• “O contexto social e económico de Loulé no século XV como determinante para o aparecimento do Livro de como se Fazem as Cores (Parma, MS 1959)” in Al-Ulya, n.º 16, 2016, pp. 83-92.
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O Contexto Social e Económico de Loulé no Século XV como Determinante para o Aparecimento do Livro de Como Se Fazem As Cores (Parma, MS 1959) João Miguel Simões
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O Contexto Social e Económico de Loulé no Século XV como Determinante para o Aparecimento do Livro de Como se Fazem as Cores (Parma, MS 1959) João Miguel Simões
O Contexto Social e Económico de Loulé no Século XV como Determinante para o Aparecimento do Livro de Como Se Fazem as Cores (Parma, MS 1959) João Miguel Simoes - ARTIS-IHA/FLUL
A Península Ibérica, entre os séculos VIII e XV, ficou
(Bodleian Library, MS Kenn 1) ter sido produzido em
marcada
judeus
1476, em La Coruña, na Galiza, região sem antecedentes
e muçulmanos, alternando-se períodos de alguma
conhecidos de produção judaica, por encomenda de um
tolerância com outros de grande hostilidade (Kogman-
filho de D. Salomão de Braga, com iluminação de um José
Appel: 2004, 10-33). Cada comunidade recebia influências
Ibn Hayyim. Na sua concepção foi copiada uma bíblia de
das outras etnias com quem partilhava o espaço ou com
1299-1300, a Bíblia de Cervera, que estava nessa época
quem se sentia culturalmente mais próxima. Assim, os
na mesma cidade (Kogman-Appel, 2004: 212) e outros
manuscritos iluminados hebraicos, principal objecto
elementos iconográficos adquiridos na Europa central
artístico produzido pelos judeus sefarditas, tinham na arte
(Idem: 213-214).
islâmica o seu elemento inspirador fundamental (Idem:
Estes aspectos, levam-nos a considerar que La Coruña,
34-36), recebendo, mais tarde, influência da iluminura
cidade periférica no Reino de Castela e Leão, mas com
francesa devido à entrada em Navarra de vagas de judeus
ligações marítimas ao norte da Europa, tornou-se num
expulsos do centro da Europa (Idem: 98, 116-120, 124)
local de refúgio para as comunidades judaicas que se
Na segunda metade do século XV, verificou-se um
viam perseguidas nos centros urbanos mais importantes.
novo episódio de produção de manuscritos hebraicos,
Estas comunidades tomavam partido das rotas comerciais
após um período de adormecimento, provocado pelas
pré-existentes, pouco controladas pelo poder central,
grandes perseguições decorrentes da Peste Negra (1348-
estabelecendo contactos com o Norte da Europa e
9). A produção deste período possui uma decoração
prevendo a sua utilização em caso de necessidade.
mais modesta, centrada na micrografia e na decoração
Aplicando este princípio ao caso português, podemos
vegetalista gótica e centrou-se em Portugal (Idem: 203-
encontrar uma justificação para o aparecimento, em
204) e no sul de Castela: Toledo, Córdova e Sevilha (Idem:
Loulé, de um outro livro hebraico, em meados do século
204). Sevilha era, desde o período islâmico, o principal
XV. Esta vila era, aparentemente periférica, no contexto
centro urbano de uma região que incluía o Algarve,
nacional mas, tal como La Coruña, tinha desde a Idade
mantendo esse estatuto ao longo de toda a Idade Média e
Média ligações marítimas internacionais relevantes.
pela
coexistência
entre
cristãos,
Moderna. Os mais antigos exemplares foram produzidos em Sevilha nas décadas de 1460 e 1470, antes da
O contexto económico e social de Loulé no
chegada dos dominicanos em 1480, sendo claro que o
século XV
início dos trabalhos desta ordem impediu, pelo menos temporariamente, a produção artística judaica (Idem:
Em 1462, Abraão Ibn Hayyim copiou em Loulé a
204-205). Os exemplares castelhanos assumem uma
colectânea de textos iniciada pelo Livro de como se fazem
influência islâmica, enquanto que os portugueses, situados
as cores (Parma Ms. 1959) (fig. 1), um texto em aljamia,
nas décadas de 1470 e 1480, demonstram uma influência
ou seja, em português, mas em caracteres hebraicos. O
italiana (Idem: 206, 209, 211). É bastante interessante
conteúdo é referente à técnica de iluminação dos livros,
o facto de um dos principais manuscritos desta época
um caso único em múltiplos aspectos e que tem merecido,
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O Contexto Social e Económico de Loulé no Século XV como Determinante A Universidade do Algarve e a Investigação do Paleolítico e Mesolítico no Algarve para o Aparecimento do Livro de Como Se Fazem As Cores (Parma, MS 1959) Bicho JoãoNuno Miguel Simões
com todas as matérias essenciais à elaboração de um livro hebraico, desde os conteúdos escritos às receitas dos pigmentos para a iluminação. O manuscrito possui poucos elementos decorativos, os mais interessantes constituídos por molduras ornamentais a tinta púrpura, tendo sido estabelecida ligação com outros manuscritos portugueses (Idem: 116-127). Não é possível associá-lo à “Escola Andaluza” (1468-1482), pois não renega totalmente à cor, possui a representação de um rosto humano, não ostenta padrões decorativos em micrografia e não recupera elementos de arte islâmica e mudéjar copiados a partir dos livros hebriacos de Toledo do século XIII (Afonso, et al: 2015: 53). Também não é possível incluí-lo na “Escola de Lisboa” (1472-1497) pois não ostenta a decoração em filigrana, nem as ricas molduras
fito-zoomórficas
realizadas
em
linguagem
tardo-gótica que a caracterizam (Afonso: 2014, 273274). Porém, o Ms. Parma 1959 foi produzido num local geografica e culturalmente muito próximo de Sevilha, epicentro da “Escola Andaluza” e antecipa, de forma muito incipiente, algumas soluções decorativas que estarão presentes, mais tarde, na “Escola de Lisboa”, como a utilização da cor púrpura, a decoração em filigrana, e a escolha da moldura externa ao texto como o local para a introdução da decoração. A sua concepção ainda não foi convenientemente inserida Fig. 1 – Página decorada na colectânea de Abraão Ibn Hayyim com a utilização de cor e um rosto humano (Parma, Ms. 1959, fl. 142)
no contexto histórico e social local, nem foi justificado porque foi redigido em Loulé e não noutra qualquer vila do Algarve, ou em Lisboa. Também não foi ainda proposta uma explicação para o facto de, anos mais tarde, os
por isso, o interesse de diversos investigadores (Cruz et
manuscritos e incunábulos hebraicos algarvios surgirem
al: 2008; Matos, 2011; Melo et al, 2011, Afonso, 2010,
em Faro e não em Loulé. Igualmente, os autores que
Afonso et al, 2013; Afonso et al, 2014). A utilização da
têm abordado a História medieval de Loulé (Botão, 2009;
aljamia poderá demonstrar uma vontade de circunscrever
Simões, 2012) não consideram este manuscrito como
à
uma fonte para a histórica social daquela vila.
comunidade
judaica
os
conhecimentos
técnicos
adquiridos ou simplesmente que o texto original já estaria
A ligação a Loulé tem sido considerada casual, quase
escrito em português, preservando-se nesse idioma
acidental, afirmando-se que não existem vestígios
devido à abundância de termos técnicos, utilizando-se
materiais dessa comunidade judaica aí residente,
o alfabeto hebraico para maior facilidade do copista que
pequena e dependente da de Lagos (Matos, 2011: 19).
seria bilingue, como os demais judeus portugueses desta
Valorizou-se mais a eventual relação com Braga, devido
época (Afonso, 2010: 4).
à encadernação e ao facto do apelido do copista ser
A escolha dos vários textos presentes na colectânea do
idêntico ao do iluminador da Kennicot Bible (Bodleian
Parma Ms. 1959 aborda precisamente a cópia do livro
Library, MS Kenn 1), efectuada em La Coruña mas para
hebraico (Matos, 2011: 84), pelo que o códice poderá ter
um filho de um D. Salomão de Braga (Matos, 2011:
servido como um manual prático, facilmente transportável,
19-20).
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O Contexto Breve Apontamento Social e Económico para a História de Loulé dono Direito século das XVAutarquias como Determinante Locais: OACerro Universidade do Castelo dode Algarve Navegação Corte João e a Investigação Marques, e Portos no umdo Algarve Povoado Paleolítico Romano Aberto, e Mesolítico da Idade no do Algarve Cobre ? para o Contributo o Aparecimento das Actas doda Livro Vereação de Como de Se Loulé Fazem na Última As Cores Década (Parma, do Século MS 1959) XV Victor S. Gonçalves Vasco Nuno GilVera Bicho Mantas João Eduardo Miguel Simões Cruz
Loulé terá sido fundada no século X, quando a capital
de Isaac Dono, judeu de Odemira, solicitar a residência
do Algarve, Ossónoba (actual Faro) foi assolada pela
em Loulé (Idem: 198). Ainda nesse ano, temos o
pirataria normanda, obrigando à deslocação da capital
caso de Levy Gagim, alfaiate. O seu pai, Samuel, foi
política para Silves (Simões, 2012: 13-18). Loulé tornou-
descrito como um dos mais ricos e honrados judeus de
se capital económica do Algarve, pela sua centralidade
Loulé, que, no passado emprestara avultados capitais
(Idem: 19-23), usando Faro como porto de mar, em
à edilidade e aos homens bons do concelho. Em sinal
relação desfavorável para com esta cidade (IAN/TT,
de apreço pelo pai, foi emitida ao filho uma carta de
Livro 2 de Odiana: 281-281v). Loulé foi assim o centro
quitação, isentando-o das perseguições que o rendeiro
urbano escolhido pelos franciscanos para sediarem a
da almotaçaria lhe movia (Idem: 195). E por fim, nesse
sua actividade de evangelização no Algarve, (Simões,
mesmo ano, o rabi da sinagoga, Isaque Cocem, nomeou
2012: 22; Simões, 2008: 16-22), pressupondo a
outro judeu como tutor das órfãs do seu antecessor,
existência de uma burguesia cristã capaz de sustentar
fazendo juramento sob a Torah, o qual foi aceite pelo
esta comunidade religiosa, a qual recebeu a única carta
tabelião do concelho (Botão, 2009: 166-167).
de feira dionisina para a região (IAN/TT, Livro 2 de D.
Porém,
Dinis; 17-17v). Em meados do século XIV, dois sismos
mercantilista
muito próximos terão destruído a capacidade produtiva
Flandres, perdeu poder financeiro e social, abrindo
da vila, baseada no vinho, passando esta a dedicar-se à
as portas à ascensão da aristocracia. O processo
produção e exportação de frutos secos (Simões, 2012:
iniciou-se com a adulteração dos lotes de frutos secos
29-30). Foram estabelecidas ligações directas com a
enviados para a Flandres, o que motivou queixas das
Flandres, e a vila tornou-se ainda mais rica, com uma
autoridades locais ao Rei D. João I (Simões, 2012: 42-
elite burguesa forte e activa, que financiou a causa do
43). Perdeu-se quota de mercado, o produto ficava por
Mestre de Avis e refreou a aristocracia local (Idem: 31-
escoar e a burguesia louletana perdeu poder económico
40).
e, consequentemente, político. Em Agosto de 1408, D.
Verificou-se um ambiente de tolerância entre cristãos,
João I negligenciou o facto de Loulé ter sido sempre uma
mouros e judeus. A igreja matriz, documentada
vila dependente do rei, isenta de impostos, e atribuiu
desde o século XIII, não invoca, como as demais da
alguns direitos ao Condestável D. Nuno Álvares Pereira.
região, Santa Maria ou Santiago (mata mouros), mas
Em 1431 a antiga isenção de dízima foi anulada. Nas
um santo inclusivo: São Clemente, um judeu que se
Cortes de 1455, os procuradores de Loulé queixaram-
converteu voluntariamente ao cristianismo e tornou-
-se da excessiva tributação imposta pelo Infante
se Papa (Réau, 1997, 315-317). O edifício parece
D. Fernando. Em 1459, D. Afonso V necessitou de
ter funcionado, em simultâneo, como igreja cristã e
restringir os poderes do Conde de Odemira, “adiantado
mesquita muçulmana, no século X (Simões, 2012: 17-
do Reino do Algarve” que oprimia a população. Na
18). No Reinado de D. Pedro I (1357-67) Loulé possuía
década de 1460, encontramos diversas cartas régias
uma comuna organizada, a par de Faro, Silves e Tavira,
e deliberações emitidas pela Câmara Municipal, agora
no Algarve (Tavares, 1979: 20)
controlada pela aristocracia local, que favoreciam este
Este ambiente social e económico singular é possível
grupo, em prejuízo do povo (Idem, 50-52). Entre
de se verificar, também, noutros aspectos quotidianos.
1442 e 1471 são identificados 25 judeus em Loulé, a
Em 1402, uma regulamentação sobre a actividade
maioria agricultores, ferreiros, alfaiates e tecelões mas
dos sapateiros foi decretada de forma igualitária para
há também ouvidores, procuradores, rendeiros, rabi e
cristãos, mouros e judeus (Serra, 1999/2000: 95).
cirurgiões (Tavares, e 1984: 261-263)
Em 1403, um ferrador judeu, Belhamin Chachado,
Em 1468, o município teve de deliberar sobre a tença
foi autorizado a residir e trabalhar em Loulé, por ser
anual de 2.000 reais brancos, concedida pelo Rei ao
considerado um excelente profissional. Meses depois,
físico da vila, mas paga pelo cofre municipal. Esta foi
o Município atribuiu-lhe mesmo uma avença anual de
atribuída a Mestre Samuel, obrigando-o, porém, a
4.000 libras (Idem: 117, 136-137). Em 1408, foi a vez
suplicar pela concessão da tença que lhe pertenceria
neste
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início que
do
século
estabelecera
XV,
a
burguesia
contactos
com
a
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por direito, evocando os muito anos de serviço e o facto de ter um filho, Salomão, a aprender a mesma profissão, garantindo a sua permanência na vila (Serra, 1999/2000: 206). Este filho, porém, estava pouco depois a trabalhar para o Conde de Faro (Tavares, 1984: 263) Verificamos nesta época, contemporânea à produção do manuscrito de Loulé, a existência de uma comunidade judaica importante e influente, alicerçada num passado mercantilista e tolerante. Porém, com a perda desta base financeira e social, a comunidade judaica começou a sofrer alguma opressão que, contudo, ainda não seria suficientemente grave para justificar a sua saída. O ponto de viragem parece ter ocorrido a 12 de Novembro de 1471, quando Loulé foi doada a D. Henrique de Menezes, Conde de Valença e Senhor de Caminha, capitão e governador de Alcácer Seguer e Arzila. Nos capítulos apresentados às cortes de 1483, redigidos em Janeiro do ano anterior (IAN/TT, Livro 2 de Odiana, fl. 14), os procuradores de Loulé evocam que a sua vila sempre pertencera ao Rei, que os seus direitos sempre haviam sido respeitados pelos monarcas antecedentes. Porém, com a doação à nobreza, os procuradores alegavam que “nos meteu em cativeiro para todas nossas vidas, e não somente a nós mas a nossos filhos e descendentes”, e que “já desesperamos e fôramos buscar terra realenga
Fig. 2 – Figura de cavaleiro, única personagem entre diversas figuras deliberadamente picada pela população. Inícios do século XVI, Igreja Matriz de Estômbar, Algarve. (Fotografia do autor)
em que vivêramos”. Os procuradores de Loulé pediram a D. João II que “sejais nosso messias e nos queirais tirar de sujeição que tanto sentimos e cativeiro tão grande
longo do século XV e XVI.
e nos restituais para vossa real coroa”. A utilização dos
Entre 1471 e 1496, foram identificados poucos judeus
termos “cativeiro” e “messias” mais do que revelar a
residentes em Loulé, todos com profissões associáveis a
participação da comunidade judaica na redacção desta
algum estatuto: armeiro, físico e rendeiro, não havendo
petição, demonstra a aculturação da tradição e cultura
nenhum com uma profissão mesteiral (Tavares: 1984,
judaica na generalidade da população, em particular nos
263), o que nos leva a crer que, nesta época, a população
representantes do concelho.
judaica diminuiu abruptamente, em particular nas
Porém, D. João II não recolocou Loulé na esfera régia,
classes trabalhadoras, mais sujeitas à opressão. Esta
levando a que a opressão da aristocracia continuasse
hipótese parece ser confirmada com outras informações.
sobre o povo, em particular sobre os mouros que
Em 1492, os judeus foram proibidos de apanhar uvas
exploravam as hortas agrícolas. Os baldios públicos
nos domingos e dias santos (Serra, 2004: 43). A
eram entregues à exploração privada dos fidalgos.
Coroa emitiu um decreto que isentava de diversos
Foram impostas taxas sobre os artesãos cobradas por
impostos e obrigações os judeus que se convertessem
três fidalgos. Um deles, o cavaleiro Nuno Barreto, era
ao cristianismo (Idem: 62-64). A judiaria de Loulé foi
odiado pelas suas opressões e abusos sobre a população,
acrescentada sob requerimento da comuna dos judeus,
levando ao medo e à manifestação de queixas junto do
escolhendo-se uma rua contígua, que estava mais
Rei. (Simões: 2012, 55-56). Esta opressão verificava-se
“despejada” de cristãos, onde a judiaria pudesse estar
noutros pontos do Algarve (fig. 2) e foi aumentando ao
mais “honestamente”, colocando-se um portal à entrada
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(Idem: 69). A prata da Igreja de São Clemente deixou
momento, que datamos de cerca 1460, a aristocracia
de servir de recurso financeiro à Câmara Municipal,
tomou posse das estruturas municipais, utilizando-as
para evitar que as alfaias sagradas caíssem na posse de
em seu benefício e oprimindo o povo. Nessa época,
judeus e mouros (Idem: 70-71).
os judeus mantiveram algum do seu estatuto, mas
Em 1493, o Reino foi afectado com um surto epidémico
foram remetidos para uma posição de inferioridade e
que se associou à entrada dos judeus de Castela. Os
de sujeição face aos cristãos. Por fim, num terceiro
oficiais da Comuna dos Judeus de Loulé foram intimados
momento, que datamos da década de 1470 e 1480,
a não receber qualquer judeu estrangeiro sem antes dar
verifica-se a ostracização dos judeus, despojados já da
conhecimento ao concelho (Idem: 86). Se no passado o
sua influência. Loulé aparenta ter perdido grande parte
lugar de físico do concelho era ocupado por um judeu,
da sua população judaica que optou por residir noutros
que garantia a continuidade do lugar através do seu filho,
concelhos, directamente dependentes do Rei e com
nesta época temos a informação que o lugar era ocupado
renovada vocação mercantilista.
por um cristão, Diogo Mendes, que foi substituído em
Os principais destinos parecem ter sido Lisboa e Faro.
Fevereiro de 1493 por um judeu castelhano, Mestre Rabi
Coincidindo com esta mudança social verificada em
Jacó (Idem: 91). Porém, em Julho desse ano, Mestre
Loulé, temos o surgimento nessas duas cidades de
Jacó foi preso, acusado pelo seu antecessor de estar a
importantes centros de produção de manuscritos
exercer sem licença. A câmara, porém, decidiu manter o
hebraicos.
vencimento anual do judeu e pagar o serviço de solicitar
Lisboa
em Lisboa o documento necessário para o médico poder
produtor de manuscritos hebraicos, entre 1472 e 1497,
exercer (Idem: 116-117).
a denominada “Escola de Lisboa”, onde o aniconismo
A 14 de Novembro de 1496, D. Manuel ordenou a
judaico foi mais refreado, havendo maior influência
expulsão dos judeus até ao fim de Agosto de 1497. A
da iluminura cristã (Sed-Rajna, 1970; Metzger, 1977;
carta só foi publicada em Loulé a 12 de Janeiro de 1497
Afonso, 2014: 273-281).
(Idem: 227). A 15 de Dezembro de 1496, D. Manuel
Em Faro, temos o epicentro da produção literária judaica
mandou também que não houvesse mais pregação de
no Algarve, através da redacção de dois manuscritos,
judeus nas suas sinagogas, tendo a câmara municipal
em 1481 e 1489, (BnF, Hebreu 420; Cambridge Add
procedido, em finais de Janeiro de 1497, ao fecho da
503) e da publicação de dois incunábulos, por Samuel
sinagoga de Loulé, na presença dos membros da comuna
Gacon, em 1487 e 1492 (Anselmo, 1981).
(Idem: 228-229). O inventário da sinagoga de Loulé
A nível demográfico verifica-se, igualmente, esta
não manifesta a existência de qualquer livro, apenas
transferência de Loulé para Faro nas décadas de 1470 e
de objectos sem valor e demasiado grandes para serem
1480. A familía Aliote, documentada em Loulé em 1450,
transportados (Botão, 2009: 167), deixando antever
encontra-se em Faro em 1487. Os Gaguim, presentes
que a comunidade judaica de Loulé não foi surpreendida
em Loulé em 1442, 1481 e 1487, encontram-se em
com este decreto já teria retirado os objectos de maior
Faro em 1489. (Tavares, 1984: 129-134, 261-263)
valor e, provavelmente, deslocado para outra localidade.
A deslocação de Loulé para Faro do centro de produção
torna-se,
a
nível
peninsular,
num
centro
judaica pode ser justificado pelo aumento da opressão A deslocação do epicentro de produção literária
cristã sobre os judeus de Loulé. É possível que esta
judaica
opressão tenha aumentado, também, nos vários centros urbanos periféricos do reino, concentrando
A documentação dá-nos uma evolução da posição
em Lisboa a quase totalidade da iniciativa literária
social da comunidade judaica em Loulé e da sua
judaica. Às comunidades nacionais, juntaram-se outras
relação com a comunidade cristã. Num primeiro
comunidades peninsulares, reunindo na capital do
momento, observamos alguma tolerância do poder
Reino, absorvida pela aventura dos Descobrimentos,
cristão para com os judeus, que tinham em Loulé
uma importante comunidade judaica. A dimensão,
bastante importância social. Depois, num segundo
riqueza e actividade da cidade levava a que os judeus
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fossem melhor tolerados e integrados, justificando
Com
assim o aparecimento dos manuscritos da “Escola de
sociais e políticos que justificaram o aparecimento
Lisboa”.
destes manuscritos, a comunidade judaica deslocou-
A dependência directa do Rei, o fraco peso fiscal,
se para outras localidades onde esses se verificavam,
a
existência
burguesia
dos
pressupostos
económicos,
mercantilista
justificando-se assim, a partir dessa data, a concentração em Lisboa e Faro, da iniciativa de produção literária
à aristocracia, a laboração de um porto de mar
judaica.
ligações
uma
alteração
que dominava o poder local e impunha limites com
de
a
internacionais
quotidianas,
e
um
acelerado crescimento económico, parecem ser os denominadores comuns à permanência e florescimento das comunidades sefarditas nas várias vilas e cidades. Pelo contrário, a tutela de um poder feudal, a presença de uma aristocracia opressora, a pouca actividade mercantilista, a excessiva tributação e a depressão económica geravam o descontentamento da população e, consequentemente, a perseguição dos judeus, como se veio a verificar em Loulé. A produção dos manuscritos hebraicos e a definição dos seus centros de produção estarão, assim, dependente da evolução destas condicionantes sociais e económicas. Conclusão Os
manuscritos
fundamentais que
os
hebraicos
para
produziram.
a
história Nesse
são
documentos
das
comunidades
sentido,
devem
ser
contextualizados na micro-história e inseridos no contexto social, político e económico local, mais até que num contexto nacional geral. A história local de Loulé revelou-se fundamental para compreender o aparecimento do Ms. Parma 1959. A sua concepção não deverá ter sido acidental e desligada do contexto local. Resulta, por outro lado, da presença, na primeira metade do século XV, de uma comunidade judaica que aproveitou os benefícios de uma vila livre do espartilho feudal, com grande iniciativa económica, e que mantinha contactos comerciais directos com a Flandres. A existência de conjunturas sociais semelhantes poderá justificar o surgimento de outros manuscritos noutras comunidades periféricas, como a Kennicot Bible redigida em La Coruña. Os contactos comerciais e sociais entre estas periferias e destas para o Norte da Europa poderão justificar os pontos de contacto entre ambos os manuscritos.
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REVISTA DO ARQUIVO MUNICIPAL DE LOULÉ n.º 16
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