O Contínuo ou a lógica do sensível

July 7, 2017 | Autor: Luisa Coutosoares | Categoria: Leibniz (Philosophy), Ancient Greek Philosophy / Aristotle
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O CONTÍNUO OU A LÓGICA DO SENSÍVEL

A UNIDADE PRECÁRIA DO CONTÍNUO As dificuldades de resolver as inúmeras aporias do Uno/Múltiplo procedem, em parte da indistinção dos diversos sentidos da unidade e da multiplicidade1. A unidade é transcendental, no sentido de transcategorial: tudo o que se diz do ser, diz-se do uno e a unidade como predicado não acrescenta nenhuma determinação mais àquilo de que se predica. No entanto, a sua oposição ao múltiplo é peculiar: ao entrar em relação com o múltiplo, a sua transcendentalidade, até certo ponto relativiza-se, porque há multiplicidade, há pluralidade de unidades. A multiplicidade apresenta-se, por um lado como um oposto à unidade, como a sua própria negação, mas ao mesmo tempo pressupõe-na, ou melhor, é constituída de unidades. O plural da unidade causa uma certa perplexidade: se a pluralidade indica um certo sentido da unidade não transcendental - o ser nem sempre é uno, há multiplicidade no ser -, este mesmo sentido não perde no entanto o carácter de transcategorial, porque o um como medida atribui-se a todas as categorias. A insuficiência congénita da razão para pensar o par uno-múltiplo, o individual como síntese ou mediação entre a unidade e a multiplicidade, tem levado muitas vezes, a sacrificar o individual, o múltiplo, a diferença, em nome do todo, do uno, da identidade. Vimos já alguns casos paradigmáticos desta atracção da própria razão para o todo, para uma totalidade englobante, na qual é difícil garantir o estatuto do indivíduo: 1.

Cfr. Aristóteles - Física, I; Cfr. Gil, F. - Mimesis e Negação, p. 203.

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"A concepção da totalidade, enquanto tal, dificilmente se concilia com o particular. Ou o devora ou, na fórmula de Platão, salva-o somente com a ajuda de hipóteses auxiliares, no limite ad hoc"2.

"Hipóteses auxiliares" podem ser, não só a multiplicação de instâncias mediadoras, na ordem cosmológica, como em Platão, Plotino, mas também, na ordem epistémica, o conceito, as relações, os géneros e as espécies. Não há uma via directa de acesso do entendimento ao individual; este é sempre pensado através de intermediários que necessariamente o desindividualizam. Prova cabal desta insuficiência é a variedade de "paradigmas" segundo os quais se estruturam as conceptualizações do par uno-múltiplo: o todo e a parte, o simples e o composto, o mesmo e o outro, a identidade e a diferença... para enumerar apenas alguns exemplos3. Nestes diferentes paradigmas, a noção de unidade escapa-se-nos muitas vezes, saltando, indomável, ora para o lado do contínuo, ora para o do discreto, do todo para as partes, do simples para o complexo. Esta instabilidade das noções do uno e do múltiplo está bem patente logo na primeira acepção do uno como contínuo: o uno diz-se tanto do contínuo como do indivisível, mas ao dizer-se do contínuo, o uno será múltiplo, visto que o contínuo é divisível até ao infinito4. É na unidade, enquanto medida, que se traduz esta ambivalência, pois a unidade, neste sentido, não é propriamente um número, mas sim a sua medida. "A unidade denota a medida de uma certa pluralidade e o número denota uma pluralidade medida e uma pluralidade de medidas"5.

Neste sentido, não haverá propriamente oposição entre unidade e pluralidade, sendo a pluralidade (πληθος) constituída por unidades. A própria palavra unidade tem, neste sentido, plural. Frege, nos Grundlagen der Arithmetik, defronta-se com esta dificuldade da noção de unidade como número e medida: como reconciliar neste sentido da unidade, a identidade, que permite reunir para enumerar uma série de objectos, com a 2. 3. 4. 5.

Gil, F. – Mimesis e Negação, Lisboa, INCM, 1984, p. 208. Ibidem, pp. 194-225. Cfr. Física, I, 2, 185b5-10. Cfr. Metafísica, N, 1, 1088a6.

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discernibilidade, condição necessária para poder contar? Parece que este sentido de unidade nos leva a atribuir-lhe duas propriedades contraditórias, a identidade e a discernibilidade. A solução de Frege está na distinção entre "um" - que, enquanto número, é o nome de um objecto - e "unidade" conceito que subsume o "um" e que, como tal, admite plural. O par simples/ composto, que tem servido de modelo para a moderna epistemologia da física e da matemática, parece isento deste contágio mútuo entre unidade e pluralidade, estabelecendo-se sobre a base de uma unidade formal - o átomo, a mónada6. No entanto, deparamo-nos com outra dificuldade: ao declarar o real constituído por uma infinidade de unidades que são como formas mínimas - mónadas totalmente determinadas, fechadas em si mesmas sem qualquer abertura ou princípio de indeterminação - ressurge o problema da sua articulação, da conexão entre elas. Já os atomistas gregos se viram "incapazes de explicar a agregação dos átomos nos complexos que os seres constituem"7 e recorreram a "um princípio geral de congruência" que, no entanto, deixa muito por elucidar, pois as relações, a articulação permanece exterior a essas formas mínimas. Esta articulação precária, destituída de estabilidade vai levantar sérios problemas de ordem epistemológica pois, se o λογος do complexo depende do λογος do simples, este último não é susceptível de uma apreensão racional, como bem o mostra Platão no Teeteto, recorrendo à imagem da letra que constitui a palavra: as palavras, unidades de significação, são constituídas afinal por elementos simples, inacessíveis ao conhecimento. Estes elementos últimos apenas se podem nomear, mas não se deixam integrar num processo de racionalização discursiva. Como elementos últimos (ou primeiros) apenas se deixam "apreender" (θιγειν)8, mas não há qualquer critério decisivo para avaliar da sua efectiva simplicidade. O paradoxo reside no facto de que, por serem as mínimas unidades formais, as palavras são os princípios que permitem a compreensão de tudo o que é composto, mas a captação desses princípios esbarra com uma barreira de inefabilidade. Mais uma vez a unidade, o uno, se situa fora do domínio do λογος, refractário a qualquer articulação interna. 6. 7. 8.

Cfr. Gil, F. - ob. cit., p. 208-209. Ibidem, p. 210. Cfr. Metafísica, Θ, 10, 1051b17-25.

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O paradigma do todo/partes, introduz também um factor de arbitrariedade, de contingência, na decisão sobre as soluções de continuidade entre as unidades relativas que constituem essas partes. A relatividade deste binómio poderá remeter de novo para um todo considerado como "a harmonia invisível do visível", ou "a afinidade velada de todas as coisas, a sympatheia estóica ou o logos heraclitiano"9. Será preciso aguardar a mereologia contemporânea para tentar uma ontologia radicada no par todo/partes. Mas só uma autêntica ontologia do simples poderá evitar a regressão indesejável para um todo anterior, dissolvente das unidades dos singulares. O binómio do todo/partes reactiva, assim, a problemática do contínuo, a primeira acepção da unidade enumerada por Aristóteles: "Embora tenha vários sentidos, o que primeira e essencialmente se diz ser um, pode resumir-se em quatro pontos: 1) O que é contínuo, quer em absoluto, quer em particular o que é contínuo por natureza, e não por contacto ou ligação exterior..."10.

A dificuldade que se levanta em relação ao contínuo é análoga à do todo/partes: "Como o uno se diz segundo vários sentidos, é necessário examinar como podem dizer que tudo é um. Ora o uno diz-se, quer do contínuo, quer do indivisível..."11.

As partes instauram unidades parciais na unidade do todo, tal como o indivisível instaurará unidades parciais no contínuo. Como conjugar a unidade tanto no registo do todo, do contínuo, como no das partes, do discreto? Forma o todo uma unidade com as suas partes? Se o contínuo é uma unidade, como afirmar que é divisível? E se cada uma das partes for

9. 10. 11.

Gil, F. - ob. cit., p. 222. Metafísica, I, 1, 1052a18-20; cfr. Δ, 6, 1016a1-18. Física, I, 2, 185b5-10.

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considerada como unidade indivisível, como pode constituir uma unidade com o todo, e portanto também uma unidade com as restantes partes?12 De facto, esta primeira acepção da unidade é de todas a mais problemática, pois o contínuo, sendo infinitamente divisível13, será múltiplo, enquanto o uno se diz privilegiadamente do indivisível. A aporia equaciona-se deste modo na Física14: o uno diz-se tanto do contínuo, como do indivisível. Se do contínuo, que é divisível até ao infinito, o uno será múltiplo; se do indivisível, suprime-se a quantidade e a qualidade, e o ser não será nem finito (Parménides) nem infinito (Melissus).

12.

Cfr. Física, I, 2, 185b10-15: "Levanta-se uma dificuldade a respeito da parte e do todo: talvez não se refira ao contínuo como tal, mas é necessário examiná-la em si mesma: trata-se de saber se o todo e a parte formam unidade ou pluralidade, e como é que são um, ou múltiplos, e se são múltiplos, como é que são múltiplos; do mesmo modo, em relação às partes que não são contínuas; e ainda, se cada uma, tomada como unidade indivisível, forma uma unidade com o todo, elas formarão também uma unidade umas com as outras". Cfr. Kaulbach, F. - "Le Labyrinthe du continu", p. 513-14: apresentam-se várias formulações desta aporia, que Leibniz designará por "labirinto do contínuo": "Comment faut-il penser cette appartenance continue des parties au tout, s'il faut concevoir d'une part des parties qui ont une existence relativement indépendante et, d'autre part, chaque partie comme pénétrée par le tout et le réfletant? (...) Formulée autrement elle se présente ainsi: d'une part, le continu doit être indéfiniment divisible, mais d'autre part on ne peut jamais le considérer que comme un tout qui comme tel est indivisible, car en chaque section que l'on obtient en essayant de diviser, on retrouve toujours un tout. Pour indiquer comment Aristote, et Leibniz, sous une forme différente correspondante, se sont tirés de ce labyrinthe, proposons la réflexion très simple suivante: le tout du visage, remarquons-le, se présente dans ce qu'on appelle les parties, dans l'oeil, la bouche, etc., sans être divisé, pour cette raison que les organes sont comme soudés ensemble avec lui. Un seul et même mouvement de la vie et de l'expression pénètre toutes les parties. Cette cohésion dans le processus de se manifester a le caractère du mouvement." (sublinhado nosso). 13. Cfr. Metafísica, I, 1, 1053a23-25. 14. Cfr. Física, I, 2, 185b5-10: "Ora o uno diz-se tanto do contínuo, como do indivisível (...) Se se diz do contínuo, o uno será múltiplo; porque o contínuo é divisível até ao infinito". 185b 15-20: "Ora, se o uno é o indivisível, suprime-se quantidade e qualidade, e então o ser não será nem infinito, como pretendia Melissus, nem finito, como pretendia Parménides; porque é o limite que é indivisível, e não a coisa limitada".

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Neste texto da Física, Aristóteles argumenta contra todos aqueles que afirmam que tudo é uno, univocamente; dirige-se portanto a Parménides, Melissus, Heraclito que afirmam a univocidade do uno (Heraclito, adoptando como acepção única a de uno quanto à definição: idênticos e um só, são os conceitos de bem e de mal, de belo e não belo, etc). E o discurso aristotélico explora as aporias a que tais teorias levariam, mostrando as contradições insuperáveis que implicitamente contêm. Estas contradições, no entanto, resultam da própria univocidade. Na Metafísica, a elucidação das várias acepções da unidade constitui uma contra-proposta a estas teorias. Mediante uma adequada teoria analógica da noção de unidade, todas essas aporias se resolvem. "Estes são, portanto, os diferentes significados do Uno: o contínuo natural, o todo, o indivíduo e o universal"15.

A unidade, tomada nas duas primeiras acepções, é constituída pela indivisibilidade do movimento (contínuo e todo), nas outras duas, pela indivisibilidade do pensamento e da noção (o universal). A saída do "labirinto do contínuo" consiste precisamente, em apresentar a essência do contínuo sob a forma de um movimento, de um processo, de uma génese: o contínuo não é algo dado, um estado, mas um processo, uma forma de devir16. Se concebermos o contínuo como uma linha, a aporia patenteia-se: por um lado, a linha como contínuo, exige uma total ausência de discontinuidade, de pontos, portanto é infinitamente divisível, por outro lado, cada ponto apresenta-se como um corte no todo, um limite que destrói a linha, a própria negação do contínuo. Aristóteles, porém, distingue entre o contínuo por mero "contacto", no qual os dois pontos limites das linhas se 15. 16.

Metafísica, I, 1, 1052a35. Cfr. Kaulbach, F. – “Le Labyrinthe du Continu” Archives de Philosophie 29 (1966) pp. 507-535. A aporia do "labirinto" é formulada em termos muito semelhantes por Aristóteles e Leibniz, e o autor mostra como as soluções dos dois filósofos se podem aproximar: para Aristóteles o contínuo, encarado como movimento, processo, integra as partes no todo do movimento porque estão penetradas pela unidade do todo: "Les parties appartiennent ensemble au tout parce qu'elles participent dans un mouvement commun, à un processus unique qui est précisément le tout lui-même. Aristote (Física, 227a12), pour expliquer ce qu'est le continu, se réfère au processus de se tenir ensemble".

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tocam, de um grau mais intenso de unidade, que se dá quando esses dois pontos limite se fundem num só: esta fusão dos dois pontos num só, garante a coesão do todo, gera o contínuo17. Apesar deste esboço de solução proposto na Física, a aporia é reactivada na Metafísica: o primeiro sentido do uno - o contínuo - foge à sua caracterização essencial, a da indivisibilidade. Contínuo significa exactamente possibilidade de infinita divisibilidade. Há pois uma certa oposição entre o contínuo e o indivisível. Este é necessariamente, por definição, não apenas um limite, mas a negação do contínuo. Se o indivisível constitui, no próprio entender de Aristóteles, a caracterização essencial da unidade, que acepção de unidade pode encontrar-se no contínuo? Só uma unidade precária, a unidade do todo anterior à sua divisão, uma unidade que se traduz apenas nesta anterioridade, e numa divisibilidade que não produzirá nunca o indivisível. Neste último sentido, poderá dizer-se que se dá no contínuo uma certa indivisão, pois a divisão que se produz no contínuo é uma divisão "mental", é uma operação que enumera, forjando unidades convencionais, mais ou menos arbitrárias: uma enumeração, não baseada em diferenças formais, mas na constituição mental de pontos de referência que se tratam como unidades. A possibilidade de contar radica precisamente na homogeneidade do contínuo, por um lado, e na unidade da forma pensada, proveniente da própria actividade intelectual de enumerar, por outro. As diferenças formais só podem ser contadas, enumeradas e medidas, se nessas diferenças houver algo de homogéneo, comum a elas: ou seja, se as diferenças não constituirem senão repetição de uma mesma forma. O número, de qualquer modo, é "fruto da inteligência": "Se não houver ninguém que conte, não haverá nada que contar, nada que seja numerável, portanto não haverá número. Mas, se só a alma e na alma a inteligência é que pode contar, não poderá haver tempo sem alma (...) O anterior-posterior é no movimento e, enquanto numerável, constitui o tempo"18.

17. 18.

Cfr. Física, V, 3, 227a12. Física, IV, 14, 223a21-26; Cfr. Garay, J. - Los sentidos de la Forma en Aristóteles, Ediciones Universidad de Navarra, 1987, p. 239.

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A matéria, por si mesma, é contínua, e por isso a sua unidade consiste numa certa indivisão, própria do contínuo; a divisibilidade procede, portanto, de alguma instância extrínseca ao próprio contínuo: da inteligência, que nele introduz ou considera unidades discretas, de um modo transcendental, permitindo assim a enumeração, ou da diversificação do contínuo produzido pela forma. Poderia pensar-se que esta elucidação do contínuo/discreto ignora o duplo sentido da actividade intelectual quantitativa ou quantificacional: um é o sentido da enumeração, outro o da medida. No caso da enumeração, a relação estabelecida entre um número inteiro natural e o objecto, é claramente extrínseca ao próprio objecto: não é o objecto em si mesmo que se associa a um número, esta atribuição é totalmente arbitrária, trata-se apenas de contar vários exemplares de um objecto. No caso da medida, trata-se de fazer uma correspondência de um sistema de entidades matemáticas (normalmente os números), a operações referentes a um objecto e às suas partes. Esta correspondência diz respeito, intrinsecamente ao objecto em causa19. No entanto, no caso da enumeração como no da medida aqui apresentados, está bem patente a necessidade do recurso a alguma forma que converta o contínuo em unidades contáveis, quantificáveis. No primeiro caso, a unidade formal não provém da operação do entendimento, mas é dada pelos próprios objectos enumeráveis, formas que instituem diferenças num fundo homogéneo; no segundo caso, é nítida a intervenção da operação do entendimento e suas operações aritméticas. Granger observa como "o tratamento quantificado de uma propriedade como a massa, por exemplo, consiste em pressupor a possibilidade e estabilidade de operações materiais

19.

Cfr. Granger, G.-G. - Pour la connaissance philosophique, Paria, Odile Jacob, 1987, p. 95: "Dans le dénombrement, la quantité n'intervient que comme nombre entier naturel, et ne se trouve avoir avec l'objet qu'une relation tout à fait extrinsèque. Ce sont divers exemplaires de cet objet qui sont énumérés, et non pas l'objet lui-même qui se trouve intrinsèquement associé à un nombre. Il en va autrement dans le cas de la mesure, qui consiste à faire correspondre à des opérations portant sur l'objet et ses parties un système d'êtres mathématiques, qui sont originairement des nombres, mais qu'on peut concevoir de manière beaucoup plus générale".

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de disjunção e reunião entre as partes pesadas, operações que correspondem às operações aritméticas referentes a números atribuídos a estas partes"20. A distinção, clássica desde Aristóteles, entre grandezas "discretas" e "contínuas", diz respeito à medida, que implica a escolha de uma parte do objecto, constituída em "unidade de grandeza". Se os números inteiros são suficientes, de tal modo que as operações empíricas de manipulação quantificação - do objecto possam aproximar-se através das combinações algébricas no módulo, a medida de grandeza será "discreta". Se for necessária uma divisão mais fina do objecto (forma) que dá a unidade, isto é, se for necessário recorrer a um corpo de fracções como operadores, este permitirá construir uma grandeza "contínua". No entanto, como observa Granger, as operações empíricas só podem efectivamente realizar-se sobre uma base de medidas "discretas", ou pelo menos racionais, que poderão eventualmente ser aproximadas de medidas contínuas. Em última análise, no plano da medida, o "contínuo" cede sempre o lugar ao "discreto", e a distinção não é de modo algum essencial. O que, pelo contrário, se revela essencial, é o ponto de vista da enumeração e da medida. Num caso e noutro, o quantitativo manifesta a sua dependência do formal, o contínuo remete para o discreto. E no caso da medida, como conclui Granger, o número contribui muito mais para um conhecimento qualitativo do que para um conhecimento quantitativo21. Assim, se por um lado se dá uma certa incompatibilidade entre o contínuo e o indivisível - que é, como vimos a negação do contínuo - por outro lado, também a divisão nega o contínuo, detendo este, portanto, uma certa indivisão. A aporia consiste em que o contínuo se revela indiviso, mas não indivivisível; e sendo a divisão a negação do contínuo, ao caracterizá-lo como possibilidade de infinita divisibilidade, estamos a defini-lo pela sua própria negação.

20.

Cfr. ibidem, p. 95: "Le traitement quantifié d'une propriété comme la masse, par exemple, consiste en effet à postuler la possibilité et la stabilité d'opérations matérielles de disjonction et de réunion entre les parties pesantes, opérations correspondant aux opérations arithmétiques portant sur des nombres assignés à ces parties". 21. Cfr. Granger, G.-G. - ob. cit., p. 96.

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Nesta característica essencial do contínuo, encontramos a sua conotação com o infinito. A infinitude, no pensamento aristotélico está indissoluvelmente ligada à quantidade, e é essa a razão da sua inclusão na Física22, como questão própria da filosofia da natureza: esta trata efectivamente da natureza como princípio do movimento, que conota o contínuo, e é neste que se encontra o locus do infinito. Depois da rejeição de várias filosofias do infinito - tanto daqueles que o consideram como uma coisa em si e por si, não atribuível a qualquer outra, como daqueles que o situam nas coisas sensíveis (pitagóricos) ou dos que o identificam com um dos princípios (a água, o ar, etc.) - Aristóteles apresenta o seu próprio exame do problema. Delimitando o conceito de infinito, considera-o em três acepções fundamentais: o infinito do tempo, do movimento e das grandezas (por divisão e adição). Como as duas primeiras acepções remetem afinal para esta última, é o infinito quantitativo que interessa principalmente ressaltar do texto aristotélico. De facto, parece ter sido este o único sentido de infinitude admitido por Aristóteles23. O infinito - explica no I livro da Física - pertence à categoria da quantidade, porque na sua definição é necessário utilizar a quantidade24. É na consideração da grandeza que surge principalmente a noção do infinito: uma grandeza é infinitamente divisível. Suponhamos uma linha AO, dividida sucessivamente em B, C, D, etc. de tal modo que AB=1/2AO, BC=1/2BO, CD=1/2CO, etc. A subtracção de AB, BC, CD de AO pode continuar-se 22. 23.

Física, III, 4-8. Sobre a noção de infinito em Aristóteles, cfr. Sweeney, L. - "L'infini quantitatif chez Aristote", Revue Philosophique de Louvain, vol 58 (1960) pp. 508-528: O autor exclui a hipótese de que Aristóteles tenha considerado qualquer outra acepção de infinito: "... disons qu'Aristote ne semble avoir élaboré qu'un infini de la quantité et que son idée d'une infinité qui pourrait être synonyme de perfection et d'intelligibilité n'a été, tout au plus, qu'une notion entrevue, mais non étudiée" (p. 525). Cfr. também a interpretação de Hintikka, J. "Aristotelian Infinity", in Time and Necessity. Studies in Aristotle’ Theory of Modality Oxford, At the Clarendon Press, 1973, pp. 114-134: contrariamente ao que pensa a maioria dos autores, Hintikka considera que a teoria do infinito de Aristóteles não contradiz, mas concilia-se e confirma o designado "princípio de plenitude". Em certo sentido o infinito existe, como por exemplo o decorrer dos dias, dos Jogos Olímpicos, do tempo. 24. Cfr. Física, I, 2, 185a33b3.

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indefinidamente, havendo sempre um segmento de AO. Esta divisão dá origem a uma série de partes, cada uma das quais é limitada, finita, mas à qual lhe sucederão outras partes em número infinito: o processo de divisão efectuado sobre uma grandeza espacial não tem fim. Pode-se utilizar o processo inverso, por adição: depois de dividido o segmento AO, por B, C, D, etc. pode adicionar-se BC, CD,... etc. a AB, sem que se alcance nunca o todo AO, precisamente porque o número das partes a adicionar é infinito. Assim como AO pode ser infinitamente dividido, sem limite, também AB pode ser composto sem limite. Por isso afirma Aristóteles: "O infinito por composição é, de certo modo o mesmo que o infinito por divisão; na coisa limitada, o infinito por composição produz-se inversamente ao outro; na medida em que o corpo se divide até ao infinito, nesta medida as sucessivas adições parecem convergir para o corpo finito. Com efeito, se, sobre uma parte tomada numa certa proporção sobre uma grandeza limitada, se tomar uma ou outra na mesma proporção, não retirando assim ao todo a mesma grandeza, não se chegará nunca ao fim do corpo limitado; mas se se aumentar a proporção, ao ponto de retirar sucessivamente uma quantidade sempre a mesma, chegar-se-á, porque qualquer corpo limitado se esgota por uma subtracção finita qualquer"25.

Deve notar-se, no entanto, que há uma diferença entre o que é infinito por divisão e o infinito por adição: o primeiro processo, o da divisão, pode prosseguir-se indefinidamente, pois cada grandeza determinada pode ser ultrapassada por uma outra ainda mais pequena, havendo sempre um para lá da quantidade dividida26. O infinito por adição, embora seja também, de certo modo potencial, não permite ultrapassar todos os limites na ordem da grandeza, tal como se pode ultrapassar na divisão de qualquer corpo finito. No infinito por adição, estaremos sempre aquém, no infinito por divisão haverá sempre um além...: "De modo que - conclui Aristóteles - ultrapassar tudo por adição, por aumento, não será possível, nem mesmo em potência; se é verdade que não 25. 26.

Física, III, 6, 206b3-12. Cfr. Sweeney, L. - art. cit., p. 511, nota.

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há infinito em acto que seja atributo, assim como era infinito o corpo extra-mundo, segundo os físicos, cuja substância era ar ou qualquer outro elemento. Mas, se não pode existir um corpo sensível infinito em acto, é evidente que não será tão pouco infinito por adição em potência, a não ser como o inverso da divisão, como dissemos"27.

Por estes textos, é claro o estatuto que Aristóteles atribui ao infinito: uma certa realidade (num sentido o infinito existe, noutro sentido não existe...28) que consiste na ausência de limites, tratando-se propriamente de um ilimitado, radicado apenas na quantidade pela divisão e composição - e mais propriamente, como vimos, pela divisão. O infinito é um certo atributo exclusivo do contínuo sensível. No cap. 6 do Livro III da Física, Aristóteles propõe-se tratar da existência e essência do infinito: quanto à sua existência, nem se pode negar nem afirmar absolutamente, pelo que se torna necessário assumir uma certa atitude de compromisso, dizendo que em certo sentido existe, noutro sentido não existe. Em que sentido se pode dizer que existe? A caracterização do infinito decorre do que se disse sobre o infinito de toda a grandeza: existe infinito segundo a divisão, mas segundo a adição, não há infinito que ultrapasse qualquer grandeza, porque "o infinito, enquanto infinito, não envolve, mas é envolvido (περιεχεται), e o que o envolve é a forma"29.

27.

Física, III, 6, 206b20-27. Cfr. Hintikka, J. - ob. cit., p. 117: "There cannot, however, be any actually existing extended magnitude greater than the universe itself (says Aristotle at 207b19-21), hence there are no arbitrarily large (actual) extensions; and hence there is not even a potential infinity with respect to extension (...) Aristotle's universe is thus finite in an especially strong sense: no extension beyond it is even possible." Segundo a interpretação de Hintikka a finitude do universo aristotélico não contraria o "princípio da plenitude", mas confirma-o plenamente. Precisamente porque tudo está plenamente actualizado, não faz sentido que o Universo seja infinito. Embora seja pensável (cfr. 203b23-25) uma extensão para além das fronteiras do universo físico, de facto o universo físico, por se encontrar plenamente realizado tem uma extensão finita. 28. Cfr. Física, III, 6, 206a9-14. Cfr. a interpretação de Hintikka, J. - ob.cit., p.116. 29. Física, III, 6, 207a25.

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No caso das grandezas, se bem que no sentido da diminuição ou divisão se possa sempre ultrapassar qualquer grandeza dada, no sentido da adição, não há nenhuma grandeza infinita. O número é portanto infinito em potência e não em acto, não em permanência mas em devir30. A potência do infinito é semelhante à incompletude própria de um processo, de uma sucessão, de um fieri, como a sucessão dos dias e das noites, ou dos Jogos Olímpicos31. Podemos dizer que o infinito é, no mesmo sentido em que dizemos que é dia ou são os Jogos, que se sucedem sempre uns aos outros, sem terminar nunca o seu processo de actualização. Neste mesmo sentido, uma parte pode ser sempre considerada depois da outra, sendo cada uma delas sempre finita, determinada, mas sempre diferente32. Trata-se, pois, de um infinito de finitos; o que constitui verdadeiramente a infinitude é a sucessão infinita de finitos. Não é pois algo fora do qual não há nada, mas algo fora do qual há sempre mais qualquer coisa...33 A marca decisiva do infinito é, para Aristóteles, sempre algo de ausente, de inacabado, imperfeito, daí a assimilação da infinitude com uma certa forma de privação. A aproximação conceptual da ideia de infinito faz-se através da matéria, sempre potencial na medida em que permanece aberta, na disponibilidade total para assumir sucessivamente diversas formas; de modo semelhante o infinito é em potência no sentido em que se realiza sempre

30. 31.

Cfr. Física, III, 7, 207b5-15. Cfr. Kaulbach, F. - art. cit., p. 514-515: como vimos esta é a saída, apontada por Aristóteles, do "labirinto do contínuo": o caso dos dias e das noites, dos Jogos Olímpicos, ilustram bem a noção da unidade de um contínuo visto como um movimento, um processo. As várias partes - dias, noites, os vários Jogos pertencem a um todo porque participam de um movimento comum, do mesmo processo único, que constitui precisamente o todo. 32. Cfr. Física, III, 6, 206a20-35. Cfr. Hintikka, J. - ob. cit., p.116: "O infinito é actual no sentido em que um dia ou os jogos são actuais" (206b13-14); neste sentido, o infinito existe, o que leva Hintikka a concluir: "In a way, the Aristotelian theory of infinity has thus been found to entail exactly the opposite to what it is usually said to assert. Usually it is said that for Aristotle infinity exists potentially but never actually. In the precise sense, however, in which the infinite was found to exist potentially for Aristotle, it also exists actually. Far from discrediting my attribution of the principle of plenitude to Aristotle, an analysis of Aristotle's theory of infinity serves to confirm it". 33. Cfr. Sweeney, L. - art. cit., p. 513.

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parcialmente por sucessivas divisões de um todo. É o devir que é infinito, mas nos seus sucessivos momentos, o infinito finitiza-se34. O pensamento aristotélico sobre o infinito está em consonância com o seu pensamento da forma: ser é ser forma, ser acto, ser finito, e não há um princípio anterior, um uno in-diferenciado, como origem ou contorno de tudo o que é. O finito não tem a sua origem no infinito, como o determinado não tem a sua origem no indeterminado. Sendo um pensamento da forma, da estabilidade, do determinado, a filosofia aristotélica não poderia atribuir ao infinito o estatuto de um princípio originário; por isso, tal como a χωρα platónica, ele constitui como que o limite mínimo e potencial da constituição dos seres. O facto de Aristóteles considerar apenas o infinito quantitativo, radicado no contínuo sensível como seu autêntico sujeito, indica bem o seu estatuto de potencial, de condição mínima para a divisão, processo mental pelo qual se extrai do infinito indiferenciado, a unidade da forma. A unidade do contínuo (como primeiro e mais precário sentido da unidade) mais não é do que aquela a partir da qual se podem constituir unidades, ou seja aquela que se apresenta como a possibilidade da divisão. O que caracteriza o contínuo é que essa divisão não produz nunca unidades formais, originárias, mas sempre produz contínuo. É nesta possibilidade de um constante adiamento do alcance da unidade indivisível que consiste a sua infinitude. Trata-se, no entanto, de uma possibilidade possível, uma possibilidade que se perpetua como possibilidade, pois os seres actuais apresentam sempre uma quantidade discreta. O discreto impõe-se ao contínuo, como a forma se 34.

Como dissemos, o sujeito da infinitude, segundo a concepção aristotélica, não pode ser nem um indivíduo, nem uma coisa em si, mas só o "contínuo sensível". S. Tomás explica-o no seu comentário à Física: "Et ne aliquis intelligat quod infinitum est materia sicut materia prima, subjungit quod per se subjectum privationis, quae constituit rationem infiniti, est continuum sensibile. Et in numeris causatur ex infinita divisione magnitudinis; et similiter infinitum magnitudine; unde relinquitur quod primum subjectum infiniti sit continuum. Et quia magnitudo secundum esse non est separata a sensibilibus, sequitur quod subjectum infiniti sit sensibili". In III Phys. lect., 12, n. 10. Cfr. Sweeney, L. - art. cit., p. 515. São várias as passagens no texto da Física, em que o infinito é referido à matéria: Cfr. por ex. 207a21-22; 207a33-35; 207b35: nesta última passagem Aristóteles refere mesmo que assim como a matéria é aquilo de que uma coisa é feita, o infinito é aquilo donde vem o finito.

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impõe à matéria. A compreensão da relação matéria-forma (tantas vezes deturpada nos comentadores e intérpretes de Aristóteles) constitui uma boa via para a correcta perspectivação do binómio contínuo/discreto. A primeira ideia fundamental na caracterização aristotélica da noção de matéria é a da total carência de consistência própria, que se exprime claramente na Física: "a matéria é um relativo (προς τι): uma vez que a tal forma, tal matéria"35.

A referência à matéria é sempre através da forma, o conhecimento capta diferenças, é formalizante, e para lá das formas "imagina" a matéria, ou "produz" a noção de matéria: segundo Ross, a matéria não é senão um produto da análise lógica pela qual dividimos uma coisa dada em forma e o-que-não-é-forma. Este último elemento dividido não é nunca um indivíduo, pois qualquer ser individual deve possuir alguma forma36. A matéria é pois algo para lá da forma, constitui a condição mínima para que se dê a forma. Por isso só se mostra por negação37: é o que não é forma nem acto, nem algo determinado, mas que imprime a certas formas um certo modo de existir. Daí o carácter "adjectivo" da matéria, como um estado, uma modalidade da forma. Não há razão para procurar algo que unifique matéria e forma, como se se tratasse de duas realidades diferentes; na verdade não há, no fundo diferença entre elas: "Com efeito (...) a matéria próxima e a forma são uma só e a mesma coisa, uma em potência, a outra em acto"38.

Estas elucidações visam sobretudo corrigir a noção equivocada, mas muito vulgarizada em muitos textos sobre Aristóteles, da matéria como substracto, como algo preexistente às formas, espécie de receptáculo universal: a presença de formas materiais não é presença de matéria, porque a matéria nunca se presentifica a não ser pelas formas na matéria. É a 35. 36.

Física, II, 2, 194b8-9. Ross, W. D. - Aristotle's Metaphysics, Introduction, p. XLIV: "Bare matter is only a product of the logical analysis in which we divide a given thing into a form and that which is not form. And again bare matter is not individual; what is individual must have some character and bare matter has none". 37. Cfr. Metafísica, I, 8, 1058a23. 38. Metafísica, H, 6, 1045b17-19.

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continuidade extensional da matéria que revela (tal como o tempo) uma certa infinitude em relação à forma. Portanto, analogamente poderemos considerar a infinitude do contínuo sensível como um relativo (προς τι) em ordem às unidades discretas que nele emergem (nele, no contínuo, e não do contínuo, para exorcizar qualquer ideia de anterioridade originária). O contínuo pertence ao registo da matéria, o discreto ao da forma. Ao equacionar este problema, Aristóteles debate-se entre a necessidade de supor um substracto único, contínuo, indiferenciado - por hipótese, a matéria prima - e a rejeição, por demais reiterada, de atribuir a esse substracto o estatuto de princípio, de unidade originária. Daí a sua insistência em remeter o contínuo sensível, material, a pura extensão para a categoria do potencial: a divisibilidade infinita da matéria é só potencialmente infinita. O par contínuo/discreto não se deve considerar como uma disjuntiva, mas como uma oposição de relativos, análoga à oposição matéria/forma. Por isso a questão de saber se o contínuo é ou não constituído por indivisíveis não se levanta para Aristóteles. O contínuo, por definição não poderia ser constituído por indivisíveis, uma vez que ele é a própria potencialidade infinita de divisão. A crítica aristotélica ao atomismo radica precisamente na rejeição de uma unidade de substracto, como causa e princípio da constituição do mundo sensível. Segundo Anaxágoras, todas as coisas são formadas de partes semelhantes (homeómeros) a partir de um número infinito de princípios. Os homeómeros não estão sujeitos à geração ou corrupção, mas existem eternamente e é a partir das diversas combinações, de junções e separações, que se constitui a diversidade das coisas existentes39. 39.

Cfr. Metafísica, A, 3, 984a13-17; Em nota a esta passagem, escreve Tricot na sua edição do texto aristotélico: "Aristote entend par homéomères les parties de même nature dans lesquelles l'analyse ne relève pas des composants de nature diverse. Ce sont, par exemple les tissus organiques, tels que la chair, les os, etc. qui sont des "mixtes", constitués par le mélange des quatre éléments, suivant les proportions (λογοι) définies: les homéomères sont ainsi matière en tant que simples composés, et forme en tant que raison de la proportion de leurs éléments. L'assamblage des homéomères forme les anhoméomères ou organes des corps vivants, qui ont une unité, comme la main, l'oeil, etc.". O termo homeómero não pertence no entanto a Anaxágoras, que utiliza exclusivamente o termo spérmata.

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No exame crítico destas doutrinas, Aristóteles não opõe nenhuma objecção directa à constituição atomística (Tricot designa a teoria de Anaxágoras como uma espécie de "atomismo qualitativo"), que parece aliás coadunar-se com o seu finitismo actual - o contínuo sensível, realmente, actualmente constituído por unidades discretas, apesar de potencialmente divisíveis; a objecção de Aristóteles é de ordem metafísica, não física: "Com base nesta concepção (filósofos pré-socráticos), poderia pensar-se que a única causa é a de ordem 'material' "40.

A necessidade de admitir uma unidade de substracto não deve de modo nenhum conduzir a atribuir-lhe o estatuto de princípio ou causa, nem pode comprometer a real diversidade formal. Esta diversidade não tem a sua origem única nos diferentes modos de combinação e separação dos elementos primeiros, constitutivos: "E assim como aqueles que admitem a unidade da substância como substracto, engendram todas as outras coisas por meio das suas modificações, considerando o Raro e o Denso como princípios primeiros destas modificações, também estes filósofos (Leucipo e Demócrito) defendem que as 'diferenças' nos elementos são as causas de tudo o resto"41.

Para os atomistas as diferenças têm a sua origem apenas na proporção - que constitui a figura - no contacto - que constitui a ordem - e na forma que constitui a posição. Diferenças extrínsecas, portanto, à natureza do ser. O atomismo mecanicista revela bem a sua filiação eleática: os elementos constitutivos, o Pleno e o Vazio, ou os átomos e os intervalos entre estes correspondem ao Ser e não-Ser parmenídeo. A teoria de Demócrito constitui uma espécie de compromisso entre a unidade, a permanência e imobilidade do ser eleático e a aparente diversidade e variedade sensível42. De qualquer 40.

Metafísica, A, 3, 984a17; na Física, no entanto, Aristóteles apresenta um outro argumento de ordem física, a negação do vazio interno: cfr. Física, IV, 5-6, 213a - 217b28. 41. Metafísica, A, 4, 985b10-15. 42. Cfr. Nota 1 de Tricot a Metafísica, A, 4, 985b8.

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modo, ambos, eleatas e atomistas excluem as diferenças do ser e atribuem-nas a algo que lhe é estranho e alheio e que o contorna - o não ser, o vazio... Parece, no entanto, difícil compatibilizar em Aristóteles a refutação do atomismo - a matéria não é constituída por átomos, unidades últimas e indivisíveis - com a afirmação que, de facto, há sempre uma unidade última no processo de divisão. A primeira tese levaria à admissão de um contínuo real, actualizado; a segunda parece implicar, um contínuo paradoxalmente constituído por indivisíveis. Mas possivelmente reside aqui a peculiaridade da acepção do uno como contínuo: trata-se de uma unidade indivisa, mas não indivisível; uma unidade precária, que não satisfaz plenamente a própria natureza da unidade como indivisibilidade. De qualquer modo, a questão não é fácil de resolver e o problema do contínuo renasce e reitera-se constantemente, sobretudo na Escolástica do século XVII: peripatéticos e anti-peripatéticos dedicaram longas discussões tentando explicar a unidade do contínuo, ora recorrendo a uma concepção atomística ou dinamista, ora procurando conciliar a afirmação de indivisíveis com a verdadeira unidade do contínuo43. Os adeptos da tradição aristotélica tentam perseguir a continuidade até ao seu elemento último e dirimir da sua verdadeira indivisibilidade: a questão que levantam é a de saber se se dá de facto um corpo natural simples, ou se a divisão não encontra nunca um termo último. Transposta para o domínio da quantidade contínua, trata-se de saber se esta é ou não constituída por entidades especiais - tais como a linha, o ponto, a superfície - elementos constitutivos do ser corpóreo. As opiniões multiplicam-se em torno de duas posições extremas: uma que nega em absoluto a realidade positiva dos pontos, linhas e superfícies, outra que os considera como verdadeiras realidades distintas entre si e dos seres corpóreos que constituem. Nesta discussão é notável a posição crítica de Pedro da Fonseca44: a transposição da problemática para a ordem do quantitativo não colhe como solução ao problema ontológico do contínuo: trata-se com efeito de uma transposição ilegítima de indivisíveis 43.

Sobre as posições dos Escolásticos do século XVII em relação ao problema do contínuo, cfr. Boehm, A. - Le "Vinculum Substantiale" chez Leibniz, Paris, Vrin, 1962, pp. 58-81. 44. Cfr. Boehm, A. - ob. cit., p. 65.

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de ordem geométrica, para realidades de ordem ontológica. As noções de ponto, linha, superfície, necessárias para as demonstrações geométricas são utilizadas como entidades reais para a definição geral do contínuo45. A transgressão denunciada com perspicácia por Fonseca, é de resto reveladora da heterogeneidade real entre o contínuo qualitativo e quantitativo, razão fundamental da ilegitimidade do tratamento indiferenciado do problema num ou noutro registo. O próprio Aristóteles apontara claramente esta heterogeneidade: "Portanto, um ponto não é a mesma coisa que uma unidade; porque os pontos admitem contacto, enquanto as unidades não, mas só sucessão; e entre os pontos há sempre algo intermédio, mas não entre unidades"46.

A crítica de Fonseca, que aponta a necessidade de uma consideração analógica da noção de unidade, tendo em conta a heterogeneidade do qualitativo e do quantitativo apresenta afinidades nítidas com algumas das reflexões de Leibniz sobre a questão do contínuo, o que aliás confirma a influência que a Escolástica do século XVII exerceu sobre o pensamento leibniziano.

45.

Ibidem, p. 65; o autor cita Fonseca, P. - Commentarium in libros Metaphysicorum Aristotelis, Lyon, 1590, t. II, lib. V, cap. XIII, sect. V. 46. Metafísica, K, 12, 1069a14-18; cfr. Kaulbach, F. - art. cit., p. 514: "Le passage du "contact" au continu se réalise pour lui à l'instant où deux points-limites des lignes, se rencontrant à l'endroit du contact, deviennent un point unique, instant où les deux lignes d'abord différentes se fondent en une seule".

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LEIBNIZ E O LABIRINTO DO CONTÍNUO Numa das últimas cartas a Des Bosses, (17 de Maio de 1716), Leibniz afirma que "a continuidade real só pode nascer do 'vínculo substancial' "47. Negar a existência do "vínculo substancial", significa defender que só as mónadas são verdadeiras substâncias e os corpos não são mais do que simples fenómenos bem fundados; a continuidade é também fenomenal, porque, sendo as mónadas como mundos separados, "pontos metafísicos", não podem dar origem ao contínuo, mas apenas a conjuntos harmoniosos nos quais há um acordo, mas não uma verdadeira união. Na referida carta de Leibniz, o problema do contínuo receberia a sua resolução final no sistema: se não existisse nada de substancial (substantiel, na tradução de C. Fremont) além das mónadas, e os compostos fossem portanto simples fenómenos, a própria extensão seria também um mero fenómeno resultante da coordenação das aparências simultâneas e assim acabariam todas as controvérsias sobre a composição do contínuo48. O vínculo substancial constitui realmente o meio que permite passar da discontinuidade das substâncias simples à continuidade das substâncias compostas, o que leva C. Fremont, na sua Introdução à Correspondência de Leibniz com Des Bosses, a concluir que antes do vínculo substancial, noção que não surge antes desta correspondência, Leibniz não saira nem resolvera o problema do "labirinto da composição do contínuo"49.

47.

Sigo a tradução de Christiane Fremont - L'Être et la Relation, Paris, Vrin, 1981, p. 205; Ger II, p. 517. 48. Cfr. Fremont, C. - ob. cit., p. 205; Ger II, p. 517. 49. Cfr. ibidem, p. 41: "Avant le lien substantial, Leibniz n'est pas sorti du Labyrinthe de la composition du continu: il faut bien oser dire que le problème n'est pas résolu, en toute rigueur, avant les Lettres au P. Des Bosses". Contrariamente a esta opinião, Kaulbach pensa que Leibniz saiu do "labirinto" muito antes, com a superação da noção geométrica, cartesiana, da matéria-extensão e a introdução da noção de "força" (art. cit., pp. 515-516). Aristóteles recorre à noção de movimento, em sentido filosófico, à energeia, para resolver o problema do contínuo ("L'Energeia est la force dont l'essence philosophique consiste à tenir ensemble le continu"); Leibniz, utilizando o mesmo "fio de Ariadna" de Aristóteles, recorre à "força".

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No entanto, fazendo uma breve retrospectiva sobre a formação do sistema de Leibniz, seguindo precisamente este itinerário na mira de uma explicação da unidade do contínuo, é possível comprovar que o objectivo de Leibniz não foi o de sair do Labirinto da composição do contínuo, mas sim o de não entrar nunca nesse mesmo Labirinto. Como muitos autores têm feito notar, há múltiplas e variadas entradas e percursos no sistema leibniziano, mas todos convergem para um ponto essencial, como para a sua cúpula, que é o da substância como verdadeira unidade: tema em gérmen, ou pressentido desde os precoces escritos da juventude - basta referir a sua tese de bacharelato, escrita aos dezassete anos sobre o princípio da individuação - é constantemente procurado, perseguido ao longo da sua vasta e variada obra. A crítica e rejeição do mecanicismo metafísico de Descartes, não será já ditada por um pensamento indelevelmente marcado pela ideia - que assume uma função reguladora - da unidade e racionalidade do singular? Este ponto de partida crítico de Descartes e de alguns conceitos da ciência moderna, dá origem a uma vertente negativa no seu pensamento sobre a unidade da substância corporal, a uma espécie de pars destruens, que ocupará grande parte dos escritos e da correspondência anteriores a 168650. Leibniz procura sobretudo, na crítica ao cartesianismo e ao mecanicismo, mostrar as dificuldades e os absurdos 50.

Sigo a organização estabelecida por Lucy Prenant - Oeuvres de G. W. Leibniz, Paris, Aubier Montaigne, 1972; 1686 é a data do envio do Discours de Métaphysique a Arnauld, primeira exposição de conjunto do pensamento leibniziano, que marca o início da Correspondência com o filósofo de Port Royal. Note-se, porém, as referências a textos anteriores a esta data, sobretudo entre os anos 1668-1671, nos quais os princípios programáticos são a rejeição crítica das formas substanciais e a substituição da trilogia escolástica matériaforma-movimento, pela trilogia reformista extensão-figura-movimento. Nesta época está já patente a tensão do pensamento de Leibniz, em busca de uma reconciliação da filosofia peripatética com a moderna: cfr. Robinet, A. Architectonique disjonctive. Automates Systémiques et Idéalité Transcendantale dans l'œuvre de G. W. Leibniz, Paris, Vrin, 1986, p. 125 e ss.: "... la systématique profonde des écrits de Mayence et de Paris, ainsi que des deux premières années d'Hanovre, témoigne d'une éviction farouche de l'applicabilité du concept de forme substantielle à la résolution de l'essence du corps: en conséquence, aucun automate systémique ne peut prendre racine. Seul reste en place le vecteur (D1), c'est-à dire la désubstantialisation du corps et sa phénoménalisation complémentaire".

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que resultam da identificação da matéria com a extensão, e a impossibilidade de encontrar aí qualquer explicação satisfatória para a unidade do corpo. No Témoignage de la nature contre les athées, texto de 1668, impresso em 69, Leibniz acusa já a precaridade da unidade do corpo definido como o existente no espaço51. Nos corpos "abandonados a si mesmos" não pode haver nem figura, nem uma grandeza determinada, nem qualquer movimento, nem mesmo qualquer fundamento da sua própria consistência. Aflora já o problema da coesão: os atomistas gregos e, na época de Leibniz, Gassendi explicam-na a partir de certos corpúsculos insecáveis que, diversamente combinados através de variadas engrenagens, dariam origem à diversidade sensível das qualidades corporais. Mas estes corpúsculos últimos tão pouco dão razão da coesão e da insecabilidade. Na carta a Thomasius de Abril de 1669, Leibniz volta ao mecanicismo, desta vez para mostrar que os seus princípios gerais não se opõem à física aristotélica devidamente interpretada52. A matéria primeira consiste na massa contínua, na qual não há senão extensão e impenetrabilidade53: desta matéria, pura homogeneidade anterior às formas, tudo se deriva pelo movimento, causa e raiz de toda a diversidade. A quantidade desta matéria primeira é a da matéria subtil de Descartes, indefinida, indeterminável, sem começo nem fim. No entanto, divergindo do cartesianismo, Leibniz não identifica a matéria primeira apenas à extensão, mas sempre à impenetrabilidade, à antitipia. Aqui se esboça o princípio da 51. 52.

Cfr. Prenant, L. - ob. cit., p. 70-71. Cfr. Robinet, A. - ob. cit., p.126: "Le concept de matière est à évincer, car la fausse philosophie, qui conduit à une théologie ruineuse quand ce n'est pas à l'athéisme, lui fait jouer un rôle démésuré. Le concept de forme substantielle suit le mouvement général qui le coule dans l'obscurantisme médiéval. Quant au concept de changement, il s'uniformise en mouvement local, et c'est à partir du mouvement local que la physique pourra être réduite à la géométrie." Para o mestre Jacob Thomasius, Leibniz procura recuperar Aristóteles, sem prescindir dos conceitos inovadores da filosofia e ciências modernas. 53. Leibniz exprime aqui a sua adesão aos Reformadores da filosofia, numa fórmula que contrasta vivamente com o pensamento dos anos da maturidade: "Regulam illam omnibus istis philosophiae Restauratoribus commumem teneo, nihil explicandum in corporibus, nisi per magnitudinem, figuram et motum". (Ak, II, I, 15, cit. por Robinet, A. - ob. cit., p. 126 n. 2).

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oposição em relação aos cartesianos, que referem sempre a matéria à mera extensão. A impenetrabilidade é a forma corporeitatis, sendo sempre referida à matéria, e não à forma substancial. Citando a definição aristotélica do contínuo - "aquilo cujos limites fazem um" - Leibniz refere dois modos de introduzir a discontinuidade nesta massa contínua: a primeira consiste em retirar a contiguidade por um afastamento, dando assim origem ao vazio; a outra, que respeita a contiguidade, com movimentos diversos, que dão origem às formas: do movimento nasce a divisão, desta, os limites das partes, destas as suas figuras, da figura as formas54. O movimento apresenta, portanto, uma solução satisfatória ao intrincado problema da origem das formas; não é apenas um modo ou um estado temporário, mas um princípio anterior ao da extensão, do qual não pode ser deduzido: para lá da extensão, de certo modo como fundando-a, há o movimento que, por ser indivisível, escapa ao domínio da divisibilidade e garante assim a coesão da figura total55. A Hypothesis physica nova e sobretudo a Theoria motus abstracta56 confirmam e reforçam a importância central do movimento para a interpretação adequada da física, rejeitando uma vez mais a perspectiva puramente geométrica de Descartes57 e a sua redução da matéria à extensão, 54.

Cfr. Carta a Thomasius, in Prenant, L. - ob. cit., p. 78; Ger I, p. 18; cfr. Robinet, A. - ob. cit., p. 129: "La forme-figure suffit pour expliquer les discontinuités observées dans la matière-étendue. Continuité et contiguité sont les deux manières d'être de la coprésence des corps figurativement séparés, concréés à la matière première. Mais cette création des formes n'est qu'un processus éductif, simple effet du mouvement local. Le mouvement divise: de cette division naissent des parties qui ont chacune leur figure, de ces figures vient la forme: en conséquence ce n'est pas la forme qui produit le mouvement, c'est le mouvement qui est à l'origine de la forme". 55. Cfr. Kaulbach, F. - art. cit., p. 517: "La force qui agit là ne peut donc pas être fixée sur un point géométrique ou liée à un instant. En tant qu'elle est effort, conatus, elle est toujours au-delà du ici et du maintenant et dépasse les points du temps et de l'espace". 56. Cfr. Die Philosophische Schriften von Gottfried Wilhelm Leibniz Karl Immanuel Gerhardt (GER) IV, p. 177-219, e pp. 221-240. 57. Cfr. Kaulbach, F. - art. cit., p. 516: "Leibniz s'oppose en particulier à la conception fondamentale de Descartes qui, pense-t-il, empêche de sortir du labyrinthe. Il reproche à Descartes de n'avoir considéré que selon le langage de la géométrie les corps dont s'occupe la mécanique en considérant les lois de

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analisada até ao átomo extenso, que deixa por explicar a coesão das suas partes58. A questão da coesão torna-se central e serve sobretudo como motivo para apontar as dificuldades e limitações da fisica cartesiana. Em carta a Oldenburg (1670)59, observa uma vez mais que a hipótese dos corpúsculos variados formando partículas, não explica a consistência destas partículas, nem dá a razão que as impede de se separarem por qualquer impulsão. "En bref, qu'est-ce qui empêche ma main d'être arrachée de mon corps par n'importe quel conatus? Pourquoi le vent n'emporte-t-il pas nos têtes à la manière de nos chapeaux? Pourquoi une pierre projetée contre terre ne la perfore-t-elle pas jusqu'au centre, comme si c'était de l'eau? Questions ridicules, mais d'explication difficile"60.

A argumentação de Leibniz contra a física cartesiana explora nestes primeiros escritos uma espécie de redução ao absurdo, fazendo ver a carência de um fundamento para a unidade das substâncias corporais, se recorremos apenas à noção de extensão e desta derivamos a de contínuo: a precaridade da unidade do contínuo procede exactamente da ausência de qualquer razão que explique essa unidade, e faz pensar na necessidade de recorrer a um outro princípio de unidade. leur mouvement. Pour Descartes, l'être des corps consiste dans leur extension. Le corps existe comme sphère, cube, comme ovale ou autre figure très compliquée. Cela, juge Leibniz, peut être un concept utile pour certaines fins physiques. Mais la philosophie ne peut pas s'en contenter, car dans cette perspective manque le facteur décisif de toute réalité. La considération philosophique apparaît quand on met en jeu le facteur "force". Alors que celui qui ne pense qu'à l'étendue s'occupe de la surface visible, la pensée du principe philosophique de la force pénètre dans l'invisible, dans l' 'intérieur' des corps accessible seulement à la pensée". 58. Cfr. ibidem, p. 519: "Leibniz s'est opposé dans le même sens à l'atomisme qui utilise la représentation de corps élémentaires absolument durs, se combinant en groupes, pour constituer les corps phénoménaux. Leibniz reproche, entre autres, à cette conception de ne fonder la nature phénoménale que sur des choses étendues enfermées dans leur cuirasse (limites) absolument solide au lieu de commencer par la force et le mouvement qui constituent l'étendue". 59. Prenant, L. - ob. cit., p. 93. 60. Cfr. ibidem, p. 93.

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Em carta a Arnauld (1671), reiterando as críticas a Descartes, Leibniz afirma que não há qualquer coesão ou consistência de um corpo em repouso, e portanto tudo o que estivesse em repouso, poderia ser partido ou dividido pelo mais pequeno movimento: por isso Leibniz conclui mesmo que um corpo em repouso nem sequer existe e não difere de um espaço vazio61. Esta conclusão absurda mostra claramente que a essência do corpo não pode ser a extensão. E não havendo qualquer consistência de um corpo em repouso, a sua essência tem que ser movimento. Leibniz procura a unidade real, essencial a toda a substância, e a concepção de substância corporal cartesiana, fundada na noção de matéria como extensão conduz ao labirinto da composição do contínuo, do qual se não poderá sair. Ao criticar e rejeitar esta concepção da substância corporal, Leibniz recusa-se a entrar no labirinto: mostrando que a unidade do contínuo não pode ser senão uma unidade aparente, fenoménica, que nem sequer explica a coesão ou consistência do corpo, Leibniz explora a noção de unidade pela via negativa. Os pontos matemáticos, com os quais alguns compõem a extensão, destituídos de qualquer qualidade interna que não seja o situs ou posição, não poderiam nunca constituir os seres, pois nem sequer constituem propriamente unidades: são unidades negativamente, sem partes, mas não positivamente62. Por isso, o modelo geométrico apresenta, por um lado uma aproximação fiel das mónadas e seu mundo, mas por outro lado não é monadologia, não é mais do que uma imagem empobrecida; o ponto, se por um lado é invocado frequentemente como uma expressão da mónada - centro de um círculo e intersecção dos raios, fonte pontual de luz, lugar indivisível de nenhum lugar... - por outro lado, por ser destituído de qualquer qualidade interna que não seja o situs, não pode dar da mónada 61. 62.

Cfr. ibidem, p. 107. Cfr. Serres, M. - Le Système de Leibniz et ses modèles mathématiques Paris, PUF, 1968, p. 317: "Les points, comme les monades, sont, certes, partout distribués, ils paraissent, comme elles, toujours discernables par le situs ou position; mais l'exactitude de l'expression n'est pas complète: d'une part, ils sont dénués, hors le situs, de toute qualité interne, et, donc, ne sauraient constituer des êtres; de l'autre, ils n'ont même pas de l'être la caractéristique de constituer des unités: ils sont unités négativement (sans parties), mais non positivement, car, dénués d'antitypie, un recouvrement infini d'eux-mêmes par eux-mêmes est toujours possible".

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senão uma representação ou um símbolo bastante imperfeito63. A unidade do contínuo apresenta-se pois como o negativo, ou o reverso da verdadeira unidade. E como tudo o que é, é um - toda a substância exige uma verdadeira unidade - estes agregados ou compostos destituídos de um fundamento de unidade, não são verdadeiramente substâncias. A carta a Arnauld de 30 de Abril de 1687 tem particular interesse para este problema, pois nela Leibniz apresenta como que um balanço da situação do seu próprio pensamento no que respeita à unidade das substâncias corporais: por um lado, a vertente negativa, o que não tem verdadeira unidade, não pode ser verdadeira substância, e no fundo não é um ser real, visto que "o que não é verdadeiramente um ser, tão pouco é verdadeiramente um ser"; e por outro lado, a vertente positiva, a ideia fundamental de que ser é ser um, ser e um são absolutamente reciprocáveis. O carácter transcendental da unidade assume o estatuto de um axioma: "Pour trancher court, je tiens pour un axiome cette proposition identique qui n'est diversifiée que par l'accent, savoir que ce qui n'est pas véritablement un être, n'est pas non plus véritablement un être. On a toujours cru que l'un et l'être sont des choses réciproques"64.

Este balanço coloca Leibniz perante o seguinte dilema: ou os seres por agregação se compõem de seres dotados de verdadeira unidade, ou não são propriamente seres, mas puros fenómenos. O unum per accidens da filosofia tradicional, no fundo não é nem verdadeira unidade, nem verdadeiro ser: "je crois que là où il n'y a que des êtres par agrégation, il n'y aura pas même des êtres réels; car tout être par agrégation suppose des êtres doués d'une véritable unité"65.

63.

Cfr. Serres, M. - ob. cit., p. 318: "La géométrie élémentaire, comme l'arithmétique, est donc refusée, comme figuration trop lointaine: elle n'est qu'un adjuvant, une propédeutique à la métaphysique". 64. Ger II, p. 97. 65. Prenant, L. - ob. cit., p. 251; Ger II, p. 96.

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Se há agregados de substâncias, é porque há verdadeiras substâncias que os compõem: alguns, na análise e decomposição dos seres corporais, vão até aos pontos matemáticos, outros até aos átomos, mas foi já demonstrada a inviabilidade de fundar verdadeiras unidades quer nuns quer noutros: a continuidade, ou o movimento comum não constituem senão seres de razão, de imaginação ou percepção, ou seja, um fenómeno66. Arnauld admite a possibilidade de considerar que os corpos não constituem verdadeiras unidades, e portanto não são mais do que fenómenos, desprovidos de qualquer realidade, como seria um sonho regulado; não há, assim, razão para procurar justificar uma verdadeira unidade nas substâncias corporais. Mas Leibniz não pode conceber nenhuma realidade sem uma verdadeira unidade e a substância singular envolve séries incompatíveis com um ser por agregação; na substância há propriedades que ficam por explicar se se tiver em conta apenas a extensão, a figura e o movimento. A proposta de Arnauld sacrifica de boa vontade a unidade dos seres corporais e concede facilmente que a unidade seja assim relegada do puramente fenoménico, desprezando, por assim dizer, o intrincado problema da composição do contínuo, uma vez que não se trata realmente de uma unidade. Leibniz, no entanto, prefere salvar a todo o custo a unidade, mesmo a unidade dos corpos, e evitar a redução ou limitação da verdadeira unidade ou substância apenas ao homem: a atitude de Arnauld mostra as suas afinidades com o recuo para trás da aparência, relegando a unidade (e a identidade) do campo do fenoménico, do aparecimento das diferenças, da 66.

Cfr. ibidem, p. 252; Ger II, p. 96: "... s'il y a des agregés de substances, il faut bien qu'il y ait aussi des véritables substances dont tous des agrégés résultent. Il faut donc venir nécessairement ou aux points de mathématique dont quelques auteurs composent l'étendue, ou aux atomes d'Epicure e de Mr Cordemoy (qui sont des choses que vous rejetez avec moi), ou bien il faut avouer qu'on ne trouve nulle réalité dans les corps; ou enfin il y faut reconnaître quelques substances qui aient una véritable unité". Sobre o carácter ideal do contínuo "exacto", da matemática, cfr. Carta a De Volder, Ger II, p. 282: "Patet..., in Actualibus non esse nisi discretam Quantitatem, nempe multitudinem monadum seu substantiarum simplicium... Sed continua Quantitas est aliquid ideale, quod ad possibilia et actualia, qua possibilia pertinet. Continuum nempe involvit partes indeterminatas... Actualia componuntur ut numerus ex unitatibus, idealia ut numerus ex fractionibus: partes actu sunt in toto reali, non in ideali...".

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diversidade e multiplicidade. A de Leibniz, optando por uma consideração analógica da unidade, tenta estabelecer graus, diferentes sentidos que permitam envolver todo o real na noção de unidade. A teoria medieval dos transcendentais, já implícita em Aristóteles é totalmente respeitada e adoptada por Leibniz que não admite nenhuma realidade, nenhum ser que não seja, de algum modo, um ser. A admissão de diversos sentidos, graus de unidade é frequentemente expressa na correspondência com Arnauld: "Je demeure d'accord, qu'il y a des degrés de l'unité accidentelle, qu'une société réglée a plus d'unité qu'une cohue confuse et qu'un corps organisé ou bien une machine a plus d'unité qu'une societé..."67.

Mas estas unidades recebem o seu estatuto dos pensamentos e da aparência, tal como as cores e outros fenómenos que, no entanto, julgamos reais: trata-se de saber distinguir o que é verdadeiramente real da mera aparência. Se for real, tem que ser, ou uma verdadeira substância simples, ou uma substância composta, cuja unidade está ainda por esclarecer, mas que só pode ter um fundamento na unidade das primeiras. A posição que Leibniz tenta defender contra Arnauld é de um equilíbrio difícil: se por um lado resiste a negar pura e simplesmente uma verdadeira unidade a todas as substâncias corporais68, porque isso equivaleria a negar-lhes realidade (não há realidade sem unidade), por outro lado, a concepção vulgar da substância pensada através da extensão, figura, movimento, é incompatível com a sua própria noção de unidade real, apresentando como reais, unidades que pertencem apenas às aparências, fruto de abstracções ou relações, em suma, meros fenómenos69. O labirinto e as dificuldades inextricáveis da composição do contínuo nascem precisamente desta concepção que atribui a extensão à substância dos seres

67.

Leibniz emprega variadas expressões para distinguir os "graus de unidade": "união mental", "união fenoménica", "ser de imaginação ou de percepção", "ficções de espírito"... cfr. a Arnauld, Ger II, p. 100, 102; cfr. a Des Bosses, 20 Set. 1712, Fremont, C. - ob. cit., p. 174; Ger II, p. 457. 68. Cfr. ibidem, Ger II, p. 97, Prenant, L. - ob. cit., p. 252. 69. Cfr. ibidem, p. 101; Prenant... p. 255.

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corporais: unidades mentais, aparentes, de presença ou de lugar, fenoménicas, não são mais do que quimeras70. Na carta de Outubro de 1687, Leibniz reitera e acentua a dicotomia entre a unidade verdadeira e a fenoménica própria da matéria tomada como massa contínua, voltando a alguns argumentos já invocados: "...la matière prise pour la masse en elle-même n'est qu'un pur phénomène ou apparence bien fondée, comme encore l'espace et le temps. Elle n'a pas même des qualités précises et arrêtées qui la puissent faire passer pour un être determiné, comme j'ai déja insinué dans ma précédente; puisque la figure même qui est de l'essence d'une masse étendue terminée, n'est jamais exacte et déterminée à la rigueur dans la nature, à cause de la division actuelle à l'infini des parties de la matière"71.

Não há globo sem desigualdades, nem recta sem pequenas curvas, nem curva de uma certa natureza finita sem mistura de alguma outra..., em sumo, a figura, não só está longe de ser constitutiva dos corpos, como não chega a adquirir o estatuto de uma qualidade real e determinada fora do pensamento. Figura, grandeza e movimento não são qualidades constitutivas da substância corporal72 e portanto a matéria extensa, consistindo apenas nestas qualidades, sem as Enteléquias, não é verdadeira substância em nenhum sentido, mas um puro fenómeno tal como o arco-íris:

70. 71. 72.

Cfr. ibidem, p. 98; Prenant... p. 253. Ger II, p. 119; Prenant... p. 267. A impenetrabilidade, característica essencial da materialidade, é também suprimida por Leibniz, que explica a comunicação de movimento de um corpo a outro pela acção de uma força única que, no instante do choque, une os dois corpos num só todo, como se ambos fossem penetrados por uma vontade comum de movimento. Cfr. Kaulbach, F. - art. cit., p. 518: "...Leibniz oblige la conscience chosiste naturelle, qui est aussi celle du physicien, à dépasser ses conceptions. Il est dans la nature de cette pensée de se représenter le corps comme une chose aux limites relativement fixes, impénétrables et occupant son lieu grâce à des limites bien tranchées. Or Leibniz enseigne que, dans le fondement du phénomène auquel s'attache l'entendement du physicien, est en action une force débordante, continuante et aussi originaire, dont les mouvements, du point de vue philosophique, doivent être considérés comme la réalité véritable".

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"...aussi les philosophes ont reconnu que c'est la forme qui donne l'être déterminé à la matière, et ceux qui ne prennent pas garde à cela ne sortiront jamais du labyrinthe de compositione continui, s'ils y entrent une fois"73.

Leibniz não entrou nunca e decididamente não entrará. Traçada a linha de demarcação entre o real e o fenoménico, caem nitidamente fora do real o tempo e o espaço, a figura, a grandeza e o movimento, e todos aqueles agregados aos quais atribuimos uma certa unidade, mas uma "unidade de fenómeno ou de pensamento". Absolutamente reais, só as substâncias indivisíveis. "Il n'y a que les substances indivisibles et leur différents états qui soient absolument réels"74.

A via negativa da procura dos "princípios de uma verdadeira unidade" conduz, através de um exaustivo e prolongado exame da unidade do contínuo, à demonstração definitiva de que não é possível encontrar unicamente na matéria um fundamento de unidade; a unidade do contínuo tem o seu fundamento último na unidade dos indivisíveis, verdadeiras unidades, que não podem consistir nos pontos matemáticos - meras extremidades da extensão e das modificações que não podem compor o continuum. Onde encontrar estas verdadeiras unidades? Nem nos pontos matemáticos, nem nos átomos de matéria75, expressão contrária à própria razão, visto que os átomos continuam a ser divisíveis... "...pour trouver ces unités réelles, je fus contraint de recourir à un point réel [et animé pour ainsi dire, ou à un atome de substance qui doit envelopper quelque chose de formel ou d'actif pour faire un être complet]. Il fallut 73. 74. 75.

Ibidem, p. 119; Prenant... p. 267. Ibidem. Cfr. Kaulbach, F. - art. cit., p. 519: "Leibniz reproche, entre autres, à cette conception de ne fonder la nature phénoménale que sur des choses étendues enfermées dans leur cuirasse (limites) absolument solide au lieu de commencer par la force et le mouvement qui constituent l'étendue. Seuls cette force et ce mouvement sont véritablement indivisibles, tandis que les atomes, au sens de corpuscules étendus, ne sont pas vraiment des atomes au sens propre du terme puisqu'ils ne sont pas indivisibles".

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donc rappeler et comme réhabiliter les formes substantielles, si décriées aujourd'hui; mais d'une manière qui les rendit intelligibles et qui séparât l'usage qu'on en doit faire de l'abus qu'on en a fait"76.

A infinita divisibilidade do contínuo não permite alcançar nunca verdadeiras unidades, visto que os pontos geométricos, os átomos de matéria continuam a ser divisíveis; a linha não é composta por pontos, que são extremidades. Leibniz vê-se na necessidade de voltar constantemente a esclarecer a sua concepção da extensão e do contínuo, sempre origem de mal-entendidos. Em resposta às objecções de Foucher ao Système Nouveau, que vira no texto uma procura das "unidades que compõem o contínuo", Leibniz insiste na tese fundamental: não há princípios componentes da extensão-espaço, que é simplesmente um sistema de relações (rapports), uma ordem de coexistência para o existente e o possível77. Não são nem pontos matemáticos, nem pontos físicos, mas sim pontos reais, que Leibniz ousa mesmo designar como pontos metafísicos, correspondentes às enteléquias primeiras de Aristóteles, forças primitivas para Leibniz78, possuidores de qualquer coisa de vital e de uma espécie de percepção; enquanto os pontos matemáticos, embora exactos, não passam de modalidades, e os físicos são indivisíveis só aparentemente, os metafísicos ou pontos de substância (constituídos pelas formas ou almas) são exactos, reais e fundamento de tudo o que é real79 que, portanto, está de facto dividido até ao infinito em partes actuais. A unidade do contínuo não é 76. 77.

Système Nouveau de la Nature, § 3 (1695), Ger IV, p. 478, Prenant... p. 326; Cfr. Prenant, L. - ob. cit., p. 334; cfr. a Foucher, Ger I, pag. 416: "Quant aux indivisibles, lorsqu'on entend par là les simples extremités du temps ou de la ligne, on n'y saurait concevoir de nouvelles extremités, ni des parties actuelles ni potentielles. Ainsi les points ne sont ni gros ni petits, et il ne faut point de saut pour les passer. Cependant le continu, quoiqu'il ait partout de tels indivisibles, n'en est point composé (...)" Cfr. Ger I, Remarques sur les objections de M. Foucher, de 12 Set. 1695; não há princípios componentes em nenhum abstracto, e quem os quer realizar entra no labirinto de compositione continui pela confusão do ideal e do actual. De novo Leibniz resiste a penetrar no labirinto, ao negar a procura estéril de autênticos princípios de unidade no contínuo. 78. Cfr. Système Nouveau, § 3, Ger IV, p. 479, Prenant... p. 326; 79. Cfr. Système Nouveau, § 11, Ger IV, p. 482-83, Prenant... p. 329.

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senão uma unidade mental, fenoménica, que não basta para o que há de real nos fenómenos80. Encontramo-nos perante a mesma situação aparentemente paradoxal de Aristóteles: o que verdadeiramente poderia fundar a unidade do contínuo - se é unidade é indivisível - é justamente o que nega ou destrói o próprio contínuo. Sendo este a infinita divisibilidade, deixa de haver contínuo quando se dá o indivisível, verdadeira definição da unidade. No caso de Aristóteles, o contínuo só se pode admitir como uma certa indivisão, que não resiste no entanto à divisão, portanto uma unidade precária, ocasionada apenas pelo facto de os limites das partes se tocarem e constituirem um só corpo; não possuindo qualquer garantia de verdadeira indivisibilidade, o contínuo não detém o fundamento da sua unidade. Que explicação apresenta Leibniz para o contínuo, para a unidade aparente, fenoménica, mental, unidade de percepção, etc. da extensão? Não sendo a natureza do corpo, porque a extensão é sempre relativa a algo que exige ser extenso, e exige não só a consideração da extensão como resultado, mas também como processo de extendere que lhe dá origem81,

80.

Cfr. a Arnauld, 9 Outubro 1687, Ger II, p. 119, Prenant... p. 267. Cfr. o 2º Esclarecimento de Leibniz sobre as objecções que lhe foram postas em relação ao Système Nouveau, Ger IV, 501, Prenant... p. 338: "Je ne comprends pas comment la matière peut être conçue étendue, et cependant sans parties actuelles ni mentales; et si cela est ainsi, je ne sais ce que c'est que d'être étendu. Je crois même que la matière est essentiellement un agrégé, et par conséquent qu'il y a toujours des parties actuelles. Ainsi c'est par la raison et non pas seulement par le sens que nous jugeons qu'elle est divisée ou plutôt qu'elle n'est autre chose originairement qu'une multitude. Je crois qu'il est vrai que la matière (et même chaque partie de la matière) est divisée en un plus grand nombre de parties qu'il n'est possible d'imaginer. C'est ce qui me fait dire souvent que chaque corps, quelque petit qu'il soit, est un monde de créatures infinies en nombre. (...)" 81. Cfr. Kaulbach, F. - art. cit., p. 516: "... si on définit le corps comme un être étendu, il faut aussi désigner la force produisant l'action d'étendre dont le résultat est le corps étendu. Il faut se souvenir du double sens du terme extension, désignant aussi bien le processus d'étendre que son résultat. Processus et résultat présupposent une force dont l'action est d'étendre et qui est à l'oeuvre dans la planète, dans l'arbre ou dans la forme animale et humaine".

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extensão significa repetição ou difusão da natureza do mesmo corpo82. A repetição, ou multiplicidade de coisas semelhantes é discreta (no caso das coisas numeradas, em que se distinguem as partes agregadas), ou contínua (no caso das partes serem indeterminadas e poderem estar dispostas de muitas maneiras): o contínuo sucessivo, como o tempo e o movimento não é senão a disposição ou série das variações que nele se podem dar; o contínuo simultâneo, como o espaço e o corpo, não é senão a disposição possível dos corpos. Sempre que uma mesma natureza se repete ou difunde ao mesmo tempo através de muitos exemplares - como no ouro se difunde a ductilidade, o peso específico ou a cor amarela - dizemos que se dá extensão. No entanto, Leibniz adverte uma vez mais: "Il n'en faut pas moins reconnaître que cette diffusion continue, dans les cas de la couleur, du poids, de la ductilité et de choses semblables, homogènes seulement par leur aspect, n'existe qu'en apparence et n'a pas place dans les parties si petites qu'on les prenne, si bien qu'en toute rigueur c'est à la seule diffusion de la résistance au travers de la matière qu'il est juste de réserver le nom d'étendue"83.

Assim, há no leite uma difusão, repetição do branco, no diamante uma difusão da dureza, e no corpo em geral uma difusão, ou ex-tensão da antitipia ou materialidade. É a força que produz a extensão e constitui corpos extensos, é também a força o que reune estes corpos em figuras, tornando a figura corporal uma coisa única, coerente, com uma estrutura contínua. Compreendida como acto da força, a extensão produz uma continuação da

82.

Cfr. Opúsculo 11 Maio 1702, Prenant... p. 365. Cfr. Belaval, Y. - Leibniz critique de Descartes, Paris, Gallimard, 1960, p. 241: "... l'espace est inétendue, n'étant que l'ordre des coexistences, et l'étendue n'est elle-même qu'une apparence continue de la nature commune des monades, ou force". O contínuo não se pode entender como uma coisa, um objecto já feito, mas só como um processo incessante que tem a sua origem na força; só pressupondo uma força que é a origem do acto de extendere, produzindo assim a extensão. Cfr. Kaulbach, F. - art. cit., p. 520: "L'étendue, dit Leibniz, présuppose dans les corps étendus une "nature" qui s'étend, s'élargit et se prolonge". 83. Opúsculo 11 Maio 1702, Prenant... p. 365.

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resistência que a figura corporal exerce sobre outros corpos, impedindo-os de ocupar o seu lugar, ela é, portanto "continuatio resistentiae"84. A unidade do contínuo não constitui assim um problema para Leibniz: a continuidade exacta, aparente da extensão é remetida para o estatuto do fenoménico, e rejeitando terminantemente desde os primeiros escritos, a concepção da substância corporal como pura extensão, Leibniz evita entrar no Labirinto de Compositione continui que atribui precisamente às teses erradas do mecanicismo cartesiano. O que fica no entanto por justificar é a unidade de substâncias compostas, ou seja, é possível transferir a unidade das substâncias simples para as compostas? Ou tudo o que não é substância simples, deve ser considerado mero fenómeno, aparência, unidade mental ou de percepção? Este é o dilema que se pressente ao longo do pensamento leibniziano: a continuidade é sempre fenoménica, ideal, a realidade é constituída unicamente por substâncias simples, ou há algum fundamento para a unidade de substâncias compostas e respectiva continuidade real? Este dilema é claramente expresso numa carta de Leibniz a Des Bosses (de 5 de Fevereiro de 1712): "Ainsi doit-on dire l'un ou l'autre: ou les corps sont de simples phénomènes, et par conséquent l'étendue aussi ne sera qu'un phénomène, et seules les monades seront réelles; mais l'union sera remplacée dans les phénomènes par l'opération de l'âme qui perçoit; ou bien si la vraisemblance nous pousse à admettre des substances corporelles, cette substance-là consiste en cette réalité d'union qui ajoute "quelque chose d'absolu" (et partant substantiel) quoiqu'en flux à ce qui doit être uni"85.

Na Correspondência com Des Bosses, é o vinculum substantiale, (lien substantial na tradução de C. Fremont), noção tardia no sistema, que faz passar da discontinuidade das substâncias simples à continuidade das substâncias compostas: "En l'absence de ce lien substantial des monades, tous les corps, avec toutes leurs qualités, ne seraient que des phénomènes bien fondés, comme um 84. 85.

Cfr. a Des Bosses, Ger II, p. 324. L'Être et la Relation, p. 160-161; cfr. Ger II, p. 435.

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arc-en-ciel, une image dans un miroir, les mots, les songes qui se poursuivent de manière parfaitement congruente à eux-mêmes; et c'est en cela seulement que consisterait la réalité de ces phénomènes"86.

O dilema leva Leibniz a rever, ou a retocar a noção de substancialidade, e fá-lo em confronto com algumas das teses principais do pensamento aristotélico que Des Bosses resumira em cinco proposições na sua segunda carta87, propondo uma espécie de selecção crítica do que se deve conservar e do que se deve rejeitar da filosofia peripatética. E no que diz respeito ao critério da substância, Leibniz reconsidera e colhe a sugestão do pensamento aristotélico, em benefício da resolução do seu dilema: "Les Péripatéticiens reconnaissent tout à fait qu'il y a quelque chose de substantiel (aliquid substantiale) outre les Monades, mais par ailleurs, selon ceux-là même, il n'y aurait pas d'autres substances que les Monades. Et celles-ci ne constituent pas une substance composée complète, car elles ne font pas une unité par soi si ce n'est par la présence d'une sorte de lien substantial"88.

É o vínculo substancial que garante a continuidade real; com esta tese rejeita Leibniz as duas consequências absurdas de considerar substâncias apenas as mónadas: considerar os corpos simples fenómenos, ou atribuir a origem da continuidade aos pontos geométricos89. Esta concepção de contínuo torna-se paradoxal: imaginar os pontos de vista das mónadas sobre 86. 87.

Cfr. L'Être et la Relation, p. 40-41; cfr. ibidem, p. 161; Ger II, p. 435-436. Cfr. Ger II, p. 297: Des Bosses resume o pensamento aristotélico nas seguintes proposições: - O Ser e o Uno são reciprocáveis. - O contínuo é divisível até ao infinito. - O infinito em acto não se dá na Natureza. - A unidade é o princípio do número. - Nas causas e princípios o progresso não deve ir até ao infinito, mas parar algures. As três primeiras dizem respeito ao problema do contínuo e as respostas de Leibniz permitem estabelecer um confronto do seu sistema com a filosofia peripatética. 88. Fremont, C. - ob. cit., p. 169; Ger II, p. 444. 89. Cfr. Fremont, C. - ob. cit., p. 205; Ger II, p. 517.

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o modelo dos pontos geométricos situados num espaço dado, não permite compreender como é que os pontos podem dar origem ao contínuo. A geometria apoia a tese da divisibilidade até ao infinito (correspondente à caracterização aristotélica do contínuo), mas não apresenta nenhum modelo para a compreensão da origem do contínuo; como vimos, a análise aristotélica desembocara neste mesmo impasse: o processo de compreensão do contínuo percorre o caminho que vai do próprio contínuo até ao indivisível, sem nunca o alcançar, mas não permite fazer o caminho no sentido inverso. Daí a ambiguidade ou a precaridade da unidade do contínuo. A saída do labirinto passa, em Aristóteles como em Leibniz (se alguma vez nele chegou a entrar), pela ideia do movimento, da força activamente unificadora, capaz de originar um contínuo que não é o contínuo "exacto" da geometria e da matemática: esse contínuo é puramente ideal porque resulta do nosso modo de apreender as coisas no espaço e no tempo90. Leibniz ultrapassa, portanto, o impasse do contínuo, "considerando as coisas de um modo completamente diferente": isto é, deixar de conceber o espaço como algo composto de pontos e defini-lo como uma relação ideal91 e pensar a matéria a partir da união das mónadas e não a partir da extensão geométrica: "...en considérant les choses à ma manière, la question de l'étendue ou de la composition du continu ne se pose pas, et toutes les difficultés concernant les points s'évanouissent. Et c'est ce que j'ai voulu dire quelque part dans 90.

Cfr. Kaulbach, F. - art. cit., p. 521: "l'espace et le temps sont "la manière et le mode" sous lesquels les choses doivent être données à notre point de vue humain. Leibniz parle de "point de vue". Il résulte aussi que la doctrine de l'idéalité de l'espace et du temps est liée au labyrinthe du continu. Cette doctrine garantit que la force originaire se trouve non pas du côté du corps présent dans son étendue, mais du côté de la force activement unifiante, dont nous comprenons, lorsque par exemple nous réfléchissons sur le continu, qu'elle est una force spirituelle". 91. Cfr. 5º Escrito a Clarke, Ger VII, p. 395 § 29: "J'ai démontré que l'espace n'est autre chose qu'un ordre de l'existence des choses, qui se remarque dans leur simultanéité". P. 396, § 33: "Puisque l'espace en soi est une chose idéale comme le temps, il faut bien que l'espace hors du monde soit imaginaire, comme les Scholastiques même l'ont bien reconnu".

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ma Théodicée, que nous devons prendre garde aux difficultés de la composition du continu, et qu'il faut prendre les choses tout autrement"92.

Podemos concluir que tanto Aristóteles como Leibniz, na análise da noção de contínuo detectam uma dificuldade semelhante, a de fundar a unidade no mero contínuo fáctico: que os limites das partes se toquem e formem um só corpo, não é mais do que um facto circunstancial destituído de qualquer fundamento e por isso mesmo sujeito à divisão, que significa negação da unidade. A ambiguidade e precaridade desta primeira acepção da unidade faz ver que o contínuo constitui como uma noção preliminar à forma da qual depende: a unidade real não encontra fundamento verdadeiro na matéria, isto é, não pode fundar-se só na categoria da quantidade, mas releva da categoria da substância. No entanto, a decisão leibniziana de evitar o "labirinto do contínuo", leva-o a uma "outra forma de considerar as coisas", da qual procedem algumas divergências em relação à filosofia aristotélica, sobretudo no que diz respeito à noção de infinito. A terceira proposição da síntese que Des Bosses elaborara do pensamento de Aristóteles, afirma: "O infinito actual não se dá na natureza". O mundo sensível é, para Aristóteles constituído por um número finito de formas que, pelo seu modo de ser na matéria, estão contagiadas pela sua característica fundamental, que é a de uma infinita possibilidade de divisão; mas ao determinar a matéria, a forma, de certo modo actualiza essa potencialidade infinita, tornando-a finita. A passagem do infinito a finito é uma outra forma para exprimir a determinação do indeterminado, ou a passagem de potência a acto. Segundo Leibniz, a natureza manifesta por todo o lado o infinito actual: não há nenhuma parte da matéria que, não só potencialmente, mas de facto, não esteja actualmente dividida numa infinidade de outras partes: "Je suis tellement pour l'infini actuel, qu'au lieu d'admettre que la nature l'abhorre, comme l'on dit vulgairement, je tiens qu'elle l'affecte partout, pour mieux marquer les perfections de son auteur. Ainsi je crois qu'il n'y a 92.

Fremont, C. - ob. cit., p. 171; Ger II, p. 451.

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aucune partie de la matière qui ne soit, je ne dis pas divisible, mais actuellement divisée, et par conséquent, la moindre particelle doit être considerée comme un monde plein d'une infinité de créatures différentes"93.

Nesta infinitude actual da matéria não há repetição nem homogeneidade ou uniformidade, pois cada uma destas pequeníssimas partes constitui um ponto de vista diferente, exprime todo o universo de uma forma diferente. A raiz da divergência destes dois modos de formular a questão do infinito, não está propriamente na concepção do contínuo, mas no estatuto atribuído à matéria: enquanto em Aristóteles esta é sempre potencial residindo a infinitude apenas nesta potencialidade, para Leibniz a matéria possui um "acto entitativo"; por isso mesmo, em Aristóteles a divisibilidade do contínuo é sempre potencial e é nesta potencialidade que reside a infinitude. É a divisibilidade infinita da extensão que torna problemática a noção da unidade do contínuo. Unidade precária, peculiar, que não consiste na indivisiblidade, mas no mero facto de se encontrar indiviso. Para Leibniz a matéria encontra-se realmente dividade até ao infinito, não há uniformidade nem homogeneidade94, o princípio da multiplicidade, da diferença, reside nas formas, realmente existentes em número infinito. A multiplicidade infinita de formas é o sinal indelével da perfeição do Universo, apenas entrevisto por um entendimento finito ao qual escapa o conhecimento desta infinitude actual. A unidade do contínuo extenso é afinal, consequência da limitação do ponto de vista geométrico, e da dificuldade para ultrapassar por vezes o "puro fenómeno". Para Aristóteles, 93.

Carta a Foucher, Ger I, p. 416; cfr. Théodicée, II Parte, 195, Ger VI, p. 232: "Il y a une infinité de créatures dans la moindre parcelle de la matière, à cause de la division actuelle du continuum à l'infini. Et l'infini, c'est-à-dire l'amas d'un nombre infini de substances, à proprement parler, n'est pas un tout; non plus que le nombre infini lui-même, duquel on ne saurait dire s'il est pair ou impair (...)" 94. Cfr. Kaulbach, F. - art. cit., p. 526: "(Leibniz) déclare que la monotonie du champ homogène résulte d'une idéalisation rationnelle, fondée certes dans la réalité, mais restant infiniment rempli: la nature elle-même montre une détermination tellement abondante que par principe elle dépasse l'horizon de la pensée exacte".

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esta unidade é realmente precária, infundada, mas apesar de tudo real, expressão da infinita divisibilidade potencial, sinal da inesgotabilidade da forma e sua incapacidade de expressão cabal pela matéria. Tanto o pensamento aristotélico como o de Leibniz mostram bem, ainda que em direcções contrárias, a heterogeneidade dos dois registos - o da unidade-indivisível e o da multiplicidade-divisível - e a consequente impossibilidade de derivar ou de produzir um através do outro. Partindo da multiplicidade, da infinita divisibilidade do contínuo - via aristotélica - não se alcançará nunca o indivisível. Por isso, a divisibilidade própria do contínuo é inesgotável, inacabável. Não consiste na potência finita de estar infinitamente dividido, mas na potência infinita de estar finitamente dividido. Por mais divisões que se façam, o contínuo continua a ser divisível. A impossibilidade de ultrapassar infinitamente a divisão até ao mais pequeno radica na nossa imaginação, incapaz de descer indefinidamente os degraus do infinitamente pequeno. Leibniz, seguindo uma via inversa, parte da unidade-indivisível-simples e revela a impossibilidade de derivar desta o múltiplo-divisível-composto. Um "composto-de-simples" seria, evidentemente um ser contraditório: se o mundo for composto de indivisíveis-simples, então o composto-divisível será fruto da imaginação, meramente aparente, fenoménico. Para não prescindir do simples-indivisível, Leibniz terá que negar a realidade do composto. Aristóteles opta pela realidade do composto-divisível, admitindo a noção de uma unidade real, mas precária. Leibniz terá que "completar" o seu sistema com a noção do "vínculo" para atribuir uma justificação não meramente fenoménico da unidade dos seres compostos.

v v v

À primeira acepção da unidade - a do contínuo - corresponde um sentido precário, insuficiente que revela mais a dificuldade em a compreender sem a referência a um fundo único, do qual são eduzidas as unidades reais, do que um aspecto característico da própria unidade. O que

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mostra este primeiro sentido de unidade, é a função de atractor que exerce a noção de um substracto, ou de um fundo, para pensar as unidades formais. E a esse fundo se atribui uma certa unidade que consiste apenas na sua anterioridade em relação à divisão. Pensa-se a divisão como relação a algo que se divide, o indiviso como ponto extremo e último da acção de dividir. O contínuo exerce essa função de fundo em relação às formas, às unidades reais, como um antes da divisão, um para lá de todas as unidades, um fundo ainda informe. No entanto, como se torna patente tanto em Aristóteles como em Leibniz, a divisão não produz nunca indivisíveis, e os indivisíveis não se podem constituir nunca em seres compostos. E se o signo do ser é a unidade, como explicar a multiplicidade? Atribuir-lhe um estatuto fenoménico, pertencente só a uma fonte mental? Esta solução não ocorre a Aristóteles, que sempre atribui um sentido mais forte de unidade à forma; o contínuo configurado num todo, adquire já uma certa unidade causada pela configuração: "Um grau ainda mais elevado de unidade, é a que se atribui a um todo e tem uma forma determinada"95.

95.

Metafísica, I, 1, 1052a22; O contínuo do todo é definido por Aristóteles como: "aquilo cujo movimento é essencialmente um e não pode ser de outro modo; o movimento é um, quando é indivisível, e é indivisível no tempo" (Δ, 6, 1016a57). Todo e parte, são noções correlativas, definindo-se uma pela outra: o todo é constituído pelas suas partes, emprestando-lhes uma configuração que lhes dá unidade, o que revela bem como este binómio pertence mais ao registo morfológico. Na ontologia de Lesniewski, cuja relação fundamental é a de parte/todo, a cópula "é" em qualquer proposição é considerada como um functor ou conector, portanto o elemento formal; os termos singulares, universais ou vazios pertencem a uma categoria semântica, enquanto a cópula, tal como os functores ("se...então", "ou", etc.) constituem uma categoria semântica diferente. Estas duas categorias apresentam afinidades nítidas com a matéria e a forma. Em qualquer todo - seja ele um indivíduo como Sócrates ou Callias, seja um número, 2 - é possível distinguir entre o elemento material e o formal: assim por exemplo a "matéria" do número 2 são as suas duas unidades 1+1 (Cfr. Metafísica, M, 8, 1084b5: "cada uma das unidades é, com efeito, elemento do Número, como matéria, enquanto o Número desempenha o papel de forma"). Lukasiewicz, ("The Principle of Individuation", Aristotelian

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É esta forma que constitui o princípio de unidade de um ser composto, não a matéria. Isto não significa no entanto que a unidade seja um princípio formal, nem muito menos uma forma. O que Aristóteles afirma96 é que a forma é a verdadeira causa da unidade das substâncias, e por isso lhe corresponde um sentido primordial da unidade. Leibniz, para dar uma unidade real às substâncias compostas, reconhece também a necessidade de recorrer à forma substancial: mas este recurso está condicionado pelo antecedente: "se quisermos manter as substâncias corporais". O que levará Leibniz a ceder às formas substanciais, e a recorrer ao "vínculo" para justificar a unidade do composto, é simplesmente o estatuto axiomático da transcendentalidade da unidade, tese partilhada plenamente com Aristóteles e que constitui, nos dois pensadores, o grande alicerce para resolver o problema da unidade. A reciprocidade predicativa entre ser e um exige um tratamento do predicado é um semelhante ao do predicado é: exige que o Uno não seja um género, tal como o Ser não o é. Ser e um são os mais universais de todos os predicados; são predicados que se podem atribuir a todas as categorias, sem no entanto estar contidos em nenhuma das categorias97, são realmente Society, Suppl. vol 27, 1953, p. 81) comentando esta passagem considera incompreensível o que entende Aristóteles pelo elemento formal, e propõe que a forma do nº 2 seja o functor "mais", "plus", "+". O número 2 é portanto um todo que consiste em duas unidades como suas partes, o elemento material, e a adição como elemento formal. Em qualquer todo se podem distinguir estes dois elementos: as partes e a sua estrutura, a configuração que lhes é conferida por um elemento formal: no caso de um silogismo, as partes são os conteúdos das premissas e da conclusão, a estrutura é-lhes dada pelos functores "todos", "se..então", "e", etc, que lhe conferem a forma. Este esquema de análise do todo/partes é aplicável a um indivíduo real: Sócrates constitui um todo, uma unidade, (εν), diferente de qualquer outro indivíduo. A sua matéria - a carne e os ossos - não pode ser o princípio da sua unidade e unicidade, pois qualquer unidade de um composto exige um princípio de ordem não material: o que constitui o corpo humano num todo, que materialmente consiste numa quantidade de carne, ossos, musculatura, etc., é a sua estrutura interna, ou seja a sua forma. 96. Cfr. Metafísica, M, 8, 1084b5-10. V. nota 1 de Tricot, na sua edição. 97. Cfr. Metafísica, I, 2, 1053b20 - 1054a.

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transcategoriais. A afinidade entre Ser e Uno patenteia-se exactamente no seu comportamento semelhante no processo predicativo: "E que, em certo sentido, a unidade significa o mesmo que ser, é evidente pelo facto de ter um significado correspondente a cada uma das categorias, sem estar contida em nenhuma delas, por exemplo, não está contida nem na substância, nem na qualidade, mas relaciona-se com elas exactamente como o ser; é também evidente pelo facto de 'um homem' não predicar nada mais (de homem) do que simplesmente 'homem' (tal como o Ser, não existe fora de alguma coisa ou qualidade ou quantidade); 'ser um' é afinal 'ser uma coisa particular' "98.

É neste sentido transcendental que Aristóteles considera o um essencialmente como "a primeira medida de cada género" e, mais do que qualquer outro, da quantidade. É pela medida que a quantidade é conhecida, quer pela unidade, quer pelo número, sendo todo o número conhecido pela unidade. O um como medida ilustra bem - e por isso é o sentido mais apropriado da unidade - este carácter transcategorial: a medida assume sempre a mesma natureza ou forma do que é medido, e requer em cada género um ponto de partida, um mínimum constituído por alguma unidade indivisível99. Por isso a medida do número é a mais exacta de todas, porque apresenta a unidade indivisível sem mais. No caso das outras categorias (qualidade, etc.) nunca a unidade se apresenta tão puramente formal, tão isenta de qualquer conteúdo material. A unidade é o simples, aquilo do qual nada mais pode ser subtraído, que não pode ser posteriormente dividido. E como é óbvio em nenhuma outra categoria, para além da quantidade, se pode encontrar o indivisível, o simples de um modo absoluto: "Portanto - conclui Aristóteles - a medida do número é a mais exacta de todas, porque a unidade é apresentada como um indivisível absoluto"100.

No caso de cada categoria o Uno assume a forma respectiva, não sendo no entanto nenhuma coisa em particular nem determinada. Se não 98. 99. 100.

Metafísica, I, 2, 1054a13-20. Cfr. Metafísica, I, 1, 1052b20 - 1053a. Metafísica, I, 1, 1053a.

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fosse assim, mas ficasse retido dentro de cada categoria através da qual se predica, em cada uma dessas categorias seria necessário reformular e resolver a questão da natureza do Uno101. "Portanto, se nas categorias da passividade e qualidade, quantidade e movimento, há em cada categoria um número e uma unidade, e se o número é um número de alguma coisa particular, e a unidade é uma unidade particular, não sendo a sua substância a unidade (o facto de ser um não é a substância da unidade), nas substâncias acontece exactamente o mesmo, visto que a unidade se comporta do mesmo modo em todas as categorias"102.

A unidade-medida mostra pois, emblematicamente o carácter transcategorial, transcendental da unidade. É fundamentalmente esta teoria do carácter predicativo transcendental do Uno que Aristóteles opõe às filosofias que substancializam o Uno, separando-o de todas as categorias, atribuindo-lhe um carácter de em si e identificando-o ora com a Amizade (Empédocles), ora com o ar (Anaximenes) ora com o Infinito (Anaximandro)103. Esvaziando de certo modo a noção de todo o conteúdo, Aristóteles permite-lhe circular com maleabilidade por todo o sistema categorial, adoptando e assumindo inúmeras formas, segundo a categoria segundo a qual se predica, sem perder nunca a plasticidade e mobilidade que caracterizam os predicados transcendentais. A primeira das cinco teses aristotélicas referidas por Des Bosses - ens et unum convertuntur - coincide com o axioma que norteara a correspondência com Arnauld; é a exigência desta reciprocidade entre unidade e ser que levará Leibniz a modular toda a sua teoria sobre as substâncias compostas104, recorrendo à noção de "vínculo", que permite uma justificação metafísica da unidade destas substâncias, compatível com a relação forma-matéria de inspiração peripatética105.

101. 102. 103. 104. 105.

Cfr. ibidem, 1053b25-30. Metafísica, I, 2, 1054a5-10. Cfr. Metafísica, I, 2, 1053b10-15. Cfr. Robinet, A. - ob. cit., p. 114. Cfr. ibidem, p. 83.

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No entanto, sendo a unidade dos seres compostos, atribuída sobretudo à forma, como justificar a pluralidade? Também pela forma, e só pela forma? Se assim for, há na forma, simultaneamente um princípio de unidade e de multiplicidade? Como reconciliar estes dois princípios, se os dois registos, como vimos se revelam heterogéneos e inderiváveis um do outro? Atribuir a unidade à forma e remeter a multiplicidade para a matéria, obriga, como vimos em Leibniz, a atribuir-lhe um estatuto fenoménico, aparente, e sobretudo contraria o carácter transcendental da unidade, postulado do qual nem Aristóteles nem Leibniz prescindem. É esta transcendentalidade que permite atribuir "uma certa unidade do contínuo", unidade por analogia, fundada sobretudo na percepção da indivisão; mas, uma vez que a indivisibilidade não encontra a sua causa no contínuo material, é necessário recorrer a um princípio de ordem formal, mas um princípio que justifique a unidade na multiplicidade, ou a pluralidade de unidades: terá que exercer, portanto, uma espécie de função de intermediário, apresentar-se como um entre-dois que realize a sutura entre os dois registos, de unidade e multiplicidade, resolvendo as aporias tradicionais do uno e do múltiplo106. Daí a necessidade de um princípio da individuação, que radica precisamente nesta problemática complexa, inter-disciplinar, porque, embora enraizada essencialmente na ontologia, interfere noutros domínios, desde o do conhecimento ao das ciências. Em suma: se a transcendentalidade da unidade é assumida - tanto por Aristóteles, como por Leibniz - como uma tese fundamental, se tudo o que é, é um, o que constitui problema é a justificação da pluralidade, da multiplicidade, que parece opor-se à unidade. Para não cair nas posições extremas de negar realidade, consistência, ser ao múltiplo, remetendo-o ou para o não-ser, ou para um estatuto de mero fenómeno, é necessário admitir que a unidade, como transcendental que é, circula também por dentro da multiplicidade, instituindo uma pluralidade de unidades. É necessário explicar como se dá esta interferência, reconciliação de unidade e multiplicidade: a substância composta é o locus por excelência desta 106.

Cfr. Kaulbach, F. - art. cit., p. 526: "Comprendre la connexion indivisible et fluente qui réunit de façon continue l'hétérogénéité infinie de la multiplicité infinie des déterminations du monde en une chose, telle est la tâche proposée à la pensée philosophique de la véritable continuité".

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problemática, porque exibe precisamente um estatuto de entre-dois, oscilante entre "uma certa unidade" em constante tensão interna, e um horizonte de multiplicidade.

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