. De entre os últimos citados, em cinquenta e quatro casos as pastas parecem denunciar fabricos atribuíveis dos vales do Tejo e Sado, o que seria expectável em função da pujança conhecida para as diversas olarias activas no período dado nestas duas áreas (vide Quadro 4). No mesmo sentido, os indicadores fornecidos pela cerâmica comum com origem na Bética parecem de diminuta capacidade de penetração face à competitividade dos fabricos lusitanos acima citados. Estes valores, porém, deverão ser lidos tendo em consideração as funcionalidades dos próprios vasos, nomeadamente, uma potencial especificidade dos elementos mais meridionais (manifesta num dos exemplares béticos presentes, assignável à “cerâmica de tipo Peñaflor”). Apesar da escassa representatividade, julga-se de valorizar a presença de três indivíduos oriundos, um de Morraçal da Ajuda, e outros dois na produção nomeada de “Cerâmica Calcítica”, atribuída à região de Conimbriga (Alarcão, 1974; embora sujeita a outras atribuições em momentos posteriores- Alarcão, 1991-, pelo que se julga que a questão permanece ainda em aberto), muito presente na área de Collipo (elementos inéditos nas colecções do Museu da Comunidade da Batalha), mas também mais a juzante no Vale do Tejo, caso da Necrópole de Rio de Moinhos, em Abrantes (AAVV, 1987: p. 81). 1

4

21 Câmpania Tejo/ Sado

QUADRO 4- Gráfico polar mostrando as origens das Cerâmicas Comuns do contexto [9033]. Página 11

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Morraçal da Ajuda Bética Conimbriga / Collipo

Os fabricos itálicos estão presentes através de um fragmento de prato da produção denominada “cerâmica de verniz vermelho pompeiano”, da forma Luni 5. Trata-se de uma produção recorrentemente detectada no Vale do Tejo (vide o tratamento dado para o conjunto de Santarém- Arruda e Viegas, 2002), aqui patenteada por uma das suas variantes mais ocorrentes e de lata cronologia. Com o mesmo âmbito funcional, embora originário da Bética por se tratar de uma elaboração no denominado fabrico do “tipo Peñaflor”, um outro prato Martinez III ilustra a adopção hispana deste tipo de loiça, como se sabe adaptada a preparados culinários especializados, e por isso apontado como indicador de “romanização”. Isolámos também uma produção em “cerâmica cinzenta fina” regional, patente no contexto através de uma taça de carena baixa e pé anelar. As características deste fabrico, distante já do cuidado polimento e depuração de pasta característicos do I milénio a.C., demonstra bem a evolução sofrida, onde se nota também a adopção de atributos marcados pela romanidade, mas também a permanência de gosto que corresponde à continuação da sua elaboração em época imperial Em fabrico lusitano, e ambos atribuídos ao Tejo/Sado, dois pratos dotados de largo ônfalo interno e pé anelar merecem destaque: trata-se de dois exemplares do que interpretámos como correspondendo possivelmente a “pratos de peixe”, sugestionados pelos exemplares de cronologia mais antiga que pontuam constantemente os contextos da Idade do Ferro em Lisboa. A confirmar-se a funcionalidade alvitrada, constituem um novo exemplo de permanência dos traços culturais olisiponenses em plena imperial romana. A maior percentagem dos elementos corresponde a cerâmicas destinadas exclusivamente a uso culinário (potes, panelas, tachos, bilhas/jarro, testos, de diversas dimensões/capacidades e ostentando variantes morfológicas de bordo), excepção feita a uma taça cujo uso pode também ter sido o de servir/apresentar alimentos. Para além da circunstância de a louça de mesa nos surgir representada no contexto [9033] quase em exclusivo por cerâmicas ditas finas, o que reforça a hipótese colocada quanto à sua origem funcional, uma outra observação parece aqui pertinente, de três das formas elaboradas em fabricos béticos encontrarem a sua correspondência com fabricos lusitanos. Em fabrico assignável ao Tejo/Sado, dois pesos de tear e fragmentos de dois dolia, estes muito incompletos, ilustram as respectivas funcionalidades, sendo difícil discernir os motivos para a sua ocorrência no presente contexto.

(Cádiz)

0

5

(Guadalquivir) Figura 9 - Cerâmicas béticas do contexto [9033].

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“Tipo Peñaflor” (Bética)

CERÂMICA CINZENTA (Local / Regional)

COMUM LOCAL / REGIONAL

1.

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5

Esc. 1/3 Figura 10 - Cerâmicas locais/regionais seleccionadas do contexto [9033]. 5. Considerações finais. O contexto [9033] constitui um indicador sobre as relações comerciais de Olisipo na década de ´60/´70 do século I d.C. O comércio intra-provincial com a zona atlântica lusitana domina o panorama cerâmico, e as importações aparecem vocacionadas para uma determinada especificidade no aprovisionamento da cidade, vindas da Bética e, num plano inferior, da Península Itálica e do sul da Gália. A despeito desta observação genérica, importa averiguar o diferente significado das diversas importações.

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A presença de produtos alimentares envasados em ânforas da Hispânia meridional, onde o azeite assume primazia a despeito da escassez quantitativa da amostragem, pode acolher duas explicações distintas e não mutuamente exclusivas. Por um lado, tendo presente a utilização do produto e a eventual capacidade produtiva própria da região, o consumo oleícola bético em âmbito olisiponense poderá derivar das características dos destinatários locais, isto é, destinarse a um mercado socialmente diferenciado; por outro, convém relembrar a importância dos circuitos comerciais institucionais com o norte-atlântico do Império (Carreras Monfort 1998), e questionar do papel de Olisipo no âmbito desses mesmos circuitos (vide, por exemplo, comunicação de Carlos Fabião e João Pimenta neste Simpósio), que bem poderia explicar não só a presença relevante, mas também o mais fácil acesso na cidade ao azeite bético. Essa conexão explicaria, igualmente, a ocorrência dos restantes produtos com a mesma origem, como os mesmos contornos poderão compreender também as cerâmicas finas oriundas da Gália e os produtos itálicos.

Conimbriga Collipo

Morraçal da Ajuda Olisipo

Rio Tinto Hispalis

QUADRO 5- Mapa ilustrativo das conexões comerciais de Olisipo documentadas pelas cerâmicas presentes no contexto [9033] da Praça da Figueira (Lisboa). Página 14

Campânia Pisa La Grauf. Norte P.It.

Gadir

No que ao comércio intra-regional respeita, a capacidade produtiva dos vales do Tejo e/ou Sado fica bem patente no âmbito das cerâmicas ditas comuns. Mas a parca ocorrência de produtos oriundos da costa atlântica mais a norte terá também que ser valorizada, pois ilustrará o importante papel portuário detido por Olisipo na circulação para sul dos produtos da actual Estremadura e Beira litoral portuguesa, entrevendo-se, aliás, como o seu pólo redistribuidor marítimo e fluvial para trajectos que depois atingiriam Scallabis e as restantes zonas mais a montante. É essa a leitura que sugere a presença dos exemplares anfóricos saídos da olaria do Morraçal da Ajuda-Peniche em sítios eburobrittiensis como as Berlengas (Bugalhão e Lourenço, 2005) e Reguengo de Parada (Caldas da Rainha- recolha eventual inédita de Luís Carlos Gil, estudante da FCSH-UNL), e agora Lisboa, como havia ocorrido em Santarém (Arruda et. al., 2006). O conhecimento da dispersão desta produção, que se ampliará no futuro com a evolução dos estudos, vem por seu turno revalorizar o papel importante desempenhado pelo porto de Olisipo no âmbito intra-provincial lusitano, em particular, atlântico. Parece evidente, porém, que terão de se juntar “à colação” outros indicadores que permitam leituras mais consistentes dos indicadores proporcionados pelo contexto [9033], julgando-se mais pertinente aferir os resultados a partir do tratamento de contextos bem caracterizados, funcional e cronologicamente, que permitam formular leituras diacrónicas e mais ricas dos fenómenos aqui abordados, no momento indisponíveis. Bibliografia.

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