O controle da publicidade de produtos derivados do tabaco.

September 16, 2017 | Autor: E. Baracho Dore F... | Categoria: Constitutional Law, Direito Constitucional, Direito Do Consumidor, CONSUMERS LAW
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ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

2013 São Paulo

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ítulo independente. São Paulo : 1ª. ed. Clássica Editora, 2013. ISBN 978-85-99651-79-7 1. Direito. I. Título. CDD 342

EDITORA CLÁSSICA Conselho Editorial

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Equipe Editorial Editora Responsável: Verônica Gottgtroy Produção Editorial: Editora Clássica Capa: Editora Clássica

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Apresentação ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO Este livro foi idealizado pelos Professores Roberto Correia da Silva Gomes Caldas e Rubia Carneiro Neves que, a partir da coordenação do Grupo de Trabalho “Atuação Empresarial no Estado Democrático de Direito” no XX Encontro Nacional do CONPEDI realizado entre os dias 22 e 25 de junho de 2011, em Belo Horizonte/ MG, na Universidade FUMEC, perceberam o elevado nível das discussões ali produzidas e decidiram ampliar o alcance daquelas ideias promovendo, dessa maneira, o aprimoramento da ciência jurídica e o aperfeiçoamento do projeto temático também vinculado à linha de pesquisa “Regulação e Autonomia Privada” do Mestrado em Direito da Universidade FUMEC. O Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito – CONPEDI é uma associação de personalidade jurídica de direito privado e sem fim econômico, fundamentalmente voltado para apoiar os estudos jurídicos e o desenvolvimento da Pós-Graduação em Direito, nos termos praticados pelas Instituições de Ensino Superior. Os Grupos de Trabalho que acontecem nos Encontros e Congressos promovidos pelo CONPEDI visam a criar, incentivar o intercâmbio e a cooperação cultural de pesquisadores e professores de Direito, entre instituições nacionais e internacionais, bem como colaborar para a interação dos diferentes cursos de mestrado e doutorado em Direito, bem como para a transferência de experiências entre pesquisadores e centros de pesquisas jurídicas. A realização desses eventos tem proporcionado profícuo lavor de hermenêutica jurídica que em muito contribui para o aprimoramento da Ciência do Direito, produzindo novas reflexões doutrinárias aptas a contribuir para a confecção normativa, bem como, orientar a sua aplicação (do Direito) pelos Tribunais do País. Tendo em vista que o projeto em tela investiga a dicotomia entre a autonomia privada e a interferência do Estado Democrático de Direito na

criação, na interpretação e na aplicação das normas que regulam e estruturam as corporações, bem como os institutos relacionados com a atuação empresarial, agruparam-se os textos sob quatro temáticas neles predominantes, quais sejam: I - Empresa e função social; II – Responsabilidade, Direito Societário e Direito Penal; III - Negócios Jurídicos, atuação empresarial e a necessidade de compatibilizar a autonomia da vontade e a intervenção estatal; e IV - Regulação no mercado financeiro e demais setores. Nesse contexto tão relevante em que nasce a presente obra, inclusive como efluência dos tão enriquecedores debates ocorridos quando da exposição dos estudos durante o Grupo de Trabalho “Atuação Empresarial no Estado Democrático de Direito”, é de se registrar, os próprios coordenadores, animados com a mesma excelência dos textos que afluíram em subseqüência para a compilação, resolveram igualmente contribuir com a apresentação de um lavor científico conjunto intitulado “Administração pública consensual: uma nova tendência nos acordos de parceria para promover tecnologia e inovação”, resultado da fusão interdisciplinar de trabalhos seus anteriores e isoladamente publicados, os atualizando, revisando e ampliando consideravelmente. O livro, daí, consubstancia-se em 16 (dezesseis) textos coordenados em torno do tema “Atuação Empresarial no Estado Democrático de Direito”, abordando o envolvimento do Direito Empresarial com outros ramos jurídicos, dentre os quais evidenciam-se o Direito Administrativo, Constitucional, do Consumidor, de Família e Sucessões, Falimentar, Penal e Trabalhista. É de se consignar que a disposição dos estudos sob os quatro eixos temáticos em que repartidos os capítulos, em si, não foi tarefa fácil, porquanto os assuntos neles tratados, em verdade, se inter-relacionam de modo a não comportarem uma separação estanque. Desse modo, a divisão deu-se segundo os temas abordados com maior ênfase, elegendo-se tal critério para o agrupamento realizado de forma a mais cômoda possível. Assim, no primeiro capítulo “Empresa e função social”, a abordagem predominante é de cunho mais geral e com grande amplitude principiológicoconstitucional. Tem-se, com isso: “A Proteção da Microempresa como Princípio Constitucional da Ordem Econômica”, de Daniela Ramos Marinho, em que se analisa a possibilidade de aplicação satisfatória da Lei Complementar nº 123, que instituiu o Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte; “O Planejamento Sucessório como Instrumento de Alcance da Função Social da Atividade Empresaria”, de Leonardo Barreto da Motta Messano, que apresenta uma proposta de utilização da empresa familiar como um mecanismo viabilizador de princípios constitucionais; e “Recuperação extrajudicial pelos

caminhos da mediação: a preservação da empresa com soluções dinâmicas”, de Sávio Raniere Pereira Pinto e Renata Christiana Vieira Maia, pelo qual se observa a possibilidade de realização da Recuperação Extrajudicial por intermédio da Mediação. No segundo capítulo “Responsabilidade, Direito Societário e Direito Penal”, a empresa é analisada sob o viés interdisciplinar dos institutos da despersonalização da pessoa jurídica e da responsabilidade. Verificam-se, pois: “A Disregard of Legal Entity Doctrine Versus o Princípio da Preservação da Sociedade Empresária”, de Deilton Ribeiro Brasil, a ter-se em que medida a desconsideração da personalidade jurídica pode ser aplicada levando-se em consideração o custo da sua implementação diante do princípio da função social da sociedade empresária e da relevância da organização empresária para o mercado; “Como o STJ e STF entendem a Responsabilidade Penal e Não Penal dos Administradores de Sociedades Empresárias?”, de Marta Rodriguez de Assis Machado e Viviane Muller Prado, possibilita compreender-se o regime de distribuição de responsabilidade no Direito Brasileiro, sua aplicação pelos Tribunais pátrios e como o princípio da individualização da responsabilidade penal vem sendo absorvido como norte de atuação pelos os agentes econômicos que ocupam cargos de direção nas sociedades empresárias; e “A Crise da Limitação da Responsabilidade nas Sociedades Empresárias Limitadas sob o Enfoque da Figura do Administrador”, de Sabrina Tôrres Lage Peixoto de Melo, versa sobre a aleatória e injustificada mitigação da personalidade das sociedades empresariais, com uma indevida responsabilização dos seus sócios gerentes, fragilizando irritamente o instituto. Já no terceiro capítulo “Negócios Jurídicos, Atuação Empresarial e Compatibilização da Autonomia da Vontade com Intervenção Estatal”, a tônica é a busca do equilíbrio entre a vontade empresarial e a intervenção do Estado sob suas diferentes modalidades. Os trabalhos aí insertos são: “A Simulação como Vício do Negócio Jurídico nos Contratos de Sociedade”, de Gustavo Henrique de Almeida e Mário César Hamdan Gontijo, que trata desse vício de consentimento enquanto invalidante do atuar empresarial, como também das práticas correlatas que desvirtuam o contrato de sociedade empresária, em desvio à sua finalidade e detrimento à sua função social; “Acordos Trabalhistas Extrajudiciais: Uma Possibilidade de Compatibilizar a Autonomia e a Intervenção Estatal”, de Marcelo Ivan Melek, a seu turno, encara a conciliação extrajudicial como um válido instrumento para a solução dos conflitos entre as empresas e seus empregados, estipulando os limites à sua homologação no âmbito da Justiça do Trabalho, à luz do primado da hipossuficiência e eventuais vícios de vontade. “A Importância do Project Finance no Desenvolvimento das Empresas Brasileiras”, de Isamara Seabra, observa sua origem, aspectos e as dificuldades

de sua implantação, salientando sua relevância para projetos que necessitem elevados montantes de investimento sem garantias tradicionais. “Controle da Publicidade de Produtos Derivados do Tabaco”, de Eric Baracho Dore Fernandes e Fernando Gama de Miranda Netto, entende o tabaco como uma epidemia a ser controlada a prol da saúde pública, mediante restrições à sua publicidade direta e indireta, segundo políticas públicas que permitam a sua verificação de forma válida, a proteção estatal dos consumidores e a responsabilização das empresas pelos efeitos danosos de seus produtos. “O Novel Estatuto da Igualdade Racial e Seus Impactos na Atividade Empresarial: Efetividade ou Mera Retórica?”, de Felippe Abu-Jamra Corrêa, traz o contexto das ações afirmativas no Brasil com o advento da Lei 12.288, de 20 de julho de 2010 (Estatuto da Igualdade Racial), questionando a efetividade de sua implantação nas empresas, inclusive como forma de promoção da igualdade. O quarto e derradeiro capítulo “Regulação do Mercado Financeiro e Demais Setores”, cuida da regulação no âmbito empresarial, quer promovida pelo Estado, quer pelo próprio Mercado, quando da estipulação de regras de governança corporativa. Os seus textos são: “A Regulação Financeira em face dos Direitos Fundamentais”, de João Salvador dos Reis Neto, traduz a necessidade da regulação no mercado financeiro e sua relação com os direitos fundamentais previstos na Constituição Federal de 1988, além de outros nela não contidos, atentando para uma aplicação legítima das normas regulatórias ao sistema financeiro nacional pátrio. “Administração Pública Consensual: Uma Nova Tendência nos Acordos de Parceria para Promover Tecnologia e Inovação”, de autoria da coordenação, verifica o contexto em que os acordos de parceria para promover a tecnologia e inovação são influenciados pela atividade regulatória administrativa concertada, claramente impregnada por um espírito associativo de parceria. “O Novo Marco Regulatório e as Joint Ventures na Indústria do Petróleo: Um Olhar Crítico sobre a Intervenção do Estado na Autonomia Privada”, de Alberto Lopes da Rosa, revela as novas formas de parceria e sua regulação com o advento da Lei n.º 12.351/2010, para exploração de petróleo, gás natural e outros hidrocarbonetos na região denominada de présal e outras áreas estratégicas. e “Atuação Empresarial no Mercado de Combustíveis e Derivados: Aspectos Jurídicos decorrentes da Adulteração e o Papel Regulador da ANP”, de Alexandre Ferreira De Assumpção Alves, no qual se identificam as responsabilidades dos agentes que atuam nesse mercado, e sua respectivas sanções administrativas decorrentes da atividade regulatória da ANP, à luz da Lei do Petróleo (Lei nº 9.847/97), inclusive mediante a desconsideração da personalidade jurídica das respectivas empresas.

Postas essas breves explicações e explanações, a permitirem aflorar as características tão incomuns para uma obra interdisciplinar a respeito de assuntos empresariais atuais e modernos, em busca de soluções a certos problemas enfrentados pelos operadores do Direito no seu dia-a-dia, é que se recomenda vivamente a proveitosa leitura. São Paulo, 25 de junho de 2012. Roberto Caldas e Rubia Carneiro Neves

Agradecimentos Agradecemos a todos os autores que gentil e solicitamente procederam às adaptações indicadas a seus textos para a imperiosa adequação ao formato definido para a publicação, parabenizando-os pela excelência dos brilhantes trabalhos apresentados. Também somos agradecidos ao Dr. Vladmir Oliveira da Silveira (Presidente do CONPEDI) por ter prontamente apoiado a iniciativa da confecção desta obra, enquanto extensão das exposições verbalmente realizadas quando do XX Encontro Nacional do CONPEDI, bem como por ter aceito prefaciá-la.

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prefácio Foi com muita alegria que aceitei o convite para prefaciar esta obra, que consiste na compilação de textos produzidos no âmbito do Grupo de Trabalho “Atuação Empresarial no Estado Democrático de Direito” que teve lugar no XX Encontro Nacional do CONPEDI realizado entre os dias 22 e 25 de junho de 2011, em Belo Horizonte/MG, na Universidade FUMEC. Os textos com um eixo temático comum e baseados na intersecção da premissa da intervenção estatal e autonomia privada, apresentam-se com a profundidade e densidade necessária para nossos propósitos institucionais de extrema valorização da pesquisa e seus resultados na seara acadêmica. Os temas aqui escolhidos são muitas vezes relegados ao exclusivo enfoque da economia como se não houvesse qualquer inflexão jurídica sobre questões relativas a observância de direitos fundamentais, da globalização com qualidade de vida, informação, privacidade e respeito pela diversidade, apenas para exemplificar. Entretanto, os trabalhos aqui selecionados abordam vários mecanismos de ação dos agentes econômicos, como isso ocorre e como podem vir a ser numa perspectiva de um capitalismo avançado e complexo, com atendimento às normas e refreamento de abusos. Essa é a expectativa das sociedades corretamente reguladas, como a nossa. Todos os artigos estão adequados a um enfoque central que parte de sua gênese econômica, mas que são caros a toda a sociedade, pois se irradiam sobre direitos e garantias fundamentais. Esta sociedade acuada pelo excesso de oferta de produtos, serviço e crédito, de uma prolixidade nas relações comerciais e de uma extrema concentração de capital nas mãos das grandes corporações é ávida por mecanismos jurídicos de contenção. A maior mobilidade social a partir da ascensão econômica, entretanto, não afasta a dívida social, ainda latente. Resta o desafio ao estudioso do direito de perquirir soluções e equacionar as discrepâncias que surgem da prática de uma economia de mercado diante das salvaguardas constitucionais do indivíduo e da coletividade. O texto “Controle da publicidade de produtos derivados do tabaco”, de Fernando Gama de Miranda Netto, aborda os limites do marketing do tabaco, produto que, embora comercializado licitamente, merece tratamento restritivo na 13

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mídia, sendo que o autor analisa com profundidade quais os limites constitucionais e legais para a autonomia da vontade do consumidor. A publicidade do tabaco aqui é estudada em razão de seu impacto, da real extensão da publicidade sobre a autonomia da vontade, sendo objeto do estudo a inevitável equivocidade e a abusividade ao mercado de consumo. Em torno das verdades e mentiras sobre o espectro da liberdade que é dada ao fornecedor para introduzir esse produto lícito no mercado de consumo, procede a interessante cotejo sobre a liberdade de fornecer e a possível tutela do consumidor e sua saúde. Alberto Lopes da Rosa opta pela análise das joint ventures na indústria do petróleo com destaque para as alterações promovidas pelo novo marco regulatório – Lei n.º 12.351/2010 –, perquirindo sobre as medidas adotadas para as atividades relacionadas à indústria do petróleo, mormente no que diz respeito à opção do legislador por uma política de maior intervenção do Estado na autonomia privada, e a disciplina dos consórcios (joint ventures) lá previstos. João Salvador dos Reis Neto, em “A Regulação Financeira em Face dos Direitos Fundamentais”, traz mais um texto sobre a regulação, agora sob o prisma da intervenção do estado na atividade financeira, onde a configuração desse mercado financeiro é a tônica, além de abordar de forma perfunctória as características do mercado atual, o engessamento promovido pelos os órgãos de regulação e a forma como são procedidas as negociações de mercado diante da constituição vigente, e sua possível conformação e respeito aos direitos fundamentais. Ainda sob a ótica da regulação, Alexandre Ferreira de Assumpção Alves, com o trabalho “Atuação Empresarial no Mercado de Combustíveis e Derivados : Aspectos Jurídicos Decorrentes da Adulteração e o papel da ANP” busca uma análise da Lei do Petróleo (Lei nº 9.847/97) a Política Energética Nacional, e sua efetividade diante de um consumidor vulnerável frente a um fornecimento altamente controlado pelo Estado, num setor sensível no mercado de consumo até mesmo para garantir estabilidade de preços para os demais produtos e prestação de serviços. O autor analisa a questão da formação e controle de preços, qualidade dos produtos, e a competência da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), órgão regulador e fiscalizador da atuação empresarial, seus poderes e a eficiência da regulação. O autor dá relevo ao tema da desconsideração da personalidade jurídica, prevista na Lei nº 9.847/99, sendo ainda digna de nota a análise das obrigações impostas ao fornecedor pelo marco regulatório, uma opção moderna de controle de serviços e bens essenciais na sociedade de consumo. O recentemente editado Estatuto da Igualdade Racial foi o tema eleito por Felipe Abu-Jamra Corrêa sob o foco de seus impactos na atividade empresarial, trazendo à luz o questionamento de sua real efetividade ou retórica 14

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ineficaz. O texto é um esforço de análise jurídica e política sobre a inserção social promovida pelas ações afirmativas transcritas na Lei n. 12.288, de 20 de julho de 2010, e o evidente propósito de resgate que este diploma legislativo visa promover num original contexto de análise da aplicação do princípio da igualdade a partir de fórmulas dignificantes de valorização do trabalho, e ao mesmo tempo avalia a real implementação da lei no âmbito empresarial, e, sob aspecto mais teórico, se a lei em comento é expletiva do princípio da igualdade. “O Planejamento Sucessório como Instrumento de Alcance da Função Social da Atividade Empresaria”, de Leonardo Barreto da Motta Messano também parte de uma abordagem atual e original sobre a função social da propriedade, da atividade do empresário, e do necessário questionamento do tema empresa familiar não como um fim em si mesmo, mas ao contrario, de viabilizador de princípios constitucionais mais valiosos que a simples transmissão endógena do negócio familiar. O autor constata as necessidades de atendimento do interesse coletivo, que suplanta a ideia tão cultuada no século XIX. Em “A Proteção da Microempresa como Princípio Constitucional da Ordem Econômica”, de Daniela Ramos Marinho, o norte é a possibilidade de aplicação satisfatória da Lei Complementar n. 123, que instituiu o Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte com o intuito de criar um regime único de arrecadação de impostos e contribuições no âmbito da União, dos Estados, do Distrito Federal e Municípios. O trabalho analisa as possibilidades de diminuição da onerosidade referente às obrigações trabalhistas e previdenciárias, entre outras, tais como se a microempresa é capaz ainda de alavancar negócios e gerar empregos. Questiona se há um horizonte para esse principio de proteção constitucional da Ordem Econômica contido no artigo 170, e, mais do que isso, o trabalho analisa a aptidão e relevância das microempresas num cenário cada vez mais dominado pelas grandes corporações e seus braços. Para Gustavo Henrique de Almeida e Mário César Hamdan Gontijo, vale analisar peculiaridades da atividade empresarial, e, em “A Simulação como Vício do Negócio Jurídico nos Contratos de Sociedade”, a partir de temas do direito privado que nos são caros, tal como a função social do contrato de sociedade empresária e a prevalência do social sobre o individual. O autor atenta para a necessária transposição dos aspectos básicos constitutivos e expressivos da manifestação de vontade, tal como a boa-fé e a cooperação no contrato, e atinge questões mais densas como a já citada função social contrato, que não pode ser maculada por interesses individuais e menos altruístas que aqueles queridos por toda a sociedade para a atividade negocial. “Acordos Trabalhistas Extrajudiciais: Uma Possibilidade de Compatibilizar a Autonomia e a Intervenção Estatal” é o trabalho trazido por Marcelo Ivan Melek, que elege a conciliação na esfera trabalhista como método relevante na 15

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solução de conflitos laborais não somente pelo ângulo dos efeitos jurídicos que podem ser alcançados, mas também e principalmente pela segurança jurídica que tais instrumentos podem proporcionar, mormente se considerado que a autocomposição pode refletir uma satisfação real que previne novos conflitos. Outro texto, “A Disregard of Legal Entity Doctrine Versus o Princípio da Preservação da Sociedade Empresária”, de Deilton Ribeiro Brasil aborda a função social da sociedade empresária, sua aptidão para atingir mais que fins econômicos elementares – o lucro –, mas uma nova concepção que visa a uma finalidade precípua para as sociedades empresárias que possibilitem o atendimento de exigências de natureza social, o que significa a própria função social afirmada. O autor capta o leitor para sua compreensão de que a meta do legislador moderno não é desvirtuar a atividade empresária, lucrativa por excelência, dentro de mecanismos que promovam a contenção da finalidade primeira da atividade aos limites do necessário respeito à construção de uma sociedade empresária adequada ao interesse social. “A Importância do Project Finance no Desenvolvimento das Empresas Brasileiras”, de Isamara Seabra, elege os principais aspectos do project finance como tema, sua origem no mundo e no Brasil, bem como procede a uma análise de sua distinção de outras estruturas de financiamento, tais como o corporate finance e o development finance. A autora nos apresenta sua visão realista das limitações jurídicas e as dificuldades de transposição para o project finance no Brasil e as suas principais fontes de financiamento, não sem destacar a importância de sua utilização para as empresas brasileiras, as peculiaridades dos projetos que demandam grande injeção de capital e os principais agentes financiadores em atividade, tal como a Caixa Econômica Federal, o BNDES e os Bancos Regionais de Fomento. O texto de Marta Rodriguez de Assis Machado e Viviane Muller Prado nos é introduzido com uma pergunta, e “Como o STJ e STF entendem a Responsabilidade Penal e Não Penal dos Administradores de Sociedades Empresárias?” é um exercício de análise para compreender-se o regime jurídico de responsabilização dos administradores e sua capacidade de interferência sobre a organização e funcionamento da empresa e sobre o estímulo à livre iniciativa no Brasil. O trabalho realiza de forma eficiente uma compilação de dados que possam traduzir os verdadeiros limites da atividade empresarial em torno do regime de distribuição de responsabilidade no Direito Brasileiro, sua aplicação pelos tribunais e como o princípio da individualização da responsabilidade penal vem sendo absorvido como norte de atuação pelos os agentes econômicos que ocupam cargos de direção nas sociedades empresárias. “Administração pública consensual: uma nova tendência nos acordos de parceria para promover tecnologia e inovação”, de Roberto Correia da Silva Gomes 16

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Caldas e Rubia Carneiro Neves é um trabalho de aprofundamento que converge para as teorias sobre o Estado Democrático de Direito, o capitalismo humanista e ainda a funcionalização do contrato. Os autores com competência analisaram a dogmática e seu conteúdo pertinente, pois necessária a análise da estrutura normativa aplicável na dinâmica da regulamentação, o contexto associativo dos denominados contratos administrativos e a inflexão dos limites da legislação sobre os acordos de parceria celebrados para promover a tecnologia e inovação. “A crise da limitação da responsabilidade nas sociedades empresariais limitadas sob o enfoque da figura do administrador”, de Sabrina Tôrres Lage Peixoto de Melo investigou a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica e sua caótica leitura nos dias atuais, o desvirtuamento de sua inserção em nosso sistema normativo, sua imputação aos sócios do empreendimento – o que tem se verificado com roupagem quase arrivista – e tem o propósito de promover uma sensata análise da responsabilidade das sociedades. A “Recuperação extrajudicial pelos caminhos da mediação: a preservação da empresa com soluções dinâmicas” é um texto de Sávio Raniere Pereira Pinto e Renata Christiana Vieira Maia cujo propósito é analisar a possibilidade de realização da Recuperação Extrajudicial por intermédio da Mediação, a Lei 11.101/2005 e seus paradigmas de preservação do empreendimento, mas é um texto atento ao pouco interesse que o instituto tem provocado nos estudiosos brasileiros, além da falta de tradição de aplicação do instituto da mediação. Por fim quero consignar que foi com grande prazer que me debrucei sobre os textos bem selecionados pelo sistema do duplo cego do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Direito – CONPEDI –, que resultou numa obra consistente e simétrica nos seus propósitos de proporcionar uma visão moderna, proficiente e sistemática do interesse social que deve revestir a disciplina da atividade econômica. Boa leitura! Florianópolis, Inverno de 2012. Vladmir Oliveira da Silveira Presidente do CONPEDI

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Sumário PREFÁCIO................................................................................................................ 13 I - Empresa e função social A PROTEÇÃO DA MICROEMPRESA COMO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA ORDEM ECONÔMICA Daniela Ramos Marinho................................................................................. 21 O PLANEJAMENTO SUCESSÓRIO COMO INSTRUMENTO DE ALCANCE DA FUNÇÃO SOCIAL DA ATIVIDADE EMPRESÁRIA Leonardo Barreto da Motta Messano...................................................... 39 RECUPERAÇÃO EXTRAJUDICIAL PELOS CAMINHOS DA MEDIAÇÃO: A PRESERVAÇÃO DA EMPRESA COM SOLUÇÕES DINÂMICAS Sávio Raniere Pereira Pinto e Renata Christiana Vieira Maia........ 59 II - Responsabilidade, Direito Societário e Direito Penal A DISREGARD OF LEGAL ENTITY DOCTRINE VERSUS O PRINCÍPIO DA PRESERVAÇÃO DA SOCIEDADE EMPRESÁRIA Deilton Ribeiro Brasil..................................................................................... 87 COMO O STJ E STF ENTENDEM A RESPONSABILIDADE PENAL E NÃO PENAL DOS ADMINISTRADORES DAS SOCIEDADES EMPRESÁRIAS? Marta Rodriguez de Assis Machado e Viviane Muller Prado ......... 115 A CRISE DA LIMITAÇÃO DA RESPONSABILIDADE NAS SOCIEDADES EMPRESÁRIAS LIMITADAS SOB O ENFOQUE DA FIGURA DO ADMINISTRADOR Sabrina Tôrres Lage Peixoto de Melo........................................................ 145 19

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III - Negócios Jurídicos, atuação empresarial e a necessidade de compatibilizar a autonomia da vontade e a intervenção estatal A SIMULAÇÃO COMO VÍCIO DO NEGÓCIO JURÍDICO NOS CONTRATOS DE SOCIEDADE Gustavo Henrique de Almeida e Mário César Hamdan Gontijo....... 169 ACORDOS TRABALHISTAS EXTRAJUDICIAIS: UMA POSSIBILIDADE DE COMPATIBILIZAR A AUTONOMIA E A INTERVENÇÃO ESTATAL Marcelo Ivan Melek......................................................................................... 195 A IMPORTÂNCIA DO PROJECT FINANCE NO DESENVOLVIMENTO DAS EMPRESAS BRASILEIRAS Isamara Seabra................................................................................................... 217 CONTROLE DA PUBLICIDADE DE PRODUTOS DERIVADOS DO TABACO Fernando G. de Miranda Netto e Eric Baracho D. Fernandes ......... 247 O NOVEL ESTATUTO DA IGUALDADE RACIAL E SEUS IMPACTOS NA ATIVIDADE EMPRESARIAL: EFETIVIDADE OU MERA RETÓRICA? Felippe Abu-Jamra Corrêa.............................................................................. 283 IV - Regulação no mercado financeiro e demais setores A REGULAÇÃO FINANCEIRA EM FACE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS João Salvador dos Reis Neto......................................................................... 307 ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA CONSENSUAL: UMA NOVA TENDÊNCIA NOS ACORDOS DE PARCERIA PARA PROMOVER TECNOLOGIA E INOVAÇÃO Roberto C. da Silva G. Caldas e Rubia Carneiro Neves ....................... 341 ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO MERCADO DE COMBUSTÍVEIS E DERIVADOS: ASPECTOS JURÍDICOS DECORRENTES DA ADULTERAÇÃO E O PAPEL REGULADOR DA ANP Alexandre Ferreira de Assumpção Alves................................................. 371 O NOVO MARCO REGULATÓRIO E AS JOINT VENTURES NA INDÚSTRIA DO PETRÓLEO: UM OLHAR CRÍTICO SOBRE A INTERVENÇÃO DO ESTADO NA AUTONOMIA PRIVADA Alberto Lopes da Rosa..................................................................................... 403 20

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I - Empresa e função social A PROTEÇÃO DA MICROEMPRESA COMO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA ORDEM ECONÔMICA THE PROTECTION GIVEN TO SMALL COMPANIES AS PRINCIPLE CONSTITUTIONAL OF ECONOMICAL ORDER Daniela Ramos Marinho RESUMO Em dezembro de 2006 foi publicada a Lei Complementar n. 123, que instituiu o Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte com o intuito criar um regime único de arrecadação de impostos e contribuições no âmbito da União, dos Estados, do Distrito Federal e Municípios, além de proporcionar a diminuição da onerosidade referente às obrigações trabalhistas e previdenciárias, bem como ao registro e regulamentação de sua atividade frente à lei civil e tributária. Esta norma foi criada para atender ao princípio Constitucional previsto no capítulo que trata da ordem econômica Constitucional, notadamente ao artigo 170 que prevê tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País. Desta forma, este trabalho tem como escopo demonstrar os mecanismos constitucionais que salvaguardam os interesses da microempresa. Para isto, procedeu-se, no primeiro capítulo, à conceituação da microempresa, seguido de breve exposição da evolução legislativa deste segmento. Em ato subseqüente, o trabalho foca-se no estudo da Ordem Econômica inserida num capítulo específico da Constituição Federal de 1988 para, por fim, demonstrar à proteção dada à microempresa que adquiriu estatus de princípio norteador dos postulados desta Ordem Econômica. Por fim, aponta-se, a relevância das microempresas no cenário brasileiro que, por certo, conduziram o legislador constituinte à promoção de amparo específico às microempresas no bojo do texto Constitucional. Palavras-Chave: microempresa, ordem econômica, Constituição, tratamento favorecido.

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ABSTRACT In December 2006 the complementary   no 123 law which created the small company and small company legislation with the objective to create sole of tax collection in the federal, state and county scopes. Besides reducing the costs concerning the labor obligations, as well as the registration and regulation of its activities before the civil and tributary laws. This norm was crated to serve the constitutional principle foreseen in the chapter which deals with the economical order, especially the 170 Article that foresees favored treatment to the small companies created on Brazilian laws which have their headquarters and management in the country. So, this treatment has in its scope to show the constitutional mechanisms that safeguard the small companies’ interests. And so in the first chapter the small company, followed by a brief exposition of the legislative evolution of this segment. On a subsequent act the work focus on the economical study inserted in the specific of the 1988 Federal Constitution and at last show the protection given to small companies that gained the status of guiding principle of this new economical order. And at last the relevance of the small companies in the Brazilian scenario, that certainly conducted the constitutional legislator to promote specific support to the small companies in the scope of The constitutional text. Keywords: small companies, economical order, Constitution, favored treatment 1. INTRODUÇÃO Após intensos debates na sociedade e especificamente no Congresso Nacional, em 16 de dezembro de 2006, por meio da Lei Complementar n. 123, foi, enfim, instituído o Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte. A norma foi criada para atender, além dos reclamos sociais, aos preceitos delineados na Constituição Federal. É que, assim como os trabalhadores que após longos anos de luta, obtiveram tratamento diferenciado em suas relações com os empregadores a fim de elidir os conflitos sociais e de justiça que seguiam insolúveis, também no campo do direito econômico, o Constituinte de 1988 houve por bem exigir tratamento jurídico diferenciado para as microempresas. Nesse passo, este trabalho tem como objetivo demonstrar os mecanismos constitucionais que salvaguardam os interesses dos pequenos empreendimentos 22

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brasileiros. Emerge do questionamento sobre as razões que fizeram originar a formulação constitucional que contempla uma proteção específica às microempresas. A pesquisa se deu de forma exploratória com análise bibliográfica a partir de coleta de dados em material científico e informativo atualizado sobre o assunto abordado. Com o propósito aludido, procede-se, no primeiro capítulo, à conceituação da microempresa à luz da legislação e outros órgãos que a definem para fins de concessão de incentivos. Também neste capítulo apresenta-se a evolução histórico-normativa das legislações brasileiras que, de alguma forma, propiciaram um tratamento mais benéfico para as empresas objeto deste estudo, com menção ao recente projeto noticiado pela mídia brasileira que traz mudanças paras as microempresas, com ampliação dos limites de faturamento visando o aumento do número de empresas aos benefícios fiscais do Simples Nacional. Em ato contínuo, o trabalho foca-se no estudo da Ordem Econômica inserida num capítulo específico da Constituição Federal de 1988 para, por fim, demonstrar à proteção dada à microempresa que adquiriu estatus de princípio norteador dos postulados desta Ordem Econômica. Após o delineamento de mencionado aspecto, aponta-se os dados que indicam a função exercida pelas microempresas no cenário econômico brasileiro a fim de esclarecer a relevância desse segmento empresarial, que, por certo, conduziram o legislador constituinte à promoção de amparo específico às microempresas no bojo do texto Constitucional. 2. BREVE ESBOÇO SOBRE A DEFINIÇÃO DA MICROEMPRESA E SUA EVOLUÇÃO LEGISLATIVA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO O artigo 3º da Lei Geral das Micro e Pequena Empresas dispõe que considera-se microempresa a sociedade empresária, a sociedade simples ou o empresário individual que tenha auferido, no ano-calendário, receita bruta igual ou inferior a R$240.000,00 (duzentos e quarenta mil reais) e empresa de pequeno porte a sociedade empresária, a sociedade simples ou o empresário individual que tenha auferido receita bruta superior a R$240.000,00 (duzentos e quarenta mil reais) e igual ou inferior a R$2.400.000,00 (dois milhões e quatrocentos mil reais). Sobre esses valores, cumpre aqui abrir um parêntese para mencionar que no último dia 08 de agosto a presidente Dilma Rousseff anunciou em rede nacional o aumento de 50% em todas as faixas da tabela do Simples Nacional, em vigor desde 2007. A proposta veiculada por meio do projeto de Lei 23

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Complementar 591/10, propõe o aumento do limite da receita bruta anual das microempresas dos atuais R$240 mil para R$360 mil. No caso das empresas de pequeno porte, o limite foi alterado de R$2,4 milhões para R$3,6 milhões. Embora seja esse critério o mais aceito para fins de conceituação de microempresa, não existe unicidade na definição, pois existem outros critérios administrativos para definir a microempresa, trazidos por órgãos como o SEBRAE (Serviço de Brasileiro de Apoio à Micro Pequenas Empresas), e o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) para fins de concessão dos benefícios existentes no ordenamento jurídico. Exemplo disso está na classificação que concebe a microempresa a partir do proprietário, que é aquele que centraliza quase todas as atividades, exercendo várias funções ao mesmo tempo. Outro parâmetro encontrado é aquele desenvolvido pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e pelo Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE), o qual é empregado de acordo com a quantidade de pessoas que trabalham nessas empresas. Assim, é considerada microempresa aquela que emprega até nove pessoas no ramo de atividade de comércio e serviços, e até dezenove pessoas na indústria. Por fim, há a classificação que concebe a microempresa pelo seu volume monetário ou econômico. Esta classificação é utilizada pelas leis federais e estaduais, como a anunciada no início deste tópico, para fins de tributação, considerando os limites de faturamento para o enquadramento como micro ou pequena empresa. Sobre a evolução legislativa da microempresa no ordenamento jurídico há de ser dito que, embora sempre tenha havido alguma previsão legal em atenção aos pequenos negócios, somente no início da década de 80, ficou assentada a importância da pequena empresa para o desenvolvimento nacional. Daí para frente, várias ações foram efetivadas no âmbito legislativo. Destarte, em abril de 1980, foi editado o Decreto- Lei nº1.780, concedendo isenção de imposto sobre a renda em relação às empresas de pequeno porte, dispensando-o, também, do cumprimento de obrigações acessórias. Em 1981, surgiu a Lei nº. 6.939 estabelecendo o regime sumário de registro e arquivamento no Registro do Comércio para as firmas individuais e sociedades mercantis que preenchessem determinados requisitos, como por exemplo, serem constituídas sob a forma de sociedade limitada, determinado número de trabalhadores, dentre outros. Já em 1984, a Lei 7.256, regulamentada pelo Decreto 90.880 de 1985, estabeleceu a primeira definição legal sobre a microempresa, desenvolvendo ainda a assertiva segundo a qual a microempresa teria um tratamento privilegiado. No mesmo ano, buscando consolidar os objetivos da lei em menção, foi criada a Lei Complementar Nº. 48, isentando as microempresas do 24

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recolhimento de ICM (Imposto sobre Circulação de Mercadorias) e de ISS (Imposto sobre Serviços), isenção essa ampliada pouco depois pela lei 7.519 de 14 de julho de 1986. Embora tais leis tivessem como escopo precípuo o tratamento diferenciado para as microempresas, este intento logrou avanço somente quando da promulgação da Constituição Federal de 1988, que incluiu o tratamento favorecido para microempresa no capítulo sobre a Ordem Econômica, assunto que será melhor tratado em tópico vindouro. Com o objetivo precípuo de atender aos ditames balizados no texto constitucional, em 28 de marços de 1994, com a edição da Lei 8.864, foi criado o Estatuto da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte, resgatando a obrigatoriedade da escrituração até então revogada, determinando, todavia, simplificação nos procedimentos, a ser estabelecida por um Decreto regulamentar definidor das normas próprias para escrituração do micro e pequeno empresário. Em 1996, foi criado, pela Lei nº 9.317, o regime denominado SIMPLES (Sistema Integrado de Pagamento de Impostos e Contribuições das Microempresas e Empresas de Pequeno Porte). Por meio desta lei, foi aprimorado o sistema de pagamentos de impostosa fim de, reduzindo a carga tributária, incentivar o surgimento dos pequenos empreendimentos. O regime incluiu as pequenas empresas como beneficiárias da tributação simplificada e ampliou a relação dos impostos e contribuições incluídos no benefício da arrecadação única. Por fim, no mês de dezembro de 2007, foi publicada a Lei Complementar nº. 123, revogando a Lei nº 9841 de outubro de 1999 (Estatuto da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte) que até então regulava a matéria e a lei nº. 9317 de 1996 (SIMPLES). Esta lei instituiu um regime único de arrecadação de impostos e contribuições no âmbito da União, dos Estados, do Distrito Federal e Municípios, o que possibilitou ao erário um controle mais efetivo das atividades empresariais. Ressalta-se que esta norma objetiva não somente o aprimoramento da forma de arrecadação estatal, como também a diminuição da onerosidade referente às obrigações trabalhistas e previdenciárias. Do mesmo modo, trouxe normas facilitadoras para o registro e regulamentação de sua atividade frente à lei civil e tributária, como, por exemplo abertura e encerramento das atividades sem a necessidade de apresentação de comprovantes de regularidade fiscal. Paralelamente a esta norma, outras também trataram de incorporar regras que proporcionaram tratamento jurídico e diferenciado ao segmento empresarial aqui estudado. Exemplo disso reside na Lei de Falência e recuperação de empresas (Lei n. 11.101 de 09 de fevereiro de 2005), a qual instituiu um plano especial de recuperação judicial da microempresa. 25

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Por fim, menciona-se que as microempresas não tiveram apenas suporte legal para o fomento de suas atividades, já que, desde 1990 foi criado o SEBRAE (Serviço Brasileiro de Apoio à Micro e Pequenas Empresas) como uma instituição técnica de apoio e desenvolvimento da atividade empresarial de pequeno porte, voltado para a difusão de programas e projetos de promoção e fortalecimento das micro e pequenas empresas, criado pelas Leis 8.029, de 12 de abril de 1990, e 8.154 de 28 de dezembro 1990, e regulamentadas pelo Decreto 99.570 de 1990, cuja atividade vem sendo exercida até os dias atuais. 3. A ORDEM ECONÔMICA INSTITUÍDA NA CONSTITUIÇÃO DE 1988 Conforme as lições do professor Silva (2002), a ordem econômica adquiriu dimensão jurídica a partir do momento em que as Constituições passaram a discipliná-la sistematicamente. A Constituição brasileira de 1988 é considerada uma típica representante do que se conhece como constitucionalismo dirigista ou de caráter social, que se iniciou com a Constituição mexi­cana de 1917 e a Constituição de Weimar de 1919. Sofreu ainda forte influência do modelo alemão do pós-guerra, assim como da Constituição portuguesa, adotada depois da derrubada do regime salazarista, nos anos 70. Percebe-se que, ao contrário das Constituições Liberais que visam limitar a esfera de atuação do Estado, assegurando amplo espaço para a realização da liberdade individual, especificamente do mercado, as Constituições Sociais estabelecem obrigações positivas para o Estado na área social, impõe diretrizes para regulamentar as atividades econômicas, assim como configuram órgãos para a implementação de suas políticas públicas. Embora tenha sido elaborada num momento de reflorescimento das idéias pertinentes à limitação da atuação do Estado e de redução dos direitos de caráter social, a Constituição Brasileira de 1988 adotou o figurino do Estado de bemestar social, o que é compreensível numa sociedade que, à época, apresentava profundos padrões de desigualdades. É imperioso, no entanto, citar o pensamento de Silva (2002), quando pondera que, a ordem econômica consubstanciada em nossa Constituição não é senão uma forma econômica capitalista, uma vez que se apóia na apropriação privada dos meios de produção e na iniciativa privada, o que, inclusive, vem estampado em seu artigo 170 da Constituição. Sobre isso, o citado professor escreveu que “a atuação do Estado, assim, não é nada menos que do que uma tentativa de por ordem na vida econômica e social, de arrumar a desordem que provinha do neoliberalismo”. Essa forma de atuação do Estado ficou conhecida como “dirigismo” (SILVA, 2002) razão de sua forma de atuação que implica apenas em enunciar diretrizes, fins e programas a serem realizados pela sociedade. 26

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Apenas a título de informação, deve se lembrar que a idéia de Constituição dirigente foi formulada pelo jurista português José Joaquim Gomes Canotilho, em sua tese de doutorado de 1.982, cujo título da obra é “Constituição dirigente e vinculação do legislador”. Em seu trabalho, ficou assentado que a Constituição não deve limitar em absoluto o Poder; mas, todavia, traçar as metas que deverão ser progressivamente realizadas pelo Estado, para transformar a ordem política, econômica e social. (CANOTILHO, 1994, p.338). Em conseqüência do caráter dirigista, a Constituição Federal de 1988, traçou, em seu art. 170, os ditames da ordem econômica. No capítulo voltado à mencionada ordem econômica, observa-se a reunião de princípios, normas e institutos jurídicos voltados para sua regulamentação. Esse conjunto de preceitos voltados à regulação da economia em nível Constitucional recebeu o nome de “Constitucionalização da Ordem Econômica”. (ARAÚJO, 1999, p.347). Deve ser lembrado que expressão “ordem econômica” foi assimilada pelos juristas a partir do início deste século, significando uma idéia de sistema voltado para regulação das relações econômicas em um Estado, determinando seus limites, sendo que os desígnios presentes em seu conteúdo sempre contiveram forte carga ideológica. Sobre a ordem econômica, o professor Grau (1998, p. 68), assim ensinou: [...] em um primeiro sentido, “ordem econômica” é o modo de ser empírico de uma determinada economia concreta; a expressão, aqui, é termo de um conceito de fato (é conceito do mundo do ser, portanto);o que o caracteriza é a circunstância de referir-se não a um conjunto de regras ou a normas reguladoras de relações sociais, mas sim a uma relação entre fenômenos econômicos e matérias, ou seja, relação entre fatores econômicos concretos; conceito do mundo do ser, exprime a realidade de uma inerente articulação do econômico como fato; [...] em um segundo sentido, “ordem econômica” é expressão que designa o conjunto de todas as normas(ou regras de conduta), qualquer que seja a sua natureza(jurídica, religiosa, moral etc.), que respeitam à regulação do comportamento dos sujeitos econômicos; é o sistema normativo( no sentido sociológico) da ação econômica; [...] em um terceiro sentido, “ordem econômica” significa “ordem jurídica da economia.” 27

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Para Araújo (1999, p. 347,) a ordem econômica pode ser definida como “o conjunto de normas fundamentais que estabelecem juridicamente os elementos estruturais de uma forma concreta de um determinado sistema econômico[...]”. Simplificando as definições dadas, deve se dizer que ordem econômica é a parcela que regra normativamente as questões econômicas, que institucionalizam uma determinada ordem econômica, regulando os limites da atuação da iniciativa privada, bem como do Estado. 3.1 FUNDAMENTOS DA ORDEM ECONÔMICA A Constituição declara que a ordem econômica é fundada na valorização do trabalho humano e na iniciativa privada. Para o professor Silva (2002, p. 765), isto implica dizer que: Em primeiro lugar quer dizer precisamente que a Constituição consagra uma economia de mercado, de natureza capitalista, pois a iniciativa privada é um princípio básico da ordem capitalista. Em segundo lugar significa que, embora capitalista, a ordem econômica dá prioridades ao trabalho humano sobre todos os demais valores da economia de mercado. Por ser uma declaração de princípio, o professor Silva afirma que essa prioridade tem o sentido de orientar a intervenção do Estado na Economia, a fim de fazer valer os valores sociais do trabalho que, ao lado da iniciativa privada, constituem o fundamento não só da ordem econômica, mas da própria República Federativa do Brasil. Sobre a valorização do trabalho humano importa lembrar que esta constitui também fundamento da República Federativa do Brasil, nos termos no art. 1º, inc. IV da CF/88. Erivaldo Moreira Barbosa (2003, p.205) recorda que o trabalho na Antigüidade não era considerado digno, sendo desempenhado pelos menos favorecidos, já que os nobres não deveriam se envolver em atividades consideradas tão baixas. Esta situação foi sofrendo modificações somente no período Medieval esse, em face do Cristianismo, passando a ser encarado como um vetor contributivo da dignidade. Ao tratar da valorização do trabalho o jurista Eros Grau (p.64, 2004) assevera que esta caracterização representa uma preocupação com um tratamento distinto ao trabalho que, “em uma sociedade capitalista moderna, peculiariza-se na medida em o trabalho passa a receber proteção não meramente filantrópica, porém politicamente racional”. 28

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Sobre esse assunto, Slaib Filho acrescenta ser inegável que o trabalho diz respeito ao fator social da produção, “porém ele está muito além da necessidade econômica de suprir as necessidades materiais – é uma necessidade, inerente à natureza humana e ao instituto da auto preservação e progresso pessoal” (2006, p. 702). Bastos (1997, p.113) entende que o Texto Constitucional refere-se à valorização do trabalho humano também no sentido material que a expressão abarca. Isto significa dizer que o trabalho deve possuir a uma contrapartida monetária que o torne materialmente digno. Não obstante, o autor em menção afirma que o trabalho deve receber a dignificação da sociedade, por servir de instrumento de concretização da própria dignidade, haja vista ser incoerente alcançá-la se não há condições mínimas de subsistência. Na verdade, segundo esse pensamento, ao se proporcionar melhores condições e oportunidades de trabalho ao indivíduo, estar-se-á, via de conseqüência, fornecendo subsídios para que se atinja a dignidade, que é assegurada, em toda a sua plenitude, pela Constituição Federal. Quanto à livre iniciativa, como segundo fundamento da ordem econômica, esta também constitui fundamento da República Federativa do Brasil (art. 1º, inc. IV da CF/88). Conforme os autores Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano Nunes Júnior, a livre iniciativa estampada no texto constitucional possui uma densidade normativa, da qual se pode extrair a “faculdade de criar e explorar uma atividade econômica a título privado” e a “não sujeição a qualquer restrição estatal, senão em virtude de lei” (ARAUJO; SERRANO JUNIOR, 2006, p. 466). Silva (2002, p.765) comenta que a livre iniciativa consagra uma economia de mercado, de natureza capitalista, já que é um princípio básico da ordem capitalista. Ensina que “a liberdade de iniciativa envolve a liberdade de indústria e comércio ou liberdade de empresa e a liberdade de contrato”. Eros Grau, por sua vez, pondera que a liberdade de iniciativa não se identifica apenas com a liberdade de empresa, pois abrange todas as formas de produção individuais ou coletivas, dando ensejo às iniciativas privada, cooperativa, autogestionária e pública (2004, p. 186-187). Certo é que a livre iniciativa sugere a liberdade de empresa, que pode ser entendida sobre três vertentes: “liberdade de investimento ou acesso; liberdade de organização; liberdade de contratação” (VAZ apud ARAUJO; SERRANO JUNIOR, 2006, p. 465). Embora pareça, num primeiro momento, contraditório a existência desses dois fundamentos no texto constitucional – valorização do trabalho humano e livre iniciativa, há de ser dito que estes podem perfeitamente coexistir na medida em que o desenvolvimento do livre exercício do empreendedorismo por parte dos particulares não se separa da necessária 29

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valorização do trabalho humano como forma de se garantir e efetivar o fundamento da Ordem Econômica delineada na Constituição Federal de 1988. Sobre este assunto, Bastos aponta que “A nossa Constituição trata da livre iniciativa logo no seu art. 1º., inc. IV [...]. Ela é, portanto, um dos fins da nossa estrutura política, em outra palavras, um dos fundamentos do próprio Estado Democrático de Direito, mas, nem por isso deixa de estar vinculada à obediência aos demais preceitos constitucionais” (2004, p.121). Com estas ponderações, importa registrar ainda que, conforme exposto no artigo 170 da Constituição Federal, objeto de análise deste estudo, estes fundamentos da valorização do trabalho humano e da livre iniciativa têm por finalidade assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social. Sobre a existência digna, esta se coaduna com o princípio da dignidade da pessoa humana, constituindo fundamento República Federativa do Brasil, conforme previsto no art. 1º, inc. III, da Constituição Federal Esclarecendo a dignidade da pessoa humana, o jurista José Afonso da Silva assim escreveu: “Dignidade da pessoa humana é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida. “Concebido como referência constitucional unificadora de todos os direitos fundamentais [observam Gomes Canotilho e Vital Moreira], o conceito de dignidade da pessoa humana obriga a uma densificação valorativa que tenha em conta o seu amplo sentido normativoconstitucional e não uma qualquer idéia apriorística do homem, não podendo reduzir-se o sentido de dignidade humana à defesa dos direitos pessoais tradicionais, esquecendo-a nos casos de direitos sociais, ou invoca-la para construir ‘teoria do núcleo da personalidade’ individual, ignorando-a quando se trate de garantir as bases da existência humana. Daí decorre que a ordem econômica há de ter por fim assegurar a todos existência digna (art. 170), a ordem social visará a realização da justiça social (art. 193), a educação o desenvolvimento da pessoa e o seu preparo para o exercício da cidadania (art. 205) etc., não como meros enunciados formais, mas como indicadores do conteúdo normativo eficaz da dignidade da pessoa humana”. (SILVA, 2001, p. 109) Em lapidar lição sobre o assunto Ferraz Júnior assim escreveu: Existência digna, conforme os ditames da justiça social, como vimos, não é um bem subjetivo e individual, mas de todos, que não admite miséria nem marginalização em parte alguma e distribui o bem-estar e o 30

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desenvolvimento com eqüidade. Protege, não privilegia. É fraternidade e ausência de discriminação. Não se mede por um absoluto, mas é, conforme certos limites de possibilidade estabelecidos, um sentido de orientação para não excluir ninguém. Assegurar, como fim da Ordem, é velar para que não ocorram impedimentos na realização de valores. (1989, p. 47). Extrai-se dessas afirmações que toda a atividade econômica deverá observar o dever de servir, não ao Estado como ente autônomo, mas à coletividade, através da efetivação dos valores que o povo, por meio de seus representantes, elegeram como indissociáveis desta ordem econômica. Pondo termo a este tópico, impõe destacar que o texto constitucional, especificamente no artigo 170, indica ainda que os fundamentos da ordem também devem ser orientados pela busca da justiça social. Ferreira Filho esclarece que esta expressão “justiça social” não possui um sentido unívoco, contudo seu uso é divulgado especialmente pela doutrina social da Igreja, podendo ser considerada como, a “virtude que ordena para o bem comum todos os atos humanos exteriores” (2007, p. 359). Grau menciona que a “justiça social, inicialmente quer significar superação das injustiças na repartição, a nível pessoal do produto econômico (...) passando a consubstanciar exigência de qualquer política econômica capitalista” (GRAU, 2004, p. 208). Silva, a seu turno, ensina que a “justiça social só se realiza mediante eqüitativa distribuição da riqueza” (2001, p. 767.), o que certamente possibilita a humanização do capitalismo. 3.2 A PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL DA MICROEMPRESA Após apontar os fundamentos, a Constituição Federal, em seu artigo 170, enuncia os princípios regentes da ordem econômica, sendo eles: I - soberania nacional; II - propriedade privada; III – função social da propriedade; IV – livre concorrência; V – defesa do consumidor; VI – defesa do meio ambiente; VII – redução das desigualdades regionais e sociais; VIII – busca do pleno emprego; IX – tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas, sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País. Vale anotar que as disposições normativas, sejam de fundo constitucional ou infraconstitucional, devem pautar-se por estes princípios orientadores na sua interpretação, haja vista que tais princípios constituem as pautas expressas ou implícitas que denotam o ponto de partida de qualquer ordem jurídica. Na verdade, estes princípios constituem normas cogentes. Neles é que o 31

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legislador brasileiro deve se pautar como também o judiciário, ao dirimir questões postas à sua avaliação e decisão, sob pena de evidente inconstitucionalidade das práticas que afrontarem estes princípios, ou das leis que estabelecerem metas opostas a eles. Inobstante a relevância de todos os princípios regentes da ordem econômica, aborda-se-á neste tópico, posto constituir ponto fulcral deste trabalho, o princípio que enuncia o “tratamento favorecido para as pequenas empresas”. Sendo assim, há de ser mencionado que o favorecimento às microempresas, revela a necessidade de se proteger os organismos micro empresariais que possuem menores condições de competitividade em relação às grandes empresas. Este princípio do tratamento favorecido aos pequenos empreendimentos é reafirmado no art. 179 da CF, nos seguintes termos: a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios dispensarão às microempresas e às empresas de pequeno porte, assim definidas em lei, tratamento jurídico diferenciado, visando a incentivá-las pela simplificação de suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias, ou pela eliminação ou redução destas por meio de lei. Trata-se de um princípio isonômico, equalizador que expressa o reconhecimento das desigualdades que existem na prática; por isso, impõe às pessoas políticas um dever que consiste em tratar desigualmente os desiguais; vale dizer, numa ordem econômica fundada na livre iniciativa, é necessário dispensar tratamento favorecido às pequenas empresas para que estas possam resistir ao mercado competitivo da livre concorrência. Manoel Gonçalves Ferreira Filho (2001, p.65) afirmou que: numa era de gigantismo empresarial, a sobrevivência das empresas de pequeno porte é extremamente difícil. São elas, porém, um elemento de equilíbrio e, conseqüentemente, merecem um tratamento especial. A seu turno, o pesquisador Lafayete Josué Petter (2005, p.38), apresentando justificativa para tal tratamento diferenciado discorreu que: “(...) de outra banda, certo é que o tratamento jurídico favorecido às empresas de pequeno porte tem variados fundamentos a justificar sua inserção dentre os princípios da atividade econômica. Bem examinadas as disposições relativas à ordem econômica no texto constitucional – sem olvidar que ela é parte integrante e indissociável da Constituição 32

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vista em sua inteireza - parece mesmo intuitivo que algo deveria ser feito em relação às empresas de pequeno porte. Pois são elas que mais empregam mão-de-obra, o que nos reconduz à valorização do trabalho humano como fundamento da ordem econômica. São elas que menos investimentos necessitam, havendo expansão do desenvolvimento se trilhados os caminhos em face delas abertos. Demais disso, exercem no contexto da economia um papel mais versátil e próximo do consumidor do que o desempenhado por grandes estruturas empresariais. Obtêm sua aprovação no mercado sem intermediação de pesados investimentos publicitários, indutores de hábitos de consumo, em muitos casos, evidentemente supérfluos. Mas também são elas as que mais dificuldades têm para a obtenção de financiamentos junto às instituições financeiras, daí o necessário. Dando continuidade ao seu pensamento, Petter esclarece que não há nenhum preconceito aos grandes negócios, sendo a diversidade de tamanhos de empresas necessária para uma economia saudável: [...] Não há aqui nenhuma espécie de preconceito quanto as empresas maiores, em muitas situações reflexos de trabalho e dedicação ao longo da vida inteira. Ao contrario, numa economia saudável, com tantas necessidades de atender parece mesmo natural coabitarem empresas de todos os tamanhos. (2008, p, 304) Veja, portanto, que o tratamento jurídico favorecido às empresas de pequeno porte, tem variados fundamentos a justificar sua inserção dentre os princípios da atividade econômica. Para reafirmar o exposto acima, convém mencionar que, de acordo com estudo empreendido por BONFIM (2007. p.5), existem no país 4,5 milhões de pequenos negócios formais, nos quais 60 milhões de pessoas estão diretamente envolvidas, que correspondem a 98% dos empreendimentos existentes no país. Estes micros e pequenos negócios são responsáveis por 44% dos postos de trabalho e 42% da massa salarial. Conforme as palavras do professor Carlos O. Quandt (2004), as pequenas e médias empresas possuem um grande potencial para acelerar o crescimento econômico, ampliar sua participação nas exportações e promover um padrão de desenvolvimento mais desconcentrado e eqüitativo nas regiões menos desenvolvidas. Sobre isto Vidigal D‘Arcanchy (2008) assim escreveu: 33

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“as microempresas (ME) e as empresas de pequeno porte (EPP), em nosso país, têm sua origem, via de regra, em trabalhadores excluídos do mercado de trabalho, que entram no setor de serviços, ou de produção em pequena escala, com mínima tecnologia e pouca formalidade de atividades administrativas”. Além disso, o jurista Carvalho Alvim (1998) indica alguns atributos inerentes às microempresas e empresas de pequeno porte, quais sejam, ter a capacidade de reagir rapidamente num contexto econômico de mudanças constantes. Este fato é determinante, pois representam segmento empresarial que se molda rapidamente às condições de mercado, podendo suprir suas demandas em curto prazo; além da possibilidade de inovações mais constantes em detrimento das grandes empresas, uma vez que sua estrutura simplificada permite novas experiências, flexibilização e capacidade de adaptação rápida às mudanças tecnológicas impostas pelo mercado e a representatividade crescente nas atividades exportadoras. Destas digressões, pode-se extrair que os pequenos negócios exercem uma função que se sobrepõe à lógica do lucro, sendo certo que não estão inseridos como princípio norteadores da ordem econômica sem propósito ou razão plausível. Na verdade, a busca da preservação da dignidade da pessoa humana, do pleno emprego, entre outros objetivos podem ser melhor atingidos se houver, no Brasil, uma microempresa forte, capaz de sobreviver às intempéries do mercado. Feita essas ponderações, importa mencionar que, quanto ao parâmetro identificador do que seja tratamento favorecido, o legislador se deparou com um dilema consistente em estabelecer o critério que funcionaria como delineamento para a concessão do tratamento diferenciado. Em resposta à consulta formulada pelo SEBRAE, o jurista Ives Gandra da Silva Martins (1992, p. 77), assim esclareceu: Tratamento favorecido é tratamento mais benéfico, com menos encargos, ônus e obrigações, com mais apoio, auxílio e suporte das autoridades [...] Favorecido é adjetivo, que vem do substantivo favor, favoris, que quer dizer interesse, apoio, afeição e estima. Continua explicando: [...] o discurso constituinte explicita que tal tratamento diferenciado será resultante de duas formas de incentivos, a saber: a) simplificação das obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias; b) eliminação ou redução de tais obrigações. (MARTINS, 1992, p. 79) 34

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A análise de todo o exposto, conduz à percepção de que o princípio consagrador do tratamento favorecido para as pequenas empresas está em consonância com os fundamentos da ordem econômica, quais sejam, valorização do trabalho humano e iniciativa privada, que assegura a todos a existência digna. Há de se ponderar, por fim, que tendo sido, estes princípios, esculpidos na Constituição Federal e, sendo esta a norma sob a qual todas as demais devem se adequar, quaisquer normas criadas com o fito de regular as atividades das microempresas, devem se amoldar plenamente aos ditames e princípios da ordem econômica, notadamente o que determina a este segmento um tratamento favorecido. 4. CONCLUSÃO A Constituição Federal Brasileira disciplinou o tema sobre a Ordem Econômica e Financeira no seu Título VII. Esta ordem econômica prevista na Constituição não revela senão uma forma econômica capitalista, uma vez que se apóia na apropriação privada dos meios de produção e na iniciativa privada, o que, inclusive, vem estampado em seu artigo 170 da Constituição. No entanto, a forma de atuação do Estado, conforme narrado nas linhas pretéritas, ficou conhecida como “dirigismo” em virtude de sua forma de atuação que implica apenas em enunciar diretrizes, fins e programas a serem realizados pela sociedade. Ante o caráter dirigista, a Constituição Federal de 1988, traçou, no art. 170, título VII, capítulo I, os ditames da ordem econômica. Neste sentido, o artigo 170 menciona os fundamentos em que se assentam as diretrizes que permearão toda a legislação infraconstitucional sobre o tema da Atividade Econômica, firmando-se a Valorização do Trabalho Humano e a Livre Iniciativa, como fundamentos desta ordem, assegurando-se a existência digna conforme os ditames da justiça social. Além disso, o artigo em menção delineia os Princípios a serem observados no exercício da atividade econômica, sendo que entre todos, mereceu destaque neste trabalho o tracejado no inciso IX que assim declara: “tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sobre as leis brasileiras e que tenham a sua sede e administração no País”. Por microempresa, tem-se concebido, a despeito de outros critérios, o elencado no artigo 3º da Lei 123/06, que considera o Empresário, a pessoa jurídica, ou a ela equiparada, que aufira em cada ano-calendário Receita Bruta igual ou inferior a R$ 240.000.00 (duzentos e quarenta mil) reais”. Já no inciso II: “No caso de Empresas de Pequeno Porte, o Empresário, a 35

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pessoa jurídica ou a ela equiparada, aufira em cada ano-calendário Receita Bruta superior a R$ 2.400.00.00 (dois milhões e quatrocentos mil) reais. Tais valores serão alterados conforme se vem anunciado na mídia brasileira. Anota-se, por fim, que se observou que este tratamento favorecido conferido às microempresas, alçado à condição de princípio constitucional, foi entornado em virtude do relevante papel que estas empresas possuem dentro do nosso mercado econômico, pois, conforme dados apontados neste trabalho, representam significava parcela dos empreendimentos brasileiros, além de serem responsáveis por empregar boa parte da população brasileira, sendo, portanto, essencial para a economia nacional.

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REFERÊNCIAS ALVIM, Paulo César Rezende de Carvalho. O papel da informação no processo de capacitação tecnológica das microempresas e empresas de pequeno porte. São Paulo, 1998. Disponível em:http://www.scielo.php?script=sci_artext&pid=S010019651998000100004&Ing=pt&nrm=iso. Acesso em 13 de fevereiro de 2011 ARAUJO, Luiz Alberto Araújo; NUNES JUNÍOR, Vidal Serrano. Curso de direito constitucional. 10. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006 BARBOSA, Erivaldo Moreira. Direito constitucional: uma abordagem histórico-crítica. São Paulo: Madras, 2003, p. 205. BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito econômico. São Paulo: Celso Bastos, 2004, p.127. BOMFIM, Ana Paula Rocha. Comentários ao Estatuto das Microempresas de Pequeno Porte. Rio de Janeiro. 2007 COMPARATO, Fábio Konder. Direito empresarial: estudos e pareceres. São Paulo: Saraiva, 1990 FERRAZ JR., Tércio Sampaio; DINIZ, Maria Helena (e outros). Constituição de 1988: legitimidade, vigência e eficácia, supremacia. São Paulo: Atlas, 1989 FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Conceito de sistema no direito. São Paulo: RT, 1976. _________. Introdução ao Estudo do Direito. Técnica, Decisão, Dominação. 2ª ed., São Paulo: Atlas, 1994. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 27ª ed., São Paulo: Saraiva, 2001. FERREIRA FILHO. Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional. 33. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007. MARTINS, Ives Gandra da Silva. Direito Constitucional Interpretado. São Paulo: RT, 1992. 37

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NUSDEO, Fábio. Curso de Economia. Introdução ao Direito Econômico. 4ª ed., São Paulo: RT, 2005. PETTER, Lafayete Josué. Princípios Constitucionais da Ordem Econômica. São Paulo: RT, 2005. QUANDT, Carlos Olavo Inovação em clusters emergentes. Revista ComCiência, Campinas/SP, v. 57, ago 2004 SEBRAE. Apresenta o Primeiro Passo na abertura de um negócio. Disponível em: http://www.sebraerj.com.b. Acesso em: 19 jul. 2010 SLAIB FILHO. Nagib. Direito Constitucional. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006. SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 19. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2001. VIEIRA, José Eduardo de Andrade. Importância das micro e pequenas empresas. Revista Estudos do Sebrae, maio/junho, 1994 

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O PLANEJAMENTO SUCESSÓRIO COMO INSTRUMENTO DE ALCANCE DA FUNÇÃO SOCIAL DA ATIVIDADE EMPRESÁRIA SUCCESSION PLANNING TO ACHIEVE SOCIAL FUNCTION OF THE COMPANY Leonardo Barreto da Motta Messano1* RESUMO A sucessão e a continuidade em organizações empresárias não se pressupõem. Por outro lado, as organizações empresárias, principalmente aquelas que são identificadas pela presença da família em sua estrutura interna, suprem a demanda da sociedade por bens e serviços, sendo utilizada pelo Estado não como fim, mas como meio para atingir os valores constitucionais, cumprindo com a dita função social. A falha no processo de transferência da organização empresarial do fundador a seus sucessores se traduz em dissolução da sociedade empresária ou alienação para grupos concorrentes. O planejamento sucessório serve como um efetivo instrumento para o alcance da função social da atividade empresária. Palavras-Chave: Sucessão. Continuidade. Função Social. Planejamento Sucessório. ABSTRACT The succession and the continuity in  business organizations aren´t assumed .On the other hand, the business organizations,  mainly  those who are identified by the presence of the family in its internal structure, supply the society´s demand  for goods and services, being used by the Government  not as an end, but as a means to achieve constitutional values, fulfilling the social function. The flaw in the process of transferring the business organization´s founder to the successors, results in a dissolution of the  business associations  or alienation  for the  competing groups.  Succession planning serves as an effective instrument to reach the social function of the business activity. Keywords: Succession. Continuity. Social Function. Succession Planning.   Especialista em Direito Tributário pela Fundação Getúlio Vargas, Mestrando em Direito de Empresa pelo Programa de Pós-Graduação strictu sensu da Faculdade de Direito Milton Campos. 1 *

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SUMÁRIO: 1. Balizamentos introdutórios. 2. Das Organizações Empresárias. 3. Diretrizes sobre uma empresa familiar. 3. A Função Social da Empresa 4. O planejamento sucessório 5. Conclusão 6. Referências bibliográficas. 1. BALIZAMENTOS INTRODUTÓRIOS A preservação da atividade empresária vem sendo amplamente discutida no meio jurídico, pois cada vez mais se percebe, numa visão interdisciplinar, a importância deste tema, não somente sobre os aspectos normativos que envolvem uma organização empresária, mas também o aspecto econômico e social que são indissociáveis. Por outro lado é expressiva a presença da família nas organizações empresárias, sendo que grande parte das empresas existentes são familiares, pois iniciaram suas atividades através de uma atitude empreendedora de seu fundador. Já afirmava Robert Heilbroner (1964)2, que na formação das sociedades empresárias baseadas na tradição os problemas econômicos são resolvidos de uma forma muito exeqüível, tratando em primeiro lugar do problema da produção e a conseqüente transmissão dos ofícios dos pais aos filhos, garantindo ocupação de geração para geração. Em empresas familiares o problema da sucessão e continuidade adquire um significado ainda maior. Indicadores apontam que a maior parte das empresas familiares são vendidas ou dissolvidas a partir do falecimento ou retirada do sócio fundador3. O fracasso desses negócios na continuidade das empresas familiares para além da posse de seus fundadores tem graves conseqüências sociais e econômicas. Assim, é possível verificar que sucessão realizada na empresa, com base nas regras previstas na legislação cível e comercial, concede a esta uma limitação ou um condicionamento na chamada sucessão da organização empresária. Associar sucessão e continuidade da organização empresária não é algo tão automático como se poderia supor. Portanto, a situação que merece destaque é a proteção da organização empresarial para a sua continuidade e conseqüente atendimento de sua função social. A empresa familiar é aquela que reúne mais condições de programar uma combinação vencedora entre a tradição e mudança, e um dos mecanismos para que isto aconteça é a influência positiva do planejamento estratégico pelos valores, crenças, propósitos e pela historia da família, características essas observadas em uma organização.   HEILBRONER, Robert L. A formação da sociedade econômica. 5. Ed. Guanabara, 1964. pag. 28.   A Revista Exame 03/2005 apresentou um percentual sobre a perpetuidade das empresas: 50% sobrevivem na primeira geração, 30% sobrevivem na segunda geração, 15% sobrevivem na terceira geração, 4% sobrevivem na quarta geração. 2 3

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Alem do que, o desenvolvimento da empresa familiar é assunto de elevada importância para o futuro da economia do país. Assim sendo, os herdeiros e futuros executivos responsáveis por essas empresas devem ser adequadamente treinados (Oliveira, 1999, p. 20). Oliveira (1999, p. 18) ressalta ainda que: “[...] a nova realidade da abertura de mercado e a globalização consolidaram uma nova situação na economia, com forte influência nas empresas familiares. Nesse novo cenário, o processo de crescimento e desenvolvimento das empresas familiares depende, no mínimo, de elevada tecnologia para que a empresa possa continuar no mercado. E, para que isto ocorra, é necessário que a empresa familiar tenha recursos suficientes para capitalizar a tecnologia necessária.” O encaminhamento do processo da sucessão pode ser avaliada pelos inúmeros casos que nos últimos anos somaram as estatísticas em várias empresas no Brasil, perfazendo comum a expressão: “pai rico, filho nobre, neto pobre”4. O que se pretende com o planejamento sucessório não é sintetizar nessa expressão, afirmando que na sua ausência a função social da empresa será perdida. O que importa é verificar que o assunto sucessão quando não tratado no seu devido tempo, acarreta sérios problemas posteriores para a organização empresária, para a família empresária e conseqüentemente para a comunidade envolvida. Diante do exposto, a definição do problema se expressa por meio da seguinte indagação: Quais os caminhos para um efetivo processo sucessório que podem ser decisivos para o crescimento e a continuidade de uma empresa familiar? O objetivo é contribuir para a continuidade da atividade empresária, através da investigação de problemas, vantagens, desvantagens, dinâmicas e diferencias do planejamento sucessório, demonstrando que a idealização da sucessão das atividades empresárias orientada pelos preceitos da Constituição da República de 1988 e legislação pertinente possibilita a sobrevivência da empresa familiar, uma vez que a satisfação dos interesses empresariais compreende uma atuação conformadora da autonomia privada. Os objetivos específicos consistem em verificar os diversos conceitos e abordagens sobre a função social da atividade empresária, o processo de sucessão previsto no ordenamento jurídico, identificação de uma empresa familiar, seus elementos estruturais e sua inter-relação e a análise do planejamento sucessório para a manutenção da atividade empresária.   Trata-se de uma expressão popular brasileira em alusão às famílias que com o decorrer das gerações diminuem sua condição sócio-econômica. 4

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O ciclo de vida organizacional independe do ciclo de vida de pessoas físicas envolvidas com a empresa, sejam seus fundadores, seus proprietários ou seus administradores. Assim, por analogia ao ciclo de vida humano, que não se muda da infância para a fase adulta, a empresa não passa por transição súbita e repentina. Todavia é certo que os ciclos de vida do homem e da organização empresária não coincidem, o que pode ser evidenciado com algumas pequenas observações: o fundador geralmente já se encontra na fase da maturidade quando a empresa está sendo fundada; muitos herdeiros nascem quando a empresa está em sua plenitude e falecimentos ocorrem quando a empresa permanece em funcionamento. É indiscutível a separação entre a vida da empresa e das pessoas a ela relacionadas. Baseados nesses fatos, saber quando uma organização terminará suas atividades ou procurar uma resposta para a pergunta: “quanto tempo dura uma empresa?” não devem ser preocupações para os administradores ou proprietários de uma empresa. A preocupação deve ser ater ao fato de a empresa estar preparada para enfrentar diversas crises com que fatalmente irá se deparar, especialmente nas mudanças de ciclos, para que possa permanecer ativa no mercado. A pesquisa que ora se propõe realizar justifica-se, além da relevância conjuntural, por pretender demonstrar que a garantia constitucional de que toda a pessoa natural tem o direito de herança, seja qual espécie for (corpóreo e incorpóreo) nem sempre traduz em via de sucesso para a atividade empresária, sendo o comando da organização pelo sucessor ou herdeiro um dos maiores desafios e oportunidade para a empresa familiar, mantendo sua função social. Guarda relevância ainda o tema, pois destaca os preceitos da legislação civil e comercial que buscam assegurar a sobrevivência da empresa em uma sucessão, demonstrando a utilização do planejamento sucessório não como fim em si mesmo, mas como instrumento para alcance da função social da atividade empresária. Tratar de impregnar a atividade empresária com o alicerce da Constituição de modo a propiciar a compreensão do ciclo de vida organizacional, bem como as influências que a vida pessoal dos familiares exerce na organização é apenas um passo para preparar a empresa ao sucesso duradouro. A vertente metodológica utilizada no presente pesquisa foi a vertente jurídico-sociológica, uma vez que o trabalho preocupa-se com a faticidade do direito e as relações contraditórias que estabelece com o próprio direito, e com os demais campos sócio-culturais, político e antropológico. O tipo de pesquisa das ciências sociais aplicadas à ciência jurídica é o histórico jurídico, na qual busca desenvolver o presente trabalho com a origem dos fenômenos em uma relação temporal de análise da causa, efeito 42

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e da sucessividade dos fatos. A natureza dos dados coletados é secundária, consistindo nas pesquisas de doutrinas, sendo a interpretação hermenêutica como característica do procedimento metodológico. Através da análise da atividade empresária das empresas familiares, compreendida em seus fundamentos, objetivos e cultura, bem como dos preceitos legais que buscam assegurar a sobrevivência da empresa em uma sucessão da organização, será demonstrada a utilização do planejamento sucessório não como fim em si mesmo, mas como instrumento para alcance da função social da atividade empresária.

2. ORGANIZAÇÕES EMPRESÁRIAS Em grupos organizados permite-se à espécie humana enfrentar diversidades que uma pessoa sozinha não conseguiria. Com a somatória das forças as organizações obtêm resultados de maneira mais expressiva que o indivíduo. Nas organizações incluem-se não somente as sociedades empresárias, objeto deste estudo, mas qualquer entidade como fundações, associações, sindicatos, igrejas, clubes partidos políticos, etc. No campo da Administração de Empresas, encontramse diversas definições sobre o conceito de organizações, sendo este termo inclusive utilizado pelos administradores para se referir a uma sociedade empresária. Segundo Hampton (1992)5, uma organização é uma combinação intencional de pessoas e de tecnologia para atingir um determinado objetivo, entendendo ainda que uma sociedade empresária é uma organização. Já Daft (2003)6 sustenta que as organizações são entidades sociais que estão direcionadas para as metas, sendo sistemas de atividades estruturadas e coordenadas inclusive ao meio externo. Para Maximiniano (2006)7, as organizações são grupos sociais que de forma deliberada buscam objetivos gerais de fornecimento de produtos e serviços, alegando serem estes os objetivos comuns a todas as organizações. Assim, para Adachi (2006)8, as sociedades empresárias são organizações com personalidade jurídica própria, com cultura e independente de seus proprietários e administradores, com o objetivo definido, que, atuando como  HAMPTON, David R. Administração Contemporânea. 3. Ed. São Paulo: Makron Books: Pearson Eduacation do Brasil, 1992. p. 8. 6   DAFT, Richard L. Organizações: Teoria e Projetos. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2003.p. 11. 7   MAXIMIANO, Antonio Cesar Amaru. Introdução à Administração. 6. ed. São Paulo, Atlas, 2006. p. 231. 8   ADACHI, Pedro Podboi. Família S.A.: gestão da empresa familiar e gestão de conflitos. São Paulo: Atlas, 2006. P. 5. 5

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sistema, interagem com as variáveis do ambiente interno e externo no qual atua. O nosso ordenamento civil prevê em seu art. 449 quem são as pessoas jurídicas de direito privado, que poderão ser criadas para determinado fim: associações, sociedades, fundações organizações religiosas e partidos políticos (BRASIL, 2009, p. 264). A personalidade jurídica própria confere às sociedades a capacidade de adquirir direitos e assumir obrigações, podendo figurar nos pólos ativos ou passivos das relações, sejam jurídicas ou econômicas. Assim, as pessoas jurídicas compõem-se por entidades diferentes de seus proprietários ou administradores, com titulares diferentes de direitos e obrigações. Além da personalidade jurídica própria, a cultura própria perfaz outro elemento de diferenciação das pessoas que compõem as sociedades. Assim como cada pessoa física possui cultura própria, peculiaridades e maneira de agir, também são as sociedades. Os autores Caravantes, Panno e Kloeckner (2005)10, na obra Administração: teorias e práticas, definem a cultura de uma organização:



“As organizações podem ser consideradas um ser vivo, com personalidade. Seu comportamento se traduz por tradição, hábitos, costumes, opiniões atitudes, preconceitos, regulamentos e maneiras de resolver problemas – conjunto que constitui a cultura organizacional. O Comportamento da organização é determinado por sua cultura.”

Para Ducan (1989)11, a cultura organizacional é conjunto de valores, crenças orientadas, conhecimentos e modelos de pensar compartilhado pelos membros de uma organização e transmissão aos novos membros como adequado. A cultura dentro de uma sociedade é observada pela padronização definida em seu funcionamento, vinda principalmente da concepção de seus fundadores que acabam integrando o modus operandi da atividade empresária, através da criação de ritos, histórias, símbolos, slogans, linguagem, comportamento, atitudes, tradição, costumes e hábitos. A cultura permitem às pessoas que fazem parte da sociedade organizarem a atividade empresária, possibilitando em primeiro plano que se atinja os   BRASIL. Código Civil, Comercial, Processo Civil e Constituição Federal (2002). Código Civil: 5. Ed. São Paulo: Saraiva, 2005.   CARAVANTES, Geraldo R.; PANNO, Claudia C.; KLOECKNER, Mônica C. Administração: 10 teorias e processos. São Paulo: Pearson Prentice Hall, 2005. p. 255. 11   DUCAN, Jack. Organizational Culture: getting a fix on a elusive concept. Acadmy of Management Executive 3. 1989. p. 229. 9

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objetivos contratuais e estatutários12 pelos quais foi criada, observado os preceitos legais, e, em segundo plano, a longevidade da atividade, que utilizando de comportamentos padronizados acaba por utilizar métodos mais conservadores e avaliar melhor as novas opções. Adachi (2006)13 entende que, a organização tem como escopo principal revelar a orientação geral do negócio pelo qual foi criada, tanto para os membros da organização como para terceiros envolvidos na atividade da sociedade, seja fornecedor, cliente, credor ou interessado. Já o sistema é caracterizado pelo procedimento adotado na organização para viabilizar a integração com os mais diversos setores internos e externos, proporcionando que o resultado do processo permita a manutenção desta atividade. A relação da organização com o ambiente externo causa reflexos com diversas entidades e encontram-se em constante troca14. Daft (2003)15 diz que, o ambiente organizacional é caracterizado como os elementos que existem fora dos limites da organização e que tem o poder de afetá-la no todo ou em parte. A organização empresária é criada para manter uma relação dinâmica com seu ambiente, sejam clientes, competidores, organizações de trabalho, fornecedores, governo, entre outras. Portanto, a integração se perfaz forçosa vez que as sociedades não são sistemas fechados e possuem a necessidade de constante interação com outras entidades para consecução de seus fins. 3. DIRETRIZES SOBRE UMA EMPRESA FAMILIAR Comumente, de forma incompleta e equivocada conceitua-se a empresa familiar como aquela em que os membros da família trabalham. Em verdade,   O Art. 2ª da Lei 6.404/76, conhecida como a Lei das Sociedades por Ações, dispõe em seu art. 2º sobre o objeto social: Art. 2º Pode ser objeto da companhia qualquer empresa de fim lucrativo, não contrário à lei, à ordem pública e aos bons costumes. § 1º Qualquer que seja o objeto, a companhia é mercantil e se rege pelas leis e usos do comércio.§ 2º O estatuto social definirá o objeto de modo preciso e completo.§ 3º A companhia pode ter por objeto participar de outras sociedades; ainda que não prevista no estatuto, a participação é facultada como meio de realizar o objeto social, ou para beneficiar-se de incentivos fiscais 13   ADACHI, Pedro Podboi. Família S.A.: gestão da empresa familiar e gestão de conflitos. São Paulo: Atlas, 2006. P. 11 14   Para designar um conjunto de diversa entidades que influenciam uma organização é comumente utilizada uma expressão da Língua Inglesa, stakeholders, sem equivalente em Português, que significa indivíduo ou grupo que possa sofrer influência por alguma coisa, especialmente quem investe em um negócio (someone who will be affected by something, especially someone who puts Money into a business) 15   DAFT, Richard L.: Organizações: teorias e projetos. São Paulo: Pioneira Thompson Leraning, 2003. p. 122. 12

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pode-se considerar uma empresa familiar como sendo qualquer organização na qual uma ou poucas famílias concentram o poder de decisão envolvendo o controle da sociedade e, eventualmente, a participação na gestão. O pioneiro sobre este assunto no Brasil, João Bosco Lodi (1987, p. 5), em seu livro “A Empresa Familiar”, tratou o assunto da seguinte forma: “No Conceito de Donnelley, a empresa familiar é aquela que se identifica com uma família há pelo menos duas gerações e quando essa ligação resulta numa influência recíproca. [...] Na geração do fundador a firma é quando muito pessoal e não familiar” Nesta esteira, René A. Werner (2004, p. 20) assim conceitua empresas familiares: “A empresa familiar pode ser definia como: I- Aquela que nasceu de uma só pessoa, um self made man (empreendedor). Ele a fundou, a desenvolveu, e, com o tempo, a compôs com membros da família a fim de que na sua ausência, a família assumisse o comando. II – a que tem o controle acionário nas mãos de uma família, a qual em função desse poder; mantém o controle da gestão ou de seus direção estratégica.” Uma definição mais ampla foi apresentada por Werner Bornholdt (2005, p. 34): “Uma empresa familiar é aquela organização com vínculos que vão além do interesse societário e econômico. Considera-se uma empresa familiar quando um ou mais dos fundamentos a seguir podem ser identificados numa organização ou grupo de empresas: a) o controle acionário pertence a uma família e/ou a seus herdeiros; b) os laços familiares determinam a sucessão no poder; c) os parentes se encontram em posições estratégicas, como na diretoria ou no conselho de administração; d)as crenças e valores da organização identificam-se com os da família; e) os atos dos membros da família repercutem na empresa, não importando se na atuam; f) ausência de liberdade total ou parcial de vender suas participações/quotas acumuladas ou herdadas na empresa.” 46

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Leone (2005, p.9) trabalha o conceito de empresa familiar em quatro fatores: “Caracteriza a empresa familiar pela observação dos seguintes fatos: iniciada por um membro da família; membros da família participando da propriedade e/ou direção; valores institucionais identificando-se com um sobrenome da família ou com a figura do fundado; e sucessão ligada ao fator hereditário.” Oliveira (1999, p.18)16 contribui para a formulação do tema, conceituando a empresa familiar pela sucessão do poder decisório de maneira hereditária a partir de uma ou mais famílias. Assim, a empresa familiar pode ser verificada como uma organização, com uma ou poucas famílias, restando presentes: a concentração do poder decisório, o controle da sociedade e eventual participação na gestão. O emprego do termo família na definição de empresa familiar implica em aspectos relacionados à sucessão, representando um elo emocional que une os seus familiares, como a prevalência do amor e proteção entre seus membros. Segundo Adachi (2006), é possível encontrar pesquisas que apontem que cerca de 90% (noventa por cento) das empresas em operação no mundo são familiares, assim como existem profissionais do ramo que afirmam que as empresas familiares constituem 60% (sessenta por cento) das organizações mundiais. Continua o autor elucidando exemplos de empresas familiares, desde os pequenos estabelecimentos como um pequeno bar administrado pela família, a organizações multinacionais como o Wal-Mart, uma das maiores empresas em faturamento no mundo. São também exemplos o Grupo Pão de Açúcar, o Itaú, a Gerdau e a Votorantim. Grande parte dos negócios inicia a sua atividade como uma empresa familiar, através de um objetivo traçado pelo empreendedor fundador, buscando o desenvolvimento desta atividade para o conseqüente desenvolvimento familiar. 4. DA FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA Sendo inquestionável a importância das organizações empresárias assumida na atualidade, torna-se imprescindível avaliar alguns contornos e papéis que estas podem desempenhar, promovendo os valores protegidos pela Constituição e pela legislação, para identificarmos a sua ligação ao planejamento em uma empresa familiar.   OLIVEIRA, Djalma de Pinho Rebouças de. Empresa Familiar: como fortalecer o empreendimento e otimizar o processo sucessório. São Paulo: Atlas, 1999. p. 18. 16

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Para Guilherme Calmon Nogueira Gama (2007)17, a importância provém do dinamismo e do poder de transformação do regime empresarial, que se expressa de diversas formas dentre as quais cabe destacar, a criação de uma extensa rede de interação e de interdependência entre agentes econômicos assalariados e não assalariados que gravitam em torno dos empreendimentos empresarias, a grande parcela de bens e de serviços produzidos por aqueles e consumidos pela população, além da significativa fração de receitas fiscais provindas do exercício dessa atividade. Já para Fábio Konder Comparato (1985)18, a atuação mais marcante à sociedade empresária diz respeito a sua influência na determinação do comportamento de outras instituições e grupos sociais. Estas breves ponderações já permitem evidenciar o interesse do estudo dos contornos atuais da empresa para associar com a idéia de continuidade, objetivo deste estudo. O conceito de função social nasceu vinculado ao conceito da propriedade. Em seu estudo sobre o assunto, GAMA (2007) traz a baila o questionamento de dois autores, que segundo ele tornaram-se expositores deste tema, Karl Renner e Léon Duguit. Para o primeiro doutrinador, possuidor de uma visão marxista, a função social de um instituto jurídico corresponderia à imagem da função econômica do mesmo instituto, e, alterada a função econômica estaria alterada a função social. Neste aspecto, ao ser a sociedade empresária caracterizada como centro produtor de riquezas, mediante capital e trabalho, haveria a função social, sendo portanto, a função social o reconhecimento de uma realidade. Esta doutrina foi criticada por Eduardo Tomasevicius (2003)19, que afirma que uma propriedade improdutiva exerce uma função econômica de reserva de valor. Se a função social fosse uma imagem da função econômica, a propriedade improdutiva também atenderia à sua função social. Tendo em vista ser inaceitável a existência de propriedades improdutivas, isso significa que a função social não coincide com a função econômica do instituto jurídico. No caso das empresas, bastariam elas estarem funcionando para atender à sua função social. Além disso, o autor ainda afirma que a economia pode mudar sem implicar em mudança para o direito e vice e versa. Já para Duguit, a função social substitui a expressão individualista da vontade humana e não há a preocupação para o exercício legítimo de institutos como a própria propriedade20. Posição também criticada por padecer de excessiva   GAMA, Guilherme Calmo Nogueira da; BARTHOLO Bruno Paiva. Função Social da Empresa. RT 857/96. São Paulo: Revistas dos Tribunais. Mar. 2007. 18   COMPARATO, Fábio Konder. A reforma da empresa. Revista Forense. v. 290. Rio de Janeiro: Forense, 1985. P.9. 19   TOMASEVICIUS, Eduardo. A função Social da Empresa. RT 810/35. São Paulo: Revista dos Tribunais. Abr. 2003. 20   Para o Duguit a função social é “(...) a la vez realista y socialista: realista, porque descansa en 17

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supressão de liberdade individual, pois não faz diferenciação necessária entre a definição de um direito e a subordinação de um bem. O autor Comparato (1996)21 elucida que usa-se o termo função para designar a finalidade legal de um instituto jurídico, ou seja, o bem ou valor em razão do qual existe, segundo a lei, esse conjunto estruturado de normas. Acrescenta que a função jurídica pode também ser tomada num sentido mais abstrato, como atividade dirigida a um fim e comportando, de parte do sujeito agente, um poder ou competência. O conceito da função social da empresa, segundo Comparato, têm base no binômio direito subjetivo e dever jurídico, elucida que: “Se analisarmos mais de perto esse conceito abstrato da função, em suas múltiplas espécies, veremos que o escopo perseguido pelo agente é sempre o interesse alheio, e não o próprio do titular do poder. O desenvolvimento da atividade é, portanto, um dever, mas exatamente, um poder-dever: e isto, não no sentido negativo, de respeito a certos limites estabelecidos em lei para o exercício da atividade, mas na acepção positiva de alto que dever ser feito ou cumprido.” Quando a função é exercida em benefício da coletividade, nela e somente nela, que se deve falar em função social. Este fenômeno da funcionalização da propriedade e dos demais institutos reflete a necessidade de condicionamento do exercício dos respectivos direitos aos interesses maiores da sociedade, representados pelas previsões constitucionais. Nesta análise, Gama (2007) alega que a existência de uma função social da empresa não seria mera conseqüência da associação entre o poder de controle empresarial, na direção dos bens incorporados a uma exploração por el hecho de la función social observado y comprobado directamente; socialista, porque descansa en las condiciones mismas de la vida social. La regla jurídica, que se impone a los hombres, no tiene por fundamento el respeto y la protección de derechos individuales que no existen, de una manifestación de voluntad individual que por si misma no puede producir ningún efecto social. Descansa en el fundamento de la estructura social, la necesidad de mantener coherentes entre si los diferentes elementos de la estructura social, la necesidad de mantener coherentes entre si los diferentes elementos sociales por el cumplimiento de la función social que incumbe a cada individuo, a cada grupo. Y así, es como realmente una concepción socialista del derecho sustituye a la concepción individualista tradicional.” DUGUIT, León. Las transformaciones del derecho privado. Las Transformaciones generales del derecho (publico y privado). Buenos Aires: Heliasta, 1975, p. 181. 21   COMPARATO, Fábio Konder. Estado, empresa e função social. RT 732/41. São Paulo: Revistas dos Tribunais, 1996. 49

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uma empresa, e a função social da propriedade em si, já que o fenômeno da funcionalização seria estendido a todos os institutos do direito, considerados em si mesmos e dentro de suas potencialidades. Afirma o autor que a realização da empresa deve ser ater ao princípio da livre iniciativa e aos demais parâmetros constitucionais que regem o exercício da atividade econômica, quando só então merecerá a devida tutela, justificando assim a fundamentação de alguns autores na relação da função social da empresa com o artigo 170 da Constituição da República de 1988 (BRASIL, 2009, p. 87)22, uma vez que este preceito adensa o conceito da função social, determinando-lhe um teor mínimo do qual possa decorrer direitos positivos e negativos. Mas em que consistem os deveres positivos de um proprietário em relação a coletividade? Esse questionamento ainda é ponto de discussão da doutrina, mas o que parece haver é um consenso no que tange à vinculação social da propriedade privada não perfazer uma imposição direta (dever negativo) ao proprietário no uso de seus bens, notadamente os imóveis. De qualquer forma, Comparato (1996) elucida que no conjunto de normas constitucionais relativas à função social da propriedade é que o Estado exerce um papel decisivo e insubstituível na aplicação normativa. Um Estado despreocupado com o bem estar da população não tem legitimidade para exigir dos proprietários o cumprimento de sua função social. Para a atividade empresarial, indubitável é o reconhecimento da norma na proteção de interesses internos e externos e nas pessoas que dela participam, mas também os interesses da comunidade na qual está inserida. Dentro deste espectro, qual será o dever positivo de um empresário diante do conflito entre o interesse próprio e o interesse da coletividade? Poderá ele deixar de lado a consecução do lucro, abaixando inclusive os preços de seus produtos e serviços atendendo o interesse da comunidade?   BRASIL. Código Civil, Comercial, Processo Civil e Constituição Federal (2002). Constituição Federal 5. Ed. São Paulo: Saraiva, 2005. O artigo 170 da Constituição Federal de 1988, prescreve que: A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: I - soberania nacional; II - propriedade privada; III - função social da propriedade; IV - livre concorrência; V defesa do consumidor; VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 42 , de 19.12.2003) VII - redução das desigualdades regionais e sociais; VIII - busca do pleno emprego; IX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 6 , de 1995) Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei. 22

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Comparato (1996) alerta que a idéia das empresas estarem obrigadas de um modo geral a uma função social para a coletividade é uma insanável contradição. A doutrina contemporânea passou a ver a empresa não somente como uma unidade de produção de bens e prestação de serviços, mas também como uma organização produtora de lucros. Cateb (2011)23, sobre a função social diz que a empresa se propõe ao exercício de determinada atividade, de forma lícita e eficaz, gerando empregos e tributos, produzindo riquezas e satisfazendo os interesses de seus acionistas, atendendo assim às necessidades do mercado e da sociedade. A empresa, portanto, é utilizada pelo Estado não como fim, mas como meio para atingir os valores constitucionais. A iniciativa econômica privada é amplamente condicionada no sistema constitucional, e se é implementada na atuação empresarial, e esta se subordina ao princípio da função social, para realizar ao mesmo tempo o desenvolvimento nacional, assegurada a existência digna de todos, conforme ditames da justiça social. Bem se vê que a liberdade de iniciativa só se legitima quando voltada para a efetiva consecução desses objetivos da ordem econômica, fins e valores da ordem econômica. 5. O PLANEJAMENTO SUCESSÓRIO E SUA RELAÇÃO Max Weber (1946)24, um dos grandes sociólogos alemães, foi um dos primeiros a identificar a importância de ter o fundador de uma organização, de entregar o poder a um sucessor que pudesse solidificar as estruturas administrativas necessárias para o desenvolvimento contínuo de uma sociedade empresária. O autor ainda referiu a este processo como a institucionalização do carisma e disse que esta se traduz em um dos maiores desafios de um líder. A empresa familiar é aquela que reúne mais condições de programar uma combinação vencedora entre a tradição e mudança, e um dos mecanismos para que isto aconteça é a influência positiva do planejamento estratégico pelos valores, crenças, propósitos e pela historia da família, características observadas na organização. Um membro da família muitas vezes tem a visão da empresa como a importante parte da identidade familiar, como patrimônio e como fonte de segurança financeira que possibilitará a satisfação de suas expectativas de vida. Neste aspecto, a empresa funciona como mãe, cuja função é nutrir e unir os membros familiares. Por outro lado, os Administradores têm uma visão de   CATEB, Alexandre Bueno; OLIVEIRA, Fabrício de Souza. Breves anotações sobre a função social da empresa. Disponível em :< www.amde.org.br> Acesso em: 30/01/2011. 24   WEBER, Max. The theory of social economic organization. (T. Parsons. Trans.) New York: Oxford University Press, 1946. 23

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estarem as suas carreiras vinculadas à empresa e tendem a considerar o negócio como veículo para a realização profissional e econômica25. Mas em que consiste um planejamento sucessório em empresas familiares? A priori, consiste na diferenciação entre herdeiro e sucessor. Herdeiro na definição do dicionário é aquele que sucede na totalidade ou em parte da herança, seja por força de lei, seja por distinção de testamento. Já Sucessor é aquele que sucede a outrem ou que o substitui em cargo, funções. Segundo Adachi (2006), o herdeiro está relacionado à sociedade empresária, quando ingressa no quadro societário em virtude de recebimento de participação societária como herança de um falecido sócio, estando diretamente relacionado à sucessão de patrimônio. Já o sucessor vincula-se ao negócio, à substituição do cargo profissional, à administração da organização empresária. Ressalta-se que o termo sucessão no âmbito do direito civil não se confunde com a proposta deste trabalho. Os preceitos civis ao prescreverem o direito de herança, regulam tão somente a questão da transferência da titularidade do direito patrimonial, não visualizando a existência de legitimidade daqueles que por direito receberão a herança e passarão a compor o quadro societário das organizações empresárias. Para Bernhoeft (2006)26, a legitimidade é fruto da conquista pessoal dos sucessores. Depende do desejo de assumir essa posição, da capacitação para os negócios e o reconhecimento por parte de todos. Sendo necessário a todo o processo de planejamento da sucessão e da continuidade o desenvolvimento de lideranças por parte do fundador. Outra base do planejamento consiste em enxergar a empresa familiar como um sistema formado por três subsistemas: família, patrimônio e empresa. Entender esses três subsistemas, seus valores essenciais e a forma de interação de cada um deles é fundamental para a família empresária e conseqüentemente para o próprio planejamento da sucessão e da continuidade da atividade empresária. A empresa enquanto encontra-se pelo controle do fundador, a família, patrimônio e a empresa estão todos mesclados, sem nenhuma distinção, constituindo quase que uma unidade. Há ainda uma forte presença do fundador, ilustrada pela clássica figura do pai patriarca e da mãe gestora do lar. Neste diapasão o patrimônio é uno e não precisa ser dividido. A relação entre o fundador e a empresa é vinculada a uma forte questão emocional.   LANSBERG, Ivan. The Succession Conspirancy. Family Business Review. Disponível em: Acesso em 30/11/2009. 26   PASSOS, Édio, BERNHOFT, Renata, BERNHOFT, Renato, TEIXEIRA, Wagner. Família, família, negócios à parte: como fortalecer laços e desatar nós na empresa familiar. São Paulo: Editora Gente, 2006, p. 46. 25

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Este estágio traz questões importantes para a organização empresária, como rapidez nas decisões permitindo acompanhar novas tendências do mercado face o comando centralizado. Os três subsistemas começam a tornarem-se mais complexos quando há a alternância da primeira para a segunda geração da família de sua organização empresária. Neste momento, quando há o ingresso de outros membros da família na gestão da sociedade, passa a ter importância a análise de cada um dos subsistemas, uma vez que, passará a ter relevância a observação diferenciada de cada um deles. O planejamento consistirá, neste momento, na identificação definida e separada de cada um destes subsistemas, permitindo ao fundador e a seus familiares um maior controle sobre a sociedade. O subsistema patrimônio é formando por tudo a que os herdeiros terão direito por força legal, incluindo portanto imóveis, investimentos, participações em outras companhias, alem da própria empresa. Nas gerações seguintes há uma tendência no aumento da demanda de liquidez, fruto do crescimento familiar. Em razão desta maior necessidade, um planejamento patrimonial perfaz uma segurança maior para família empresária, sendo o meio adequado para separar os riscos da empresa dos riscos pessoais, numa via de mão dupla. Por outro lado, os outros dois subsistemas começam a ser definidos por acordos societários que deve ser construído pelas partes, com participação de todos e de forma consensual. O acordo societário deve fixar uma missão coletiva que viabilize a sobrevivência da família empresária. De forma prática, observando a cultura da organização empresária, o acordo societário deverá ser composto por questões de ordem legal, como critérios e regras de participação societária, e por questões de ordem moral e ética, como as regras de entrada de familiares na empresa da família. Bernhoeft (2006)27 elucida ainda que, a finalidade do planejamento sucessório é que a família empresária discuta os valores da família, formalizando instrumentos que possibilitem a profissionalização da atividade empresária, através de mecanismos que definam o que se entende por família, remuneração de seus membros, familiares que trabalham na empresa, utilização de bens e instalações, código de ética, entre outros. O planejamento é ferramenta fundamental para o sucesso de qualquer empresa, e o planejamento sucessório permite alinhar valores da família com a cultura da organização, sendo a sua falta apontada como uma das mais 27   PASSOS, Édio, BERNHOFT, Renata, BERNHOFT, Renato, TEIXEIRA, Wagner. Família, família, negócios à parte: como fortalecer laços e desatar nós na empresa familiar. São Paulo: Editora Gente, 2006, p. 62.

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importantes razões porque várias empresas da primeira geração não sobrevivem em relação aos seus fundadores. 6. CONCLUSÃO Sem negar os princípios contratualistas, que em certa medida, dominam o nosso direito societário, pode-se afirmar que as sociedades pressupõem, em princípio, certa duração e organização em vista de um resultado, por forma a sobrepor a vontade coletiva às dissidências individuais, com mira na realização do fim comum. As sociedades comerciais apresentam um caráter duradouro, não ocasional, já que exercício do comércio ou indústria exigem uma organização estável, cuja rápida desintegração implica a perda de valores econômicos.28 O princípio da preservação da empresa interessa ao Direito e à Economia, pela proteção que oferece na continuidade dos negócios sociais. O princípio da preservação da empresa é gênero no qual a continuidade das atividades compõe espécie29. A identificação e a conjugação dos institutos família, empresa e patrimônio, contribui significativamente para que todas as sociedades familiares apresentem histórias, com certa previsibilidade. Ao mesmo tempo, cada empresa familiar é única e diferente em sua especificidade. Em que pese, parecerem contraditórios estes argumentos, são explicados pela previsibilidade de seus estágios evolutivos e da constatação de que pessoas diferentes precisam encontrar um objetivo comum dentro da organização. Já a especificidade é relativa à cultura familiar existente. A primeira geração de uma família empresária tem uma pesada dependência de seus fundadores, não somente pela liderança e direção, mas também pela sua introdução aos negócios e pela transferência do conhecimento. Sem um planejamento, ocorre uma privação em uma série de recursos gerenciais desta atividade. Entretanto, se o planejamento sucessório é evitado, a saída inesperada de seu fundador pode causar perturbações no padrão de autoridade e distribuição da propriedade. Nesta situação, os conflitos surgem tão intensamente que torna inviável realizar decisões estratégicas necessárias para garantir o futuro da empresa. A falha no planejamento sucessório sempre ameaça o bem estar financeiro da família, deixando muitas questões sem resposta, ocasionando a venda ou o fechamento muitas vezes como resultado. O planejamento sucessório permite uma maior capacidade de resposta diante das mudanças, possibilitando mais informações e reduzindo as   NUNES, A. J. Avelãs. O direito de exclusão de sócios nas sociedades comerciais, 2002. pag. 51   FACHIN, Luis Edson. Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo. 2º ed. revista e atualizada. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pag. 186 28 29

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incertezas, contribuindo para com os interesses da família e renovação da liderança familiar e societária. Deste modo, face à imediata exigibilidade da observância à função social da empresa, em atendimento aos preceitos constitucionais, deve toda a atividade empresarial ser conduzida conforme seus ditames, sem deixar o empresário fundador de adotar a técnica sistêmica, garantido a atividade empresária a sua manutenção.

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RECUPERAÇÃO EXTRAJUDICIAL PELOS CAMINHOS DA MEDIAÇÃO: A PRESERVAÇÃO DA EMPRESA COM SOLUÇÕES DINÂMICAS EXTRAJUDICIAL RECOVERY FOR WAYS MEDIATION: THE PRESERVATION OF THE COMPANY WITH DYNAMIC SOLUTIONS

Sávio Raniere Pereira Pinto Renata Christiana Vieira Maia RESUMO O presente trabalho analisa a possibilidade de realização da Recuperação Extrajudicial através da Mediação. A Lei 11.101/2005, inspirada em leis falimentares e recuperacionais estrangeiras, estabeleceu o paradigma da preservação da empresa, trazendo o instituto da Recuperação de Empresas, que pode ser judicial ou extrajudicial. A Recuperação Extrajudicial não tem sido muito utilizada no Brasil. A doutrina pouco se preocupou em delimitar as formas de elaboração do plano de recuperação extrajudicial. A dinâmica empresarial necessita de um método que realmente contribua para a preservação da empresa e a preservação das relações entre credores e o devedor-empresário. A mediação é um mecanismo capaz de atender as expectativas do mundo empresarial contribuindo nas soluções para as crises econômicas. Podem ser várias as formas de elaboração do plano extrajudicial, mas a mediação oferece campo propício para o diálogo e a integração no mundo empresarial por suas vantagens. A Recuperação Extrajudicial pode ser realizada pela mediação, desde que credores e o devedor assim convencionem. Palavras-Chave: Preservação da Empresa; Recuperação Extrajudicial; Mediação ABSTRACT This study analyses the possibility of conducting an Extrajudicial Recovery through Mediation. The Law no.11.101/2005, inspired by bankruptcy and foreign recovery laws, established the paradigm of company preservation,bringing the institute of Corporate Recovery, which can be judicial or extrajudicial. The Extrajudicial Recovery has 59

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not been widely used in Brazil. The doctrine has not been concerned in defining the  ways  of preparing an  extrajudicial recovery plan.  The business dynamic needs a method that actually contributes to the company’s survival and the preservation of the relations between creditors and the debtorentrepreneur. The Mediation is a mechanism able tomeet the expectations of business world contributing with solutions to economic crises. There can be several ways to elaborate an extrajudicial plan, but Mediation offers a proper  field  for dialogue and  integration into  business world, because of its advantages. The Extrajudicial Recovery can be accomplished through the mediation, whereascreditors and debtors have agreed as well. Keywords: Preserving Company; Extrajudicial Recovery; Mediation 1. INTRODUÇÃO O ordenamento jurídico brasileiro inovou com a Lei 11.101 de 2005 que trata da falência e recuperação de empresas, ultrapassando uma ótica meramente liquidatória para o enfoque na preservação da empresa30. Essa perspectiva tem em vista a função social da empresa. A empresa é conceituada como atividade economicamente organizada para produção e circulação de bens e serviços. O modelo pró-credor, da legislação anterior sobre falência, não convergia com os interesses sociais que giram em torno da empresa, ficando completamente desgastado frente às noções da ordem econômica e do paradigma do Estado Democrático de Direito, instituído com a Constituição da República de 1988. A nova ordem jurídica leva em conta os interesses sociais que circundam a empresa. Antes da legislação falimentar e recuperacional vigente, o modelo inspirava-se no incentivo à liquidação do patrimônio do devedor, distribuindo-o entre os credores – culminando no encerramento das atividades produtivas. Não havia prestígio da empresa como atividade organizada. O instituto da concordata, por exemplo, não alcançava a teleologia da preservação da empresa31. Com Lei 11.101 de 2005 a tentativa é de superação da crise-econômica do devedor-empresário através do instituto da Recuperação de Empresa para a manutenção de suas atividades, ou a maximização dos ativos do devedor para solver os credores num procedimento falimentar eficiente e célere. Mas a falência é exceção, visto que os graves efeitos de uma decretação de quebra demandaram uma ordem mais adequada para atender a função social da empresa viável. A Recuperação Extrajudicial é uma novidade trazida pela nova Lei de Falência e Recuperação de Empresa (LFRE). Está disciplinada nos   FERNANDES, Jean Carlos. Direito Empresarial Aplicado. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. p. 169.   Ibid., 2005, p. 178.

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artigos 161 a 167 da Lei 11.101/2005. Tal instituto não existia no revogado Decreto-lei 7.661 de 1945. Com a Recuperação Extrajudicial o legislador abriu possibilidade para que haja negociação entre os credores e o devedorempresário, no intuito de recuperar aquele que se encontra em crise econômico-financeira e preservar a empresa para que esta atenda o interesse social, atendendo também à satisfação dos credores. A extrajudicialidade tem sido instituída na legislação brasileira para dar eficiência às disposições legais e/ou desburocratizar os procedimentos judiciais. No entanto, a Recuperação Extrajudicial ainda é pouco utilizada. Além disso, a doutrina brasileira não tem se preocupado em delimitar as formas de se utilizar a Recuperação Extrajudicial para a preservação das atividades econômicas. A exploração das maneiras de realizar a recuperação de uma empresa, pela via extrajudicial, poderia contribuir para o aumento de sua utilização prática, oferecendo opções àqueles que pretendem recuperar a empresa, além de se verificar quais os métodos que são verdadeiramente eficientes para a recuperação extrajudicial das empresas em crise. Percebeu-se nos últimos anos o avanço de um movimento de desjudicialização, que se caracteriza pela simplificação processual ou o recurso a métodos menos formais para soluções de conflitos e o surgimento de estruturas não judiciais para dirimir questões conflituosas. Um dos frutos do movimento de desjudicialização é a mediação, que é um aperfeiçoamento da negociação, na qual existe um terceiro que facilita o diálogo entre as partes para que possam chegar a um acordo mutuamente aceito. Na mediação há espaço para a comunicação e para a superação das diferenças entre as partes, valorizando os interesses de todos os envolvidos. A mediação é pautada pela voluntariedade e a participação ativa dos envolvidos. Neste ponto, é possível que se realize a Recuperação Extrajudicial de sociedades empresárias utilizando-se a mediação? A mediação é um procedimento eficaz e adequado para a elaboração do plano de recuperação extrajudicial de empresários e sociedades empresariais? À primeira vista, na Recuperação Extrajudicial, o devedor que passar por um momento de crise, pode apenas propor e negociar diretamente com credores um plano de recuperação extrajudicial. As formas intermediadas estariam excluídas? O objetivo deste artigo é compreender os preceitos trazidos pela Lei 11.101 de 2005 (Lei de Falência e Recuperação de Empresários), suas implicações para as sociedades empresárias e para a sociedade em geral; além de verificar o âmbito de aplicação da mediação como forma de solução de questões conflituosas e as vantagens que tal procedimento tem para a realização da recuperação de empresas, na forma extrajudicial. Especificamente, os objetivos do trabalho 61

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se traduzem na verificação da eficiência da mediação dentro da Recuperação Extrajudicial disciplinada na Lei 11.101 de 2005, tendo em vista a nova ordem jurídica inaugurada por esta lei e a ordem econômica pautada pelos princípios do Estado Democrático de Direito. A intenção é averiguar as relações privadas entre credor e devedor no Direito Empresarial e a possibilidade de utilização da mediação para a Recuperação Extrajudicial de sociedades empresárias sob a ótica da ordem jurídica e econômica. A compreensão das relações entre as sociedades empresariais e também do ordenamento jurídico deve estar inserida em seu contexto específico, tendo em vista os aspectos diversos que exercem influência nessas relações. Deste modo, no que tange à metodologia, é necessário partir-se de uma visão geral para entender o contexto dos objetos de estudo e, posteriormente, particularizar, definindo, criticando e reconstruindo os institutos da pesquisa. Desta forma, este artigo foi desenvolvido com a reflexão de textos sobre falência e recuperação do empresário e sociedades empresariais e também sobre o processo e mediação, buscando-se a historicidade dos institutos e sua fundamentação. Justifica-se o presente trabalho na tentativa de concretizar a preservação da atividade econômica e a função social da empresa de um modo eficiente, eficaz e vantajoso – através da Recuperação Extrajudicial e da mediação. A reestruturação e o saneamento das empresas (atividades produtivas) podem beneficiar não somente os credores, mas o próprio devedor-empresário e todos os interesses sociais e econômicos que circundam as atividades de circulação e produção de serviços e bens. Com a instituição da recuperação de empresas pela Lei 11.101 de 2005 se deduz que a empresa é considerada uma instituição de desenvolvimento social e econômico. A mediação, neste viés, pode se constituir como um acréscimo à noção recuperacional, no intuito de propiciar não só a elaboração do plano de recuperação extrajudicial, mas a manutenção das relações privadas entre os empresários (credores e o devedor), com a valorização do diálogo e a aproximação entre sujeitos com interesses inicialmente conflitantes. Em primeiro lugar, é realizado um histórico da legislação brasileira sobre falência. No capítulo imediatamente posterior parte-se para a análise da reforma do direito falimentar brasileiro realizada em 2005. Nesse capítulo, trazemos os motivos da reforma, tratando do insustentável modelo pró-credor, da reforma positiva no direito falimentar brasileiro e a nova perspectiva do direito falimentar e recuperacional. O quarto ponto tratará especificamente do paradigma da preservação da empresa introduzido pela Lei 11.101 de 2005. Depois, passamos à análise da recuperação extrajudicial em ordenamentos estrangeiros e no Brasil. Já no sexto capítulo, abordamos a mediação, com sua definição, preceitos e vantagens. Em seguida, será discutida a aplicação 62

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da mediação na recuperação extrajudicial. Ulteriormente, são estabelecidas as ressalvas à utilização da mediação para elaboração do plano de recuperação extrajudicial. Por fim, no último tópico, expomos as considerações finais sobre o tema proposto. 2. HISTÓRICO DA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA SOBRE FALÊNCIA A legislação aplicada no Brasil sobre o concurso de credores era primeiramente a de Portugal. Até meados do século XIX com a instituição do Código Comercial brasileiro, a falência era regida pelas Ordenações Afonsinas, depois pelas Ordenações Manuelinas e, por fim, pelas as Ordenações Filipinas decretadas no ano de 1603, que continham regras mais específicas sobre a quebra32. Não se pode dizer que tal regramento era a falência especificamente. Todavia, em 1756 foi promulgado um Alvará por Marquês de Pombal, o qual instituiu um processo de falência eminentemente mercantil, inclusive com juízo comercial. A aplicação da legislação portuguesa perdurou em solo brasileiro mesmo depois de proclamada a independência em 1822. Somente com o advento do Código Comercial brasileiro de 1850 e o Decreto n. 738 do mesmo ano é que se passou a disciplinar as denominadas “quebras” e sua regulamentação processual. Posteriormente, por numerosos problemas dessa legislação, a regulamentação das quebras foi derrogada pelo Decreto n. 917 de 1890, que instituiu a concordata extrajudicial no direito brasileiro33. Entretanto, este decreto de 1890 não fora suficiente para conter fraudes e abusos em matéria falimentar. O referido decreto foi substituído pela Lei n. 859 de 1902, que foi sucedido pela Lei n. 2.024 em 190834. Este último diploma legislativo, que vigeu por 20 (vinte) anos, extirpou do ordenamento a concordata extrajudicial. No ano de 1929 a lei foi alterada pelo Decreto n. 5.746 e posteriormente revogada pelo Decreto-lei 7.661 de 1945. O Decreto-lei 7.661 de 1945 focava o comerciante individual, sendo que as sociedades mercantis e as sociedades por ações ficavam em segundo plano. O legislador falimentar de 1945 não enxergou a importância da atividade econômica organizada. Naquela época vigorava no direito brasileiro os Atos de Comércio e não a Teoria da Empresa, que somente foi instituída com o Código Civil brasileiro de 2002. A legislação que vigorou   NEGRÃO, Ricardo, Manual de direito comercial e de empresa: v. 3. 2 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 10. 33   COSTA JÚNIOR, José Vinícius Bicalho. O princípio da preservação da empresa e o instituto da recuperação extrajudicial no direito brasileiro: A responsabilidade social do empresário. Nova Lima: Faculdade de Direito Milton Campos / FDMC, 2006. Dissertação de mestrado. p. 27. 34   Ibid., 2006, p. 28. 32

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até 2005 possuía caráter repressivo e processual35, mostrando-se ineficiente perante a realidade econômica brasileira. O Decreto-lei 7.661/1945 tinha um perfil meramente liquidatório. Sofrendo severas críticas da doutrina pátria, a legislação de 1945 ainda perdurou por 6 (seis) décadas até o advento da então vigente Lei 11.101 de 2005, que regula a recuperação e falência do empresário e da sociedade empresária – denominado devedor ou devedor-empresário. 3. A REFORMA DO DIREITO FALIMENTAR BRASILEIRO 3.1 O MODELO PRÓ-CREDOR INSUSTENTÁVEL À época do projeto de lei 4.376/1993 havia muitos reclamos pela reforma do direito falimentar. O Brasil da década de 1940 sofreu grandes e notáveis transformações tanto na sociedade quanto na economia. A legislação sobre falência necessitava, portanto, de uma transformação paradigmática. O surgimento de conglomerados industriais ensejou o desenvolvimento urbano, ficando de lado a economia predominantemente agrária da metade do século XX. As práticas empresariais já eram outras36. A falência estava caracterizada pela eliminação dos agentes produtivos através da pura satisfação dos credores. Até então a tutela era dos interesses dos credores (modelo inglês pró-credor)37, ficando sem prestígio a atividade produtiva. Dessa forma, a legislação anterior não cumpria nenhuma finalidade social, firmando-se como mero “meio violento de cobrança”38, no qual havia satisfação do crédito mediante a derrocada da empresa e de sua função social. Nestes termos, o Decreto-lei 7.661/1945 restava totalmente ultrapassado, porque não era capaz de evitar a falência, mas de estimulá-la39, tão-somente para satisfazer os credores. Além do mais, o mecanismo da concordata não possuía o condão de preservar a empresa. Com essa legislação arcaica o Brasil sofreu graves conseqüências, “impediu a preservação de milhares de empresas, que poderiam ter recebido crédito e se recuperado, ao invés de falir”40, e “destruiu milhares de empregos que poderiam ter sido preservados e ampliados, se uma   ABRÃO, Nelson. O novo direito falimentar. São Paulo: RT, 1985, p. 163.   COSTA JÚNIOR, op. cit., 2006, passim. 37   FERNANDES, op. cit., 2007. p. 169. 38   SILVA, José de Anchieta; FIÚZA, Ricardo Arnaldo Malheiros (coord.) Vinte Anos de Advocacia. Belo Horizonte: Del Rey, 2010. p. 182. 39   WALD, Arnoldo (org.). Direito Empresarial: falimentar e recuperação empresarial, v.6. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais. 2011. p. 77. 40   Ibid., 2011. p. 78. 35 36

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parcela das empresas falidas tivesse sido recuperada”41. Quem perdeu com tais conseqüências, com certeza, foi a sociedade brasileira, já que a falência de uma unidade produtiva é capaz de atingir todos aqueles que estão ligados direta ou indiretamente à atividade empresarial, podendo citar empregados, fornecedores, Estado, etc.. Jorge Lobo42, parafraseando Giovanni Lo Cascio, destaca que: a falência constitui um procedimento extremamente grave seja para o devedor, seja para os credores, seja para a economia pública, pois o empresário, com a quebra, perde o seu negócio e os bens materiais e imateriais que o compõem, sem se falar nas conseqüências de uma longa e onerosa demanda judicial, a interrupção de seus negócios e as repercussões econômicas que provoca, inclusive no âmbito de complexas organizações, podendo até gerar um estado de crise de ordem geral na economia nacional. Muitos especialistas no assunto falimentar argumentavam favoravelmente à reforma do direito concursal positivo com fundamento também no direito comparado. Países como França, Itália, Portugal e Estados Unidos já haviam estabelecido novas óticas sobre o direito falimentar43. Nesses países, o direito há muito estava voltado para a manutenção da empresa. Todavia, fazia-se necessário não somente uma importação dos modelos estrangeiros, mas a criação no Brasil de um modelo falimentar e recuperacional que se adequasse à realidade do país, combinando com a “concretização de uma sociedade mais justa e solidária”44 - pretensão da Carta Constitucional brasileira de 1988. 3.2 DA REFORMA POSITIVA NO DIREITO FALIMENTAR BRASILEIRO O projeto de lei, que mais tarde veio se tornar a Lei 11.101/2005, já tinha como principal objetivo a recuperação da empresa que se encontrasse em dificuldades. A evolução do direito falimentar em todo o mundo estava em direção à preservação da empresa, que se constitui como “fonte de tributos, empregos e divisas”45. A empresa é um organismo social, definida pela doutrina como atividade economicamente organizada com finalidade lucrativa. Isto é, a empresa é “fonte geradora de bens patrimoniais, econômicos e sociais”46 e, por isso, deve ser preservada, quando viável.   Id.   Ibid., 2011. p. 84. 43   Ibid., 2011. p. 57. 44   Id. 45   Ibid., 2011, p. 63. 46   MACHADO, Rubens Approbato (coord.). Comentários à Nova Lei de Falências e Recuperação de Empresas. São Paulo: Quartier Latin, 2005. p. 22. 41 42

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O projeto de lei 4.376 de 1993 tramitou na Câmara dos Deputados por 10 (dez) longos anos e, após muitos debates, o projeto foi remetido ao Senado, onde se tornou o projeto de lei 71 de 2003. O Senador Ramez Tebet, relator do projeto, depois de reiteradas discussões, elaborou um relatório atribuindo outros moldes ao projeto mantendo, entretanto, a centralidade da recuperação das empresas. Dentre os pontos relatados, o Senador Ramez Tebet enunciou 12 (doze) princípios: 1) Preservação da empresa; 2) Separação dos conceitos de empresa e empresário; 3) Recuperação das sociedades e empresários recuperáveis; 4) Retirada do mercado de sociedades ou empresários não recuperáveis; 5) Proteção dos trabalhadores; 6) Redução do custo do crédito no Brasil; 7) Celeridade e eficiência dos processos judiciais; 8) Segurança jurídica; 9) Participação ativa dos credores; 10) Maximização do valor dos ativos do falido; 11) Desburocratização da recuperação de microempresas e empresas de pequeno porte; e 12) Rigor na punição de crimes relacionados à falência e à recuperação judicial. Com esses princípios norteadores, o projeto passou por várias comissões até sua aprovação em sessão plenária do Senado, datada de 06 de julho de 2004. Retornando à Câmara dos Deputados a redação final do projeto foi definida e posteriormente levada à sanção do Poder Executivo no ano de 2005. 3.3 A NOVA PERSPECTIVA DO DIREITO FALIMENTAR E RECUPERACIONAL O advento da Lei 11.101 de 2005 inaugurou um novo paradigma no direito falimentar brasileiro. A nova lei já não contribui para o encerramento da empresa, mas, pelo contrário, busca preservar as atividades economicamente organizadas viáveis que se encontram em crise econômica. A preservação da empresa, segundo a doutrina, está expressamente acolhida na legislação brasileira no artigo 47 da Lei 11.101/2005. O referido dispositivo afirma que é objetivo da recuperação judicial viabilizar a superação da crise econômica do devedor, permitindo a manutenção da atividade produtiva, do emprego dos trabalhadores, do interesse dos credores, preservando a empresa e sua função social, estimulando ainda a atividade econômica47. Um ponto que merece destaque dentre os princípios elencados na nova lei é o da separação dos conceitos de empresa e empresário. Adotada a Teoria   www.planalto.gov.br - Lei 11.101 de 2005. “Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica”. 47

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da Empresa no Brasil, a legislação falimentar é aplicada ao empresário, isto é, empresário individual ou sociedade empresária. O art. 966 do Código Civil brasileiro de 2002 define que é empresário aquele que exerce atividade econômica organizada com intuito lucrativo, e não a figura dos sócios. A doutrina deduz que empresa é a atividade produtiva. Nessa ótica, quem está sujeito à falência e à recuperação é o empresário e a sociedade empresária, denominado devedor, conforme explicita o art. 1º da Lei 11.101 de 2005. Entretanto o que se preserva ou se busca preservar é a atividade produtiva, ou seja, a empresa, não necessariamente a sociedade empresária. O direito pátrio deixou de lado um sistema classificado como liquidatório, de satisfação pura dos credores, para adentrar num sistema eminentemente recuperacional, centrado na preservação da empresa48. Visto que os efeitos da falência podem atingir não só os credores, mas também a economia, os empregos e o próprio Estado, fazia-se necessário uma ordem jurídica que estivesse mais adequada a uma perspectiva menos individual e mais coletiva. Um modelo que tem por objetivo apenas satisfazer os credores não tem a preocupação com os contornos que possui uma atividade produtiva. Neste ponto, a legislação agora se preocupa com interesses sociais, voltando-se para todos aqueles que podem sofrer os impactos da falência de uma determinada sociedade empresária. É obvio que os credores são figuras importantes que querem ver o cumprimento da obrigação pactuada com o empresário-devedor, porém isso deve levar em conta um contexto mais abrangente, onde as relações ultrapassam a subjetividade obrigacional. Com isso, a legislação implica que deve haver certo sacrifício por parte dos credores a fim de beneficiar um devedor comum, permitindo-lhe o saneamento da crise econômica49. Para tanto, a nova legislação falimentar trouxe o instituto da Recuperação de Empresas. Esse instituto se subdivide em dois: a Recuperação Judicial e a Recuperação Extrajudicial. Ambos são sistemas cuja finalidade é contribuir para a superação da crise econômico-financeira das empresas. A Recuperação Judicial é prevista na lei de uma forma mais sistemática e delimitada, abarcando as sociedades empresariais de um modo geral e, de um modo especial, as microempresas e as empresas de pequeno porte. Já a Recuperação Extrajudicial, específico objeto deste estudo, compreende-se basicamente como uma maneira “consensual de viabilização da empresa realizado entre devedor e credores, sujeito à homologação em juízo”50. Nessas novas perspectivas, o Estado não pode manter-se inerte perante as crises sofridas pela empresas. Cabe também ao Estado, portanto, a colaboração para a manutenção das fontes produtivas, que tanto contribuem para   FERNANDES, op. cit., 2007. p. 179.   Ibid., 2007. p. 195. 50   NEGRÃO, op. cit., 2007, p. 123. 48 49

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o desenvolvimento do país, pois “estando em crise a empresa privada, é dever do Estado enviar esforços no sentido de recuperá-la”51. Ora, é da empresa que advém a subsistência de grande parte da população ativa do Brasil pelo trabalho assalariado, dela também provêm bens e serviços consumidos pela população e são fontes de tributos para o Estado. Esses fatores constituem a função social da empresa, acrescidos de outros, como a evolução e avanço de novas tecnologias52. Enfim, a nova ótica do direito falimentar brasileiro está voltada para a preservação da empresa que possua viabilidade econômica de se reerguer, em razão da finalidade social que carrega. Caso não seja possível a superação da crise das empresas, o sistema de falência brasileiro busca ser célere e, sobretudo, eficiente no adimplemento das obrigações contraídas com os credores através da maximização dos ativos. A decretação da falência é mecanismo de exceção, visto que há privilégio para manter a empresa cumprindo sua função social através do instituto da Recuperação da Empresa. 4. O PARADIGMA DA PRESERVAÇÃO DA EMPRESA Conforme explicitado acima o Código Civil brasileiro de 2002 traz em seu artigo 966 o conceito de empresário. Desse conceito legal a doutrina retira a definição de empresa, sendo essa a atividade econômica organizada. Portanto o empresário (individual ou sociedade empresarial) é aquele que exerce a empresa (atividade). A Lei de Falência e Recuperação de Empresa trouxe um novo paradigma ao direito brasileiro, como já referido. Dentre os pontos enunciados como princípios pelo Senador Ramez Tebet está a Preservação da Empresa, isto é, a manutenção da atividade econômica organizada. A doutrina estabelece que o paradigma da Preservação da Empresa encontra-se positivado no artigo 47 da Lei 11.101/2005. Segundo Jürgen Habermas “paradigmas do direito permitem diagnosticar a situação e servem de guias para a ação”53. Nesse aspecto, é a Preservação da Empresa um verdadeiro norte para a aplicação da Lei que rege a falência e a recuperação de empresas no Brasil. Atribui-se relevância à função social da empresa, a qual deve ser preservada sempre que viável economicamente. Fala-se em função social da empresa por esta ser fonte geradora de riqueza, emprego e renda – o que contribui para o desenvolvimento social do País. É notável a importância social da empresa na sociedade. Ela é propulsora da movimentação da economia, geradora de emprego e renda, além de tributos para o   WALD, op. cit., 2011, p. 103.   COMPARATO, Fábio Konder, apud WALD, op. cit., 2011, p. 64. 53  HABERMAS Jürgen. Direito e democracia: entre a faticidade e validade. Trad. Flávio Beno Siebeneichler, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. p. 181. 51 52

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Estado, podendo isso acontecer em nível local, regional, nacional e internacional. Existe, portanto, um complexo de interesses que concorrem para a proteção da empresa. E os efeitos da falência podem atingir não apenas o devedor e a empresa, mas também trabalhadores, fornecedores, credores, a economia e o próprio Estado. Daí se conservar a empresa sempre que possível, analisando-se a importância social que ela possui, bem como as condições econômicas de soerguimento. A Preservação da Empresa adquiriu espaço no ordenamento brasileiro pela necessidade de tratamento especial às atividades econômicas que passam por crises momentâneas. O instituto existente na legislação anterior, a Concordata, não continha o viés de preservar a fonte produtora54. A Recuperação de Empresas visa justamente criar condições para que se possa superar a transitoriedade de crise do devedor, preservando a empresa e sua função social. Houve verdadeiro câmbio estrutural na legislação falimentar que, segundo Lídia Valério Marzagão: “torna um instrumento de manutenção da fonte produtiva, de preservação da empresa, ao invés de sua liquidação”55. O próprio ente estatal tem a função de incentivar a empresa, conforme estabelece a Constituição da República de 1988, em seu artigo 17456. É nesse sentido que a legislação falimentar cria mecanismos de incentivo à continuação das atividades economicamente organizadas. Ressalte-se, porém, que não é toda e qualquer empresa que deve ser preservada ou recuperada, mas somente a empresa que apresentar viabilidade para tanto. Segundo Fábio Ulhoa Coelho57, a viabilidade pode ser examinada em função da importância social da empresa, da mão-de-obra e tecnologia empregada na atividade, do volume do ativo e passivo, do tempo de funcionamento da empresa e de seu porte econômico. Embora a Preservação da Empresa esteja acolhida num dispositivo que se refere tão-somente à Recuperação Judicial é obvio que se pode estender o paradigma da preservação à Recuperação Extrajudicial. Primeiramente a Constituição da República diz que o Estado deve incentivar as atividades econômicas (empresa); em segundo lugar porque a Preservação da Empresa foi enunciada como princípio de toda a Lei de Falência e Recuperação de Empresas; além do mais, o tipo de recuperação da empresa não pode ser critério para se estabelecer ou não a conservação da empresa. Os objetivos da recuperação de empresas, seja judicial ou extrajudicial, são idênticos: saneamento da crise econômica, preservação da atividade produtiva com sua função social e os interesses dos credores.   MACHADO, op. cit. 2005. p. 77.   Id. 56   www.planalto.gov.br - Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. 57   COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial, v. 3. 5ª ed. rev. e atual. de acordo com o novo Código Civil e a nova Lei de falências. São Paulo: Saraiva. 2005, p. 383-385. 54 55

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Saliente-se que o dispositivo acolhedor da Preservação da Empresa estabelece que a recuperação visa a superação da crise econômico-financeira do devedor para atingir a finalidade de manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, significando a preservação da empresa com sua função social e o incentivo à empresa. 5. A RECUPERAÇÃO EXTRAJUDICIAL 5.1 SOBRE A RECUPERAÇÃO EXTRAJUDICIAL NO MUNDO Uma das grandes características do Direito nos últimos tempos é a desjudicialização ou desjurisdicização. O direito falimentar ou concursal não segue linha diferente, pois a solução para a crise econômica que passa a empresa pode ficar nas mãos dos credores e devedores, na medida da permissão legal ou não, dependendo do país que acolhe as medidas extrajudiciais de saneamento da empresa. Segundo Rubens Requião58, o embrião da recuperação extrajudicial brotou na República de Veneza, denominado de concordata extrajudicial. Não se constituía num sistema regulado legalmente, daí sua inexpressiva utilização pelos comerciantes, diante da insegurança da não intervenção de um juiz. Já nos séculos XVI e XVII, os acordos entre devedor em estado de crise e seus credores eram mais comum. Esses acordos previam geralmente a dilação de prazos de pagamento de obrigações e o perdão parcial de dívidas59. Em terras latino-americanas a Lei de Falências do Chile permite um convênio extrajudicial desde que haja aprovação unânime dos credores com um relatório que conste um detalhamento da situação do devedor com um balanço patrimonial. A legislação falimentar do Peru permite a composição extrajudicial, servindo esta apenas para facilitar a liquidação, mas não para evitar a decretação da falência. Em solo colombiano há permissão para realização de um acordo privado dentro de um procedimento judicial, buscando-se evitar a quebra. Na Argentina também existe a possibilidade de superação da crise econômica da empresa através de um acordo, denominado de acuerdo preventivo extrajudicial, no qual não há intervenção judicial60. No continente europeu o direito inglês também admite um tipo de acordo com o fito de evitar a falência. Em terras espanholas, mesmo sem previsão legal no Código Comercial espanhol, a doutrina hispânica considera   REQUIÃO, Rubens. A crise do direito falimentar brasileiro. Reforma da lei de falências. Revista de Direito Bancário, do Mercado de Capitais e da Arbitragem, São Paulo, v.6, n.20, p.199207, abr./jun. 2003. 59   COSTA JÚNIOR, op. cit., 2006. p. 32. 60   Id. 58

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válido o acordo realizado entre credores e devedor. Na França a lei admite três soluções extrajudiciais para crises de empresas: prevenção, alerta e saneamento extrajudicial. O direito italiano e o direito alemão, com base no princípio da liberdade contratual, aceitam que haja acordo privado entre o devedor e seus credores61. A legislação dos Estados Unidos permite a negociação entre credores e devedor numa fase anterior à solicitação da falência (bankruptcy), na própria Corte de Falências62. Isso significa que antes de um requerimento de falência credores e o devedor podem negociar, elaborando um plano de recuperação para a empresa em crise. O direito estadunidense denomina a recuperação extrajudicial de “prepackaged chapter 11 plan”. Através desse instituto também há oportunidade do devedor tentar negociar com seus credores um plano de recuperação após a protocolização do pedido de falência63. Por essa negociação chega-se a um acordo extrajudicial para a reorganização da sociedade empresária devedora. O plano de reorganização pode ser acordado junto ao juízo falimentar, adquirindo força de lei e, portanto, não há possibilidade de desistência das partes. A recuperação extrajudicial, nos moldes da lei dos Estados Unidos, objetiva sanar a crise econômica e as conseqüências gravosas que a falência pode causar, já que possui efeitos devastadores na economia e na sociedade. Muitos credores preferem negociar e renegociar as dívidas, diminuindo o risco de não recebimento do crédito, em vez de ver a falência de um empresário e, conseqüentemente, a perda de um cliente. É nesse sentido que: “o instituto, nos EUA, é bem sucedido”64. 5.2 RECUPERAÇÃO EXTRAJUDICIAL NO BRASIL O Brasil já teve um instituto próximo à Recuperação Extrajudicial, denominado de Concordata Extrajudicial. O Decreto nº 917 de 1890 previa essa espécie de concordata realizada através de um acordo com os credores. Nesse acordo deveria haver ao menos ¾ (três quartos) de todo o passivo e, para sua eficácia, era necessária a homologação em juízo comercial. Obtida a homologação evitava-se a falência, conforme dispunha o art. 120 do referido Decreto. No ano de 1908 o Decreto nº 2.024 extinguiu a concordata extrajudicial e consolidou-se no direito brasileiro o sistema da concordata judicial, perdurando até a entrada da atual legislação de 2005.     63   64   61 62

Id. MACHADO, op. cit., 2005. p.155. Id. Ibid., 2005. p.156. 71

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Antes da legislação falimentar de 2005 no Brasil, o Decreto-lei 7.661/1945 revogado penalizava as tentativas de o devedor renegociar as dívidas com seus credores. A legislação de 1945 caracterizava como falência a convocação dos credores para dilação, remissão de créditos ou cessão de bens, de acordo com o artigo 2º, III do revogado Decreto-lei. Isto é, não era possível a composição extrajudicial, já que esta caracterizava o estado falimentar do comerciante. Na legislação revogada uma tentativa de acordo extrajudicial denotava o estado de insolvência do devedor comerciante. Ressalte-se que o Decreto-lei de 1945 focava sua tutela nos interesses dos credores. Justificava-se a vedação de acordo, que ensejava a penalidade de decretação de falência, no interesse maior dos credores, já que poderia haver prejuízo para eles, pela falta de isonomia no tratamento65 ou a par conditio creditorum. Atualmente a empresa tem importância social, sendo que o sistema não pode ser tão rigoroso a ponto de preservar apenas os interesses individuais dos credores em detrimento de outros interesses que estão ao redor da empresa. Então, nem sempre é necessária a intervenção judicial para a recuperação ou reorganização da empresa, podendo-se preservar a atividade através de soluções advindas dos próprios protagonistas dos negócios, isto é, credores e o devedorempresário. Essas soluções são denominadas de soluções de mercado. Para que exista solução de mercado é necessário que a lei permita ou não proíba a renegociação de dívidas. Sob o ponto de vista da análise econômica do direito, a legislação deve regulamentar o procedimento extrajudicial de recuperação de empresas criando condições para as renegociações do passivo66, promovendo a iniciativa privada. Além da criação dessas condições, a reorganização extrajudicial merece ampla proteção para que se tenha segurança em sua realização. Os acordos devem ser estimulados a fim de evitar a intervenção judicial custosa e morosa nos processos de recuperação judicial e falência. Podem, portanto, os próprios credores e o devedor tomar as iniciativas de solução para a crise, ficando o judiciário apenas com a função de homologar os acordos, quando assim requeridos e verificar as eventuais fraudes ou situações ilegais. Na medida em que haja viabilidade econômica de erguimento da atividade em crise e interesse social em mantê-la não há porque o legislador negar a recuperação da empresa através de um modelo extrajudicial ou amigável. Desde que não haja fraudes a terceiros e a outras esferas da sociedade ou do mercado, é plenamente concebível, devendo inclusive ser estimulada, a atuação de credores e devedor para a reorganização da empresa de modo extrajudicial, concretizando a participação ativa dos credores.   REQUIÃO, Rubens. Curso de direito falimentar. 14 ed. São Paulo: Saraiva, 1995, v.2, p. 6.   COELHO, op. cit., 2005. p. 238.

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Rubens Requião, comungando com os dizeres de Bento Faria, aduz: Como sugere Bento Faria não deve ser visto como expediente dilatório, utilizado quase sempre com o propósito de retardar a ação dos credores o fato de o devedor convocar todos os seus credores para demonstrarlhes, com sinceridade, a suficiência do seu ativo comercial e propor a todos ou a alguns deles os referidos meios de dilatar a exigibilidade dos respectivos créditos, como meio de conjugar um embaraço momentâneo, conseqüente a força maior e removível em breve espaço67. É nessa perspectiva da preservação da empresa e de oportunizar soluções de mercado para empresas em crise econômica que a atual lei que regula a falência e recuperação de empresas (Lei 11.101/2005) instituiu a Recuperação Extrajudicial. O Brasil inspirou-se nos sistemas estrangeiros que admitiam a possibilidade de um acordo amigável para o soerguimento da empresa em crise e a manutenção da fonte produtora. Incluído no projeto da nova lei de falências pelo Deputado Osvaldo Biolchi no ano de 2002, o instituto da Recuperação Extrajudicial foi alterado durante a tramitação do projeto no Senado, em 2004. O texto elaborado no Senado dizia que a homologação judicial do plano de recuperação extrajudicial tem como condição a adesão da totalidade (100%) dos credores. No entanto, com essa redação o instituto teria grandes chances de ter pouca utilidade prática já que nem todos os credores poderiam anuir. Após numerosas críticas sobre a redação que ganhou o instituto da recuperação extrajudicial no Senado, o projeto foi reformulado no capítulo que trata o instituto. Dessa vez, as emendas realizadas retiraram a carga de que todos os credores deveriam aderir ao plano para homologação judicial e, além disso, reintroduziu a possibilidade de obrigar todos os credores através da vontade da maioria68. Com a Lei 11.101 de 2005, o legislador brasileiro reabriu caminho para que os credores e o devedor-empresário possam renegociar suas dívidas objetivando a este último a superação da situação momentânea de crise econômico-financeira. A Recuperação Extrajudicial é um modo mais simples e rápido que a demanda judicial de recuperação. O instituto preleciona aos protagonistas do mercado uma forma de tentarem solucionar o momento de crise com acordos amigáveis, num viés mais consensual, preservando a empresa, os interesses dos credores e a função social da empresa.   REQUIÃO, op. cit., p. 86.   COSTA JÚNIOR, op. cit., 2006. p.38.

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As legislações modernas sobre quebras e recuperação de empresas incentivam soluções de caráter mais econômico do que propriamente jurídicas69. A noção da recuperação extrajudicial no Brasil é oferecer um campo para soluções econômicas, que poderão ser homologadas em juízo, combinando a autonomia privada e a atuação do Estado-juiz. Ocorre que, mesmo depois da entrada em vigor da nova Lei de Falência e Recuperação de Empresas, a reorganização extrajudicial não tem sido muito utilizada. Os credores e o próprio devedor-empresário têm optado pela Recuperação Judicial, seja pela falta de conhecimento ou dúvidas na aplicação da recuperação na modalidade extrajudicial. Mas este instituto denominado extrajudicial poderia se constituir como uma forma mais utilizada pelo empresariado brasileiro, a depender do modo de elaboração do plano. 6. MEDIAÇÃO: DEFINIÇÃO E PRECEITOS A mediação pode ser entendida como um procedimento para solução de disputas no qual uma terceira pessoa, o mediador, facilita negociações entre as partes fazendo com que elas cheguem a um acordo. Esse procedimento é capaz de ampliar as opções de resolução para os conflitos, indo além dos pontos estritamente jurídicos que se encontram ao redor da controvérsia70. O mediador ajuda as partes a se comunicarem para realizarem acordos de forma voluntária, resolvendo os conflitos. Numa abordagem histórica a mediação foi utilizada por tribos, pajés, anciãos e conselheiros como forma de pacificação e integração social71. Entretanto, com o advento do Estado moderno ocorreu o monopólio das soluções de disputas, ficando a mediação e outras formas de resoluções de controvérsias como “alternativas” à aplicação do Direito estatal72. Nas décadas de 1970 e 1980, a mediação é retomada principalmente nos Estados Unidos num movimento denominado de Alternative Dispute Resolution (ADR), que visava a promoção do acesso ao direito e à justiça73. O movimento defendia a co-existência de outros mecanismos para solução de litígios, dentre eles, a mediação. Nesse período houve forte tendência à desjudicialização. A   WALD, op. cit., 2011, p. 88.   SCHNITMAN, Dora Fried. Novos paradigmas em mediação. Tradução: Marcos A. G. Domingues e Jussara Haubert Rodrigues. Porto Alegre: Artes Médicas Sul. 1999, p.189. 71   DIAS, Maria Tereza Fonseca (coord.) Mediação, cidadania e emancipação social: a experiência da implantação do centro de mediação e cidadania da UFOP e outros ensaios. Belo Horizonte: Fórum, 2010, p. 153. 72   ROMÃO, José Eduardo Elias. Justiça procedimental: a prática da mediação na teoria discursiva do Direito de Jürgen Habermas. Brasília: Maggiore, 2005, p. 155. 73   DIAS, op. cit., 2010, p. 154. 69 70

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desjudicialização pode tanto simplificar o processo legal e promover os meios menos formais de resolução de litígios dentro do próprio processo judicial, como criar estruturas fora do Poder Judiciário para que resolvam conflitos74. Em termos gerais a mediação é um procedimento que contribui para a administração de um conflito e amplia possibilidades para se chegar a um equilíbrio entre os envolvidos. Nela há um alargamento do espaço retórico buscando-se, para além de uma resolução pura e simples de conflitos, a permanência de relações ou a criação e estreitamento de laços entre sujeitos. Diferentemente da lógica ganhar-perder do sistema judiciário, na mediação as partes “se habilitam para o discurso, apresentando-se como protagonistas (individuais ou coletivos) nesse mesmo espaço”. A partir desse canal de comunicação criado e do protagonismo dos envolvidos, a solução das questões é legitimada pelos argumentos e pretensões trazidos e levantados no discurso. Não significa a simples aplicação do direito, pois o espaço é amplo, envolvendo diversas habilidades e conhecimentos. Há uma pretensão integradora na mediação que se dá através da cooperação e do cuidado recíproco dos que nela estão envolvidos. O procedimento é permeado pelo pluralismo, internormatividade, dialogicidade, campo retórico alargado e protagonismo75. A mediação busca aproximar interesses heterogêneos em vez de apartá-los. A sociedade contemporânea está inserida em “cenários plurais, polifônicos e heterogêneos”76, necessitando-se, antes que separar, unir e reconhecer pretensões. Mediação pode ser entendida de diversas formas, inexistindo um conceito único do termo. Christopher Moore define a mediação da seguinte maneira: A mediação é um prolongamento ou aperfeiçoamento do processo de negociação que envolve a interferência de uma aceitável terceira parte, que tem poder de tomada de decisão limitado ou não-autoritário. Esta pessoa ajuda as partes principais a chegarem de forma voluntária a um acordo mutuamente aceitável das questões em disputa. Da mesma forma que ocorre com a negociação, a mediação é um processo voluntário em que os participantes devem estar dispostos a aceitara ajuda do interventor se sua função for ajudá-los a lidar com suas diferenças – ou resolvê-las77.   PEDROSO, João et al. Percursos da informalização e da desjudicialização por caminhos da reforma da administração da justiça (análise comparativa). Coimbra: Centro de Estudos Sociais, 2001, p. 42. 75   DIAS, op. cit., 2010, p. 161. 76   Ibid., 2010, p. 165. 77   MOORE, Christopher W. O processo de mediação: estratégias práticas para a resolução de conflitos. Trad. Magda França Lopes. Porto Alegre: ARTMED, 1988. p. 22-23. 74

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O referido autor deixa claro que a mediação nada mais é do que uma negociação assistida/facilitada por uma terceira pessoal aceitável. Este terceiro é o mediador, que tem por função facilitar o diálogo e ajudar os envolvidos na superação de diferenças, contribuindo também para que seja feito um acordo, de forma voluntária. Além disso, dispõe Dora Fried Shnitman que “A mediação se define como um trabalho conjunto, em que se cria um contexto no qual as pessoas podem encontrar e gerar condições de possibilidade e oportunidade para a mudança”78. A mediação é um procedimento não adversarial. Por tal procedimento os participantes têm possibilidade de chegar a um acordo com ganhos recíprocos. É necessário se chegar aos verdadeiros interesses dos participantes, para que possam ser convergidos em interesses comuns através da compreensão mútua e buscar as possibilidades reais de acordo79. O procedimento deve ser realizado com oralidade, intercompreensão e participação voluntária. Não há viés coercitivo na mediação nem obrigatoriedade na participação do procedimento, porém o acordo celebrado possui natureza contratual. As partes decidem exercendo a autonomia e por ela se vinculam, podendo o acordo ser levado à homologação judicial. A mediação é um procedimento autocompositivo, haja vista que os próprios participantes é que têm o poder de decisão e, portanto, estabelecem a solução da questão conflituosa. Respeita-se a autonomia privada tanto na iniciativa ou inércia de participação da mediação quanto nas tomadas de decisões dentro do procedimento. Neste aspecto o mediador tem poder de decisão limitada, não podendo impor solução, mas facilitar a comunicação entre os envolvidos para que estes decidam. A terceira pessoa, isto é, o mediador é verdadeiro intermediário, que aproxima as partes e seus interesses num procedimento que pode possuir várias etapas, com diversas possibilidades de resolução para o caso, inclusive criativas e dinâmicas. O mediador controla o processo sem adentrar no conteúdo e nos resultados, os quais cabem às partes80. Explica Dora Fried Schnitman: “Por meio da conversação, o mediador age no sentido de facilitar essas condições, mas prescinde de sua própria qualificação em relação aos temas, conteúdos e soluções”81. Os participantes da mediação hão de possuir oportunidade devidamente adequada para a comunicação, levando-se em conta o contraditório82.   SCHNITMAN, op. cit., 1999, p.246.   DIAS, op. cit., 2010, p. 48. 80   SCHNITMAN, op. cit., 1999, p.190-193. 81   Ibid., 1999, p.246. 82   AZEVEDO, André Gomma (org.). Manual de Mediação Judicial. Brasília/DF: Ministério da Justiça e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD. 2009, passim. 78 79

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As vantagens do procedimento da mediação se constituem no alargamento do espaço para o diálogo, argumentação e negociação. Além de resolver o conflito a mediação pode aproximar os interesses e fazer duradoura a relação entre os envolvidos. As discussões ultrapassam as individualidades de determinado problema em jogo e planeja o futuro da relação. O procedimento há de ser confidencial; pode ser mais célere que um processo judicial, considera aspectos sociais, econômicos, psicológicos e outros não somente jurídicos; tenta satisfazer efetivamente os participantes; possui baixo custo financeiro e, além de tudo, tenta preservar o relacionamento entre as partes83. A mediação abre grande possibilidade para a concretização dos reais interesses, já que há estímulo para a compreensão recíproca e participação ativa dos envolvidos. Os sujeitos têm a oportunidade de reconhecer as necessidades e interesses do outro para assim poderem pensar numa pacificação da disputa. Essa pacificação deve ser fruto de uma integração entre os envolvidos no procedimento, ou seja, o acordo realizado na mediação é uma construção harmônica da solução do conflito. Em síntese a mediação é nada menos que uma negociação catalisada por um terceiro (o mediador) imparcial em relação ao conflito84. 7. A APLICAÇÃO DA MEDIAÇÃO NA RECUPERAÇÃO EXTRAJUDICIAL A Recuperação Extrajudicial é assim denominada porque a primeira parte do procedimento é realizada fora das esferas judiciais. Primeiramente o devedor tem a prerrogativa de propor e negociar um plano de recuperação extrajudicial, plano este que poderá passar por homologação judicial, se assim for requerido, numa segunda etapa. Os ensinamentos doutrinários de Jean Carlos Fernandes85 e Ricardo Negrão86 reconhecem que a recuperação denominada extrajudicial é, no entanto, judicial caso for homologada em juízo. Na dicção do artigo 161 da Lei de Falência e Recuperação de Empresas o devedor poderá propor e negociar com seus credores um plano de recuperação extrajudicial. Mas como se chegar ao plano que será objeto de homologação? A lei utiliza os termos “propor” e “negociar”. No primeiro caso ter-se-ia um plano elaborado pelo devedor e proposto para os credores que podem aproválo ou rejeitá-lo. Já no plano negociado, o devedor convocaria os credores para renegociação das dívidas de maneira conjunta, com propostas e contrapropostas, até se chegar a um plano de recuperação extrajudicial. Seriam esses os meios de   DIAS, op. cit., 2010, passim.   AZEVEDO, André Gomma (org.). Manual de Mediação Judicial. Brasília/DF: Ministério da Justiça e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD. 2009, passim. 85   FERNANDES, op. cit. 2007. p. 214. 86   NEGRÃO, op. cit., 2007. p. 203. 83

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realização da recuperação extrajudicial ao se propor e negociar diretamente com os credores o plano de recuperação antes da homologação em juízo. O entendimento de Ricardo Negrão87 é o de que para o devedor em crise “A proposta e a negociação de meios que lhe proporcionem a recuperação de seu empreendimento são realizadas diretamente com os credores [...]”. Ou seja, o plano de recuperação extrajudicial é fruto da propositura e negociação direta com os credores, para o referido autor. Todavia, esse mesmo entendimento estaria restringindo o campo de atuação das formas de elaboração do plano de recuperação extrajudicial, que deve ser mais amplo, comportando outras maneiras de se chegar ao plano. Ao estabelecer a Recuperação Extrajudicial no ordenamento o legislador abriu caminho para a reorganização empresarial, juntamente com o cumprimento das obrigações, do modo como preferirem o devedor e seus credores com o objetivo precípuo de conservar a empresa. Podem ser várias as maneiras de se chegar a um plano extrajudicial para a preservação das atividades econômicas. As maneiras de elaboração do plano não têm de serem formas necessariamente diretas. As palavras “propor” e “negociar” estão em sentido amplo na lei falimentar e recuperacional. Em razão de a recuperação extrajudicial ter a primeira fase permeada pela autonomia privada, cabe também às partes estabelecerem como realizar o plano. Os interessados podem muito bem eleger, por exemplo, a arbitragem, a negociação direta ou a mediação para solucionarem as disputas e recuperar a empresa em crise. Este trabalho escolheu tratar da mediação para a elaboração do plano de recuperação extrajudicial por conta de suas vantagens para o mundo empresarial. A mediação possibilita as rediscussões do crédito num viés mais dinâmico e interdisciplinar, compatibilizando a aplicação do direito com outras esferas interferentes na atividade econômica. A negociação direta, sem dúvida, é forma de se chegar ao plano de recuperação extrajudicial, contudo não é a única. A relação entre credores e o devedor já pode estar desgastada, podendo necessitar de um intermediário para recriar um espaço para o diálogo entre os interessados. Nesse ponto, a mediação contribui para reunir as partes, eleger interesses, restabelecer a confiança, criar soluções e, sobretudo, manter as relações entre credores e o devedor. A mediação proporciona a ampliação do espaço para a discussão das dívidas e pode fazer com que as partes enxerguem múltiplas soluções para as obrigações não cumpridas ou a vencer, estando o devedor em crise econômica. A utilização do procedimento da mediação para a elaboração do plano de recuperação extrajudicial pode ainda aproximar mais os credores e o devedor, pois um geralmente depende do outro para a própria sobrevivência no mercado. O contexto criado pela mediação pode fazer prolongar as relações entre os   Id.

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interessados na recuperação extrajudicial da empresa, que continuarão a realizar contratos uns com os outros. De um lado os credores querem receber o que lhes é devido; de outro o devedor quer adimplir suas obrigações, mas passa por um momento de dificuldade financeira; e, numa terceira ponta, há interesse do Estado e de toda a sociedade em preservar a atividade econômica, ou seja, a empresa. Através da mediação, que visa a intercompreensão e cria um espaço para a comunicação, esses objetivos podem ser cumpridos. O que inicialmente está em lados opostos são convergidos na mediação, desde que haja voluntariedade na participação. As decisões são tomadas pelas próprias partes e o mediador apenas conduz o procedimento, fazendo perguntas e tentando pacificar os credores e o devedor para que esses decidam, preponderantemente, pelo acordo. É preferível que o mediador tenha prévio conhecimento acerca do procedimento da mediação e também dos traquejos próprios da vida empresarial e jurídica. O mundo empresarial busca por soluções compatíveis com a dinâmica que lhe é peculiar. Deste modo, a mediação ao alcançar perspectivas transindividuais, econômicas, sociais e psicológicas se constitui num campo propício para a atuação da recuperação extrajudicial no que tange à elaboração do plano. No cenário atual das esferas de mercado os empresários e as sociedades empresariais levam em conta a gama de elementos que são determinantes no planejamento e na conclusão de seus negócios, bem como o tempo e os riscos quando se tem uma solução definitiva para as controvérsias88. No procedimento da mediação há um espaço discursivo alargado, onde são colocados à mesa os problemas e os múltiplos tipos de soluções, além de o assunto ser discutido com argumentos legitimados pelos próprios participantes, gerando grande chance do plano de recuperação ser devidamente cumprido. As mais modernas legislações sobre falência e recuperação de empresas em crise têm procurado oferecer soluções mais adequadas à dinâmica do mundo empresarial, soluções de ordem econômica e não somente soluções jurídicas. Na medida em que na mediação as discussões ultrapassam as juridicidades dos problemas, a recuperação extrajudicial realizada por tal procedimento concretiza os preceitos das mais avançadas das legislações falimentares e recuperacionais, tal qual a Lei brasileira. Explica Dora Fried Schnitman que “Nosso futuro global é plural, multidisciplinar, convida à criatividade em um horizonte de tempo-espaço expandido a novos saberes”89. Assim é também o contexto empresarial: plural, multidisciplinar e carece de soluções criativas, que atendam os interesses de todos os envolvidos – sendo a mediação capaz de oferecer o campo para tais soluções.   VILELA, Marcelo Dias Gonçalves (coord.) – Métodos Extrajudiciais de Solução de Controvérsias – São Paulo: Quartier Latim, Coleção LEXNET, 2007, passim. 89   SCHNITMAN, op. cit., 1999, p.26. 88

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As soluções oriundas da mediação são mais flexíveis, para atender as necessidades e interesses de seus partícipes e, no caso empresarial, do mercado e da ordem econômica. A mediação no meio empresarial tem o viés de preservar parcerias, conter gastos e evitar o desgaste na imagem das sociedades empresariais, buscando soluções duráveis e o equilíbrio. Ressalte-se que se há tentativa de recuperação da empresa em crise é porque houve certa ruptura do crédito em razão do não pagamento pontual. Essa hipótese enseja desconfiança no devedor e instabilidade na relação, o que pode gerar o pedido de falência pelo credor que se sente inseguro no que tange ao recebimento de seu crédito90. Nesse sentido, crédito e confiança estão inteiramente interligados. De outro lado, em muitos casos, credores e o devedor são comumente chamados fornecedores e comprador (que adquire para revender a um consumidor final), sendo que um necessita do outro para os rendimentos de seus negócios. E, havendo ruptura do crédito e quebra da confiança é preciso que, antes de um pleito falimentar ou recuperacional, as partes tentem restabelecer a confiança. É preciso que os sujeitos empresariais possam reconhecer suas próprias necessidades, bem como as dos outros, que devem ser seus parceiros de mercado. É nesse ponto que entra a mediação: para que haja diálogo entre os envolvidos, restauração do crédito e da confiança. Utilizada a mediação para a elaboração do plano de recuperação extrajudicial a tendência é que se fortifique a confiança dos credores e se perdure as relações entre os credores e o devedor na ordem econômica. Os credores, enxergando a boa-fé do devedor em se recuperar cumprindo com suas obrigações, poderão preferir atribuir nova confiança a ele para negociar e renegociar as dívidas ao passo de ver a quebra do devedor e, portanto, a perda de um cliente. Os credores também poderão optar pela mediação na recuperação extrajudicial ao passo do moroso processo de Recuperação Judicial. Com a mediação os credores terão chance de afastar a inadimplência e o estado de crise do devedor comum, através da flexibilização do direito creditório. É, portanto, plenamente possível e viável a utilização da mediação para a elaboração de plano de recuperação extrajudicial, desde que as partes assim convencionem. Escolhida a mediação, os participantes do procedimento hão de proceder com lealdade, boa-fé, zelo, cuidado, presteza e simplicidade na linguagem para melhor compreensão das situações em voga. O mediador deve facilitar as comunicações tentando restabelecer a confiança entre credores e o devedor, tendo sempre à vista o objetivo maior da Lei de Falência e Recuperação de Empresas que é salvaguardar a empresa cumprindo sua função social, sem se olvidar dos interesses dos credores.   WALD, op. cit., p. 62.

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8. RESSALVAS À UTILIZAÇÃO DA MEDIAÇÃO PARA ELABORAÇÃO DO PLANO DE RECUPERAÇÃO EXTRAJUDICIAL Como a mediação envolve, a priori, apenas direitos disponíveis o mediador tem o dever de esclarecer sobre os limites legais e de ordem pública para a elaboração dos acordos. A própria Lei de Falência e Recuperação de Empresa limita a Recuperação Extrajudicial em alguns pontos. Por se tratar do exercício da autonomia privada na elaboração do plano extrajudicial, existem créditos que não estão sujeitos ao plano porque não há poder de disposição por parte daqueles que os detém. O parágrafo 1º do artigo 161 da LFRE estabelece que a Recuperação Extrajudicial não é aplicada aos titulares de créditos tributários, aos derivados da legislação trabalhista ou decorrentes de acidente de trabalho e ao proprietário fiduciário, arrendador mercantil, vendedor ou promitente vendedor de imóvel por contrato irrevogável e vendedor titular de reserva de domínio, assim como à instituição financeira credora por adiantamento ao exportador. O parágrafo 2º do artigo 161 da LFRE dispõe que o plano extrajudicial não pode conter pagamento antecipado de dívidas nem tratamento desfavorável àqueles credores não sujeitos ao plano. Deste modo, deve-se tomar extremo cuidado para que na mediação não haja propostas e acordos que prejudiquem terceiros, isto é, credores que optaram não participar do plano. No caso de pendência de pedido de recuperação judicial ou havendo o devedor recuperado judicialmente ou extrajudicialmente há menos de 2 (dois) anos não poderá requerer homologação do plano extrajudicial, na ótica do artigo 161, parágrafo 3º. O parágrafo seguinte do mesmo dispositivo também procura afastar eventual prejuízo aos credores não sujeitos ao plano extrajudicial no que se tange às suas ações, direitos, execuções e sobre o pleito de decretação de falência, que não serão suspensos em virtude do pedido de homologação do plano de recuperação extrajudicial. Enfim, os credores e o devedor-empresário deverão, sobretudo, abster-se das práticas expressamente proibidas por lei e não descumprir as exigências legais para elaboração do plano extrajudicial durante a mediação, sob pena de não obterem homologação, mesmo após o pedido, visto que poderão vir impugnações ao plano no processamento da recuperação (conforme o disposto no artigo 164 e seu parágrafo 3º da LFRE). Se o plano é elaborado através da mediação as partes já deverão se precaver das eventuais impugnações, evitando os atos ilícitos e as eventuais impugnações ao plano. A mediação, em princípio, não poderá abarcar a hipótese prevista no artigo 163 da LFRE, pois esse dispositivo abrange obrigações aos credores que não participaram das discussões de renegociações. Ora, a mediação é procedimento voluntário e não pode obrigar os credores que dela não fizeram parte, isto é, que não tiveram oportunidade de discutir seus créditos ou não 81

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concordaram em participar do diálogo mediado. Mas os credores participantes e a sociedade em crise poderão, preenchidos os requisitos legais, pleitear a recuperação extrajudicial na forma do artigo 163. Contudo, nessa hipótese, não se pode dizer que houve mediação na fase pré-judicial, visto que houve extrapolação dos preceitos da mediação. Outro ponto que envolve grande complexidade sobre a utilização da mediação para a elaboração do plano extrajudicial é o devedor-empresário conseguir a anuência de boa parte de seus credores para rediscussão de seu passivo. A mediação é realizada desde que haja voluntariedade das partes e não tem coerção. Os credores poderão não concordar com o procedimento e assim frustrar as expectativas do devedor interessado na mediação. 9. CONSIDERAÇÕES FINAIS Tendo em vista o paradigma da Preservação da Empresa instituído com a Lei de Falência e Recuperação de Empresas (Lei 11.101/2005) e a necessidade empresarial de oportunizar soluções compatíveis com sua dinâmica, a mediação pode contribuir para alavancar a utilização da Recuperação Extrajudicial por suas diversas vantagens, oferecendo aos sujeitos empresariais oportunidade para rediscussão do crédito e a manutenção das relações. A justiça tem tendência a ser cada vez mais consensual do que coercitiva. A sociedade contemporânea tem aspirado por métodos simples, informais e céleres para concretização da justiça. Nesse ponto, mediação e Recuperação Extrajudicial estão próximos. A atuação do judiciário na falência e recuperação de empresas deve ser exceção. Primeiramente é imprescindível que haja estímulo às soluções de mercado, promovendo a iniciativa privada. Fábio Ulhoa Coelho diz: “o papel do estado-juiz deve ser apenas o de afastar os obstáculos ao regular funcionamento do mercado”91, sendo esse o norte das mais modernas legislações falimentares e recuperacionais no mundo. Podem ser várias as formas de elaborar um plano de recuperação extrajudicial. Não se pode limitar a recuperação extrajudicial a métodos diretos. As formas intermediadas merecem igualmente respaldo, pois o que importa é a preservação da empresa viável economicamente, com sua função social, combinado com a satisfação dos credores. Portanto, fica a cargo das partes decidirem o procedimento a ser utilizado para a elaboração do plano extrajudicial. A legislação falimentar e recuperacional tenta conciliar a aplicação do direito com eficiência econômica e, nessa ótica, a mediação contribui para concretizar esse preceito na recuperação extrajudicial. Deve-se prezar pela   COELHO, op. cit., 2005, p. 237.

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busca pelo equilíbrio entre credores e o devedor, harmonizando a autonomia privada e a atuação estatal. A mediação é capaz de criar as condições para as negociações do passivo e a recuperação da empresa em crise, atendendo também aos anseios dos credores. Com a mediação para elaboração do plano de recuperação extrajudicial haverá aproximação das posições conflitantes e espaço discursivo para que os próprios protagonistas empresariais encontrem soluções para suas divergências. Através da mediação as sociedades empresariais poderão não somente solucionar a controvérsia, mas preservar as parcerias e restabelecer a confiança, obter soluções adequadas (não somente jurídicas) e duráveis para o conflito creditório, evitar custosos e morosos processos de falência e recuperação judicial e, por fim, preservar a empresa cumprindo sua função social. Basta que haja voluntariedade na participação do procedimento. A Recuperação Extrajudicial, ainda pouco utilizada no Brasil, deve ser fomentada para que seja uma real opção para as sociedades empresariais que se encontram em crise econômica. Se credores e devedores, além de advogados, administradores, contadores e outros profissionais que atuam no meio empresarial conhecessem mais de perto o procedimento da mediação e seus preceitos a Recuperação Extrajudicial poderia ser mais utilizada. A mediação, portanto, é um mecanismo eficiente para as soluções de crise das empresas, procurando estreitar os laços empresariais num mundo tão competitivo. A Recuperação Extrajudicial realizada pelos caminhos da mediação é frutífera pela oferta de soluções compatíveis com a dinâmica empresarial. Na mesma linha das modernas leis recuperacionais que objetivam a preservação da empresa com noções não somente jurídicas, mas também econômicas, a mediação incentiva e provoca o exercício da autonomia empresarial com o objetivo maior da preservação da empresa viável cumprindo sua função social.

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II – Responsabilidade, Direito Societário e Direito Penal A DISREGARD OF LEGAL ENTITY DOCTRINE VERSUS O PRINCÍPIO DA PRESERVAÇÃO DA SOCIEDADE EMPRESÁRIA DISREGARD OF LEGAL ENTITY DOCTRINE VERSUS THE PRINCIPLE OF COMPANY’S PRESERVATION Deilton Ribeiro Brasil 92* SUMÁRIO: Introdução. Capítulo I - A função social da sociedade empresária. Capítulo II - A função social da sociedade empresária na legislação infraconstitucional. Capítulo III - Princípio da preservação da sociedade empresária. Considerações finais. Referências. RESUMO Ao longo dos tempos, a atividade econômica da sociedade empresária vem passando por evoluções, passando da marcante fase da teoria dos atos de comércio, vista como instrumento de objetivação do tratamento jurídico da atividade mercantil. Isto é, com ela, o Direito de Empresa deixou de ser apenas o Direito de certa categoria de profissionais, organizados em corporações próprias, para se tornar a disciplina de um conjunto de atos, que, em princípio, poderiam ser praticados por qualquer cidadão; para a fase da teoria da sociedade empresária que possui o acento tônico da comercialidade, em consequência do progresso da técnica e da economia de massa, deslocando-se da noção de ato para a noção de atividade. O exercício profissional da atividade intermediária entre a produção e o consumo de bens impõe uma crescente especialização e a criação de organismos econômicos cada vez mais complexos. O Código Civil de 2002 demonstra a importância em propiciar meios para a preservação e continuidade da atividade exercida pela sociedade empresária, uma vez que é fonte de tributos, empregos e divisas, propiciando, pois, benefícios à sociedade em geral. Depreende-se, portanto, que o princípio da preservação da sociedade empresária tem se constituído a principal preocupação do Direito de Empresa contemporâneo, diante do inegável abalo social produzido uma tendência de generalizar, inadvertidamente, a aplicação da teoria da desconsideração da   * Doutor em Estado e Direito: internacionalização e regulação pela Universidade Gama Filho do Rio de Janeiro/RJ. Mestre em Direito pela Faculdade de Direito Milton Campos de Belo Horizonte/MG. Membro do IAMG. Professor da Faculdade de Direito de Conselheiro Lafaiete FDCL. E-mail: [email protected] 92

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pessoa jurídica. Deve-se verificar atentamente, se estão presentes os pressupostos reconhecidos pela doutrina como ensejadores de sua aplicação, para, somente depois, em caso de resposta afirmativa, proceder-se à sua efetiva aplicação. Palavras-Chave: Disregard doctrine, Preservação da sociedade empresária, Pressupostos jurídicos, Constituição Federal, Código Civil de 2002. ABSTRACT Over time, the economic activity of the business company is going through changes, through a remarkable phase of the theory of acts of trade, seen as a means of objectifying the legal treatment of financial activity. That is, with it, the Company Law is no longer just the jurisprudence of a group of professionals, organized themselves into corporations, to become the subject of a series of acts which, in principle, could be committed by any citizen; to the stage theory of the company that has the stress of marketability, as a result of technical progress and economics of mass, moving from the notion of an act for the notion of activity. The professional activity intermediate between production and consumption of goods imposes an increasing specialization and the creation of economic organizations increasingly complex. The Civil Code of 2002 demonstrates the importance of providing means for the preservation and continuation of activities performed by business associations, since it is a source of taxes, jobs and foreign exchange, providing therefore benefits to society in general. It appears therefore that the principle of preservation of the company has been the main concern of contemporary business jurisprudence in the face of undeniable social shock produced a tendency to generalize, inadvertently, the application of the theory of disregard of legal entity. It is necessary to check carefully whether the conditions are present according to the doctrine as recognized by the opportunity of its application, for only then if the answer is affirmative it will be necessary to proceed to its effective implementation. Keywords: Disregard of legal entity doctrine, Preservation of the company, Legal presumptions, The Federal Constitution, Civil Code of 2002. INTRODUÇÃO Em especial, o presente artigo objetiva analisar as situações que autorizam a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade da pessoa jurídica. As circunstâncias excepcionalíssimas que autorizam a aplicação da disregard of legal entity se subsumem nos conceitos genéricos de fraude e má-fé, que não 88

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se presumem. É necessária a apuração se houve ato fraudulento ou abuso na utilização da pessoa jurídica e, ainda, fazer a oitiva daquele em relação ao qual foi estendida a responsabilidade por obrigações da sociedade, com constrição de bens em obediência ao princípio da preservação da sociedade empresária. O simples prejuízo de credores decorrente da separação de patrimônios entre sócios e sociedade empresária não se mostra, de acordo com a formulação original da teoria, suficiente para autorizar a aplicação da teoria. Fundamental destacar que o objetivo da disregard doctrine não é questionar o princípio da autonomia patrimonial, que continua válido e eficaz ao estabelecer que, em regra, os membros da pessoa jurídica não respondem pelas obrigações desta. Trata-se de aperfeiçoamento da teoria da pessoa jurídica, através da coibição do mau uso de seus fundamentos. Assim, a pessoa jurídica desconsiderada não é extinta, liquidada ou dissolvida pela desconsideração; não é igualmente, invalidada ou desfeita. Apenas determinados efeitos de seus atos constitutivos deixam de se produzir episodicamente. Em outras palavras, a separação patrimonial decorrente da constituição da pessoa jurídica não será eficaz no episódio da repressão ao abuso e à fraude. Para todos os demais efeitos, a constituição da pessoa jurídica é existente, válida e plenamente eficaz. Completa-se a pavimentação teórica do tema em investigação com o desenho do fenômeno do princípio da preservação da empresa que interessa ao Direito e à Economia, em especial pela proteção que oferece à continuidade dos negócios sociais. Tal preservação da empresa tem uma notável importância. O princípio da preservação é gênero no qual a continuidade das atividades compõe a espécie, e nele se encontra similitude com a guarida ao patrimônio mínimo, na hipótese inerente à manutenção do empreendimento. Da leitura do art. 170, III da Constituição Federal denota-se que a sociedade empresária está ali contemplada como ente integrante de ordem econômica nacional, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, desde que observados os princípios da propriedade privada e da função social da propriedade. 93 Constata-se, portanto, que o legislador constituinte, de maneira categórica, pretende evitar que a iniciativa econômica privada possa ser desenvolvida de maneira prejudicial à promoção da dignidade da pessoa humana e à justiça social. 94 Rejeita, igualmente, que os espaços privados, como   CAVALLAZZI FILHO, Tullo. A função social da empresa e seu fundamento constitucional. OAB/SC Editora, 2006, p. 53. 94   SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 60: conceitua no prisma jurídico o princípio da dignidade da pessoa humana como a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante de desumano, como 93

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a família, a sociedade empresária e a propriedade, possam representar uma espécie de zona franca para violação do projeto constitucional. 95 A dignidade é valor próprio e extrapatrimonial da pessoa humana, especialmente no contexto do convívio na comunidade, como sujeito moral. Não há dúvida de que todos os interesses têm como centro a pessoa humana, a qual é o foco principal de qualquer política pública ou pensamento, sendo imperioso harmonizar a dignidade da pessoa humana ao desenvolvimento da sociedade e, consequentemente, do progresso científico e tecnológico, porquanto este deve tender sempre a aprimorar e melhorar as condições e a qualidade de vida das pessoas humanas, e não o inverso. 96 Tem-se, assim, que a Constituição Federal pode ser considerada o que a doutrina denomina de Constituição Econômica, justamente por empreender um conjunto de normas que, garantindo os elementos definidores de um determinado sistema econômico, estabelece os princípios fundamentais de determinada forma de organização e funcionamento da economia e constitui, por isso mesmo, uma determinada ordem econômica. 97 Essa ordem econômica e financeira não é ilha normativa apartada da Constituição. É fragmento da Constituição Federal, uma parte do todo constitucional e nele se integra. A interpretação, a aplicação e a execução dos preceitos que a compõem reclamam o ajustamento permanente das regras da ordem econômica e financeira às disposições do texto constitucional que se espraiam nas outras partes da Constituição Federal. A ordem econômica e financeira é indissociável dos princípios fundamentais da República Federativa e do Estado Democrático de Direito. Suas regras visam atingir os objetivos fundamentais que a Constituição colocou na meta constitucional da República Federativa. A ordem econômica e financeira é, por isso, instrumento para a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. É a fonte das normas e decisões que permitirão à República garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza, a marginalização, reduzir as desigualdades sociais e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. 98 venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos. 95   TEPEDINO, Gustavo. A constitucionalização do direito civil: perspectivas interpretativas diante do novo código. In: Direito civil: atualidades. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 118. 96   GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da; CIDAD, Felipe Germano Cacicedo. Função social no direito privado e Constituição. In: Função social no direito civil. São Paulo: Atlas, 2007, p. 25. 97   SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 771. 98   HORTA, Raul Machado. Estudos de direito constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 1995, p. 301. 90

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Eventual conflito ou mesmo incompatibilidade, ainda que transitória entre o lucro (compatível com a livre iniciativa da atividade empresária) e a concretização dos Direitos Sociais, a solução jurídica adequada para dirimi-lo deverá privilegiar, ao final, os objetivos sociais. 99 Em consequência, resulta lógico sustentar que a ordem econômica brasileira, a partir da Constituição Federal, defende a livre iniciativa e a valorização do trabalho humano, para que auxiliem – em caráter preferencial – na proteção da dignidade da pessoa humana, afastando, portanto, qualquer possibilidade de desprezá-la. Em outras palavras, a Constituição Federal quando trata da ordem econômica funcionaliza a atividade econômica para que auxilie na proteção da dignidade da pessoa humana. Conclui-se, portanto, que a Constituição de 1988, fundada no trabalho valorizado e na liberdade de iniciativa, insere a função social como um dos princípios da ordem econômica. Com isso, visou alcançar existência digna para todos. 100 Diante desse contexto constitucional, há que se defender que a preservação da sociedade empresária foi erigida a princípio constitucional, sob pena de não atingir os objetivos pretendidos, dentre os quais, repita-se, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (CF/88, art. 3º, I), mesmo porque nem todos os princípios constitucionais estão escritos. 101 A solidariedade, ou socialidade, é um dos princípios basilares do Estado, e deve ser entendida, em primeira colocação, como um elemento essencial de interpretação, na forma de interpretação conforme a Constituição, irradiada pelo princípio maior da democracia social e econômica. 102 A circunstância de o legislador constituinte haver incluído no texto constitucional vários princípios e regras tipicamente de Direito Privado impõe que todas as normas infraconstitucionais de Direito Civil devam ser interpretadas em conformidade com a Constituição. 103 Na verdade, a solidariedade implica o reconhecimento de que, embora cada um de nós componha uma individualidade irredutível ao todo, estamos também todos juntos, de alguma forma irmanados por um destino comum. Ela significa que a sociedade não deve ser o locus da concorrência entre indivíduos isolados, perseguindo projetos pessoais antagônicos, mas sim um espaço de diálogo cooperação e colaboração entre pessoas livres e iguais, que se reconheçam como tais. 104   CAVALLAZZI FILHO, Tullo. A função social da empresa e seu fundamento constitucional. OAB/SC Editora, 2006, p. 40. 100   Id. Ibid. 2006, pp. 40-1. 101   Id. Ibid. 2006, p. 41. 102   CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. Coimbra: Almedina, 1996, pp. 340 et seq. 103   FACCHINI NETO, Eugênio. Reflexões histórico-evolutivas sobre a constitucionalização do direito privado. In: Constituição, direitos fundamentais e direito privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 38. 104   SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Lumen 99

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A comprovação da existência de princípios constitucionais não escritos105 está no próprio texto constitucional, que, ao tratar dos Direitos Fundamentais, estabelece em seu art. 5º, §§ 1º e 2º, que as normas definidoras dos Direitos e Garantias Fundamentais têm aplicação imediata e que os Direitos e Garantias expressos na Constituição Federal não excluem outros, decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. 106 Não se pode falar, portanto, na concretização dos Direitos Fundamentais e, por conseguinte, na construção de uma sociedade mais justa e solidária sem enfrentar e destacar o papel desempenhado pelas sociedades empresárias na sociedade contemporânea. Afinal, o exercício dessa atividade econômica não gera apenas deveres e obrigações estabelecidos pelo ordenamento jurídico, como também interesses econômicos para a subsistência dos envolvidos direta e indiretamente, cujo desenvolvimento dessa cadeia produtiva alcança o Estado como um todo, uma vez que é por intermédio da atividade econômica que arrecada os tributos, indispensáveis para que possa honrar suas despesas e obrigações. 107 O método escolhido para elaboração desse artigo foi o indutivo e a técnica a pesquisa bibliográfica. A pesquisa desenvolvida adotou como procedimento por excelência de uma metodologia do tipo qualitativo com o manejo de fontes bibliográficas, documentais, legislativa e de Direito comparado além da coleta de dados jurisprudenciais no Superior Tribunal de Justiça, através de seu site com consulta espontânea (consulta livre) da jurisprudência que trata sobre a teoria da desconsideração da personalidade da pessoa jurídica e seus principais aspectos. A fonte primeira da investigação é a jurisprudencial, à medida que seu objeto consiste no inteiro teor de acórdãos fornecidos pelo site do Superior Tribunal de Justiça. Como fontes secundárias aparecem a legislação constitucional e a infraconstitucional, bem como a doutrina que informa os conceitos de ordem dogmática. Assim investigação pautou-se como insumo básico dados da realidade jurídica normativa brasileira, com reafirmação através da análise do ordenamento Juris, 2004, p. 338. 105   ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 35: conceitua como uma regra que é tratada como premissa (o raciocínio redutivo) ou consequência (o raciocínio dedutivo) das normas do direito positivo. A natureza lógica destes raciocínios no campo normativo é sujeita a controvérsias dentro da discussão sobre a lógica jurídica. Porém, quando se utiliza a noção de princípio implícito do direito, admite-se que o raciocínio em questão garante a validade dos princípios pertencentes ao sistema do direito. 106   Sobre o assunto ver: SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, pp. 85 et seq. 107   CAVALLAZZI FILHO, Tullo. A função social da empresa e seu fundamento constitucional. OAB/SC Editora, 2006, p. 136. 92

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jurídico tanto infraconstitucional como constitucional, considerando-se ainda de capital importância a recuperação dos julgados citados como precedentes, bem como do estudo de caso que só pode aspirar à cientificidade onde o papel da teoria não é deformado, onde a crítica epistemológica dos problemas e conceitos não é negligenciada. O presente artigo pretende colaborar na construção de um instrumental metodológico voltado para uma melhor estruturação das análises jurisprudenciais, sendo, portanto, nosso objetivo utilizar o estudo de caso, não como método de ensino do Direito, mas como método de pesquisa, a fim de melhor compreender as diferentes gradações da teoria da desconsideração da personalidade jurídica e do princípio da preservação da sociedade empresária que o Superior Tribunal de Justiça adere. Os capítulos I e II voltam-se à exploração da função social da sociedade empresária que se constitui em linha mestra do Direito de Empresa no Código Civil, reforçando a opinião da preservação da sociedade empresária como princípio essencial desse Diploma Legal. os novos contornos da teoria da desconsideração da personalidade da pessoa jurídica que possui um estreito liame com o princípio da preservação da sociedade empresária. O que aqui se propõe é uma sistematização das premissas teóricas regedoras do fenômeno em investigação; o percurso dos argumentos de oposição à maior amplitude do instituto; e a evidenciação de sua aplicabilidade no contexto atual. Completa-se o artigo com o capítulo III, voltado à exploração do princípio da preservação da sociedade empresária. O Código Civil de 2002 demonstra a importância em propiciar meios para a preservação e continuidade da atividade exercida pela sociedade empresária, uma vez que é fonte de tributos, empregos e divisas, propiciando, pois, benefícios à sociedade em geral. CAPÍTULO I A FUNÇÃO SOCIAL DA SOCIEDADE EMPRESÁRIA Fábio Konder Comparato entende a função social como um poder de agir sobre a esfera jurídica alheia, no interesse de outrem, jamais em proveito do próprio titular. Algumas vezes, interessados no exercício da função são pessoas indeterminadas e, portanto, não legitimadas a exercer pretensões pessoais e exclusivas contra o titular do poder. É nessas hipóteses, precisamente, que se deve falar em função social ou coletiva. A função social da propriedade não se confunde com as restrições legais ao uso e gozo dos bens próprios; em se tratando de bens de produção, o poder-dever do proprietário de dar à coisa uma destinação compatível com o interesse da coletividade transmuda-se, quando tais bens são incorporados a uma exploração empresária, em poder-dever do 93

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titular do controle de dirigir a sociedade empresária para a realização dos interesses coletivos. 108 Estas considerações explicam a inserção da função social da propriedade no âmbito constitucional, bem como a da sociedade empresária que, por sua vez, encontrou respaldo no art. 170, III, da Constituição Federal, que o instituiu como princípio da ordem econômica, 109 vez que a sociedade empresária atua não apenas para atender aos interesses dos sócios, mas de toda a coletividade e principalmente dos empregados. 110 A função social da sociedade empresária se vincula, pois, de sorte imediata, à atividade empresária desenvolvida e pode ser dividida em duas espécies: endógena e exógena, de acordo com os fatores envolvidos. 111 A função social de caráter endógeno diz respeito aos fatores empregados na atividade empresária no interior da produção. Assim, fazem parte dessa espécie as relações trabalhistas desenvolvidas no âmbito empresário; o ambiente no qual o trabalho é exercido; os interesses dos sócios da sociedade empresária não implícitos na relação administradores-sócios etc.112 A função social da sociedade empresária em seu perfil exógeno leva em conta os fatores externos à atividade desenvolvida pela sociedade empresária. Nesse sentido, são compreendidos nessa espécie de incidência da função social da sociedade empresária: concorrentes, consumidores; e, o meio ambiente. 113 A título de demonstração de que tanto o perfil exógeno quando o endógeno foram levados em conta pelo legislador constituinte, faz-se imprescindível a transcrição do texto do art. 170 da Constituição Federal, asseverando-se que tal preceito abre as disposições constitucionais acerca da ordem econômica no Estado brasileiro. 114 Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: I. Soberania nacional; II. Propriedade privada;   COMPARATO, Fábio Konder. Direito empresarial: estudos e pareceres. São Paulo: Saraiva, 1990, passim. 109   CAVALLAZZI FILHO, Tullo. A função social da empresa e seu fundamento constitucional. OAB/SC Editora, 2006, p. 153. 110   COMPARATO, Fábio Konder. Ibid., 1990, passim. 111   AMARAL, Luiz Fernando de Carmo Prudente. A função social da empresa no direito constitucional econômico brasileiro. São Paulo: SRS Editora, 2008, p. 119. 112   Id. Ibid. 2008, p. 119. 113   Id. Ibid. 2008, p. 119. 114   Id. Ibid. 2008, p. 120. 108

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III. Função social da propriedade; IV. Livre concorrência; V. Defesa do consumidor; VI. Defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; VII. Redução das desigualdades regionais e sociais; VIII. Busca do pleno emprego; IX. Tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no país. Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.

A transcrição do preceito não só demonstra a preocupação do constituinte com a construção de uma sociedade justa e igualitária, como traz à baila o fato de que, ao serem previstos diversos princípios aplicáveis à ordem econômica, cada um deles deverá ter a mesma importância, mas poderá se moldar mais adequadamente à determinado caso concreto.115 Da mesma forma, o caput do art. 170 da Constituição Federal traça os limites que deverão ser obedecidos na aplicação dos princípios que integram seu rol, ao delimitar objetivo relativo à existência digna de todos os brasileiros, devendo ser levados em conta os ditames da justiça social, isto é, de uma justa organização social dos componentes da sociedade, numa expressa referência ao Direito como instrumento social. 116 Também há que se afirmar que a ordem econômica deve ser explicitamente fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa. Verifica-se, pois, que os fatores exógenos e endógenos da atividade empresária estão presentes em tal artigo. Afinal, a valorização do trabalho humano, sob o ponto de vista empresário, encontra-se dentre os fatores endógenos da função exercida pela sociedade empresária. No que se refere ao meio ambiente, aos consumidores etc., tem-se expressa preocupação do legislador constituinte com fatores exógenos à função social da sociedade empresária, vez que voltados à coletividade na qual a mesma exerce suas atividades. 117 Nesse sentido, a sociedade empresária tem uma óbvia função social, nela sendo interessados os empregados, os fornecedores, a comunidade em que atua e o próprio Estado que dela retira contribuições fiscais e parafiscais.   Id. Ibid. 2008, pp. 120-1.   Id. Ibid. 2008, p. 121. 117   Id. Ibid. 2008, p. 121. 115 116

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Por consequência, existem três principais funções sociais da sociedade empresária: a primeira refere-se às condições de trabalho e às relações com seus empregados; a segunda volta-se ao interesse dos consumidores; a terceira volta-se ao interesse dos concorrentes. E ainda mais atual é a preocupação com os interesses de preservação ecológica urbana e ambiental da comunidade em que a sociedade empresária atua. 118 Quanto às outras importantes atuações da função social da sociedade empresária, Sheilla Regina Brevidelli explica que seus reflexos sobre o contrato de trabalho que também são evidentes; neles, impõe-se a incidência de outro princípio a reger o contrato: a boa-fé objetiva que, por sua vez, pode ser entendida sob dois enfoques: o subjetivo e o objetivo. 119 A boa-fé subjetiva refere-se a um estado de consciência que consiste em ignorar que se está prejudicando interesse alheio, protegido ou tutelado pelo Direito. A boa-fé objetiva impõe um dever e um padrão de comportamento baseados em lealdade, probidade e confiança recíprocas. Assim, ela permite a concreção de normas impondo que os sujeitos de uma relação se conduzam de forma honesta, leal e correta. 120 Tem-se ainda que a boa-fé objetiva incide em três fases: pré-contratual, contratual e pós-contratual. Os deveres de respeito e lealdade, devidos pelo empregador, no contrato de trabalho, então se desdobram em: 1. Fase pré-contratual: respeito à privacidade durante a seleção de pessoal, deveres de informação clara e precisa das tarefas a serem desempenhadas e das cláusulas contratuais em questão, respeito às expectativas criadas no candidato; 2. Fase contratual: respeito às cláusulas contratuais, deveres de cuidados com a saúde física e mental do trabalhador (devendo os conceitos de insalubridade ser estendido ao nível psicológico); 3. Fase pós-contratual: respeito estrito ao Direito Constitucional ao trabalho, inscrito no art. 6º da Constituição Federal, com a consequente proibição de fornecer más referências a novos empregadores potenciais. 121 Toda a essência da relação de trabalho e a proteção do trabalhador pode ter uma nova dimensão e parâmetro dentro desse novo pensar da sociedade empresária. A questão do trabalho e até mesmo da efetividade do processo do trabalho, perpassa a maneira como se estruturam as sociedades empresárias, como o Direito as conforma e como permite ou não brechas para que as obrigações empresárias contraídas e os deveres contratuais não sejam   CARVALHOSA, Modesto. Comentários à lei de sociedades anônimas. São Paulo: Saraiva, 1977, vol. III, p. 237. 119   BREVIDELLI, Sheilla Regina. A função social da empresa: alargamento das fronteiras éticas nas relações de trabalho. São Paulo: USP, 2000, p. 5. 120   COUTO E SILVA, Clóvis V. do. A obrigação como processo. São Paulo: José Bushatsky, 1976, pp. 29-31. 121   Id. Ibid., 1976, pp. 29-31. 118

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cumpridos, favorecendo a instabilidade social, a concentração de riquezas e aumentando o fosso da injustiça social. 122 A função social da sociedade empresária, portanto, acarreta a superação do caráter eminentemente individualista, devendo o Direito Individual do seu titular coexistir com a funcionalização do instituto, desempenhando, pois, um papel produtivo em benefício de toda a coletividade. A atividade empresária, então, apresenta um caráter dúplice, uma vez que serve não só ao sujeito proprietário, como também às necessidades sociais. 123 A função social da sociedade empresária, então, constitui-se em linha mestra do Direito de Empresa no Código Civil, o que reforça a opinião da preservação da sociedade empresária como princípio essencial desse Diploma Legal. Reforçando esse entendimento, em face da timidez do texto do Código Civil, foi elaborado na Jornada de Direito Civil, realizada em Brasília, nos dias 11 a 13 de setembro de 2002, promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho Federal, sob a coordenação do Ministro Ruy Rosado de Aguiar Júnior do Superior Tribunal de Justiça, o Enunciado 53 de relatoria de Newton de Lucca que dispõe que deve-se levar em consideração o princípio da função social na interpretação das normas relativas à sociedade empresária, a despeito da falta de referência expressa. 124 Nesse sentido, o Projeto de lei 9.620/02, que trata de emendas e reformas ao Código Civil, propõe a inserção de um novo parágrafo (2º) ao art. 996 com o seguinte conteúdo: o exercício da atividade de empresário, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, observará os limites impostos por seu fim econômico ou social, pela boa-fé e pelos bons costumes. Ainda no que diz respeito à função social da sociedade empresária, registra-se que a função social significa um paliativo retórico aos efeitos concretos de nossas políticas econômicas, ou seja, traduz uma válvula de escape psicossocial, a qual pode ser definida como instrumento de aparente conquista social que, na realidade, acaba por atuar exatamente de forma oposta, mantendo privilégios ou impedindo a real conquista dos interesses sociais. 125 Tem-se, então, que a busca da concretização de uma sociedade mais justa e solidária, com a efetiva participação da sociedade, exige a preservação das sociedades empresárias que adotem uma postura positiva no tocante à concretização dos Direitos Sociais. Essa responsabilidade e dever social das sociedades empresárias, por sua vez, não afastam os deveres inerentes ao Estado. Ao contrário, incumbe ao   BREVIDELLI, Sheilla Regina. Ibid., p. 6.   CASTRO, Carlos Alberto Farracha. Preservação da empresa no código civil. Curitiba: Juruá, 2007, p. 138. 124   Id. Ibid., 2007, pp. 138-9. 125   TOKARS, Fábio Leandro. Função social da empresa. In: Direito civil constitucional: situações patrimoniais. Curitiba: Juruá, 2002, pp. 77-96. 122 123

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Estado não só concretizar políticas públicas destinadas à moradia, segurança, saúde e educação, como também, evitar práticas anticoncorrenciais de determinados grupos de sociedades empresárias. Estado e sociedade empresária, portanto, não mais atuam em setores distintos. Na verdade se completam. 126 A função social do Direito Civil, como uma das exigências fundamentais do Estado brasileiro, é um aspecto componente do aparato de proteção que se dá ao princípio da dignidade da pessoa humana, no sentido de viabilizar a consolidação efetiva dos princípios de igualdade material e justiça social. 127 128 CAPÍTULO II - A FUNÇÃO SOCIAL DA SOCIEDADE EMPRESÁRIA NA LEGISLAÇÃO INFRACONSTITUCIONAL A lei n° 6.404 de 15 de dezembro de 1976 também denominada de lei das sociedades anônimas faz menção expressa à função social da sociedade empresária em dois dispositivos, quais sejam: Art. 116. [...] Parágrafo único. O acionista controlador deve usar o poder com o fim de fazer a companhia realizar o seu objetivo e cumprir sua função social, e tem deveres e responsabilidades para com os demais acionistas da empresa, os que nela trabalham e para com a comunidade em que atua, cujos direitos e interesses deve lealmente respeitar e atender. Art. 154. O administrador deve exercer as atribuições a que a lei e o estatuto lhe conferem para lograr os fins e no interesse da companhia, satisfeitas as exigências do bem público e da função social da empresa. Os citados artigos determinam a vinculação dos fins econômicos – finalidade precípua de sociedades empresárias – ao atendimento de exigências de natureza   CASTRO, Carlos Alberto Farracha. Preservação da empresa no código civil. Curitiba: Juruá, 2007, p. 143. 127   GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da; CIDAD, Felipe Germano Cacicedo. Função social no direito privado e Constituição. In: Função social no direito civil. São Paulo: Atlas, 2007, p. 28. 128   BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, pp. 110-3: preleciona que de forma bastante simples, é possível afirmar que o conteúdo jurídico da dignidade se relaciona com os chamados direitos fundamentais ou humanos. Isto é, terá respeitada sua dignidade o indivíduo cujos direitos fundamentais forem observados e realizados, ainda que a dignidade não se esgote neles. [...] Concretizando um pouco mais o que se acaba de expor, lembre-se que os direitos fundamentais são tradicionalmente apresentados pela doutrina como um conjunto formado pelas seguintes categorias: direitos individuais, direitos políticos e direitos sociais, esta última uma redução da locução direitos sociais, econômicos e culturais. Os direitos individuais são comumente identificados como direitos da liberdade. Trata-se de um conjunto de direitos cuja missão fundamental é assegurar à pessoa uma esfera livre da intervenção da autoridade política ou do Estado. Nessa linha, foram progressivamente conquistados os direitos à liberdade religiosa, liberdade civil e profissional, [...] dentre outros. 126

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social, o que significa a própria função social afirmada. Nesse sentido, não quis o legislador desvirtuar a atividade empresária, lucrativa por excelência, mas sim obrigar o respeito à construção de uma sociedade empresária melhor ajustada (equilibrada), de sorte a atingir o interesse (bem) público almejado pela coletividade. 129 É lícito, portanto, inferir que independentemente de seu caráter privado,130 a atividade empresária desenvolvida pelas sociedades anônimas faz a mesma assumir também uma responsabilidade de cunho comunitário, 131 não ficando adstrita apenas aos interesses particulares de sua sociedade controladora e/ou de seus administradores, mas também ao interesse comum de toda a comunidade na qual está inserida. 132 Em outras palavras, no exercício da atividade empresária, reconhece a lei que devem ser respeitados os interesses internos e externos à atividade empresária, ou seja, os interesses de capitalistas e trabalhadores, mas também os interesses da comunidade em que ela atua. 133 O Código de Defesa do Consumidor é outro diploma que, inequivocamente, funda-se na função social da sociedade empresária. Afinal, ao elaborar normas capazes de proteger os consumidores, responsáveis pela continuidade do sistema produtivo, impõe às sociedades empresárias, agentes do sistema de produção, deveres claros de respeito e atenção para com seus consumidores. 134 A atividade empresária não pode causar dano ao consumidor, impondo às sociedades empresárias normas de caráter negativo (abstenção) e positivo (ação), sendo este último o caso de obrigatoriedade de observância dos princípios da boa-fé, com seus corolários de lealdade, informação, proteção etc. Por outro lado, a lei n° 8.078/90 – Código de Defesa do Consumidor – fez com que os produtos e serviços destinados aos consumidores ganhassem em qualidade e segurança, favorecendo a coletividade. 135   AMARAL, Luiz Fernando de Carmo Prudente. A função social da empresa no direito constitucional econômico brasileiro. São Paulo: SRS Editora, 2008, p. 133. 130   CARVALHOSA, Modesto. Comentários à lei de sociedades anônimas. São Paulo: Saraiva, 1997, vol. I, p. 7: informa que não obstante ser uma pessoa jurídica de direito privado, ressalta na sociedade anônima sua função social. Constituída em virtude de um contrato privado, a companhia, na medida em que atua no meio social como forma de organização jurídica da sociedade empresária, acaba por ser considerada uma instituição de interesse público, levando inclusive à ingerência do Estado nos atos de sua formação e atuação. 131   COMPARATO, Fábio Konder. Estado, empresa e função social. In: Revista dos Tribunais, São Paulo, n° 732, out., 1996, p. 38. 132   CAVALLAZZI FILHO, Tullo. A função social da empresa e seu fundamento constitucional. OAB/SC Editora, 2006, pp. 122-3. 133   TEIZEN JÚNIOR, Augusto Geraldo. A função social no código civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 144. 134   AMARAL, Luiz Fernando de Carmo Prudente. Ibid., 2008, p. 135. 135   Id. Ibid., 2008, p. 135. 129

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Ainda acerca da defesa dos consumidores tem-se que é princípio que deve ser seguido pelo Estado e pela sociedade para atingir a finalidade de existência digna e justiça social. É possível extrair, ainda, da leitura do artigo constitucional que o Brasil adota o modelo de economia capitalista de produção, já que a livre iniciativa é um princípio basilar da economia de mercado. No entanto, não deixou de consignar a Constituição que a ordem econômica brasileira confere a defesa do consumidor contra os possíveis abusos ocorridos no mercado de consumo. 136 Assim, inegável a relevância do Código de Defesa do Consumidor, seja para defender os consumidores, bem como para fazer com que as sociedades empresárias produtoras atendam a função social que lhes é imposta e, ainda, para que o princípio maior de nosso Estado possa ser atingido qual seja a dignidade da pessoa humana. 137 Outro Diploma que muito contribuiu à consolidação da função social da sociedade empresária de maneira explícita foi a lei n° 8.884/94, a qual trata das questões relativas à concorrência no setor empresário. O art. 1º ao determinar as finalidades a que se destina, estabelece que: Art. 1º. Esta lei dispõe sobre a prevenção e a repressão às infrações contra a ordem econômica, orientada pelos ditames constitucionais de liberdade de iniciativa, livre concorrência, função social da propriedade, defesa dos consumidores e repressão ao abuso do poder econômico. Parágrafo único. A coletividade é a titular dos bens jurídicos protegidos por esta lei. Tal dispositivo elucida de maneira induvidosa os motivos que determinaram a criação do texto normativo. A intenção do legislador foi justamente reprimir o abuso econômico, tutelando a livre iniciativa, mais viabilizando também a livre concorrência, ao que levou em conta todos os demais princípios trazidos pelo art. 170 da Constituição Federal, bem como atribuiu à coletividade a titularidade dos bens protegidos pela lei. Não há maior clareza para se determinar a existência de uma função social do que definir a coletividade (o povo) como titular dos bens que a lei tutela. Isto é, tudo aquilo que for feito em virtude de tal texto legislativo terá por objetivo ser revertido em prol da coletividade. 138 Outra importante legislação que foi promulgada no intuito de cumprir os mandamentos de natureza constitucional foi a lei n° 9.605/98, que regulamenta o meio ambiente. Como visto, o meio ambiente é um dos princípios norteadores   DENSA, Roberta. Direito do consumidor. São Paulo: Atlas, 2007, p. 4.   AMARAL, Luiz Fernando de Carmo Prudente. Ibid., 2008, p. 136. 138   Id. Ibid., 2008, p. 136. 136 137

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da ordem econômica, isto é, toda e qualquer atividade de natureza econômica há de respeitar e se responsabilizar pela manutenção do meio ambiente de maneira sustentável, sob pena de se desviar da função social da sociedade empresária, bem como de ocasionar ofensa a outro princípio da Constituição Federal, qual seja, a dignidade da pessoa humana que é princípio base de todo o ordenamento jurídico brasileiro. 139 Outro dispositivo que tem em sua gênese a ideia de função social da sociedade empresária enquanto pessoa jurídica é o art. 50 do Código Civil ao estabelecer: Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica. Registra-se que o desvio de finalidade na atividade empresária (pessoa jurídica), como importante demonstração de desvio da própria função social da sociedade empresária, ocasionará ao empresário que assim agir os danos oriundos da chamada teoria da desconsideração da personalidade jurídica, a fim de que os bens particulares dos sócios possam ser atingidos por credores e por terceiros lesados, caindo o manto protetor da pessoa jurídica. 140 CAPÍTULO III - PRINCÍPIO DA PRESERVAÇÃO DA SOCIEDADE EMPRESÁRIA Na busca da concretização da livre iniciativa como um dos fins de nossa estrutura política, é dizer, um dos fundamentos do próprio Estado Democrático de Direito,141 desde que valorizado o trabalho humano, a Constituição Federal, também, elege como princípios da ordem econômica, dentre outros, a função social da propriedade, a livre concorrência, a busca do pleno emprego. 142 Postular a livre iniciativa quer dizer precisamente que a Constituição Federal consagra uma economia de mercado, de natureza capitalista, pois a iniciativa privada é um princípio básico da ordem capitalista. 143 Significa   Id. Ibid., 2008, p. 137.   Id. Ibid., 2008, pp. 132-3. 141   BASTOS, Celso Ribeiro. Direito econômico brasileiro. São Paulo: IBDC, 2000, p. 115. 142   CASTRO, Carlos Alberto Farracha de. Preservação da empresa no código civil. Curitiba: Juruá, 2007, p. 43. 143   SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 742. 139 140

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também dizer que a consagração da liberdade de iniciativa, como primeira das bases da ordem econômica e social, traduz que é através da atividade socialmente útil a que se dedicam livremente os indivíduos, segundo suas inclinações, que se procurará a realização da justiça social e, portanto, do bem estar social. 144 A busca do pleno emprego está relacionada estritamente com o princípio da preservação da sociedade empresária, que, por sua vez, interessa ao Direito e à Economia, pela proteção que oferece à continuidade dos negócios sociais. 145 Afinal, o exercício da atividade empresária é a fonte de tributos e empregos. Ou seja, sem preservação da atividade empresária inexiste emprego, razão pela qual não há como se valorizar o trabalho, motivo por que a pretensão do legislador constituinte fica reservada ao seu imaginário.146 O princípio da busca do pleno emprego corresponde ao da preservação da sociedade empresária (de que é corolário o da recuperação da sociedade empresária), segundo o qual, diante das opções legais que conduzam a dúvida entre aplicar regra que implique a paralisação da atividade empresária e outra que possa também prestar-se à solução da mesma questão ou situação jurídica sem tal consequência, deve ser aplicada essa última, ainda que implique sacrifício de outros Direitos também dignos de tutela jurídica. 147 A preservação da sociedade empresária como princípio constitucional, porém, não deriva exclusivamente do princípio da busca do pleno emprego (CF/88, art. 170, VIII), mas também, do fato de que a Constituição Federal, dentre os princípios gerais da atividade econômica, estabelece a função social da propriedade (CF/88, art. 170, III), o que não tolera a extinção de sociedades empresárias produtivas, sob pena de não atender aos interesses coletivos, mas, tão-somente, aos individuais e patrimoniais dos seus titulares. 148 A preservação da sociedade empresária como princípio constitucional, também, pode ser visualizada a partir da desmaterialização da riqueza, consequência da função social da propriedade. 149 Dessa forma, se a sociedade empresária consubstancia a noção contemporânea da propriedade, ela, por   FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários à Constituição brasileira de 1988. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 3. 145   FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo. Rio de Janeiro/São Paulo: Renovar, 2001, p. 199. 146   CASTRO, Carlos Alberto Farracha de. op. cit., 2007, p. 43. 147   GONÇALVES NETO, Alfredo Assis. Apontamentos de direito comercial. Curitiba: Juruá, 1998, p. 99. 148   CASTRO, Carlos Alberto Farracha de. op. cit., 2007, p. 43. 149   ROPPO, Enzo. O contrato. Coimbra: Almedina, 1988, pp. 66-7: consignava que parece ser o contrato, e já que não a propriedade, o instrumento fundamental de gestão dos recursos e de propulsão da economia. [...] mesmo porque, no presente, o processo econômico é determinado e impulsionado pela empresa, e já não pela propriedade. 144

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força de princípio constitucional, deve atender a uma função social, isto é, gerar benefícios não só aos seus titulares, mas também a terceiros, isto é, a trabalhadores, fornecedores, consumidores e ao próprio Estado (em razão do interesse de recolher tributos do exercício daquela atividade econômica organizada). 150 Assim procedendo, a Constituição Federal levou em conta a propriedade, considerada sob o aspecto econômico, mas com evidentes reflexos sociais, que abrangem, primordialmente, a sociedade empresária, como atividade organizadora que é da propriedade em fase dinâmica, nesta reconhecida como meio de produção. 151 Depreende-se, dessa maneira, que o legislador constituinte defende a preservação da sociedade empresária; em caso contrário, não existirá função social concreta e, muito menos, haverá o desenvolvimento de atividade produtiva, com reflexos sociais, como a geração de empregos. Aliás, impossível esquecer-se de que a Constituição Federal eleva a função social da propriedade e a busca do pleno emprego à condição de princípios da atividade econômica (art. 170, III e VIII), e não será destruindo centros de produção que essas normas serão observadas. 152 A ordem econômica, portanto, também se funda no princípio da preservação da sociedade empresária, que, por sua vez, contribui para a concretização dos demais Direitos Fundamentais, vez que eventuais Direitos Fundamentais não enumerados abrangem Direitos de qualquer natureza: tanto direitos, liberdades, garantias como direitos econômicos, sociais e culturais. 153 Não se quer com essa assertiva, no entanto, erigir o princípio da preservação da sociedade empresária a Direito Fundamental, mesmo porque é impossível fazê-lo dada a natureza dos Direitos Fundamentais, os quais, na essência, são os Direitos do homem livre e isolado, sem prejuízo de que a distinção entre Direitos Fundamentais ou não radica na própria Constituição Federal. Os Direitos do art. 5º são enunciados, como Direitos e Garantias Fundamentais (CF/88, art. 5º, caput e itens I a LXXVII). Outros há que a fundamentalidade não os reveste. Dentre os Direitos constitucionalmente assegurados, só os Direitos Fundamentais estão sintaticamente ao abrigo das cláusulas pétreas (CF/88, art. 60, § 4º, IV). 154 O que se pretende é demonstrar que a defesa da preservação da sociedade empresária, como princípio constitucional não escrito e integrante da ordem econômica   CASTRO, Carlos Alberto Farracha de. op. cit., 2007, p. 45.   SOUSA, Sueli Baptista de. Responsabilidade dos sócios na sociedade limitada. São Paulo: Quartier Latin, 2006, p. 176. 152   TEPEDINO, Ricardo. A recuperação da empresa em crise diante do Decreto-lei 7.661/45. In: Revista de Direito Mercantil, n° 128, out./dez., São Paulo: Malheiros, 2002, p. 167. 153   QUEIROZ, Cristina M. M. Direitos fundamentais: teoria geral. Coimbra: Coimbra, 2002, p. 89. 154   BORGES, José Souto Maior. Relação entre tributos e direitos fundamentais. In: Tributos e direitos fundamentais. São Paulo: Dialética, 2004, pp. 217-8. 150 151

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nacional, auxilia a concretização dos Direitos Fundamentais, notadamente o da dignidade da pessoa humana. Quer dizer, sua preservação está em conformidade com os postulados do atual sistema constitucional, cuja preocupação primeira é atender e preservar os interesses sociais do homem, em sua plenitude. 155 Analisando a questão da sociedade empresária em dificuldade econômico-financeira transitória, a doutrina sustenta que para sua recuperação e preservação, naquele momento exclusivamente, há que se privilegiar a preservação da sociedade empresária em detrimento de outros princípios, como por exemplo, os Direitos Trabalhistas. 156 No caso de recuperação judicial, a assembleia geral de credor e o juiz da causa deverão entregar-se à ponderação de fins - salvar a sociedade empresária, manter os empregos e garantir os créditos -, pelo princípio da razoabilidade ou proporcionalidade, quando, então, talvez, venham a concluir que o caso concreto exige o sacrifício, verbi gratia: a) do interesse da sociedade empresária e de seus sócios e acionistas em benefício de empregados e credores ou b) dos Direitos de empregados e credores em prol da sociedade empresária. 157 CONSIDERAÇÕES FINAIS A preservação da sociedade empresária como princípio constitucional, ainda que não escrito, é necessário para se evitar que a eficácia da recuperação judicial venha a ser abalada, vez que não se reconhece ao sócio de sociedade empresária em recuperação judicial o Direito de recorrer ao recesso, uma vez que nessas condições o instituto do direito de recesso é contrário ao sistema e, portanto, inaceitável. Melhor explicando, não há como reconhecer ao sócio de sociedade empresária em recuperação judicial o direito de recorrer ao recesso, pois a admissão desta possibilidade afetaria a eficácia da recuperação almejada não somente pelos credores, mas pelos empregados, pelos demais sócios e pela comunidade em geral na qual determinada sociedade empresária atua. De um lado estaria um indivíduo ou um grupo de pessoas objetivando um benefício particular, de outro, uma comunidade diferenciada a ser negativamente afetada pelo insucesso definitivo da sociedade empresária. 158 Nesse caso, o Direito Individual de propriedade (patrimonial) do titular cede (ainda que temporariamente) diante da necessidade do exercício e   SOUSA, Sueli Baptista de. op. cit., 2006, p. 205.   CASTRO, Carlos Alberto Farracha de. op. cit., 2007, p. 47. 157   LOBO, Jorge. Comentários à lei de recuperação de empresas e falência, São Paulo: Saraiva, 2005, p. 110. 158   VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. Direito de retirada: tratamento legal na falência e na recuperação. In: Direito societário e a nova lei de falências e recuperação de empresas. São Paulo: Quartier Latin, 2006, pp. 106-7. 155 156

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exploração da propriedade (função social). 159 Portanto, a defesa da preservação da sociedade empresária não autoriza sua aplicação generalizada, isto é, padronizada, com sacrifício habitual dos credores. Há que se efetuar uma análise específica do caso concreto e, por conseguinte, dos interesses envolvidos, de modo a decidir se naquela situação prepondera a manutenção da unidade produtiva em detrimento dos seus credores (crédito) ou a liquidação imediata, evitando que seu estado de insolvência permaneça indefinido, abalando não só a comunidade envolvida, mas também a credibilidade do mercado, essencial para o seu funcionamento. Compete, pois, ao juiz a análise do caso concreto, com base nos princípios norteadores da ordem econômica, decidir se determinada sociedade empresária merece guarida judicial no sentido de ser preservada; ou, caso contrário, liquidada imediatamente, de modo que as demais sociedades empresárias que integram o mercado não sofram nenhum abalo, continuando o exercício de suas atividades. Não resta outra opção ao juiz, uma vez que seria ingênuo legislar sobre critérios eminentemente econômicos. 160 161 Importante, também, a função desenvolvida pela jurisprudência, com o intuito de harmonizar textos de lei que em tese resultam contraditórios, como também de desenvolver e concretizar a norma jurídica. Entre o ideal da certeza e da estabilidade das normas para que a segurança no tráfico jurídico não fique comprometida, e o ideal de que o Direito se aproxime da Justiça, a jurisprudência realiza sua altíssima função de harmonizar o que aparentemente resulta contraditório: harmonizar aquela certeza e estabilidade da norma com o fluente e variável que nos apresente a vida do Direito. A jurisprudência, como fonte subsidiária do Direito, evitando sua cristalização, constitui a prova de como já não procede inclinar-se ante o dogma da onipotência legislativa e, assim, permanecer indiferente ou impassível frente a uma norma que se separa da ideia da maior humanização. 162 O princípio da preservação da sociedade empresária, portanto, é um princípio constitucional, porém o modo de sua aplicação, isto é, a preservação propriamente dita ou liquidação imediata, deve ser analisada caso a caso pelo   CASTRO, Carlos Alberto Farracha de. op. cit., 2007, p. 47.   Id. Ibid., 2007, p. 49. 161   CANDELARIO MACÍAS, Maria Isabel; RODRIGUES GRILLO, Luísa E. La empresa en crisis. Derecho actual. Buenos Aires: Ciudad Argentina, 1998, p. 17: prelecionam que a experiência universal ensina que as soluções ensaiadas por diversos sistemas legais para enfrentar o fenômeno das sociedades empresárias em crise não tem sido de todo satisfatórias e isso nada tem a ver com agudez da visão do legislador, mas como dado insustentável: os limites próprios da atuação do legislador e do juiz em um campo em que prevalecem os fenômenos econômicos. 162   SPOTA, Alberto G. O juiz, o advogado e a formação do direito através da jurisprudência. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2005, p. 5. 159 160

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juiz. A sua transparência e viabilidade serão elementos absolutamente decisivos para que o instituto tenha êxito. 163 164 Desse modo, evidente que a concretização dos Direitos Fundamentais sociais exige não só uma nova política orçamentária com fiscalização efetiva do Judiciário, mas também, uma dogmática constitucional emancipatória, que interprete não só o texto constitucional, mas igualmente o Código Civil e legislação extravagante de modo solidário, aberto e evolutivo, como, por exemplo, na defesa responsável do princípio constitucional da preservação da sociedade empresária. 165 O Código Civil de 2002 demonstra a importância em propiciar meios para a preservação e continuidade da atividade exercida pela sociedade empresária, uma vez que é fonte de tributos, empregos e divisas, propiciando, pois, benefícios à sociedade em geral. Exemplo disso deriva da norma positivada no art. 974 166 do mesmo diploma que trata da pessoa do incapaz. Com efeito, o Código Civil de 2002 permite que o incapaz, devidamente assistido por meio de representante, possa continuar o exercício da atividade empresária (até então administrada sozinha por ele enquanto capaz), ainda que mediante autorização judicial, admitindo dessa forma que o incapaz continue a atividade empresária, ainda que sujeito a restrições. Em outras palavras, antes do advento do Código Civil de 2002 caso o sócio administrador de uma sociedade empresária viesse a se tornar incapaz (como, por exemplo, em decorrência de acidente de trânsito ou mesmo sério abalo emocional), inexoravelmente, a sociedade empresária era dissolvida, com o encerramento de suas atividades, causando, pois, consequências nefastas a toda a coletividade envolvida. Afinal, os funcionários ficavam desempregados. O Estado deixava de recolher tributos derivados daquela atividade econômica organizada. Os fornecedores ficavam impossibilitados de fornecer matéria-prima e assim sucessivamente ocorria com os demais envolvidos na cadeia empresária. 167   CASTRO, Carlos Alberto Farracha de. Op. cit., 2007, pp. 51-2.   LUCCA, Newton de. A reforma do direito falimentar no Brasil. In: Separata da Revista do Tribunal Regional Federal da 3ª Região. São Paulo, n° 40, 1999, p. 48. 165   Cf. CASTRO, Carlos Alberto Farracha de. op. cit., 2007, p. 52. 166   CC/2002, art. 974. Poderá o incapaz, por meio de representante ou devidamente assistido, continuar a empresa antes exercida por ele enquanto capaz, por seus pais ou pelo autor de herança. 167   CASES, José Maria Trepat. Código civil anotado. Porto Alegre: Síntese, 2004, p. 662: comenta que a incapacidade absoluta ou relativa superveniente de quem exercia atividade empresária, ou quem tenha de exercê-la por força de sucessão, não interromperá a continuação da empresa, fazendo-o por meio de representante ou assistente. A continuação da atividade empresária darse-á por autorização judicial, ouvidos os pais, tutores ou representantes legais do menor ou interdito, quanto à viabilidade de continuação da atividade, sem que a continuação ou interrupção cause prejuízos a terceiros. 163 164

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Depreende-se, pois, que do texto do art. 974 do Código Civil de 2002 extrai-se o princípio da preservação da sociedade empresária, uma vez que o legislador optou pela separação da sorte da sociedade empresária e da do empresário, sem, contudo, olvidar de continuar tutelando o patrimônio particular do incapaz, uma vez que esse patrimônio específico não se sujeita aos riscos inerentes do exercício da atividade empresária, 168 ou seja, não serve como garantia ao pagamento de eventuais débitos. 169 A preservação da sociedade empresária, na verdade, impregna todo o Título II do Livro II do Direito de Empresa, denominado Da Sociedade. Para sustentar essa alegação, basta se socorrer à regra positivada no art. 1.033, inciso IV: dissolve-se a sociedade quando ocorrer: (...) a falta da pluralidade de sócios, não reconstituída no prazo de cento e oitenta dias, sepultando em definitivo a possibilidade de extinção de sociedade empresária composta por apenas dois sócios, na hipótese de afastamento de um deles. 170 171 Outro exemplo que enfatiza o princípio da preservação da sociedade empresária como fio condutor do Código Civil de 2002, reside na regra positivada no art. 1.085, que permite a exclusão do sócio que está pondo em risco a continuidade da sociedade empresária, ainda que observado previamente o exercício do Direito de defesa em assembleia. 172 O próprio art. 1.029 173 do   CC/2002, art. 974, § 2º. Não ficam sujeitos ao resultado da empresa os bens que o incapaz já possuía ao tempo da sucessão ou da interdição, desde que estranhos ao acervo daquela, devendo tais fatos constar do alvará que conceder a autorização. 169   CASTRO, Carlos Alberto Farracha de. op. cit., 2007, pp. 112-3. 170   Id. op. cit., 2007, p. 113. 171   FRONTINI, Paulo Salvador. Sociedade por quota – morte de um dos sócios – herdeiros pretendendo a dissolução parcial – dissolução total requerida pela maioria social – continuidade da empresa. In: Revista de Direito Mercantil, n° 116, jul./set., 2001, p. 178: registra que a figura pessoal do sócio esmaece-se em face da realidade funcional da atividade, que a sociedade empresária desenvolve. Este deve continuar, como verdadeira coisa principal, sendo substituíveis os sócios, como algo acessório, fungível. No âmago desse fenômeno, como que a alimentá-lo, está o princípio da preservação da sociedade empresária. Assim, o princípio de preservação da sociedade empresária, [...] vem se alçando ao patamar matriz legitimadora dos negócios jurídicos celebrados no plano societário e também em diversas configurações jurídicas contemporâneas. 172   CC/2002, art. 1.085. Ressalvado o disposto no art. 1.030, quando a maioria dos sócios, representativa de mais da metade do capital social, entender que um ou mais sócios estão pondo em risco a continuidade da empresa, em virtude de atos de inegável gravidade, poderá excluí-los da sociedade, mediante alteração do contrato social, desde que prevista neste a exclusão por justa causa. Parágrafo único. A exclusão somente poderá ser determinada em reunião ou assembleia especialmente convocada para esse fim, ciente o acusado em tempo hábil para permitir seu comparecimento e o exercício do direito de defesa. 173   CC/2002, ar. 1.029. Além dos casos previstos na lei ou contrato, qualquer sócio pode retirarse da sociedade; se de prazo indeterminado, mediante notificação aos demais com antecedência mínima de sessenta dias; se de prazo determinado, provando judicialmente justa causa. 168

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mesmo diploma estabelece a faculdade de que qualquer sócio pode retirar-se da sociedade, sem prejuízo de sua continuidade. Reflete, também, a função social dos contratos, corolário da função social da propriedade, sendo que para compreender o desenvolvimento desse novo paradigma, basta ver a construção do princípio da preservação da sociedade empresária. 174 A preservação da sociedade empresária como princípio estruturante do Código Civil de 2002, 175 também, ficou revelada na influência que exerceu no relator do Projeto de lei n° 71/03, externada no Parecer 534, de 2004, que resultou na posterior lei n° 11.101/05, denominada Lei de Recuperação de Empresas e Falência, que, ao tratar da noção de empresário, registrou sua preocupação em evitar interpretações equivocadas e aproveitar do Código Civil de 2002. 176 Reforça esse entendimento, a redação dos arts. 1º e 47 da lei n° 11.101/05 que dispõe: Art. 1º. Esta lei disciplina a recuperação judicial, a recuperação extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária, doravante referidos simplesmente como devedor. [...] Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica. O legislador ao erigir o princípio da preservação da sociedade empresária como fundamento estruturante do Livro II do Código Civil de 2002, gerou repercussões, dentre as quais, destaque-se a sua manifesta incompatibilidade com o abuso na utilização do instituto da desconsideração da personalidade da pessoa jurídica, 177 que, por seu turno, era para se constituir em situação   FORGIONI, Paula A. A interpretação dos negócios empresariais no novo Código Civil brasileiro. In: Revista de Direito Mercantil. Nova Série. vol. 42, n° 130, abr./jun., São Paulo: Malheiros, 2003, p. 34. 175   Entendemos, portanto, que, se a legislação extravagante que trata exclusivamente da recuperação (preservação) de sociedades empresárias utilizou como instrumental teórico o Código Civil de 2002, inexoravelmente, o princípio da preservação da sociedade empresária foi alçado à linha mestra do próprio Código Civil. No mesmo sentido: CASTRO, Carlos Alberto Farracha de. op. cit., 2007, p. 120. 176   TEBET, Ramez. Parecer 534, de 2004, sobre o Projeto de Lei da Câmara n° 71, de 2003 (n° 4.376/93, na Casa de origem), de iniciativa do Presidente da República, que regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência de devedores pessoas físicas e jurídicas que exerçam atividade econômica regida pelas leis comerciais, e dá outras providências. Publicado no Diário do Senado Federal em 10.06.2004 – p. 17.856 a 17.941. 177   Sobre essa preocupação, consultar: GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da; BRASIL, Deilton Ribeiro; ANDRADE, Paulo José Cabanas de Queiroz et allii. Desconsideração da personalidade 174

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excepcional, embora a realidade do cotidiano forense demonstre exatamente o inverso, isto é, desvirtuamento, quando não, aplicação exagerada do instituto da disregard doctrine. Em outras palavras, o desenvolvimento da teoria da desconsideração da personalidade da pessoa jurídica está solidificando uma tendência de generalizála, inadvertidamente. Em razão disso, a prática forense mormente no âmbito das relações de consumo e do trabalho (até mesmo em ações falimentares) demonstra uma nítida despreocupação com os parâmetros estabelecidos na doutrina. Nesse mesmo sentido, Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa também defende que o abuso do instituto da disregard doctrine desestimula a atividade empresária, causando insegurança aos agentes econômicos e eventualmente os afastando da opção pelo exercício daquela, com prejuízo para a economia como um todo. Da desconsideração generalizada da personalidade da pessoa jurídica, tal como se tem verificado em diversas áreas do Direito, deve-se passar à sua reconsideração, com o fortalecimento da atividade empresária. 178 Nesse sentido é o Enunciado 51 aprovado pela Jornada de Direito Civil, promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, no período de 11 a 13.9.2002, sob a coordenação de Ruy Rosado de Aguiar, na ocasião, Ministro do Superior Tribunal de Justiça: Enunciado 51. Art. 50. a teoria da desconsideração da personalidade jurídica – disregard doctrine – fica positivada no Código Civil, mantidos os parâmetros existentes nos microssistemas legais e na construção jurídica sobre o tema. Portanto, ao aplicar-se a teoria da desconsideração da personalidade da pessoa jurídica, deve-se verificar atentamente, se estão presentes os pressupostos reconhecidos pela doutrina como ensejadores de sua aplicação, para, somente depois, em caso de resposta afirmativa, proceder-se à sua efetiva aplicação, 179 garantindo-se a ampla defesa e o devido processo legal (CF, art. 5º, LIV e LV). 180 Depreende-se, portanto, que o princípio da preservação da sociedade empresária tem se constituído a principal preocupação do Direito de Empresa contemporâneo, diante do inegável abalo social produzido por uma quebra. No caso, ausente prejuízo a qualquer dos interessados, não há razão para declarar a nulidade de arrematação que não seguiu os estritos comandos do Código de jurídica: uma visão crítica da jurisprudência. GAMA, G. C. N. [Coord.]. São Paulo: Atlas, 2009, passim. 178   VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. Curso de direito comercial: teoria geral das sociedades – As sociedades em espécie do Código Civil. São Paulo: Malheiros, 2006, vol. II, p. 105. 179   ALVIM, Thereza. Aplicabilidade da teoria da desconsideração da pessoa jurídica no processo falimentar. In: Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, n° 87, jul./set., 1997, pp. 211 et seq. 180   CASTRO, Carlos Alberto Farracha de. op. cit., 2007, p. 125. 109

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Processo Civil. Valorização, no caso, da preservação da atividade empresária em detrimento do formalismo procedimental. A melhor interpretação da lei é a que se preocupa com a solução justa, não podendo o seu aplicador esquecer que o rigorismo na exegese dos textos legais pode levar a injustiças. A atividade judicial, portanto, não se exaure em desvendar o significado da lei ou mesmo a intenção do legislador, com cunho meramente declaratório. Na verdade, possui caráter constitutivo, ou seja, o juiz ao decidir, cria uma norma jurídica renovando o sistema jurídico. Desta forma, na medida em que se busca demonstrar que o princípio da preservação da sociedade empresária se constitui no pilar do Direito de Empresa no Código Civil de 2002, há que se esclarecer que esse pensamento implica visualizar o Código como um sistema aberto que integra a unidade do sistema jurídico, cuja leitura deve ser feita a partir da Constituição Federal, cuja concretização dos valores e princípios constitucionais não se exaure com a promulgação da Constituição Federal e, muito menos, com o advento da vigência do Código Civil de 2002. 181 Dentro dessa ótica, deve-se, pois, proceder à releitura do Livro II do Código Civil, que trata do Direito de Empresa à luz da Constituição Federal, cuja perspectiva indica para arco evolutivo que migra da relação jurídica fundada acentuadamente na garantia do crédito para trânsito jurídico que dá relevo destacado à proteção da pessoa. 182 Em nosso entender, a teoria da desconsideração da personalidade da pessoa jurídica possui um estreito liame com o princípio da preservação da sociedade empresária. A teoria da disregard doctrine of legal entity não postula a invalidade, irregularidade ou dissolução da sociedade empresária. Ao contrário, por desconsideração da autonomia patrimonial se entende tomar por episodicamente ineficaz o ato constitutivo da pessoa jurídica, ou seja, a sociedade empresária será ignorada apenas no julgamento da conduta fraudulenta ou abusiva da pessoa que a utilizou indevidamente, permanecendo existente, válida e eficaz em relação a todos os demais aspectos no plano de sua existência jurídica. Em outros termos, os demais negócios jurídicos celebrados pela pessoa jurídica, que não se encontrarem diretamente relacionados com a fraude ou abuso a coibir, são preservados em sua validade e eficácia. Isto significa que a teoria da disregard doctrine possibilita a coibição da fraude ou do abuso sem o comprometimento dos interesses que visam o desenvolvimento da atividade empresária, que nenhuma relação guardam com a conduta fraudulenta ou abusiva justificadora da aplicação da desconsideração da personalidade da pessoa jurídica; e possibilita a preservação da sociedade empresária porque   CASTRO, Carlos Alberto Farracha de. op. cit., 2007, pp. 131-3.   FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo. Rio de Janeiro/São Paulo: Renovar, 2001, p. 175. 181 182

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não se põe em questão a validade ou regularidade do ato constitutivo ou dos negócios e demais atos jurídicos praticados pela sociedade empresária. Naquele episódio, e somente nele, em que a autonomia patrimonial foi instrumento de fraude ou abuso, a sociedade empresária não será considerada, mas ignorada. Para as demais relações jurídicas ela continua sendo pessoa jurídica sujeita de direitos e obrigações no âmbito do ordenamento jurídico.

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COMO O STJ E STF ENTENDEM A RESPONSABILIDADE PENAL E NÃO PENAL DOS ADMINISTRADORES DAS SOCIEDADES EMPRESÁRIAS? HOW DOES THE BRAZILIAN SUPERIOR COURTS UNDERSTAND THE CRIMINAL AND NON-CRIMINAL LIABILITY OF THE EXECUTIVES AND BOARD OF DIRECTORS MEMBERS? Marta Rodriguez de Assis Machado183 Viviane Muller Prado184 RESUMO Este artigo discute a aplicação do regime jurídico de responsabilidade de administradores em sociedades empresárias, a partir do estudo empírico de decisões do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal. Há, no meio empresarial o sentimento generalizado de sobre-responsabilização dos dirigentes de empresas com atividade no Brasil. Pode-se afirmar que a propagação da idéia de constante desvantagem do empresário ou do gestor frente ao sistema jurídico no tocante à responsabilidade individual do administrador age como fator de desestímulo ao desenvolvimento de atividades empresariais. A dimensão desse risco, no entanto, permanece uma incógnita e merece ser estudada. Esta pesquisa pretende fornecer dados sistematizados para responder a duas perguntas-chave: 1) Como o regime de responsabilidade penal e não penal expressamente previsto nas regras jurídicas vem sendo aplicado pelos tribunais? 2) Como o princípio da individualização da responsabilidade penal vem sendo entendido para os agentes econômicos que ocupam cargos de direção nas sociedades empresárias? Fazemos isso a partir das decisões dos Tribunais Superiores. O levantamento jurisprudencial foi realizado com base nos instrumentos de busca disponibilizados nos sites do STJ e do STF e seus respectivos bancos de dados. Trata-se de um primeiro passo para a compreensão da atuação do regime jurídico de responsabilização dos administradores e sua capacidade de interferência sobre a organização e funcionamento da empresa e sobre o estímulo à livre iniciativa no Brasil. Palavras-Chave: responsabilidade de administradores de sociedade empresária; pesquisa em jurisprudência; jurisprudência do STJ; jurisprudência do STF.   Mestre e doutora em Direito pela USP. Professora da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas e Pesquisadora do Centro Brasileiro de Análises e Planejamento (CEBRAP). 184   Doutora em Direito pela USP. Professora da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas. 183

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ABSTRACT This paper reports and discusses empirical research about the legal liability system applied to directors and managers of corporations by the Superior Court of Justice and the Superior Federal Court. There is a widespread sense of excessive liability being applied to directors of corporations in Brazil. It can be argued that the spreading argument about the disadvantages suffered by owners or managers facing the legal system of individual liability discourages the corporate activity. However, the extent of this risk remains unknown and deserves to be studied. This paper aims to provide systematic data to answer two key questions: 1) How are the courts applying the legal liability system (both criminal and non-criminal) expressly regulated in Brazilian statutes? 2) How has the principle of individual criminal liability being interpreted when applied to corporations’ directors? This analysis is made from decisions of the Brazilian Superior Courts and the data was collected on the courts’ websites search engines. This is a first step to shed light on the legal liability system of directors and managers as well as on its capacity to alter preferences of corporation’s organization and its impact on encouragement of free enterprise in Brazil. Keywords: legal liability of directors and managers; empirical research on Court decision; Brazilian Superior Courts decisions I. INTRODUÇÃO Há, no meio empresarial o sentimento generalizado de sobreresponsabilização dos dirigentes de empresas com atividade no Brasil. Pode-se afirmar que a propagação da idéia de constante desvantagem do empresário ou do gestor frente ao sistema jurídico no tocante à responsabilidade individual do administrador age como fator de desestímulo ao desenvolvimento de atividades empresariais. A dimensão desse risco, no entanto, permanece uma incógnita e merece ser melhor estudada. Este trabalho185 é um primeiro passo para a compreensão da atuação do regime jurídico de responsabilização dos administradores e sua capacidade de interferência sobre a organização e funcionamento da empresa e sobre o estímulo à livre iniciativa no Brasil.   Este texto encontra base no relatório de pesquisa intitulado Responsabilidade dos administradores de sociedade empresarial na jurisprudência do STJ e STF, produzido por Viviane Muller Prado, Marta Rodriguez de Assis Machado, Lizianne Marques Curto e Marina Zanatta Ganzarolli. 185

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Pretendeu-se obter dados que indicassem como o controle da atividade empresarial é exercido pelo sistema de distribuição de responsabilidade no Direito brasileiro. Mais especificamente, essa pesquisa pretende fornecer dados sistematizados para responder a duas perguntas-chave: 1) Como o regime de responsabilidade penal e não penal expressamente previsto nas regras jurídicas vem sendo aplicado pelos tribunais? 2) Como o princípio da individualização da responsabilidade penal vem sendo entendido para os agentes econômicos que ocupam cargos de direção nas sociedades empresárias? Fazemos isso a partir de um universo limitado – apenas as decisões dos Tribunais Superiores. O levantamento jurisprudencial foi realizado com base nos instrumentos de busca disponibilizados nos sites do STJ e do STF e seus respectivos bancos de dados. A pesquisa foi empreendida no espaço de consulta à jurisprudência nos endereços eletrônicos http://stj.gov.br e http://stf.gov.br, de forma que utilizamos para a coleta de acórdãos a busca por palavras-chave186 disponíveis nesses sítios187. Estabelecemos o limite temporal de 01.01.05 a 01.04.07. Chegamos ao número final de 250 acórdãos, sendo 244 casos julgados pelo STJ e 6 julgados pelo STF. Deste número, 198 acórdãos versam sobre matéria não penal e 52 acórdãos sobre matéria penal. Trata-se, portanto, de um primeiro impulso para a construção de um diagnóstico sobre o funcionamento dos sistemas vigentes de responsabilidade, que deve sem dúvida ser ampliado, mas desde já pode trazer elementos para iniciar uma discussão mais ampla sobre o modo como os regimes de responsabilidade podem interferir na atividade empresarial e seu possível papel na criação de estímulos para organizações transparentes, a prevenção de fraudes e o aperfeiçoamento de mercados. O artigo está dividido em três partes. Após esta introdução (I), apresentamos os resultados (item II). Inicialmente, os resultados referentes à responsabilidade tanto penal quanto não penal dos administradores serão apresentados conjuntamente. Posteriormente, os acórdãos são separados em conjuntos distintos – não penais e penais –, para que pudessem ser exploradas as peculiaridades das matérias. Ao final, apresentamos as conclusões da pesquisa empírica (item III). O objetivo deste texto é descrever de forma objetiva os resultados obtidos a partir do banco de dados construído, para que possam ser apropriados pela discussão pública sobre o tema.   Utilizamos as seguintes palavras-chave: “responsabilidade e administrado$”, “responsabilidade e gerent$”, “responsabilidade e direto$”, “responsabilidade e conselheir$”, “responsabilidade e gesto$”, “denúncia e administrado$”, “denúncia e gerent$”, “denúncia e direto$”, “denúncia e conselheir$” e “denúncia e gerent$”. De acordo com os recursos das ferramentas de busca, o símbolo “$” utilizado conjuntamente com as palavras-chave permite captar todas as variações possíveis das respectivas palavras. 187   A coleta das decisões no banco de dados dos Tribunais referidos foi feita em julho de 2007. 186

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II. RESPONSABILIDADE DOS ADMINISTRADORES NA JURISPRUDÊNCIA DO STJ E STF 1. RESULTADOS CONJUNTOS: ACÓRDÃOS EM MATÉRIA PENAL E NÃO PENAL Apresentamos nesse item dados sobre o conjunto total de acórdãos. Utilizamos as siglas NP e P para denominar, respectivamente, os grupos de acórdãos “não penais” e “penais”. 1.1 TIPO SOCIETÁRIO Uma das informações que buscamos com a pesquisa é saber se o tipo societário (isto é, sociedade limitada, sociedade anônima, sociedade simples, cooperativa etc.) influencia a maneira como os Tribunais decidem sobre a imputação da responsabilidade aos seus administradores. Considerando o total de acórdãos, podemos encontrar os seguintes números sobre os tipos societários envolvidos nos casos analisados: Tabela 1 Distribuição de acórdãos penais e não penais por tipo societário e instâncias em números absolutos Brasil 2005-2007



Fonte: Superior Tribunal de Justiça, Supremo Tribunal Federal e Direito GV.

Em uma primeira leitura dos dados, poderíamos afirmar que há mais casos envolvendo o questionamento de administradores de sociedades limitadas, pois, das 250 decisões analisadas, apenas 27 envolviam sociedades por ações. A análise deste dado, no entanto, deve levar em conta o fato de que, no Brasil, o número de sociedades limitadas é muito superior ao de sociedades anônimas. Conforme estatística do Departamento Nacional de Registro e Comércio sobre a constituição de empresas por tipo jurídico de 1985 a 2005, havia 4.3000.257 sociedades limitadas e apenas 20.080 sociedades por ações.188   Informação disponível em www.dnrc.gov.br, acessado em 24 de novembro de 2010.

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De toda forma, há mais questionamentos sobre a responsabilidade de administradores em limitadas se comparados aos casos de sociedade por ações. Por outro lado, em 61 decisões o tipo societário não foi mencionado no acórdão. Aparentemente, não se considerou o tipo de estrutura societária como dado que teria algum papel no sentido de influenciar, limitar ou estimular a atuação dos administradores nos ilícitos analisados. 1.2 POSIÇÃO QUE O RÉU OCUPA NA EMPRESA   Outra informação que pode ser retirada da pesquisa refere-se à posição do réu na empresa. O objetivo de conhecer este dado é verificar se o cargo do réu, suas competências e seus deveres estatutários, contratuais e legais são levados em consideração para verificar eventual responsabilidade. Sobre esta informação, os resultados obtidos foram os seguintes: Tabela 2 Distribuição de acórdãos penais e não penais pela posição do réu na empresa e instâncias em números absolutos rasil 2005-2007

Fonte: Superior Tribunal de Justiça, Supremo Tribunal Federal e Direito GV.

Ressaltamos que a palavra “réu” foi utilizada para denominar aquele que figurou no pólo passivo da ação, sendo que em grau recursal pode ter sido tanto requerente quanto requerido. Constatamos que são inúmeras as denominações utilizadas pelos Ministros quando fazem referência à posição do réu na empresa. Apenas a título de exemplo, encontramos as seguintes variações: “sócio-gerente”, “sócio”, “sócio-cotista”, “controlador”, “administrador”, “membro do Conselho Administrativo”, “diretor”, “gestor” e “diretor-presidente”. Sistematizamos estas informações em cinco categorias: “Sócio”, “Sócio/Administrador”, “Administrador”, “Outros” e “Não há indicação no acórdão”. Dessa forma, conseguimos perceber se a condição de sócios (fornecedor de capital) e a 119

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posição de administrador (com poderes de gestão) são consideradas isolada ou conjuntamente. A expressão “sócio” engloba sócio, sócio-cotista, sócio-proprietário e proprietário. A denominação “sócio/administrador” inclui sócio-gerente, sóciodiretor e sócio-presidente, ou seja, pessoas que ocupavam tanto a posição de sócio quanto de administrador da sociedade. Já a denominação “administrador” compreende as seguintes expressões: administrador, gerente, gerente geral, gestor, diretor, diretor-presidente, diretor estatutário, diretor superintendente, superintendente, diretor financeiro, diretor administrativo, ex-administrador (ocupava o cargo à época dos fatos) e membro do Conselho Administrativo, ou seja, todas aquelas denominações que se referem às pessoas que possuem poder de gestão. A expressão “outros” abrange ex-sócio (não ocupava o cargo à época dos fatos), procurador e representante legal, ou seja, foram agrupadas sob essa rubrica aquelas pessoas que, embora não exercessem efetivamente um cargo de administração na sociedade, foram citadas nos respectivos julgados como indivíduos que possuem certa ligação com a empresa. Finalmente, aqueles acórdãos que não especificam a posição do réu foram agrupados sob a rubrica “não há indicação no acórdão”. É importante frisar que, como nosso objetivo era estudar a posição do administrador, dentre as palavras-chave que utilizamos para a construção de nosso banco de dados, não incluímos a palavra isolada “sócio”. Apesar disso, é curioso notar que temos 42 casos que tratam de réus nessa posição. Esse número de acórdãos que conseguimos captar, mesmo sem ter utilizado essa palavrachave, evidencia algo que pode ser desde já considerado um dos resultados da pesquisa: a fungibilidade de expressões utilizadas pelos Ministros para designar as posições dentro da empresa. Chama a atenção o fato de que a expressão mais freqüente (169 nos casos não penais e 11 nos penais do STJ) seja “sócio-gerente”. Esta denominação era utilizada na vigência da legislação antiga das sociedades limitadas (Decreto 3.708/19), que foi modificada para administrador pelo Código Civil. Além disso, este resultado provavelmente decorre da expressão gerente do art. 135 do CTN, uma vez que os casos tributários representam grande parte dos casos da nossa pesquisa. Interessante notar que há uma variedade muito maior de expressões para designar o cargo que ocupava o administrador nos acórdãos de matéria penal do que naqueles de matéria não penal. Enquanto estes utilizaram basicamente as expressões “sócio”, “sócio-gerente” e “administrador”, os acórdãos de matéria penal utilizaram amplamente as variantes apresentadas acima. 120

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Constatamos que os Ministros, principalmente em matéria não penal, não dispensaram atenção em relação à denominação propriamente dita dos cargos que os indivíduos ocupam na empresa em um número considerável de acórdãos. Considerando o total de recursos não penais analisados, em 103 acórdãos, ao comparar a ementa e o interior dos votos, encontramos diversas expressões para designar a mesma pessoa. As expressões que mais freqüentemente apareciam como sinônimas eram “sócio” e “sócio-gerente”. Notamos também a utilização de outras expressões - tais como diretores, gerentes ou representantes da pessoa jurídica - como equivalentes da figura do sócio.  De modo geral, tanto em casos penais como em não-penais, ao que nos pareceu, as distinções existentes entre os papéis e funções de sócio (aquele que aporta capital de risco na empresa e não necessariamente administra os mesmos) e administrador (responsável pela gestão do patrimônio empresarial) não tiveram grande relevância para a decisão sobre responsabilidade. Por fim, observamos que pelo menos 46 dos acórdãos de matéria não penal estudados tinham a presença de mais de uma pessoa que exercia a mesma função na empresa189, no pólo passivo ou ativo do recurso. Em matéria penal, pudemos constatar que 8 decisões possuíam mais de uma pessoa no pólo passivo, usualmente com cargos distintos na empresa. Nessas 8 decisões, os cargos eram os de diretor, diretor adjunto, funcionária, engenheiro, presidente-superintendente e uma pessoa jurídica, alocada no pólo passivo da ação penal em razão da aplicação da Lei de Crimes Ambientais, que prevê a responsabilidade penal da pessoa jurídica (RMS 16.696). 1.3 MATÉRIA Tendo em vista que a disciplina da responsabilidade dos administradores está dispersa na legislação brasileira, buscamos verificar sobre quais matérias versam as decisões analisadas. Assim, além da divisão em dois grandes grupos denominados “não penal” e “penal”, avançamos na classificação dos acórdãos, de acordo com o assunto tratado, dividindo-os, ainda, nos seguintes grupos: “Tributário/Previdenciário”, “Sistema Financeiro”, “Civil”, “Ambiental”, “Societário” e “Outro”. Neste ponto, obtivemos os seguintes resultados.   Dentre esses acórdãos de matéria não penal, identificamos que em 25 desses a decisão versava sobre mais de um “sócio-gerente” no pólo passivo da ação, em outros 16 acórdãos ocorria a mesma situação em relação aos “sócios” e os 05 restantes citavam mais de um “administrador” ou “ex-administrador”. 189

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Tabela 3 Distribuição de acórdãos penais e não penais por matéria em números absolutos - Brasil 2005-2007

Fonte: Superior Tribunal de Justiça, Supremo Tribunal Federal e Direito GV.

No grupo Tributário/Previdenciário estão incluídas tanto as decisões sobre responsabilidade fiscal quanto previdenciária. Apenas em alguns momentos deste relatório, apresentaremos ambas as matérias em grupos distintos. Esta distinção representa a classificação do caso dada pelo próprio Tribunal na ementa. Ressalta-se, todavia, que ao ler a íntegra das decisões, percebemos que muitos casos, embora versassem sobre contribuições previdenciárias, foram classificados pelos Ministros apenas como “Tributário” na ementa. Diante dessa aparente falta de uniformidade, e considerando o entendimento pacífico do STJ no sentido de que as contribuições previdenciárias têm natureza tributária, decidimos unir as duas matérias sob a mesma rubrica “Tributário/ Previdenciário”. Excepcionalmente, e apenas naqueles em que a disciplina própria de cada matéria acarretaria diferença de tratamento do caso, mantivemos a referência original ao grupo “Previdenciário”, composto por aqueles acórdãos em que os Ministros fizeram expressamente essa diferenciação na ementa e utilizamos as definições da própria ementa. A classificação “Sistema Financeiro” foi utilizada para todos aqueles acórdãos em que a responsabilidade do cargo de administrador estavam ligados a instituições bancárias. Sob a rubrica “Civil” incluímos casos não penais que versam sobre partilha de bens e responsabilidade civil dos administradores. Sob a denominação “Ambiental”, reunimos as decisões que versaram sobre danos ambientais. Em matéria penal, 25 ementas traziam a referência a “crimes societários” para se referirem, de modo genérico, a atos ilícitos praticados no âmbito de sociedades empresariais. Trata-se de classificação imprecisa e os acórdãos 122

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podem ser redistribuídos, de acordo com a matéria exposta no inteiro teor das decisões, nos seguintes grupos: Direito Tributário e Previdenciário (16 decisões), Ambiental (05 decisões), Crimes contra a Ordem Econômica e as Relações de Consumo (01 decisão), Financeiro (01 decisão), falsidade ideológica (01 decisão) e processo de licitação irregular (01 decisão). Na categoria “Outros” incluímos caso de crimes de falsidade ideológica (01 decisão) e processo de licitação irregular (01 decisão). 1.4 JULGAMENTO POR UNANIMIDADE OU POR MAIORIA No tocante à forma das decisões, a pesquisa distinguiu as situações nas quais todos os Ministros votaram no mesmo sentido daquelas em que houve divergência nos votos proferidos. Tabela 4 Distribuição de acórdãos penais e não penais por votação unânime e instâncias em números absolutos - Brasil 2005-2007

Fonte: Superior Tribunal de Justiça, Supremo Tribunal Federal e Direito GV.

Constata-se assim, a partir dos números gerados, que a unanimidade é o padrão decisório nos casos sobre responsabilidade do administrador, sugerindo que não há muita divergência nos órgãos colegiados sobre o tema. 1.5 RESULTADOS SOBRE A RESPONSABILIZAÇÃO Tanto em matéria penal quanto não penal, utilizamos o conceito “responsabilização” de forma ampla para permitir a comparação entre o resultado das decisões. Tal categoria refere-se principalmente à declaração de responsabilidade feita pelo órgão jurisdicional e não às conseqüências da decisão, nem à efetividade da decisão em relação ao seu impacto no patrimônio do administrador. Reunimos as decisões em dois grupos denominados “positivo em relação à responsabilização ou à possibilidade de responsabilização” e “negativo em relação à responsabilização ou à possibilidade de responsabilização”. Chamamos 123

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de decisões cujo resultado foi “negativo em relação à responsabilização ou à possibilidade de responsabilização” todas aquelas que, independentemente de o recurso analisado ter sido originado a partir de sentenças ou decisões interlocutórias, optaram pela não manutenção da parte no pólo passivo ou pela sua absolvição. Já dentre aquelas denominadas “positivo em relação à responsabilização ou à possibilidade de responsabilização” foram agrupadas todas as decisões que, independentemente de o recurso analisado ter sido originado a partir de sentenças ou decisões interlocutórias, optaram pela manutenção da parte no pólo passivo ou pela sua condenação. Em matéria penal, agrupamos sob a denominação “negativo em relação à responsabilização ou à possibilidade de responsabilização” as decisões em que se determinou o não prosseguimento da ação penal, ou seja, o seu trancamento; bem como as decisões em que não houve imputação do crime ao réu, ou seja, houve absolvição. Já sob a denominação “positivo em relação à responsabilização ou à possibilidade de responsabilização” agrupamos as decisões em que se imputou definitivamente o crime ao réu, ou seja, em que houve condenação, bem como as decisões que determinaram o prosseguimento da ação penal, ou seja, manteve-se o réu no pólo passivo. Nesses últimos casos, entendeu-se, no momento do recurso analisado, que já havia indícios suficientes ao menos para a manutenção da ação penal. Diante da diversidade de tipos de recursos, interpostos em distintos momentos do processo, o agrupamento nos permite olhar esses casos em relação à decisão acerca da responsabilidade dos administradores e comparar os dados obtidos nos acórdãos que tratam sobre matéria não penal e os que versam sobre matéria penal. Nesse sentido, vemos na tabela abaixo que no conjunto de casos não penais foi mais comum encontrar decisões contrárias à responsabilização do administrador ou à continuidade do processo contra ele. Essa relação se inverte no conjunto de casos penais, embora a diferença entre os dois resultados, nesse campo, seja muito menor.

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Tabela 5 Distribuição de acórdãos penais e não penais pelo resultado da decisão e instâncias em números absolutos

Fonte: Superior Tribunal de Justiça, Supremo Tribunal Federal e Direito GV.

Interessante analisar conjuntamente este dado com a informação acerca do tipo societário. Considerando o conjunto de acórdãos que indicou o tipo societário em questão – 136 acórdãos em matéria não penal e 49 acórdãos em matéria penal – as decisões sobre responsabilização dos administradores distribuíram-se da seguinte forma em relação ao tipo societário: Tabela 6 Distribuição de acórdãos penais e não penais pelo tipo societário, resultado da decisão e instâncias em números absolutos - Brasil 2005-2007

Fonte: Superior Tribunal de Justiça, Supremo Tribunal Federal e Direito GV. A soma de entradas na tabela ultrapassa a soma dos casos. Cf. nota 05, supra.

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2. RESULTADO DAS DECISÕES SOBRE RESPONSABILIDADE NÃO PENAL DE ADMINISTRADORES 2.1 RELAÇÃO DA MATÉRIA COM A RESPONSABILIZAÇÃO OU NÃO DOS ADMINISTRADORES Nos pareceu relevante verificar as relações entre atribuição ou não de responsabilidade aos administradores e a matéria analisada no caso. Ao cruzar essas informações, obtivemos os seguintes dados: Tabela 7 Distribuição de acórdãos não penais de acordo com a matéria e a responsabilização ou não dos administradores - Brasil 2005-2007

Fonte: Superior Tribunal de Justiça e Direito GV.

De modo geral, esses dados não permitem confirmar a tese de que há um excesso de responsabilização dos administradores. Nota-se aqui, em matéria tributária, o grande número de casos que resultam em não atribuição de responsabilidade individual aos administradores. 2.2 FUNDAMENTOS DAS DECISÕES Como disposto na tabela abaixo, investigamos os argumentos mais recorrentes utilizados pelos Ministros para embasar positivamente ou negativamente a possibilidade de responsabilização dos administradores. Para que pudéssemos padronizar os argumentos que foram utilizados para fundamentar as decisões dos recursos que analisamos, criamos cinco categorias que passaremos a explicar: (i) “O não pagamento do tributo não enseja redirecionamento/ responsabilização”: Podemos dizer que esse argumento é o mais utilizado em matéria tributária e previdenciária. Ele guarda uma relação direta com o disposto no art. 135, III do CTN. 126

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Em matéria tributária, temos que o pólo passivo da relação pode ser ocupado pelo contribuinte ou por um terceiro eleito pela lei. Em alguns casos de responsabilidade de terceiros, como ocorre com o art. 135, III, do CTN, a obrigação de pagar o tributo surge a partir da ocorrência de certo fato posterior ao fato gerador do tributo, sendo que, neste caso, estamos diante da “responsabilidade de terceiro por transferência”. Com isso, queremos dizer que se aquele que exerce um cargo de administração na empresa agir com excesso de poderes ou infração à lei, ao contrato ou estatuto social, ele pode ser responsável pelo adimplemento do tributo, pois a dívida, que em um primeiro momento deveria ser paga pela empresa, é redirecionada para aquele. O redirecionamento da dívida só pode ser operado nos casos expressamente previstos em lei. Nesse sentido, o argumento “o não pagamento do tributo não enseja redirecionamento/responsabilização” é usado pelos Ministros para afastar a possibilidade de redirecionamento da dívida tributária ou mesmo para afastar a efetiva responsabilização pelo adimplemento da obrigação tributária. Isso acontece porque os Ministros entendem que o simples ato de não pagar o tributo não configura fato que se encaixe nas hipóteses estritas de redirecionamento da dívida previstas no art. 135, III, do CTN. Esse argumento pode ser encontrado nos acórdãos sob duas formas. A primeira delas traz apenas a afirmativa de que o simples não pagamento do tributo não enseja redirecionamento ou responsabilização. O excerto abaixo exemplifica o uso do argumento ao qual nos referimos: “Esta Corte fixou o entendimento que o simples inadimplemento da obrigação tributária não caracteriza infração legal capaz de ensejar a responsabilidade prevista no art. 135, III, do Código Tributário Nacional.” (grifo nosso) (Recurso Especial n° 826.706 – SC, Relator Ministro Castro Meira, julgado em 15 de agosto de 2006) No segundo caso, o argumento vem acompanhado da afirmação de que, pelo fato de não terem sido provadas quaisquer das condutas prescritas no art. 135 do CTN, o redirecionamento ou responsabilização daquele que exerce cargo de administração na empresa não deve ocorrer, pois, como é pacífico na Corte, o simples não pagamento do tributo não deve gerar esses efeitos. O trecho do acórdão abaixo nos fornece um exemplo do argumento acima referido. “Esta Corte pacificou o entendimento de que, inexistindo prova de que o representante da sociedade agiu com excesso de mandato ou infringência à lei ou ao contrato, não há de direcionar-se para ele a execução. ”(grifo nosso) (Recurso Especial n° 235.679 - SP, Relator Ministro Castro Meira, julgado em 07 de abril de 2005) 127

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(ii) “Dissolução irregular”: A dissolução irregular, de acordo com a jurisprudência do STJ, ocorre quando o empresário simplesmente “fecha as portas de seu estabelecimento” sem regularizar a situação deste em relação ao encerramento das atividades. Embora alguns doutrinadores afirmem que a dissolução irregular está implicitamente inserida dentre as hipóteses do art. 135 do CTN, pois poderia ser considerada uma infração à lei, os Ministros do STJ não mencionam explicitamente essa discussão nos acórdãos. Optamos por considerar a dissolução irregular como argumento diverso, vez que os Ministros não citam explicitamente essa hipótese como pertencente ao art. 135 do CTN. No entanto, devemos mencionar que, embora a maioria dos Ministros não diga incisivamente que a dissolução irregular faz parte das hipóteses do artigo supramencionado, eles enumeram a dissolução irregular como hipótese de infração à lei. O seguinte trecho exemplifica tal situação: “(...) os sócios (diretores, gerentes ou representantes da pessoa jurídica) são responsáveis, por substituição, pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias quando há dissolução irregular da sociedade ou se comprova a prática de ato ou fato eivado de excesso de poderes ou de infração de lei, contrato social ou estatutos.” (Recurso Especial n° 826.704 – SC, Relator Ministro Castro Meira, julgado em 15 de agosto de 2006) Situação que analisamos dentre os acórdãos que tratam da questão da dissolução irregular merece destaque aquela em que a empresa deixa de funcionar na sede em que está inscrita na Junta Comercial. Sobre este fundamento de responsabilização dos administradores, ressalta-se que, em 14 de abril de 2010, o STJ editou a Súmula 435 com a seguinte redação: “Presume-se dissolvida irregularmente a empresa que deixar de funcionar no seu domicílio fiscal, sem comunicação aos órgãos competentes, legitimando o redirecionamento da execução fiscal para o sócio-gerente.” (iii) “Presunção de certeza e liquidez da Certidão da Dívida Ativa (CDA)” A Certidão da Dívida Ativa é um título executivo extrajudicial que, por ser constituído pela Administração Pública, goza de presunção de liquidez e certeza, de acordo com os ditames da lei. Nesse sentido é pacífica a jurisprudência do STJ, que faz uma interpretação literal dos dispositivos que tratam sobre o assunto. Os acórdãos basicamente convergem no sentido de enunciar que uma vez presente na CDA o nome do sócio ou de qualquer outro que exerça cargo de gerente na empresa, o ônus da prova será invertido, cabendo a esse último provar que não incorreu em nenhuma das hipóteses de responsabilidade enunciadas no art. 135 do CTN. 128

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Já outros acórdãos, primordialmente naqueles em que um dos argumentos da parte recorrente é justamente a questão da liquidez e certeza do título, os Ministros são unânimes em ressaltar que a inversão do ônus da prova não deve operar nos casos em que o nome do sócio ou qualquer outro que exerça cargo de administração na empresa não tiver sido incluído na CDA. Ainda, é importante salientar que, em se tratando de Certidão da Dívida Ativa, existe um acórdão da Relatoria do Ministro Castro Meira do ano de 2005, mais especificamente os Embargos de Divergência em Recurso Especial n° 702.232, que é bastante citado por outros Ministros em suas decisões. Esse acórdão prevê as várias hipóteses em que a questão da CDA pode aparecer e propõe, para cada uma delas, uma solução em relação à responsabilização do “sócio-gerente”. Por esse motivo, é usado por aqueles que o citam em suas decisões como uma espécie de guia sobre o assunto. (iv) “Discussão da posição na empresa” Referimo-nos a “Discussão da posição na empresa” em decisões que terminaram por incluir ou excluir a parte do pólo passivo, em razão dos seguintes fundamentos: a) sucessão de sócio autoriza redirecionamento para o novo sócio; b) ingresso de novo sócio não exime a responsabilidade do anterior; c) não basta ocupar cargo na administração; d) em razão do cargo ocupado pela parte na estrutura da administração da empresa; e) em razão de disposição legislativa que considera responsável aquele que ocupa determinado cargo na empresa; e f) fato gerador posterior ao exercício de cargo de gerência. Neste item também está o argumento, identificado em apenas cinco acórdãos, que diz respeito a situações em que o indivíduo não foi mantido no pólo passivo da ação por se considerar que os fatos que estavam sendo analisados não tinham relação direta com a sua pessoa ou com o cargo que exercia ou exerce na empresa. Em matéria tributária esse argumento fica bastante claro quando é usado para explicitar que, para que o redirecionamento da dívida ou sua efetiva responsabilização se opere, é necessário provar que o réu da ação exercia à época dos fatos cargo de gerência na empresa. (v) “Questões processuais” Esse critério foi utilizado todas as vezes em que os Ministros usavam argumentos que, por serem meramente processuais, não discutiam propriamente a questão da responsabilidade. Dentre argumentos classificados como tal, temos desde a discussão sobre a aplicação de multa à discussão sobre o cabimento da exceção de pré-executividade. 129

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Esse tipo de argumento foi encontrado isoladamente e cumulado com outros (em 14 acórdãos). Nesses últimos, além do argumento processual, contabilizamos também os outros fundamentos relacionados diretamente à questão da responsabilidade. (vi) “Outros” Na categoria “outros” incluímos os seguintes argumentos residuais: a) decurso do prazo decadencial; b) preclusão lógica da matéria de responsabilidade; c) inquérito administrativo do Banco Central não responsabilizou o administrador por liquidação extrajudicial; d) falta de prova; e e) não aplicação dos dispositivos legais. O resultado que encontramos aparece nas Tabelas 8 e 9 abaixo, que respectivamente indicam os fundamentos para a responsabilização e para a não responsabilização. Tabela 8 Distribuição de acórdãos não penais de acordo com a fundamentação para a responsabilização em números absolutos - Brasil 2005-2007

Fonte: Superior Tribunal de Justiça e Direito GV.

O argumento que aparece com maior freqüência para a responsabilização dos administradores é a dissolução irregular da sociedade, lembrando que desde 2010 este fundamento está na Súmula STJ 435 que tem a seguinte redação: “Presume-se dissolvida irregularmente a empresa que deixar de funcionar no seu domicílio fiscal, sem comunicação aos órgãos competentes, legitimando o redirecionamento da execução fiscal para o sócio-gerente.” Outro fundamento relevante é a presunção de certeza e liquidez da CDA, indicando que a via administrativa é bastante importante para determinar a responsabilização perante o Poder Judiciário. Por outro lado, verifica-se que a análise da posição do réu na empresa apareceu poucas vezes. Este dado sugere que, para fundamentar as decisões no sentido da responsabilização dos agentes empresariais perante terceiros, em especial, perante o fisco, não aparece como relevante a verificação de quais eram as competências e poderes dos administradores dentro da sociedade. 130

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Tabela 9 Distribuição de acórdãos não penais de acordo com a fundamentação para a não responsabilização em números absolutos - Brasil 2005-2007

Fonte: Superior Tribunal de Justiça e Direito GV.

Verificamos que a maior parte das decisões de não atribuição de responsabilidade individual refere-se a casos em que os juízes apontam que o simples não pagamento do tributo não poderia justificar a direta responsabilidade dos gestores e sócios da empresa. A discussão da posição do administrador da empresa não aparece como relevante nem casos de não responsabilização. 2.3 FUNDAMENTAÇÃO LEGAL Dentre o total de acórdãos não penais estudados, identificamos acórdãos cujas decisões foram embasadas com fundamentos legais e aquelas que não receberam esse fundamento expressamente. Tabela 10 Distribuição de acórdãos não penais de acordo com a fundamentação legal em números absolutos - Brasil 2005-2007

Fonte: Superior Tribunal de Justiça e Direito GV.

Em um segundo momento, a fim de identificarmos os dispositivos legais mais citados nos votos, computamos as menções feitas pelos Ministros a artigo de lei190.   O numero total é superior ao numero de acórdãos pois alguns acórdãos, por trazer mais de um dispositivo legal como fundamento, geraram mais de uma entrada. 190

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Ao colher esse dado, não diferenciamos os casos em que tal dispositivo tenha sido decisivo para a construção do resultado da decisão do recurso daqueles em que ele foi utilizado incidentalmente. Além disso, os resultados apresentados em relação aos dispositivos utilizados nas decisões não levam em consideração a possível combinação feita entre os dispositivos legais, mas apenas o número de ocorrências de determinado dispositivo de acordo com a área em estudo. Na tabela abaixo, agrupamos os principais dispositivos citados por matéria tratada. Tabela 11 Distribuição de acórdãos não penais de acordo com os dispositivos utilizados na fundamentação legal da decisão - Brasil 2005-2007

Fonte: Superior Tribunal de Justiça e Direito GV. * Cumpre esclarecer que para a construção dessa tabela consideramos cada dispositivo legal utilizado nos acórdãos como uma entrada. Isso quer dizer que as decisões que continham mais de um dispositivo legal na sua fundamentação foram contabilizadas tantas vezes quantos foram os dispositivos utilizados pelos Ministros para fundamentarem as suas decisões. 132

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2.4 RESULTADO E POSIÇÃO DO RÉU NA EMPRESA No total de acórdãos não penais analisados, identificamos, de acordo com a tabela abaixo, as posições ocupadas pelo réu na empresa e a sua possível responsabilização: Tabela 12 Distribuição de acórdãos não penais de acordo com a conseqüência do tipo de decisão e a posição do réu em números absolutos - Brasil 2005-2007

Fonte: Superior Tribunal de Justiça e Direito GV.

3. RESPONSABILIDADE PENAL DOS ADMINISTRADORES Apresentamos neste item os dados referentes apenas aos acórdãos que tratavam de matéria penal, ou seja, nosso conjunto aqui é composto pelos 46 acórdãos do STJ e 6 do STF. 3.1 TIPO DE DECISÃO Distinguimos decisões do tipo “prosseguimento”, que tratam sobre o prosseguimento ou trancamento da persecução penal quando ainda estão em curso; e decisões do tipo “imputação”, que decidem sobre a imputação ou não de responsabilidade penal a um determinado autor (decisões que condenam ou absolvem). A maioria das decisões analisadas versa sobre o prosseguimento da ação. Apenas seis decisões têm como resultado a absolvição ou condenação do réu. 133

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Tabela 13 Distribuição de acórdãos penais por tipo de decisão e instâncias Brasil 2005-2007

Fonte: Superior Tribunal de Justiça, Supremo Tribunal Federal e Direito GV. A soma do número total de acórdãos nessa tabela não coincide com o numero de casos, pois o RMS 16.696 foi considerado duas vezes. A decisão neste acórdão excluiu um dos réus do pólo passivo da ação penal, absolvendo-o (decisão sobre imputação) e determinou o trancamento da ação penal em relação ao outro réu (decisão sobre prosseguimento). O segundo réu, neste caso de responsabilidade ambiental, é uma pessoa jurídica. 1

3.2 ESPÉCIE DE RECURSO OU AÇÃO A tabela seguinte revela que, tanto o STJ quanto o STF são chamados a decidir principalmente em Habeas Corpus e em Pedidos de Extensão. Apenas no STJ encontramos decisões em ações penais e em Recursos Especiais, enquanto no STF as decisões referem-se sempre a Habeas Corpus e Recursos Ordinários e Habeas Corpus. Tabela 14 Distribuição de acórdãos penais por tipo de recurso e instâncias Brasil 2005-2007

Fonte: Superior Tribunal de Justiça, Supremo Tribunal Federal e Direito GV. 134

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3.3 MOMENTO DA INTERPOSIÇÃO DO RECURSO A pesquisa distinguiu o momento processual de interposição do recurso, considerando-se quatro momentos distintos, a saber: se este foi interposto antes do recebimento da denúncia (isto é, antes do início da ação penal) (I), no curso da ação penal (II), entre sentença e decisão de 2ª instância (III) ou após decisão de 2ª instância (IV). A grande maioria das decisões analisadas foi interposta no curso da ação penal, referindo-se tanto os casos em que o acusado pede trancamento da ação penal, como os casos em que esta foi trancada por decisão de 1ª ou 2ª instância não transitada em julgado. Tabela 15 Distribuição de acórdãos penais por momento de interposição do recurso e instâncias - Brasil 2005-2007

Fonte: Superior Tribunal de Justiça, Supremo Tribunal Federal e Direito GV.

3.4 TIPO DE CRIME No tocante à incidência dos tipos penais previstos, para fins de alimentação do nosso banco de dados, consideramos “tipo penal” a norma incriminadora atribuída ao caso concreto pela acusação, na denúncia. Importante ressaltar que, desta forma, ela pode não coincidir com a atribuição feita pelos Tribunais no momento da decisão de mérito nas diferentes instâncias. Dentre o universo de acórdãos analisados na área penal encontramos uma grande diversidade de tipos penais, sendo os seguintes os mais recorrentes. O artigo 1º da Lei 8.137/90 (Lei de Crimes contra a Ordem Tributária, Econômica e contra as Relações de Consumo) foi o tipo penal mais freqüente, objeto de 15 acórdãos analisados. Em segundo lugar, veio o artigo 168-A do Código Penal, que foi tema de 9 das decisões191. Além desses, o artigo 54 da Lei 9.605/98 (Lei de Crimes Ambientais), o art. 4º da Lei 7.492/86 (Lei do Colarinho Branco) e o   É preciso dizer que cada tipo penal foi contado individualmente, mesmo quando apareceram em concurso com outros tipos penais no mesmo acórdão. 191

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artigo 304 do Código Penal repetiram-se em mais de uma decisão. Residualmente apareceram também crimes tipificados pelo Código de Defesa do Consumidor, pela Lei 1.521/51 (Lei dos Crimes contra a Economia Popular), pela Lei 9.613/98 (Lei dos Crimes de Lavagem de Dinheiro), entre outros do Código Penal. Pudemos observar, no STJ, um relativo equilíbrio entre decisões que versavam sobre um único tipo penal e aquelas que correspondiam a crimes em concurso. No STF, dentre os seis acórdãos, cinco apresentaram tipificação em concurso. Tabela 16 Distribuição de acórdãos penais por tipificação única ou em concurso Brasil 2005-2007

Fonte: Superior Tribunal de Justiça, Supremo Tribunal Federal e Direito GV.

Dois exemplos freqüentes de concurso são: o concurso entre incisos do art. 1º da Lei 8.137/90 (Lei de Crimes contra a Ordem Tributária, Econômica e contra as Relações de Consumo) e o concurso entre o art. 333, parágrafo único, do CP, o art. 4º da Lei 7.492/86 (Crimes contra o Sistema Financeiro) e o art. 1º, inciso V, § 4º da Lei 9.613/98 (Lei dos Crimes de Lavagem de Dinheiro). 3.5 FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO Como vimos na Tabela 5, há 31 decisões positivas em relação à responsabilização ou à possibilidade de responsabilização e 24 decisões negativas em relação à responsabilização ou continuidade da ação penal. Analisamos o inteiro teor dessas decisões, contabilizando, para cada acórdão, os argumentos apresentados pelos Ministros. Nos casos positivos em relação à continuidade da ação penal, ou seja, naqueles em que foi determinado o seu prosseguimento, e naqueles positivos em relação à imputação, ou seja, em que de fato houve a responsabilização do réu, classificamos os fundamentos das decisões em: “há indícios de autoria”, “há prova de autoria”, “há prova de materialidade” e “imputação por cargo”, que explicamos adiante192.   Importante frisar que os exemplos apresentados durante a exposição dos critérios foram escolhidos sem a preocupação com sua representatividade. Apenas as decisões em que houve imputação por cargo serão integralmente apresentadas. 192

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Nos casos negativos em relação à persecução da ação penal, ou seja, naqueles em que houve o trancamento da mesma, e naqueles negativos em relação à imputação, ou seja, em que se determinou a absolvição do paciente, classificamos os argumentos em “falta de prova para materialidade”, “falta de prova para autoria”, “vedação de análise probatória na via eleita”, “extinção da punibilidade”, ausência de individualização da conduta” e “questões processuais”. Tabela 17 Distribuição de acórdãos penais pela fundamentação da decisão em casos de prosseguimento e de imputação em que houve responsabilização ou não e instâncias - Brasil 2005-2007

Fonte: Superior Tribunal de Justiça, Supremo Tribunal Federal e Direito GV. A soma do número total de acórdãos nessa tabela é superior a 100% pois mais de um argumento foi utilizado na fundamentação elaborada pelos magistrados nas decisões, de forma que, nesses casos, houve mais de uma entrada na tabela referente ao mesmo acórdão. 1

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A discussão sobre autoria é a mais freqüente nas decisões analisadas. No geral, vemos a predominância de decisões que determinam o não prosseguimento da ação penal com base em falta de prova para autoria (18 no STJ e 4 no STF) ou ausência de individualização da conduta (17 no STJ e 3 no STF), questões que invariavelmente encontram-se ligadas. Decisões sobre o prosseguimento ou não de ações penais analisaram essa questão sob o enfoque da justa causa para processar, entendida como indícios de autoria acompanhados de comprovada materialidade do crime. Nesse âmbito, a questão da prova da materialidade não recebeu tantas menções quanto as discussões referentes aos indícios ou provas de autoria, mas também foi destacada em algumas decisões de forma a desconstituir a usualmente alegada inépcia da denúncia. Classificamos sob a rubrica “imputação por cargo” os argumentos que remetem a suposições ou expectativas de deveres a partir do cargo ocupado pelo acusado. Citem-se os seguintes exemplos da articulação desse raciocínio: 1) no HC 33.459/PA, a relatora Ministra Laurita Vaz (STJ) considera que “é razoável supor que as operações ilícitas eram de conhecimento daquele que é justamente o principal responsável pelas atividades desenvolvidas pela Empresa, o diretorpresidente”; 2) no HC 50.654/SC, o Ministro Paulo Medina (STJ) afirma que “se, por um lado, é certo que a condição de dirigente não basta, por si, para a afirmação da responsabilidade penal, por outro lado, não é menos certo que essa qualidade de dirigente empresarial, que confere aos sujeitos uma especial posição em relação aos processos decisórios e às ações executadas em nome da empresa, aliada a outras circunstâncias, é, quando menos, indicativa da responsabilidade penal”; 3) no HC 85.549-1/SP de relatoria do Ministro Sepúlveda Pertence (STF) é determinado o prosseguimento da ação penal, confirmada a gestão dos pacientes na empresa (S.A.) à época dos fatos, uma vez que “a condição de gestores da empresa no período da prática dos fatos delituosos basta para fundar a imputação inicial a eles feita de co-responsáveis pelas infrações”. Com efeito, decisões que imputassem finalmente responsabilidade penal com base em argumentos dessa ordem enfrentariam maiores dificuldades de serem defendidas à luz do princípio da culpa e das regras de aplicação da lei penal. Nesse sentido, um ponto importante da argumentação dos Ministros que assim decidiram foi justamente o fato de se tratar de decisão provisória sobre processar ou não o acusado. O Ministro Sepúlveda Pertence, por exemplo, ressalta que “não se trata de fazer concessão à responsabilidade penal objetiva nos crimes societários: cuida-se apenas, de admitir que, (...) a circunstância de terem sido os pacientes denunciados na condição de dirigentes da empresa, aos quais cabe, a princípio, tomar as decisões a ela pertinentes, ‘há de ser tida ao menos como indício veemente de autoria’”. A Ministra Laurita Vaz, por sua vez, faz notar em 138

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seu voto que o paciente terá a oportunidade de demonstrar a ausência de sua responsabilidade no curso da instrução criminal. No mesmo sentido, Ministro Paulo Medina aponta que o exame probatório adequado poderá ser feito por meio processual próprio que não o habeas corpus. Ainda que a decisão sobre a justa causa exija apenas a existência de indícios de autoria, utilizar presunções a partir da posição do réu na empresa representa flexibilização das exigências da peça acusatória. Não por acaso, a Ministra acima citada refere-se ao REsp 285.188/ES (rel. Min. Félix Fischer, DJ de 27/08/2001) em que se vê desenvolvido o argumento de que por se tratar de “crime societário”, não haveria necessidade de descrever pormenorizadamente a autuação de cada agente. Nesse sentido, o Ministro Sepúlveda destacou, em seu voto no HC 85.579 (rel. Min. Gilmar Mendes, DJ 24/06/2008), seguindo o que segundo ele é a linha da jurisprudência dominante do Tribunal193 que “tratando-se de crimes societários em que não se verifica de plano, que ‘as responsabilidades de cada um dos sócios-gerentes são diferenciadas, em razão do próprio contrato social relativo ao registro da pessoa jurídica envolvida’, não há inépcia da denúncia pela ausência de indicação individualizada da conduta de cada indiciado, sendo suficiente a de que ‘os acusados sejam de algum modo responsáveis pela condução da sociedade sob a qual foram supostamente praticados os delitos’”. Por estarem freqüentemente relacionados, a discussão sobre existência ou não dos requisitos da justa causa para acusar encontra-se muitas vezes combinada com a discussão sobre a inépcia da denúncia por falta de individualização da conduta. A ausência de individualização da conduta na denúncia por diversas vezes ensejou o trancamento da ação penal. O Ministro Gilson Dipp, relator de mais da metade dos casos de matéria penal analisados no STJ, determinou o trancamento de 14 casos194 por falta de individualização da conduta utilizandose da seguinte justificativa: “Não obstante o entendimento desta Corte no sentido de que, nos crimes societários, em que a autoria nem sempre se mostra claramente comprovada, a fumaça do bom direito deve ser abrandada, dentro do contexto fático que dispõe o Ministério Público (ou Parquet) no limiar da ação penal; no caso dos autos, assiste razão o(s) impetrante(s). Embora não se exija, nas hipóteses de crimes societários, a descrição pormenorizada da conduta de cada agente, isso não significa que o órgão acusatório possa deixar de estabelecer qualquer   Cf. HHCC 84.663, 2ª T., 23.11.04, Barbosa, DJ 18.02.05; 82.242, 2ª T., 17/9/02, Gilmar; DJ 11/10/02; 73.903, Rezek, DJ de 25.4.97; HC 74.791, Ilmar, DJ de 09.5.97; RHC 65.369, Moreira, DJ de 27.10.87; RHC 59.857, Firmino Paz, DJ de 10.12.82. 194  RHC 17.872/CE; HC 49.554/RS; HC 46.654/AM; AP 404/AC; HC 43.210/SP; RHC 19.764/ PR; RHC 17.437/SP; HC 43.210/SP; HC 54.412/PR; HC 56.058/SP; HC 56.955/SP; HC 57.213/SP; REsp 838.846/MT; REsp 884.414/CE. 193

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vínculo entre o denunciado e a empreitada criminosa a ele imputada. O simples fato de ser sócio ou administrador de empresa não autoriza a instauração de processo criminal por crimes praticados no âmbito da sociedade, se não restar comprovado, ainda que com elementos a serem aprofundados no decorrer da ação penal, a mínima relação de causa e efeito entre as imputações e a condição de dirigente da empresa, sob pena de se reconhecer a responsabilidade penal objetiva. A inexistência absoluta de elementos hábeis a descrever a relação entre os fatos delituosos e a autoria ofende o princípio constitucional da ampla defesa, tornando inepta a denúncia”. No RHC 85.658/ES, o Ministro Cezar Peluso (STF) entendeu que a inicial não descreveu a conduta individualizada de nenhum dos acusados e incluiu o paciente membro do Conselho de Administração de S.A. sem menção direta ou indireta a eventual conduta que teria praticado. Destaca que a acusação não pode apenas servir-se de “investigações que têm por base outro modelo de responsabilidade, menos exigente que o penal, para sustentar a viabilidade da denúncia, com abstração da necessidade de reunir elementos, ainda quando crítico-lógicos, que bastem a inculcar responsabilidade subjetiva e pessoal de cada sócio, administrador ou empregado da empresa”. Destaca ainda que “a necessidade da descrição pormenorizada das condutas de cada um dos denunciados interfere, ao depois, com a distribuição dos ônus da prova no processo, pois sua falta, subvertendo as regras decisórias (art. 156 do CPP) acabaria por exigir ao réu a prova de que não participou dos fatos”. Assim, o Ministro determina a nulidade absoluta da decisão que recebeu a denúncia inepta, concedendo habeas corpus de ofício para decretar nulo o processo a partir da denúncia, inclusive estendendo a ordem aos demais co-réus. No HC 85.948-8/PA, o Ministro Carlos Britto (STF) destacou que, pela dificuldade empírica de se pormenorizar condutas que, em geral, são provenientes de decisões internas dos gestores de cada empresa, nos crimes societários tem se aceitado denúncias genéricas possibilitando que o processo penal seja ao menos iniciado, garantindo-se que ao longo da instrução fique clara a participação de cada acusado na suposta prática da infração penal. Porém, o Ministro ressalta que tal orientação jurisprudencial vem sendo abrandada para exigir que a denúncia contenha uma descrição mínima da participação do acusado, de forma que mesmo nos crimes societários não haveria dispensa dessa descrição, ainda que mínima, a fim de garantir-se o exercício da ampla defesa e do contraditório. No caso em análise, o Ministro destaca que a denúncia não aponta sequer a posição jurídica do denunciado no organograma da empresa e menos ainda que tipo de vínculo operacional teria ele com os fatos tidos por delituosos. Nos debates, os Ministros discutem a inépcia da denúncia por não descrever minimamente o poder de gerência dos denunciados e destacam a falta de tecnicidade do Ministério Público na utilização da nomenclatura de direito societário, uma vez que diretor-presidente 140

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existe em S.A., enquanto em limitada existem sócios cotistas ou sócios gerentes. Assim, concluem pelo trancamento da ação penal. III. CONCLUSÕES O presente levantamento buscou fazer um retrato das questões sobre responsabilidade de administradores que chegaram aos Tribunais Superiores no período de 2005 a 2007. Em razão dos limites do seu recorte, não se trata de um diagnóstico sobre o tratamento dessa questão pelo Judiciário brasileiro, o que demandaria que se estudasse um período mais amplo, bem como outras instâncias judiciais, incluindo também a justiça do trabalho. Entretanto, o retrato que obtivemos já é capaz de apontar uma série de questões que importam à compreensão do tema, especialmente sobre o tipo de caso chega até o STJ e o STF e os temas de discussão mais relevantes. No que diz respeito à matéria, a pesquisa demonstrou que as discussões envolvendo direito tributário e previdenciário ocupam a imensa maioria dos casos julgados pelos tribunais superiores sobre o tema da responsabilidade individual dos administradores. Das 250 decisões analisadas, 206 tratam dessa matéria. Também no conjunto de acórdãos da área penal o maior número de casos versou sobre matéria tributária/previdenciária, totalizando 27 casos de 52. O artigo 1º da Lei 8.137/90 (Lei de Crimes contra a Ordem Tributária, Econômica e contra as Relações de Consumo) foi o tipo penal mais freqüente, objeto de 15 acórdãos analisados. É seguido pelo artigo 168-A do Código Penal (apropriação indébita previdenciária), que foi objeto de 9 decisões. Com relação ao tipo societário envolvido na discussão dos casos, vimos que das 250 decisões analisadas, 153 discutem responsabilidade dos administradores em sociedades limitadas e apenas 27 em sociedades por ações. Esse dado, contudo, deve ser analisado com parcimônia. É usual ouvir de agentes de mercado e advogados que é melhor constituir sociedade por ações, pois é mais difícil obter as informações de quem é administrador e quem são os acionistas, uma vez que tais informações não constam no estatuto social, mas em atas e livros societários. A superioridade de casos envolvendo sociedades limitadas não necessariamente confirma esse tipo de afirmação. É preciso considerar que no Brasil o número de sociedades limitadas é muito superior ao de sociedades anônimas195 e tal configuração tem certamente algum impacto nos números apresentados. Ainda sobre este ponto, em 62 dos casos analisados não se consegue extrair informação sobre qual o tipo societário é objeto de julgamento. Ou seja, essa   Conforme estatística do Departamento Nacional de Registro e Comércio sobre a constituição de empresas por tipo jurídico de 1985 a 2005, havia 4.3000.257 sociedades limitadas e apenas 20.080 sociedades por ações. Informação disponível em www.dnrc.gov.br. 195

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informação aparentemente não foi determinante na construção do argumento e da decisão do julgador. Este fato, por si só, não seria problemático, uma vez que o tipo societário escolhido pelo empresário não determina o regime de responsabilidade dos seus administradores perante terceiros, salvo em conflito referente às relações internas, que na nossa amostra apareceu apenas uma única vez. Situação semelhante refere-se à falta de precisão na análise da posição do réu na empresa. Constatamos que os Ministros utilizam inúmeras denominações para designar as posições dentro da empresa e o fazem de forma pouco precisa. Muitas vezes utilizam de modo intercambiável algumas denominações que a rigor referem-se a diferentes papéis sociais, com conjuntos distintos de obrigações e deveres. Considerando o total de recursos não penais analisados, em 103 acórdãos, ao comparar a ementa e o interior dos votos, encontramos diversas expressões para designar a mesma pessoa ou função. As expressões que mais freqüentemente apareceram como sinônimas foram “sócio” e “sóciogerente”. Outras expressões - tais como diretores, gerentes ou representantes da pessoa jurídica – são também utilizadas como equivalentes da figura do sócio.  De qualquer modo, verificou-se que a cumulação da posição de sócio e administrador é a figura mais presente nas decisões, isto é, em 167 dos 250. Em apenas 36 decisões figura apenas o administrador. Chamou atenção também o fato de que a expressão mais freqüente seja “sócio-gerente” (169 nos casos não penais e 11 nos penais do STJ). Esta denominação era utilizada na vigência da legislação antiga das sociedades limitadas (Decreto 3.708/19), que foi modificada para administrador pelo Código Civil, e da expressão gerente do art. 135 do CTN, uma vez que casos tributários representam grande parte de casos desta pesquisa. Como explicamos, a pesquisa utilizou o conceito “responsabilização” para referir-se à declaração de responsabilidade individual feita pelo órgão jurisdicional - o que não necessariamente indica que o caso tenha resultado, efetivamente, impacto no patrimônio do administrador. A fim de lidar com casos em distintos estágios do desenvolvimento do processo, reunimos decisões finais sobre imputar ou não responsabilidade e decisões que determinavam o prosseguimento ou extinção precoce do processo. Trabalhamos, dessa forma, com dois conjuntos de decisões: um de decisões que determinavam o prosseguimento do processo ou atribuíam responsabilidade individual ao sócio e outro conjunto contendo decisões que determinavam a extinção precoce do caso ou não responsabilizavam individualmente o administrador. No geral, foi mais comum encontrar decisões contrárias à responsabilização do administrador ou à continuidade do processo contra ele – foram 154 decisões do primeiro tipo, contra 99 decisões do segundo. Essa 142

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relação se inverte no conjunto de casos penais, embora a diferença entre os dois resultados, nesse campo, seja muito menor: 24 casos foram no sentido negativo em relação à responsabilização ou à possibilidade de responsabilização e 31 foram em direção à responsabilização ou possibilidade de responsabilização. As distinções existentes entre os papéis e funções de sócio (aquele que aporta capital de risco na empresa e não necessariamente administra o mesmo) e administrador (responsável pela gestão do patrimônio empresarial) não apareceram como determinantes para a decisão sobre responsabilidade. A pesquisa constatou que os julgados, em especial nos casos não penais em que isso seria mais relevante (já que na esfera penal se trata de responsabilidade por ação individualizada), não tiveram a preocupação de analisar as competências e atribuições internas da organização societária. Outro dado importante refere-se à fundamentação das decisões para atribuir ou não responsabilidade aos administradores. O argumento que aparece com maior freqüência para a responsabilização dos administradores é a dissolução irregular da sociedade, lembrando que desde em 2010 está na Súmula STJ 435. Outro fundamento relevante é a presunção de legitimidade da CDA, indicando que a via administrativa é bastante importante para determinar a responsabilização perante o Poder Judiciário. Para a não atribuição de responsabilidade aos administradores, o argumento com mais freqüência apontado pelos julgadores como motivo da decisão é o de que o simples não pagamento do tributo não implica em direta responsabilidade dos gestores e sócios da empresa. Outro ponto que chama a atenção é que a discussão da posição do administrador da empresa não parece ser critério determinante para fins de atribuição de responsabilidade aos agentes empresariais perante terceiros, em especial, perante o fisco. A pesquisa distinguiu situações em que os Ministros votaram em um mesmo sentido das decisões em que houve divergência manifestada por meio da apresentação de voto vencido. Das 236 decisões analisadas, 250 se deu por unanimidade. Na área penal, repete-se a situação de que a grande maioria dos casos chega ao STJ e ao STF antes de terem atingido uma decisão de mérito em primeira instância. São interpostos ainda no curso da ação penal (abrangendo tanto os casos em que o acusado pede trancamento da ação penal, como os casos em que esta foi trancada por decisão de 1ª ou 2ª instância não transitada em julgado). Os meios de impugnação mais freqüentes são Habeas Corpus e Recursos Ordinários em Habeas Corpus. Observamos a partir da análise pormenorizada das decisões que a questão da definição da autoria e da individualização da conduta é central nesse campo, especialmente nas discussões acerca da continuidade ou extinção dos casos Diagnóstico comum a sistemas que adotam o princípio da culpa individual é o de que tais regras de individualização têm enfrentado 143

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obstáculos para serem aplicadas no âmbito da empresa. Tal fato decorre da dificuldade de se identificar agentes e individualizar seu conhecimento e sua contribuição para atividades ou condutas ilícitas realizadas no âmbito de organizações complexas. Para ilustrar como os Tribunais estão atualmente lidando com essa questão da imputação individual em empresas são úteis os dados obtidos nesta pesquisa. Do total de 52 acórdãos em matéria penal analisados, a maioria das decisões em matéria penal julgadas pelos STJ e STF versa sobre o prosseguimento ou trancamento da ação. Apenas seis decisões têm como resultado a absolvição ou condenação do réu. Vemos a predominância de decisões que determinam o não prosseguimento da ação penal com base em falta de prova para autoria (18 no STJ e 4 no STF) ou ausência de individualização da conduta (17 no STJ e 3 no STF). Os dados obtidos revelam que, no que diz respeito ao desfecho de casos envolvendo imputação de crimes no âmbito da empresa, há um número significativo de casos que são precocemente extintos por não apresentarem os requisitos da individualização da acusação. Ainda que esse levantamento diga respeito apenas aos casos que chegaram aos Tribunais Superiores, ele traz um forte indicativo de que esse problema pode ser encontrado nas instâncias inferiores. Esse cenário é importante de ser diagnosticado pois está na base de uma série de tentativas – no campo dogmático e no campo legislativo – de contornar o problema da individualização da responsabilidade nos crimes empresariais. A imputação de responsabilidade individual a pessoas jurídicas, por exemplo, coloca-se no contexto dessa discussão. Mas também se colocam como alternativas outras soluções que, mantendo a imputação individual, flexibilizam alguns de seus requisitos. Dentre elas, podemos mencionar como as mais relevantes a reformulação dogmática do conceito de autoria, a fim de abarcar também aqueles que não tomaram parte na execução da conduta, mas tinham o que se denomina “domínio do fato”, e a criação de mais tipos omissivos – em que o empresário ou aqueles que ocupam cargos mais elevados na estrutura empresarial podem ser responsabilizados pela conduta ativa de um funcionário, diante da qual ele teria o dever de atuar para evitar. Em suma, o diagnóstico que apresentamos aqui está na base das discussões contemporâneas no campo da dogmática penal. Por fim, vale observar a necessidade da realização de mais pesquisas empíricas para o conhecimento da real extensão do regime de responsabilidade dos administradores de sociedades empresariais. Apenas a continuidade da exploração empírica desse campo é que permitirá dimensionar, de fato, se e como os regimes de responsabilidade podem interferir na atividade empresarial e seu possível papel na criação de estímulos para organizações transparentes, a prevenção de fraudes e o aperfeiçoamento de mercados. 144

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A CRISE DA LIMITAÇÃO DA RESPONSABILIDADE NAS SOCIEDADES EMPRESÁRIAS LIMITADAS SOB O ENFOQUE DA FIGURA DO ADMINISTRADOR THE CRISIS OF THE LIMITATION OF LIABILITY IN LIMITED BUSINESS COMPANIES FIGURE IN THE FOCUS OF THE ADMINISTRATOR Sabrina Tôrres Lage Peixoto de Melo196* RESUMO A teoria da desconsideração da personalidade jurídica tem sido aplicada nos dias atuais com a finalidade de imputação de responsabilidade aos sócios, de forma aleatória e injustificada, com critérios subjetivos que tornam difícil a prova demonstrando uma pretensa relação causal entre personalidade jurídica e limitação da responsabilidade. O que se tem observado, na prática, é uma verdadeira imputação automática de responsabilidade aos sócios das sociedades empresárias limitadas, mesmo que haja patrimônio em nome da pessoa jurídica. Essa realidade pode ser facilmente comprovada na esfera tributária onde o administrador tem sido alvo constante de solidariedade com as pessoas jurídicas, se equiparando ao principal devedor, tendo até mesmo seu nome inscrito em dívida ativa por dívidas da pessoa jurídica, distorcendo, por completo, todas as normas jurídicas legais previstas no ordenamento jurídico pátrio. Por esta razão, mister se faz um estudo mais diligente no sentido de explicitar a responsabilidade das sociedades e dos administradores, de forma e modo a entender a limitação, para, de fato, aplicá-la com base em critérios objetivos condizentes com a norma jurídica. O presente artigo tem o objetivo de traçar alguns aspectos gerais sobre a limitação de responsabilidade, suas causas modernas, demonstrando a crise do instituto em análise nas sociedades empresárias limitadas, e, de forma audaciosa, tem o propósito de traçar um paralelo entre a figura do administrador na sociedade empresária limitada e na sociedade por ações sob a forma fechada, mostrando como a limitação de responsabilidade da sociedade empresária limitada tem colocado seu administrador em condição mais frágil do que em uma sociedade empresária por ações sob a forma fechada. Para a consecução dos objetivos propostos serão utilizadas algumas premissas da análise econômica   Doutoranda em Direito Privado pela PUC Minas. Mestre em Direito de Empresas pela Faculdade de Direito Milton Campos. Especialista em Direito Empresarial pelo CAD. Graduada em Direito pela FUMEC. Advogada da Pedrosa Orsini Auditores Independentes. Professora de Direito Empresarial da Faculdade de Direito Promove e da Faculdade de Direito Pitágoras. Coordenadora licenciada da Faculdade de Direito Promove MG. 196 *

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do direito para se realizar o silogismo e obter a conclusão jurídica de acordo com os parâmetros econômicos. Para tanto, serão consideradas, nos termos dos autores Jairo Saddi e Armando Castellar as premissas de que, nenhum ser humano está disposto a aplicar esforços senão, para obter o melhor para si, utilizando-se da maximização de seus interesses. Ainda, se partirá do princípio de que, todo ser humano procura analisar se existem incentivos ou não para a prática de determinadas condutas, e quais as possíveis sanções existentes para aquela prática, para saber se a conduta compensa ou não, verificando os custos de transação e se as regras legais funcionam como incentivos ou formas de inibição de condutas nas decisões racionais dos indivíduos. Vale ressaltar que a análise econômica será aqui utilizada tão somente como um instrumental útil para casos que aceitam a lógica da maximização sem o propósito de demonstrar soluções mais eficientes do que as já existentes. Com isso, o presente artigo procurará, de forma singela, contribuir para a demonstração de mais um ponto frágil das sociedades empresárias limitadas na atualidade comparando-o á figura semelhante em outro tipo societário que também tem limitação de responsabilidade, qual seja, a sociedade por ações, sob a forma fechada. Palavras-Chave: Sociedade limitada e riscos. Sociedade anônima fechada. Responsabilização dos administradores nas sociedades empresárias limitadas. Responsabilidade dos administradores nas sociedades empresárias por ações sob a forma fechada. Análise econômica de tipos societários. ABSTRACT The disregard doctrine has been applied actually for the purpose of attributing responsibility to the members at random and unjustified, with subjective criterion that make it difficult to evidence showing a causal link between alleged legal personality and limited liability. What has been observed in practice, is a true automatic imputation of responsibility to the shareholders of business companies limited, even if there are assets on behalf of the corporation. This reality can be easily proven in the field where the tax administrator has been subject to constant solidarity with the legal, equating it to the principal debtor, even having his name inscribed in outstanding debt for debt of the corporation, distorting, completely, all the legal standards laid down in statutory law patriotism. For this reason, is necessary to make a more diligent study in order to clarify the responsibility of companies and directors, and so in order to understand the limitation, to actually apply it based on objective criterion, consistent with the rule of law. This article aims to outline some general aspects about the limitation of liability, causes modern, demonstrating the crisis of the institute in question in companies limited, 146

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and so bold, is meant to draw a parallel between the figure of administrator in the limited liability company and closed corporation, showing how the limitation of liability of the limited liability company has put its director in more fragile condition than in a business company by shares under the closed form. To achieve the proposed objectives will be used some assumptions of economic analysis of law to perform the syllogism and get the legal conclusion in accordance with the economic parameters. So it must be considered in terms of the authors and Armando Castelar Jairo Saddi assumptions that no human being is willing to apply effort, except to get the best for you, using the maximization of their interests. Still, they shall be presumed that every human being seeks to examine whether or not there are incentives for the practice of certain behaviors, and what possible sanctions exist for this practice, as to whether the conduct pays off or not by checking the transaction costs and legal rules act as incentives or forms of inhibition of behavior in rational decisions of individuals. It is worth noting that economic analysis will be used here only as an instrument useful for cases that they accept the logic of maximization without the purpose of demonstrating solutions more efficient than existing ones. Therefore, this article will seek, in simple form, contribute to the demonstration of another weak point of business companies limited at present by comparing the figure will be similar in the other type of company that also has limited liability, which is the corporate. Keywords: Company limited and risks. Private corporation. Accountability of managers in commercial companies limited. Responsibility of managers in corporate. Economic analysis of corporate types. 1. INTRODUÇÃO A hipótese metodológica que motivou a redação do presente artigo se encontra basicamente aliada a um problema de fácil percepção do contexto empresarial moderno, qual seja, a verdadeira crise da limitação da responsabilidade dos sócios nas chamadas sociedades empresárias limitadas. Há muito tempo tenho me questionado acerca deste tipo empresarial tão conhecido, tão utilizado e tão procurado por aqueles que desejam empresariar: a sociedade empresária limitada. Em até que ponto ela hoje cumpre com as funções para as quais foi criada? Qual a segurança jurídica pode hoje ser oferecida àqueles que me questionam sobre dita forma societária, quando, na prática, as questões contemporâneas apontam exatamente para um resultado distinto do que o proposto pela lei? Existiria outro tipo societário que, sob dito aspecto, poderia viabilizar maior segurança jurídica? 147

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Ademais, com a aprovação da limitação da responsabilidade do empresário unipessoal, volto a questionar: qual a razão que motivará os sujeitos que desejam empresariar na atualidade, a optar pelas Sociedades Empresárias Limitadas, se, de um lado, os mesmos podem ser exercer a atividade empresarial de forma individual, limitando seus riscos, através da EIRELI – Empresa Individual de Responsabilidade Limitada, e, se, de outro lado, podem eles optar por um tipo societário que melhor os resguarde, qual seja, a Sociedade por Ações, prevista na Lei 6404/76? Ou seja, por que correr o risco de ter o patrimônio pessoal simplesmente “invadido”, em verdadeira afronta a razão de ser da personalidade jurídica, se existem outras hipóteses jurídicas que podem vir a ser mais viáveis? Tal ponderação pode parecer assustadora em um primeiro momento, porém, nada mais é do que um retrato da atual realidade empresarial brasileira. Quem nunca ouviu falar de alguém que teve um bloqueio “BACENJUD” em sua conta corrente, mesmo após já ter saído de uma sociedade empresária? E quantos não são aqueles que simplesmente descobrem que o CPF está atrelado á uma sociedade da qual já não faz parte há mais de 5 anos? E ainda, para piorar ainda mais a situação, quem nunca escutou um comentário sobre as verdadeiras vítimas da esfera tributária que simplesmente parece não ter limites para o seu poder de tributar os administradores das sociedades? Em virtude da frequência que se tem observado a invasão patrimonial pessoal dos sócios de sociedades empresárias limitadas, e ainda, principalmente, com relação ás pessoas que exercem a administração da pessoa jurídica, é que se fez necessário o presente estudo. As questões supra mencionadas são suficientes para que se escreva um livro inteiro, porém, por hora, o foco será a atual crise da limitação da responsabilidade dos administradores, traçando um pequeno paralelo entre a figura dos mesmos nas sociedades empresárias limitadas, e nas sociedades por ações sob a forma fechada. As considerações finais são de cunho estritamente pessoal e apontam para uma solução, (que na verdade ainda é fruto imaturo de minha pesquisa que apenas está no inicio), mas, registre-se de passagem, é a que me parece mais salutar até o presente momento. O presente artigo é sucinto, e não tem o objetivo de esgotar o assunto, muito antes pelo contrário. Aqui encontraremos apenas uma semente do que se pretende, para clamar a comunidade acadêmica para um debate científico extremamente necessário sobre o direito de empresas. Para tanto, no primeiro capítulo serão abordados os principais problemas observados na prática empresarial atual, os quais convenciono chamar de geradores da crise da responsabilidade empresarial atual. 148

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Em seguida, no Capítulo 2, foram feitos apontamentos sobre a atual figura do administrador das sociedades empresárias limitadas, e no Capítulo 3, dita abordagem se deu sobre a mesma figura, administrador, porém, nas chamadas Sociedades por Ações, sob a forma fechada. No Capítulo 4, foram feitos os esclarecimentos finais, os quais, com base na analise econômica do direito, convidam o leitor a uma releitura do direito empresarial moderno. 2 A CRISE DA LIMITAÇÃO DA RESPONSABILIDADE NAS SOCIEDADES EMPRESÁRIAS LIMITADAS A origem das sociedades revela as vantagens da associação entre os indivíduos, os quais, reunidos, deram origem aos primeiros tipos societários. Após o aparecimento da moeda, a economia de escambo não mais se resumia á troca de produto por produto para a satisfação de grupos, evoluindose para a economia de mercado, com a nítida visão do lucro como essencial. Assim, juntamente com a majoração dos negócios veio a necessidade de aparecimento de normas para delimitar os direitos e deveres das partes envolvidas, surgindo as corporações de mercadores ou de ofício, as quais, por intermédio de seus estatutos próprios cuidavam daquela jurisdição consular, específica para os então comerciantes, assim considerados aqueles que praticavam os atos de comércio. Os tipos societários que limitam a responsabilidade dos sócios foram essenciais para a expansão e o desenvolvimento dos empreendimentos de risco em que se baseava o comércio em geral. Com esses tipos societários, comerciantes e investidores puderam focalizar seus interesses sem o risco de perderem tudo o que tinham. Certos empreendimentos necessitavam de uma grande quantidade de recursos, os quais só poderiam ser levantados mediante uma grande quantidade de investidores, o que resultou no crescimento e fortalecimento das sociedades anônimas. Posteriormente, se viu a necessidade de um tipo societário que atendesse ao pequeno e médio investidor. Dessa necessidade surgiram as chamadas sociedades de responsabilidade limitada que, em função da simplicidade em relação a sua constituição e funcionamento, mostraram-se de grande utilidade não só para as pequenas e médias empresas, mas também para as grandes, que se aproveitam desse tipo societário para fugir das exigências de publicidade previstas na Lei nº 6.404/76. E o que se pode entender como sendo a limitação de responsabilidade de um sócio em uma sociedade? Alimitação significa para a pessoa física que queira empresariar a possibilidade de explorar a atividade econômica com limitação de prejuízos pessoais. 149

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Como mencionado, o instituto da pessoa jurídica, ou melhor dizendo, a criação de sociedades personificadas surgiu como um meio interessante de limitar os riscos das atividades econômicas. Sendo a pessoa jurídica um ente autônomo com direitos e deveres próprios que não se confundem com as pessoas dos seus sócios, essa limitação se tornou um meio de incentivo para a atividade econômica, desde que, não usada para cometer fraudes, abusos ou iniqüidades197. Entretanto, tal possibilidade acabou por permitir, de forma indireta, uma série de fraudes, eis que, várias sociedades passaram a contrair dívidas e obrigações sem patrimônio para satisfazê-las, de modo que os sócios mantinham seus lucros, ficando o prejuízo para os credores. E quem na verdade pode vir a responder por isso? A pessoa jurídica enquanto ficção jurídica torna imprescindível a intermediação de um órgão para a exteriorização da sua vontade e da sua gestão. Observe-se que não se confunde a figura do órgão da sociedade com um procurador da sociedade que representa a mesma no âmbito restrito dos poderes que lhe forem conferidos. O administrador, sendo um órgão, detém a plenitude dos poderes de administração da sociedade ressalvadas as hipóteses limitativas previstas no contrato social (BORBA, 2004, p. 61). Há quem entenda que nem mesmo as restrições contratuais têm eficácia externa, servindo apenas para a responsabilização interna. Esse órgão é o órgão administrativo da sociedade que pode ser composto por uma ou várias pessoas com competências conjuntas ou separadas, ou ainda ter um regime similar ao que ocorre nas sociedades anônimas (TOMAZETTE, 2004, p. 175). Quando o órgão age, quem age é a pessoa jurídica e não a pessoa física que eventualmente esteja assinando pela pessoa jurídica. Entretanto, não é isso que ocorrido na atualidade. Em completo desrespeito ás normas de responsabilidade civil pelos atos praticados, ou ainda, das hipóteses de desconsideração da personalidade jurídica, os administradores têm sido elencados como responsáveis por atos praticados pela pessoa jurídica, ainda que em pleno respeito aos seus respectivos deveres de gestão! Ou seja, ainda que tenham atuado em estrito cumprimento dos poderes que lhes foram auferidos pelo contrato social ou documento apartado, com a moral e conduta ilibada de todo homem probo, fato é que, estas figuras hoje em dia, têm sido alvos de constantes imputações de responsabilidade solidária,   Vale ressaltar que a limitação da responsabilidade decorre da natureza creditória dos direitos dos sócios sobre os resultados da empresa, e não da atribuição de personalidade jurídica. Neste sentido, Warde Júnior (2007). 197

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sendo considerados verdadeiros devedores corresponsáveis, ainda que o ônus da prova seja do ente autuador. Daí o que se convencionou chamar de crise da responsabilidade limitada. Como se pode garantir a alguém que venha a ocupar o cargo de administrador de sociedade empresaria limitada, que, agindo em conformidade com a lei, seu patrimônio pessoal jamais será atingido, se as respostas do Poder Judiciário são exatamente inversas? É necessário deixar claro que não se está aqui querendo dizer que os aplicadores da norma a têm feito de forma errônea. Muito antes pelo contrário. Na grande maioria das vezes, uma vez comprovado que o administrador não agiu com dolo, fraude ou má-fé, abuso de poder, e, não sendo hipótese de dissolução irregular de sociedade, ao mesmo não será imputada a responsabilidade em nome da pessoa jurídica. Porém, o que não se pode deixar de avaliar, é o custo de transação que está aliado á este procedimento, até que o administrador consiga provar, judicialmente, que agiu da forma correta, de acordo com o objeto social e dentro dos poderes que lhe foram conferidos. Estamos falando de execuções fiscais que demoram anos a fio, trazendo custos de contratação de advogados, custos de duração do processo, custos para o próprio Poder Judiciário, para provar o que simplesmente deveria ser óbvio, o administrador não pode ter seu patrimônio pessoal invadido de forma abrupta, por débitos da pessoa jurídica da qual faz parte! A assertiva supra se comprova na medida em que observamos o grande número de “laranjas”, nome popularmente dado àqueles que assumem a figura de gestão da sociedade “protegendo” os verdadeiros administradores que não querem colocar o patrimônio em risco. Por esta razão, e para melhor compreensão da dinâmica destes órgãos tanto na sociedade empresária limitada, quanto na sociedade por ações, passa-se a seguir, a breves explanações sobre as principais características em um e outro tipo societário, para ao final, como proposto, tentar se demonstrar qual tipo se parece o mais economicamente interessante sob a ótica da figura da administração. 2. DESENVOLVIMENTO: A FIGURA DO ADMINISTRADOR NAS SOCIEDADES EMPRESÁRIAS LIMITADAS Com o Código Civil de 2002 (CC), a sistemática da gestão da sociedade limitada foi profundamente alterada, com a possibilidade da nomeação de administradores estranhos ao quadro social facilitando a profissionalização da gestão. Entretanto, ainda assim, existe o quorum qualificado de unanimidade para nomeação de tais estranhos, e dois terços do capital social após sua integralização 151

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em função dos maiores riscos que podem advir da nomeação de um estranho.198 Observe-se que a versão primeira do art. 1061 do Código Civil que tratava sobre o tema, dispunha que o contrato social poderia admitir a nomeação de administrador não sócio. Com a Lei nº 12.375/10, é que foi extraída a necessidade de autorização contratual prévia, permanecendo os quoruns. As atividades essenciais da sociedade empresária serão conduzidas pelo órgão social com este poder de representação, diligenciando com dever de lealdade, prestação de contas, convocação de assembléia ou reunião, demonstrações e realizações contábeis, e uma série de outros atos de gestão da sociedade empresária. Nos dizeres do ilustre Dr. Eduardo Goulart Pimenta: A sociedade empresária é, como espécie de pessoa jurídica, uma entidade apta a adquirir direitos e contrair obrigações. É claro, entretanto, que a capacidade da pessoa societária é limitada, se comparada à das pessoas físicas, pois somente está habilitada a praticar atos jurídicos que, diretamente ou não, tenham relação com a atividade econômica por ela desenvolvida. (PIMENTA, 2010, p. 55). O administrador deve conduzir a sociedade empresária em estrita obediência aos fins a que se destina, sendo-lhe vedada a prática de negócios que extrapolem os limites das finalidades sociais, sob pena de invalidade e ineficácia do negócio praticado e de sua responsabilização pessoal pelo excesso de poderes, privilégios injustificados a grupos de acionistas ou de cotistas, conforme o caso; a prática de atos de mera liberalidade em detrimento da sociedade sem prévia autorização do órgão deliberativo, a contratação de financiamentos sem prévia autorização, dentre outros. Ditos atos transitam no limite da legalidade e poderão ser considerados ilícitos se o administrador transgredir a norma de boa conduta dos fins sociais, cometendo atos dolosos e culposos que impliquem na concretização de um dano em desfavor da sociedade. Nestes casos, surge, então, a possibilidade de destituição do administrador e o conseqüente dever de reparação do prejuízo causado. Essa possibilidade existe em virtude do princípio da separação da pessoa jurídica em relação ao sócio. Assim sendo, a sociedade limitada somente responde pelos compromissos assumidos pelos seus administradores, se os compromissos forem contraídos em proveito da sociedade.   Redação antiga do art. 1061 CC: “Se o contrato permitir administradores não sócios, a designação deles dependerá de aprovação da unanimidade dos sócios, enquanto o capital não estiver integralizado, e de dois terços, no mínimo, após a integralização”. Nova redação (Lei 12.375 de 30.10.2010): Art. 1061 CC: “A designação de administradores não sócios dependerá de aprovação da unanimidade dos sócios, enquanto o capital não estiver integralizado, e de dois terços, no mínimo, após a integralização”. 198

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Caso contrário, poderá o administrador responder por dívidas sociais, acaso haja com excesso no exercício de poderes de gestão (violação da lei e do contrato social), hipótese em que, responderá perante terceiros, ilimitadamente e de forma solidária com a pessoa jurídica, podendo a sociedade responsabilizar o administrador pela falta cometida. Veja-se que, para a superação da personalidade jurídica (art. 20 do CC) é mister que haja caracterização de motivos de utilização fraudulenta da sociedade, como entreposta pessoa para cobrir atos que, em verdade, aproveitam somente às pessoas físicas, que se guardam por trás da proteção e anteparo da pessoa jurídica. Assim, para aplicação da disregard doctrine é imprescindível a comprovação da fraude. Entretanto, infelizmente, não é isso que vem ocorrendo na prática. As decisões judiciais da atualidade têm aplicado a desconsideração da personalidade jurídica como regra, e não como exceção. Dita transgressão pode ser facilmente percebida se for feita uma pesquisa jurisprudencial nas áreas trabalhista e tributária. A responsabilidade dos administradores por créditos trabalhistas não tem disciplina legal e a doutrina interpreta como sendo o caso de aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica. Sabe-se que imprescindível seria a apuração de utilização fraudulenta da personalidade jurídica, que deveria ser devidamente comprovada em regular processo de instrução, sob pena de violação do princípio do devido processo legal. Mas, como dito, a forma mais comum utilizada hoje em dia, é a emissão de bloqueio de valores no BACEN JUD199 na conta do administrador da pessoa jurídica, sem ao menos existir uma audiência em que reste comprovado que o mesmo agiu de forma indevida no uso dos seus poderes. Aliás, a questão probatória, como dito, fica extremamente fragilizada pois o administrador tem que se defender de algo que não sabe que fez. Pois bem, a situação que ora se pretende abordar trata da questão da responsabilidade do administrador, na esfera tributária. Sabe-se que o sujeito passivo da obrigação principal se subdivide em contribuinte e em responsável200. O contribuinte é aquele que tem relação pessoal e direta com a situação que constitui o respectivo fato gerador. Se não cumpre a obrigação tributária, o contribuinte é o próprio responsabilizado pela conduta antijurídica que gerou a sanção pelo inadimplemento.  O Bacen Jud é um instrumento de comunicação eletrônica entre o Poder Judiciário e instituições financeiras bancárias, com intermediação, gestão técnica e serviço de suporte a cargo do Banco Central. Por meio dele, os magistrados protocolizam ordens judiciais de requisição de informações, bloqueio, desbloqueio e transferência de valores bloqueados, que serão transmitidas às instituições bancárias para cumprimento e resposta. (BANCO CENTRAL DO BRASIL, s.d.). 200   Vide art. 121, parágrafo único, do CTN. 199

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Já o responsável, sem se revestir necessariamente na condição de contribuinte, tem sua obrigação decorrente de disposição expressa de lei, podendo lhe ser imponível a sanção. Neste sentido, o art. 135 do Código Tributário Nacional (CTN) enumera como pessoalmente responsáveis por obrigações tributárias praticadas com excesso de poder ou ato infracional à lei, contrato social ou estatutos, os mandatários, prepostos e empregados, e os diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado. A responsabilidade pessoal exclui o contribuinte, incluindo na sujeição passiva o terceiro pessoalmente responsável. O que se torna discutível é exatamente essa responsabilidade pessoal exclusiva das pessoas enumeradas e que, efetivamente, não tenham praticado atos com excesso de poderes, que tenham sido praticados com infração da lei, do contrato social ou dos estatutos. Sem estes requisitos, reveladores de conduta ilegítima e muitas vezes ilícita, não se pode invocar a responsabilização pessoal. Para sustentar tal assertiva, é imprescindível estender o raciocínio para outro ponto conflitivo em doutrina e jurisprudência, que diz respeito ao simples não-recolhimento do tributo, se ele constitui infração da lei, levando à responsabilidade pessoal na forma do art. 135 do CTN. O não-cumprimento de obrigação tributária, por si, caracteriza ilícito coibido pelos consectários da mora. Entretanto, não foi esse ilícito simples o descrito pelo art. 135 do CTN. Trata-se, isto sim, do ilícito deliberado, arquitetado, marcado pelo elemento subjetivo doloso que fundamenta a fraude ou o excesso de poderes. Ocorre que, tal como na esfera trabalhista, na prática, o nome do administrador já é incluído na Certidão de Dívida Ativa como co-responsável, de forma imediata, para, somente posteriormente, em fases processuais avançadas haver a discussão se o mesmo agiu ou não como acima mencionado. Enquanto isso, o nome do administrador fica completamente “sujo” no mercado, eis que, sem Certidão Negativa, o que lhe impede de negociar em nome próprio. Ao final desse raciocínio, conclui-se que o simples não-pagamento da obrigação tributária por pessoa jurídica, tem consagrado a responsabilidade ilimitada do administrador como regra e isso é simplesmente inadmissível. De acordo com o ordenamento jurídico-tributário pátrio, a solidariedade do administrador pela dívida da sociedade só se manifesta, todavia, quando comprovado que, no exercício de sua função, praticou os atos elencados na forma do art. 135, caput, do CTN. Além disso, para que seja aplicado o princípio da responsabilidade pessoal, mister se faz a efetiva comprovação da conduta dolosa de extrapolação de poderes conferidos ou, então, de conduta fraudulenta. 154

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Percebe-se, do todo exposto, que não se trata aqui, de crítica aos instrumentos normativos que regulamentam a matéria. Muito pelo contrário, ditos artigos legais são expressos e taxativos quanto á responsabilização dos administradores, sócios e pessoas jurídicas. O que se pretende deixar claro é que na maior parte das vezes, não tem existido por parte do Poder Judiciário o cumprimento eficiente de ditas normas legais, de tal forma que, um processo precisa chegar ao Superior Tribunal de Justiça, em sede de Recurso Especial para se ter uma decisão como a abaixo transcrita, da lavra da Ministra Fátima Nancy Andrighi: Os sócios da sociedade de responsabilidade por cotas não respondem objetivamente pela dívida fiscal apurada em período contemporâneo a sua gestão, pelo simples fato da sociedade não recolher a obrigação contento o tributo devido, visto que, o não cumprimento da obrigação principal, sem dolo ou fraude, apenas representa mora da empresa contribuinte e não ‘infração legal’ deflagradora da responsabilidade pessoal e direta do sócio da empresa. (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 2000, p. 235). A ementa acima colacionada revela bem o que é a situação de um administrador de uma sociedade empresária limitada. Apesar de ter a lei, os artigos supra citados, e tudo mais a seu suposto favor, o sujeito teve que ajuizar um procedimento em março de 1997, e até a presente data, qual seja, 23 de janeiro de 2011, não há trânsito em julgado do referido processo! Ou seja, se trata de um administrador que, há 14 anos tenta se eximir de uma responsabilidade que lhe fora imputada por inadimplemento de tributo não pago pela sociedade empresária da qual faz parte, pelo simples fato de dela fazer parte como administrador. E infelizmente, esse é apenas um de milhares de casos que ocorrem diuturnamente na prática empresarial, levando várias pessoas a colocarem a figura tão importante da gestão da sociedade, muitas vezes em nome de outrem (as clássicas figuras conhecidas vulgarmente como “laranjas”), com o temor da solidariedade ilimitada que tem sido regra em patente confronto á lei. Diante desta trágica realidade, fica então o questionamento: existiria outro tipo societário, em que há limitação de responsabilidade que possa servir como alternativa viável para dita situação? A resposta leva ao estudo da figura do administrador na chamada sociedade por ações, a qual será estudada apenas sob a forma fechada o que se passa a fazer no item que se segue. 155

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3. A ADMINISTRAÇÃO NAS SOCIEDADES ANÔNIMAS FECHADAS Nas sociedades por ações, a gestão da sociedade não fica a cargo somente de uma pessoa eleita como administrador, como no caso das sociedades empresárias limitadas. Os administradores não representam propriamente a sociedade, pois dela são órgãos. A pessoa jurídica se faz presente através deles. Uma de suas características é a estrutura complexa de atuação. Funcionam também como órgãos de gestão, a assembléia geral, o conselho de administração, a diretoria e o conselho fiscal, cada qual com sua função e a sua importância. Nos dizeres de Rubens Requião: Esse órgãos sociais, que integram a direção da sociedade anônima são estruturados de forma democrática. Aliás, a coletividade de pessoas que a sociedade envolve segue geralmente esse comportamento. Assim, os órgãos sociais estão constituídos em três categorias: o órgão de deliberação, que expressa a vontade da sociedade; o órgão de execução que realiza a vontade social, e o órgão de controle, que fiscaliza a fiel execução da vontade social. (REQUIÃO, 2003, v. 2, p. 166). A assembléia geral é o órgão deliberativo máximo da estrutura da sociedade anônima, que tem o poder de deliberar sobre qualquer assunto do interesse social, inclusive discutir e votar201. A assembléia-geral, convocada e instalada de acordo com a lei e o estatuto, tem poderes para decidir todos os negócios relativos ao objeto da companhia e tomar as resoluções que julgar convenientes à sua defesa e desenvolvimento. A assembléia pode ser considerada o órgão de maior poder deliberativo na companhia, é ele mesmo quem decidirá como será a formação deste conselho, quem serão os seus integrantes, assim como, por conseqüência, é ele que detém o poder de destituir estes membros. Nos moldes do art. 138 da Lei nº 6.404/76, a figura da administração está também a cargo do chamado conselho de administração que funciona como fiscalizador e deliberativo, e poderá demandar acerca de qualquer assunto que não seja de competência da assembléia geral. Dito conselho visa aprimorar o processo de tomada de decisão, no interior da organização empresarial, e por ser um órgão colegiado, suas deliberações somente terão eficácia se forem ditadas por reunião devidamente convocadas e instaladas. Dita reunião resulta na vontade do conselho de administração, embora haja o concurso de diversas vontades de seus membros manifestadas através dos votos.   Art. 121, Lei nº 6.404/76.

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Observe-se, por este aspecto, que a medida que se analisa a figura da sociedade por ações, verifica-se que o exercício da gestão empresarial é muito mais pulverizado que na sociedade empresária limitada, e assim sendo, muito mais difícil de ocorrer fraudes ou atitudes em desfavor do objeto social, eis que, vários órgãos existem para corroborar com a eficiência do estatuto social. Mesmo sendo um órgão facultativo nas sociedades fechadas, e obrigatório nas abertas, o processo deliberativo do Conselho de Administração resguarda melhor o interesse social, em comparação com o processo decisório individual da diretoria. Denote-se que nas companhias fechadas, a facultatividade seria justificada pela tendência à profissionalização da administração, que levaria também a situar os controladores no Conselho de Administração, deixando aos administradores profissionais de empresa o encargo de efetivamente geri-las. Ainda quanto á gestão, a Sociedade por Ações conta com a chamada Diretoria, órgão de representação legal da companhia e de execução das deliberações da assembléia geral e do conselho de administração. Trata-se de órgão executivo da companhia, composta por, no mínimo, duas pessoas, eleitas pelo conselho de administração, ou, se este não existir, pela assembléia geral. A Diretoria tem a função de gestão da empresa, e visa manifestar a vontade da pessoa jurídica, na generalidade dos atos e negócios que ela pratica. As decisões da Diretoria têm caráter individual, em regra, ao contrário das do conselho de administração. Mesmo quando a decisão da diretoria sobre determinadas matérias for tomada em reunião, não logra o órgão revestir-se de caráter colegial. Apesar de a decisão ser coletiva, o poder de executá-la é individual daquele que o estatuto, para tanto, designou. Portanto, os diretores, sempre estarão dentro de suas funções de gestão e representação da sociedade, no que o estatuto convier a cada um deles. Ainda para estabelecer um controle e fiscalização sobre os atos praticados pela administração das sociedades anônimas, existe o chamado conselho fiscal que é o órgão fiscalizador da companhia. Ele assessora a assembléia geral na apreciação das contas dos administradores e na votação das demonstrações financeiras. A sua existência é obrigatória, e seu funcionamento é facultativo. Observe-se que a sua principal função, como já demonstrado, é a de fiscalizar a atividade desenvolvida pelos administradores que conduzem os negócios sociais da companhia. O Direito Societário comporta dois sistemas de administração da Companhia, um unitário ou monista, e o outro bipartido ou dualista. Modesto Carvalhosa descreve os termos como sistemas unitários ou bipartidos, no sentido da administração ser concentrada em um único órgão, com característica principal a nomeação direta de seus membros pela Assembléia Geral. Lado outro aduz que o sistema bipartido, nos termos do sistema alemão, contempla o conselho supervisor e a Diretoria, cujas atribuições, estrutura e sistema, derivam da lei. 157

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Com as seguintes características: A administração é concentrada em um único órgão, tendo como principal característica a nomeação direta de seus membros pela assembléia geral. Acerca do sistema bipartido, descreve que ‘de acordo com o sistema alemão, existem dois órgãos: o conselho supervisor (Aufsichtrat) e a diretoria (Vorstand)’. Os membros daquele são eleitos pela assembléia geral e os deste último pelo conselho supervisor. Esse conselho supervisor constitui, com efeito, órgão de administração e não de fiscalização ou de mero controle. Trata-se, portanto, de dois órgãos de administração, necessários e permanentes, cujas atribuições, estrutura e composição derivam da lei. (CARVALHOSA, 2003, v. 3, p. 342). Vistos os órgãos gestores das sociedades anônimas, cumpre ainda falar a respeito da figura dos administradores propriamente ditos, assim considerados aqueles que conduzem a sociedade para que se produza o objetivo proposto pelo estatuto. O administrador estará devidamente habilitado para as atividades de administração da Companhia após a sua investidura, que se realiza com a assinatura no livro ata do conselho de administração ou da diretoria, caracterizado pelo Termo de Posse, de acordo com artigo 149, da Lei das Sociedades Anônimas (LSA). Ainda, a Companhia dispõe da faculdade, através de seu estatuto, de estabelecer que o cargo de administrador deva ser garantido por penhor de ações da companhia ou outra garantia, precavendo, assim, uma maior segurança em sua administração. Também esclarece que esta garantia somente será liberada após a aprovação das últimas contas apresentadas pelo administrador que houver deixado o cargo (artigo 148, § único, LSA). Conforme se pode verificar, as sociedades resguardam um maior grau de zelo à sua administração, como descrito acima. E assim o sendo, cada vez menor é o risco de confusão patrimonial entre a figura da pessoa física do administrador e do patrimônio da pessoa jurídica, ao contrário do que ocorre nas limitadas. Lado outro, tal como nas limitadas, o administrador da sociedade responde pelos danos causados acaso infrinja os deveres da diligência, da lealdade e o de informar, nos moldes do artigo 153 da Lei nº 6.404/76. É de se ressaltar que há diversas teorias que suscitam a relação da pessoa do administrador aos órgãos de gestão. A teoria que por muito tempo vigorou entre as sociedades refere-se à contratualista, que enxergava na relação entre o administrador e a sociedade, um vínculo contratual, caracterizado pelo contrato de mandato, que tornava efetivos as funções de gestão e o poder de representação da sociedade. 158

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Por este raciocínio, os poderes dos administradores seriam delegados e não próprios, não respondendo o mesmo por seus atos, eis que, agindo estaria de acordo com a vontade dos acionistas. Por esta razão, várias são as críticas á este respeito, dentre elas, a de que, não tendo a assembléia geral os poderes de gestão e de representação, próprios dos administradores, não se pode falar em mandato, na medida em que não pode haver mandatários com mais poderes que o mandante. Ademais, o mandato exige dois sujeitos, o que tecnicamente não se verifica na pessoa jurídica. Outra teoria, a qual é adotada pelo Direito brasileiro, é a orgânica ou teoria do órgão, que tem em seu fundamento a figura do gestor de sociedade anônima como titular de uma posição orgânica e criou a noção do dever de diligência, próprio de um dirigente de empresa ordenado e consciencioso, pois a responsabilidade deste decorre da lei, e não da Assembléia Geral. Assim, em contraste com a teoria contratualista, esta transporta a responsabilidade dos administradores de companhias do campo do inadimplemento contratual para o âmbito dos ilícitos civis. Modesto Carvalhosa, sobre o tema, entende que os órgãos são juridicamente irresponsáveis, Para ele, há uma dualidade entre o órgão e seus titulares, pessoas físicas. No âmbito privado, os órgãos – diretoria e conselho de administração – são aparelhos da companhia, não tendo com ela nenhuma relação jurídica, sendo, portanto, irresponsáveis perante terceiros. Já os titulares – conselheiros e diretores – teriam relação jurídica com a companhia, em termos de nomeação, destituição, deveres e responsabilidades, respondendo perante ela não só pela má gestão, mas também pelo eventual aproveitamento das suas funções em benefício próprio (arts. 154, 155 e 156). Tendo em vista essa dualidade entre o órgão e seus titulares, tanto na organização dos aparelhos do Estado como na das sociedades anônimas, referido autor não admite que o administrador seja o próprio órgão. Modesto Carvalhosa sobre o tema, assim dispõe: Já que fundada na organização dos aparelhos do Estado, cabe lembrar que, na esfera pública, inexiste relação intersubjetiva entre o determinado poder e seus órgãos. Ademais, os órgãos são juridicamente irresponsáveis, respondendo a pessoa jurídica de direito público perante terceiros. Não obstante, os titulares dos órgãos governamentais são responsáveis perante a pessoa jurídica de direito público. Tem o titular do respectivo cargo deveres e responsabilidades pessoais, não só de caráter funcional, como também patrimonial, na condução dos negócios públicos sob sua responsabilidade. Há, conseqüentemente, uma dualidade entre o órgão e seus titulares, pessoas físicas. No âmbito privado, os órgãos – diretoria e conselho de administração – são aparelhos da companhia, não tendo 159

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com ela nenhuma relação jurídica, sendo, portanto, irresponsáveis perante terceiros. Já os titulares – conselheiros e diretores – têm relação jurídica com a companhia, em termos de nomeação, destituição, deveres e responsabilidades, respondendo perante ela não só pela má gestão, mas também pelo eventual aproveitamento das suas funções em benefício próprio (arts. 154, 155 e 156). Tendo em vista essa dualidade entre o órgão e seus titulares, tanto na organização dos aparelhos do Estado como na das sociedades anônimas, não se pode admitir seja o administrador o próprio órgão. (CARVALHOSA, 2003, v. 3, p. 365). Assim, todos os administradores, tanto conselheiros como diretores, possuem deveres e responsabilidades de caráter orgânico, os quais respondem, tanto individualmente quanto solidariamente, por danos ocasionados por seus atos, porém sob uma esfera muito mais pulverizada e definida, que, de certa forma colaboram para trazer maior segurança jurídica áqueles que optem exercer a administração societária. Os atos dos administradores são principiologicamente regulados pelo art. 153 da Lei nº 6.404/76, que dispõe o dever de lealdade, “cuidado e diligência que todo homem ativo e probo costuma empregar na administração dos seus próprios negócios”, gerindo a empresa de acordo com os interesses dos acionistas (art. 154 da LSA). Via de regra, o administrador não tem responsabilidade pessoal pelas obrigações que contrair em nome da sociedade de capital e em decorrência de regulares atos de gestão empresarial (art. 158, da LSA). A exceção desta regra é a responsabilidade civil pessoal do administrador quando atuar, dentro de suas atribuições ou poderes, com culpa ou dolo; com violação da lei ou do estatuto, tratando-se também de responsabilidade subjetiva, conforme entende majoritária doutrina. Patente que há a necessidade de descumprimento de dever legal para a responsabilização do administrador, bastando que haja a ocorrência fática de uma conduta ilícita, com liame de causalidade com o dano conseqüente, qualificada pelo elemento subjetivo (dolo ou culpa). Realizado o ato danoso, delibera-se em Assembléia Geral a substituição do administrador responsável pelo ato, bem como a adoção das medidas necessárias para ação de reparação de danos. 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS COM BASE NA ANÁLISE ECONÔMICA DO DIREITO Explanadas as hipóteses de gestão em um e outro tipo societário, ambos de responsabilidade limitada, fica então a indagação: onde se encaixa a analise econômica como referencial teórico tido como método para o presente artigo? 160

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A consideração de que os agentes econômicos agem de forma racional é pressuposto da analise econômica do direito para se entender que reagem a incentivos e condições proibitivas. A celebração de um contrato entre empresários visa a limitação de liberdade do outro em um verdadeiro jogo de cooperação, eis que, agindo de forma isolada, os resultados não seriam maximizados da mesma forma. A questão da escolha racional dos agentes em busca da melhor alocação dos recursos, a eficiência, as falhas do mercado, externalidades e custos de transação não podem ser omitidos quando se opta por analisar vantagens e desvantagens de um tipo societário. Sob dita ótica, várias são as hipóteses que alçam resultados importantes, senão de ver-se. A escolha racional pressupõe ofertas concomitantes em que o agente agirá racionalmente para saber comparar e decidir sobre as mesmas. Quando o agente escolhe de forma racional o faz com o padrão das informações que tem, ou da forma que as analisa. Neste sentido, afirmam: Para que o individuo escolha de forma racional basta que saiba ordenar o que lhe é mais interessante, mais útil. Não há necessidade de saber quantificar o quanto lhe é mais útil algo em relação á outra alternativa. Por uma questão lógica, a escolha racional é subjetiva, ou seja, depende dos padrões e desejos de quem escolhe, não sendo possível eleger uma escala do que é mais útil de forma universal, para todos os agentes, sendo aferíveis as preferências do grupo pela analise da demanda por um bem de acordo com a variação do seu preço. (RIBEIRO; GALESKI JUNIOR, 2009, p. 85). O presente artigo retrata a realidade empresarial de dois tipos societários de responsabilidade limitada, os mais utilizados pela grande maioria dos empresários, diga-se de passagem, quais sejam, a sociedade empresaria limitada e a sociedade por ações. E qual seria então o melhor tipo societário? Para uma atenta análise racional, foi necessário avaliar as questões da limitação da responsabilidade. Conforme se pode observar o direito brasileiro atravessa hoje o que se pode chamar de crise da limitação de responsabilidade. A teoria da desconsideração da personalidade jurídica surgiu como um meio de supressão de custos sociais eventualmente externalizados e não compensáveis, hipótese de ineficiência, por meio de imputação de responsabilidade aos sócios. Neste sentido, afirma Walfrido Jorge Warde Júnior em sua obra: A despersonificação pontual de sociedade mostra, em conseqüência, uma técnica pouco adequada à imputação de responsabilidade. Essa 161

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deficiência evidencia-se não só por uma inviabilidade lógica, mas também pela extrema subjetividade de seus critérios, que tornam difícil, (senão impossível), a prova e equânime aplicação das regras de julgamento, determinando, por vezes, uma aleatória e injustificada atribuição de personalidade. (Warde Júnior, 2007, p. 164). A diminuição de riscos empresariais e de custos de capital é objetivo concreto de qualquer empresário e a limitação da responsabilidade sempre buscou promover isso. Porém, incentivadas pela limitação muitas sociedades foram conduzidas a atividades arriscadas ou simplesmente ao descumprimento do direito de credito, demonstrando, de forma clara a incapacidade da limitação de preservar suas funções modulares. E essa postura tem levado os tribunais a aplicar o conceito de desconsideração da personalidade, quase de forma automática nas sociedades empresárias limitadas, principalmente, como dito, na esfera tributária. Conforme se pode observar no presente artigo, as sociedades empresárias limitadas atualmente têm sofrido do que se pode convencionar como sendo ineficiência para sustentar a manutenção da responsabilidade dos sócios como regra geral. Sobre tal aspecto, interessante o posicionamento de Márcio Tadeu Guimarães Nunes: Deve-se ter em mente um efeito colateral da questão: para além do aumento da indústria dos seguros especiais destinados a cobertura dos administradores, essa modalidade não garante os riscos que os gestores podem vir a enfrentar durante um incidente de desconsideração da personalidade jurídica de sociedades por ele administradas. Isto porque não há seguro que cubra o custo de um longo processo que envolva a discussão da matéria em debate, tampouco os danos prévios que o patrimônio do administrador poderá suportar. (NUNES, 2010, p. 359). Ou seja, o suporte fático do poder de controle das sociedades é subsidio importante para se demonstrar a ineficiência da limitação da responsabilidade nas sociedades empresárias limitadas para a proteção do patrimônio pessoal do sócio. Lado outro, foi evidenciada a gestão nas sociedades por ações, a qual se demonstra um complexo mais estruturado, que fundamenta regras especiais de responsabilização, previstas na Lei nº 6.404/76, que sobrepõem-se à norma geral do art. 50 do Código Civil. A análise econômica do direito, enquanto ferramenta interdisciplinar, apresenta conceitos interessantes para que se tenha em mente, qual tipo societário pode ser o mais interessante no sentido de proporcionar ao empreendedor proteção patrimonial. 162

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É inegável a importância das sociedades limitadas no Brasil, bem como, a preferência dos empresários por sua forma. Porém, o hoje tão empregado instituto, que resultou de uma preocupação eminentemente econômica de estabelecer incentivos para os pequenos e médios empreendedores, não se configura mais tão seguro, quanto o fora em sua origem. Eduardo Goulart Pimenta, assim aduz em artigo sobre o tema: Já salientamos que a sociedade limitada é a combinação ordenada de características da sociedade anônima e das sociedades com responsabilidade ilimitada para os sócios. Da sociedade anônima se extraiu, em essência, a limitação da responsabilidade dos sócios pelos débitos da pessoa jurídica. Esta limitação é o principal incentivo econômico àqueles que pretendem empreender juntos, uma vez que permite afastar seu patrimônio pessoal do risco de empreendimento. (PIMENTA, 2008, p. 260). Conforme demonstrado supra, hoje em dia, constata-se uma verdadeira crise na limitação da responsabilidade. A falta de um controle mais efetivo sobre a manutenção e formação do capital social vem banalizando o instituto, o que tem levado aos aplicadores da lei a relativizar o preceito da separação entre patrimônio dos sócios e dívidas das sociedades. Não se está com isso querendo dizer que o Poder Judiciário, ao final, não aplique da forma correta os subsídios legais e fáticos aos casos concretos. Porém, os custos de transação de um litígio, para se demonstrar a não atuação fraudulenta de um administrador, por exemplo, ao não efetuar o pagamento de um tributo em sua gestão, é um incentivo á não contratação sob dita forma societária. Alexandre Bueno Cateb, assim corrobora sobre o tema: Se para a empresa a busca pelo lucro é uma das principais razoes de sua existência, também para o investidor o retorno do investimento, na forma de participação em lucros maiores, justifica e incentiva a criação e aplicação da lei de forma mais eficiente, economicamente considerada. Trata-se da utilização da chamada teoria dos custos de transação, conceito fundamental da chamada Teoria Neo-Institucionalista, na idealização e aplicação da lei. Custos de transação são os custos de realização e cumprimento de transações ou trocas de titularidade. Ou seja, na realização de qualquer negócio jurídico, os agentes considerarão os custos embutidos naquele negócio para parametrizar suas ações em busca de um melhor e mais eficiente resultado econômico. (CATEB, 2008, p. 265). 163

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Apartadas as sociedades de responsabilidade ilimitada, ficam aos sócios as alternativas da sociedade anônima e da sociedade limitada. Estes tipos guardam inúmeras distinções em sua estrutura e disciplina legal, as quais foram demonstradas neste artigo sobre o critério da gestão empresarial. Dentre eles, restou comprovado que a gestão empresarial das sociedades limitadas em virtude da crise da limitação da responsabilidade está hoje mais fragilizada. Assim, um administrador de uma sociedade empresária pode ter que arcar com valores altos para comprovar o que está previsto em lei, mostrando uma fragilidade que demanda altos custos de transação. E, assim o sendo, sob o tópico da gestão, conclui-se por ora, que a Sociedade por Ações parece ser um exemplo melhor de situação em que os partícipes de um mesmo ato têm na mútua colaboração a melhor escolha para a maximização de seus próprios interesses, sendo, portanto, o tipo societário economicamente mais interessante para resguardar um empreendedor na atualidade.

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III - Negócios Jurídicos, atuação empresarial e a necessidade de compatibilizar a autonomia da vontade e a intervenção estatal A SIMULAÇÃO COMO VÍCIO DO NEGÓCIO JURÍDICO NOS CONTRATOS DE SOCIEDADE THE SIMULATION AS DEFECT OF JURIDICAL INSTITUTE CALLED SOCIETY CONTRACTS Gustavo Henrique de Almeida Mestre em Direito Empresarial Mário César Hamdan Gontijo Mestre em Direito Empresarial RESUMO Trata-se de estudo relativo à função social do contrato de sociedade empresária. O trabalho tem como escopo a análise da autonomia privada e seus reflexos na elaboração de um contrato social e a função social deste instituto, tanto no seu aspecto intrínseco quanto extrínseco. Ademais, o estudo aborda práticas que desvirtuam do aludido princípio e propõe-se uma reflexão sobre a finalidade do contrato social. O objetivo deste estudo é constatar o limite à autonomia privada em relação ao contrato social e analisar a validade de um contrato social que possui dois sócios, sendo que um deles figura como parte apenas para possibilitar a limitação da responsabilidade. A abordagem possui um viés eminentemente constitucional. Nesse sentido, são conjugados interesses individuais e coletivos, analisando a prevalência de um sobre o outro em caso de conflito. Palavras-Chave: Autonomia privada e o contrato. Contrato social. Função social do contrato de sociedade empresária. ABSTRACT It is a study about the social function of enterprise contract. The article aims to analyze the private autonomy and all reflects on a social contracting creation, besides the social function of the institute and its internal and external aspects. Furthermore, the study focuses the practices that changes mentioned principle and proposes a reflection the about the goals of the enterprise contract. 169

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The aim of this study is to find the limit of private autonomy in relation to the social contract and review the validity of a social contract that has two members, one of which is party of it to just allow the limitation of liability. The approach is eminently constitutional. In this sense, are combined individual and collective interests, analyzing the prevalence of one interest over the other just in case of conflict. Keywords: Private autonomy and contract. Social contract. Social function of enterprise contract. 1. INTRODUÇÃO O direito permite aos cidadãos o entabulamento de pactos mediante o respeito às normas postas, considerando que o particular o faça pautando-se pela autornomia privada. Exatamente essa permissão do direito se constitui portas abertas para o exercício dessa autonomia. Em que pese o particular estar dotado da capacidade de regular suas relações privadas, deve ele o fazer pautando-se pelas regras e princípios jurídicos. Nesse sentido, impera a necessidade de se respeitar a coletividade. No âmbito do Direito Empresarial, o contrato de sociedade, que tem como uma de suas finalidades a regulação da vida privada dos sócios e da sociedade empresária, reflete na esfera jurídica de terceiros. Nesse sentido, o pacto inicialmente de reflexos na vida dos particulares amplia seu raio de abrangência para o coletivo. Nesse sentido, o tema da presente pesquisa se situa no campo do Direito Empresarial com interfaces em relação ao Direito Contratual, consistindo o tema central no estudo da validade do contrato de sociedade quando não há, efetivamente, affectio societatis, entre os sócios em uma sociedade de pessoas. Sendo assim, o problema de pesquisa consiste em saber se é possível desconsiderar a personalidade jurídica de uma sociedade de pessoas na qual não está presente a affectio societatis. Constitui objetivo do presente trabalho a decomposição do instituto jurídico contrato de sociedade, analisando quais seriam os seus limites. A justificativa se ampara na necessidade de se compreender juridicamente a validade de contratos nos quais figuram sócios que não estão efetivamente contribuindo com a socieade, mas, figuram como sócios apenas para dotar os demais do benefício da responsabilidade limitada. No que toca ao tipo de método científico, utiliza-se na pesquisa o método jurídico-descritivo, pelo qual se procede ao cotejo e à decomposição do problema jurídico apresentado em seus diversos níveis, além de se utilizar o método 170

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jurídico-propositivo, por meio do qual se proporá uma nova metodologia de realização do direito empresarial. No capítulo segundo é analisada a autonomia privada e os seus limites ao se contratar sociedade. Isto é, alguns princípios, como o da função social do contratao, equivalem a um limite à liberdade de contratar conferida pela autonomia privada, questão analisada de forma detida neste capítulo. Diante disso, o contrato social, especialmente o da sociedade empresária, deve respeitar regras e os princípios jurídicos que resguardam a coletividade, mister pela necessidade de se pautar pelo modelo constitucional de prevalência do coletivo sobre o individual. O capítulo terceiro aborda a temática específica do modelo constitucional em relação às relações contratuais, nas quais se percebe uma prevalência do coletivo sobre o individual. Tal premissa fica evidente quando individuos que contratam sociedade devem observar a ordem jurídica de terceiros, como se expõe no capítulo em questão. No capítulo quarto, o estudo aborda a ausência da affectio societatis como causa da nulidade do contrato de sociedade, posto que lhe faltaria um requisito, o vínculo real entre os sócios. Neste capítulo o problema de pesquisa é concisamente analisado, sendo verificado que se a sociedade de pessoas é o tipo de sociedade que pressupõe um elo entre os sócios, do qual se parte para constituir e manter a união entre tais sócios, ausente tal vínculo, seja na constituição ou na continuação da sociedade, um dos pressupostos para esse tipo societário não está presente. Segue-se ao capítulo quarto a conclusão na qual os fatores alinhavados no relatório da pesquisa são conjugados e por meio do método jurídico-propositivo chega-se à formular soluções concretas. 2.A AUTONOMIA PRIVADA E O CONTRATO 2.1 A FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO E O PRESSUPOSTO DA AUTONOMIA A dogmática jurídica contemporânea concebe os homens como livres, iguais, sujeito de direitos e dotados de capacidade para exercê-los em sua plenitude, na medida em que o ordenamento jurídico lhe permita ou não vede tal exercício. Tais dogmas foram assumidos como ideários da Revolução Francesa e consubstanciados na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em 1789, no artigo 1º ao declarar, ab initio, que os homens nascem e são livres, além de serem iguais em direitos. Ainda, no artigo 5º, ao afirmar que tudo que não é vedado pela lei não pode ser obstado e ninguém pode ser constrangido a fazer o que ela não ordene. 171

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Todos os postulados de liberdade e igualdade surgidos ou potencializados pela Revolução Francesa refletiram significativamente no mundo ocidental e nos ordenamentos jurídicos que foram influenciados pelos ideais que conduziram a tomada da Bastilha. Depois dos citados momentos históricos, os ordenamentos de diversos Estados incorporaram os ideários da liberdade e da igualdade. A própria Constituição Francesa de 1791 trouxe declarações que faziam expressa alusão aos sentimentos libertários e igualitários percebidos pela sociedade francesa nos quais a Revolução se fundou. Marco histórico para humanidade, referida Revolução e os acontecimentos que lhes são conexos representam uma ruptura com os padrões feudais de uma sociedade estamental, ao passo que subsidiaram o florescimento de novos paradigmas, os quais propiciaram, ainda que do ponto de vista formal, a igualdade entres os cidadãos e a liberdade, inclusive para contratar. Firmouse, também, o direito de propriedade, que foi erigido à categoria de atributo da pessoa, como uma faculdade e um poder individual, ao ponto da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em seu artigo 17º, mencionar que, como a propriedade é um direito inviolável e sagrado, ninguém dela pode ser privado, exceto quando a necessidade pública legalmente comprovada o exigir e mediante condição de justa e prévia indenização. Nesse contexto histórico, o contrato revela-se como instituto jurídico de suma importância, na medida em que o pleno exercício do direito de propriedade e a manifestação da liberdade passa pela possibilidade de contratar. Vivia-se, naquele período, sob a égide do Estado Liberal marcado pelo laissez-faire. A liberdade de contratar, portanto, surgiu como uma manifestação da autonomia privada, na medida em que, segundo Karl Larenz: [...] o indivíduo só pode existir socialmente como personalidade quando lhe seja reconhecida pelos outros não apenas a sua esfera de propriedade, mas também quando, além disso, possa em princípio regular por si mesmo as suas questões pessoais e, na medida em que com isso seja afetada outra pessoa, possa regulamentar as suas relações com ela com caráter juridicamente obrigatório mediante acordo livremente estabelecido [...] (LARENZ apud RIBAS, 2009). A autonomia privada consiste na possibilidade das pessoas regularem suas relações de natureza eminentemente privada, cuja força vinculante e obrigatória que as compele a proceder conforme por elas regulado, entre elas se torna norma jurídica por livre manifestação da vontade individual. Tal manifestação só é possível por haver autonomia dos entes privados para regularem suas relações jurídicas pessoais permitidas pelo ordenamento. Nesse sentido, Ricardo Luis 172

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Lorenzetti afirma que a autonomia privada é reconhecida pela ordem jurídica como “[...] la fuente de las obligaciones [...]” (LORENZETTI, 1999, p. 19). Por sua vez, a força obrigatória dos contratos encontra fundamento na autonomia da vontade. O contrato, portanto, é um instrumento dessa autonomia na medida em que esta por aquele se manifesta e se realiza. Em que pese a concepção de contrato como instrumento da autonomia da vontade e realização desta ter surgido no limiar da Revolução Francesa e se desenvolvido a partir da permissão constitucional daquele país, além das previsões do Código Napoleônico com base na idéia de liberdade, foi a propriedade que deu novos contornos à concepção de contrato como livre manifestação de vontade. O próprio Código Civil Francês de 1804 dispunha sobre contratos em seu livro destinado aos modos pelos quais se adquire a propriedade. Nesse sentido, Messineo afirma que o contrato “[...] es un reflejo de la institución de la propriedad privada. Ella es el vehiculo de la circulación de la riqueza, en cuanto se admita una riqueza (esto es, una propriedad) privada [...]” (RIBAS, 2009). O direito de propriedade, ao ser exercido, demanda a utilização do contrato para, pelo arbítrio da vontade das partes, transigirem sobre os direitos inerentes à propriedade. Sendo esta o objeto do contrato, este instituto viabiliza a plena disposição pelo proprietário dos seus direitos. O Estado Liberal garantiu aos particulares a regulação de suas esferas privadas com base na autonomia e na liberdade de contratar, que aparenta trazer consigo apenas interesses privados, em verdade, reflete um viés dos interesses públicos, uma vez que a garantia da manifestação dos interesses particulares representa interesse comum. A permissão para que todos pudessem contratar segundo sua autonomia privada seria um dever do Estado que, ao garantir o direito de liberdade e de propriedade, possibilitaria a cada um lograr a felicidade individual, o que representaria a felicidade de todos particularmente e, consequentemente, a finalidade do Estado. Contudo, a ideia de que a somatória dos interesses privados garantidos pela liberdade e pela autonomia privada representaria o interesse público esbarrou em dilemas da práxis que o Estado Liberal não estava preparado para enfrentar. O desequilíbrio nas relações privadas promovidos pela prevalência da parte melhor aparelhada social, econômica e culturalmente, consiste e elemento passível de tornar uma relação contratual também desequilibrada e, consequentemente, socialmente desinteressante. Portanto, a liberdade de contratar e a autonomia privada, por si só, não seriam suficientes para garantir que interesses privados estariam sendo velados pelo Estado, tampouco os interesses públicos, pois nem sempre o interesse público coincide com a mera somatória dos interesses privados realizados, podendo, inclusive, contrapor-se a eles. 173

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Em virtude das pressões sociais e ideológicas, sobretudo do marxismo, o Estado Liberal se transformou no Estado social. Isso porque o liberalismo favorecia os capitalistas, enquanto uma massa social não gozava de acesso ao mínimo existencial. Assim, o Estado Social surge no século XX como resposta à miséria e a exploração de grande parte da população. O Estado Social representou uma transformação superestrutural do Estado liberal com a finalidade de superar a contradição entre a igualdade formal e a desigualdade social. O liberalismo não solucionava as contradições sociais, mormente das pessoas à margem da vida econômica, desapossadas de quase todos os bens. Em virtude disso, passou o Estado a atuar garantindo direitos relativos ao trabalho, à previdência, à educação, intervindo na economia, regulando o salário, a moeda e os preços e combatendo o desemprego. O intervencionismo estatal sobre a vida privada também teve os seus reflexos na esfera dos contratos, o que evidenciou a necessidade de se equilibrar, além de regulamentar as relações contratuais, traçando regras gerais. Dentre as causas do intervencionismo estatal, pode-se elencar a primazia do social sobre o individual, os efeitos maléficos da acumulação e concentração de capitais, a desigualdade entre os contratantes e a necessidade de proteger os indivíduos da tirania das sociedades. Logo, o Estado passou a intervir na economia para promover a justiça social, restando evidenciada a sobreposição dos interesses sociais sobre os individuais, tão tutelados pelo Estado Liberal. A evolução do Estado Social culminou com o surgimento do Estado democrático de direito, o qual designa qualquer Estado que se aplica a garantir o respeito das liberdades civis, ou seja, o respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais por meio do estabelecimento de uma proteção jurídica. O Estado democrático de direito não suprimiu o Estado Social, mas sim alargou o espectro de tutela de direitos e garantias fundamentais. Em razão disso, a prevalência dos interesses sociais sobre os individuais é abraçado pelo Estado democrático de direito. Sendo assim, pode o Estado intervir nas relações privadas regulando e corrigindo distorções, inclusive no âmbito contratual. O soerguimento do Estado democrático de direito sobre as bases do Estado social permitiu a construção de um direito dotado de caráter social, cujo objetivo centrou-se na coletividade, no intuito de se estabelecer o equilíbrio e a harmonia, corrigindo distorções históricas promovidas, especialmente, pelo Estado Liberal. Na medida em que o Estado adotou uma postura intervencionista, os direitos passaram a ter uma função marcadamente social. Os espaços para a individualidade foram se tornando cada vez mais limitados, pois o coletivo se sobrepôs ao individual. Nenhum direito pode, hipoteticamente, ser exercido em prejuízo do social beneficiando apenas o titular individualmente. 174

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O exercício do direito de contratar foi frontalmente atingido pelo paradigma da função social dos direitos. A liberdade de contratar, portanto, deve ser plena até o limite da sua função social, pois não se pode conceber um contrato “[...] com acentuado potencial econômico ou financeiro, se, em contrapartida, nos depararmos com um impacto negativo ou desvalioso no campo social” (GAGLIANO, 2005, p. 49). Nesse sentido, um contrato não pode ser concebido levando-se em conta apenas os objetivos buscados pelos contratantes, pois se torna necessário, sobretudo, analisar a repercussão social que dele possa resultar. Isso implica dizer que o contrato como instrumento particular não pode ser ajustado aos interesses exclusivos dos contratantes, desprezando a interferência que talvez possa provocar na esfera jurídica de terceiros, ou de toda uma coletividade. A função social do contrato deve ser entendida como uma cláusula geral que rege toda a relação contratual antes, durante e depois da sua execução. Deve, ainda, ser concebida como um princípio, que orienta o sistema jurídico no âmbito das relações contratuais. Na medida em que a propriedade como objeto contratual foi perdendo o seu caráter puramente privado, estava evidenciando, também, que “[...] o contrato naturalmente experimentaria o mesmo fenômeno [...]” (GAGLIANO, 2005, p. 49). No mesmo sentido, Hironaka sustenta que deve se “[...] subordinar a propriedade privada aos interesses sociais, através desta idéia-princípio, a um só tempo antiga e atual, denominada ‘doutrina da função social’” (2000, p. 105). Admitir esses preceitos significa dizer que, no campo da propriedade, assim como dos contratos, houve uma evolução e uma consequente superação do modelo oitocentista migrando-se para um estado de preocupação com a repercussão social dos direitos. A tutela da propriedade e do contrato deve ocorrer na exata medida em que o exercício desses direitos não repercuta maleficamente entre as partes que deles se valem, ou mesmo para sociedade. A função social dos contratos, entretanto, possui um conceito aberto e indeterminado, razão pela qual delimitá-lo abstratamente beira o impossível. No intuito de traçar linhas mestras na compreensão desse instituto, Paulo Nalin apud Theodoro Júnior (2003, p. 43), sustenta que a função social dos contratos possui dois níveis, o intrínseco e o extrínseco. O nível intrínseco refere-se ao dever que os contratantes guardam em relação ao respeito, à boa-fé objetiva e à lealdade negocial, observando, ainda a equivalência material entre as partes. Por sua vez, o nível extrínseco relaciona-se aos terceiros, à coletividade externa ao âmbito contratual. Nesse sentido, segundo a função social do contrato, jamais poderá ocorrer hipótese em que os interesses contratuais puramente privados se sobreponham aos interesses externos e coletivos. 175

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Depreende-se da lição trazida a lume por Nalin, os deveres acessórios e conexos ao contrato, em uma clara superação do caráter individualista de outrora, ressaltando-se os aspectos da ética e da lealdade evidenciados pelos deveres de informação, confidencialidade, assistência e lealdade, dentre outros. A preocupação com as repercussões do contrato revelam a importância desse instituto para a sociedade, especialmente porque ele constitui um instrumento de circulação de riquezas e pode conduzir, por isso mesmo, ao desenvolvimento social. Em virtude disso, modelar o desenvolvimento social por meio dos contratos requer a intervenção do Estado, sobretudo para garantir a esse instrumento a eficácia da sua finalidade. A intervenção, contudo, não significa extinguir a autonomia privada ou o princípio do pacta sunt servanda. O que ocorre é uma mitigação dos aludidos princípios a fim de torná-los adequados à nova realidade social e jurídica do Estado Democrático de Direito. Trata-se, portanto, de corrigir distorções sociais históricas e humanizar o conceito de contrato. 3. MODELO CONSTITUCIONAL 3.1 PREVALÊNCIA DO SOCIAL SOBRE O INDIVIDUAL A constituição brasileira inaugurou uma nova era em relação à amplitude dos direitos sociais em nosso país. Atendendo ao clamor social que cresceu e tomou forma no fim dos anos 70, a constituinte elaborou e promulgou em 1988 aquela que se tornaria a nossa norma fundamental, a qual foi recebida pela sociedade com a expectativa daqueles que almejavam a garantia das liberdades. Dentre os vários matizes da liberdade constitucionalmente garantida, encontramos a contratual, que se traduz na liberdade para contratar ou não e, ao contratar, o modo como fazê-lo. A Carta Magna concede a máxima liberdade contratual no âmbito das relações privadas, mas sobrepõem os interesses coletivos aos individuais. Isso ocorre na medida em que aos contratantes não basta a satisfação das suas vontades particulares, mas também a observância dos aspectos sociais da contratação, sejam eles diretos ou indiretos. Por esta razão, o poder constituinte fez constar do texto constitucional, em seu art. 5º, incisos XXII e XXIII, que a propriedade atenderá a sua função social. Ao exigir que o direito de propriedade atenda à sua função social, a constituição exige o mesmo do contrato, pois o exercício do direito de propriedade se perfaz, necessariamente, pelo contrato, com leciona Miguel Reale, sobre a função social deste instituto: 176

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Um dos motivos determinantes desse mandamento resulta da Constituição de 1988, a qual, nos incisos XXII e XXIII do Art. 5º, salvaguarda o direito de propriedade que “atenderá a sua função social”. Ora, a realização da função social da propriedade somente se dará se igual princípio for estendido aos contratos, cuja conclusão e exercício não interessa somente às partes contratantes, mas a toda a coletividade. (REALE, 2003) Tais previsões de Direito Constitucional evidenciam a constitucionalização do Direito Privado, o que curva este à orientação principiológica daquele. Se o nosso modelo constitucional adota a prevalência do social sobre o individual, como podemos depreender dos dispositivos já citados, assim com dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil de construir uma sociedade livre, justa e solidária, que possa garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais, também o contrato deve atender a sua função social, “[...] a fim de que ele seja concluído em benefício dos contratantes sem conflito com o interesse público” (REALE, 2003). 3.2 O CONTRATO DE SOCIEDADE O desenvolvimento da atividade empresária pode suceder de forma individual ou coletiva. A primeira ocorre quando uma pessoa natural, em nome próprio exerce a empresa, denominando-se empresário individual. A segunda forma, a coletiva, se reveste de uma roupagem jurídica denominada de sociedade empresária. A atividade empresária individual se apresenta mais adequada a pequenos empreendimentos, o que não impede, todavia, de que os grandes sejam conduzidos por empresários individuais. Contudo, em razão de algumas vantagens conferidas às sociedades, tais como a limitação da responsabilidade dos sócios, a distinção da personalidade, dentre outros fatores, o exercício da atividade empresarial de forma coletiva se apresenta relativamente mais favorável aos que pretendem empreender. O ordenamento jurídico brasileiro disponibiliza algumas formatações sociais aos cidadãos, de modo que se possa escolher aquela que mais se ajusta ao tipo de empreendimento e ao vínculo que entre os prováveis sócios possa existir. Cada sociedade revela suas peculiaridades, cuja escolha, salvo algumas restrições, fica a cargo dos empreendedores. A despeito das várias teorias que gravitam em torno da empresa, especialmente as teorias institucionalistas, o que ora se analisa é vínculo estabelecido entre os sócios ou acionistas da sociedade criada com a finalidade 177

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de se exercer a empresa. O foco, portanto, é o elo entres as pessoas que se unem para criar a sociedade. O contrato ou estatuto social202 por meio do qual nasce a sociedade nasce, nos termos do art. 981, do Código Civil brasileiro é celebrado por pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir, com bens ou serviços, para o exercício de atividade econômica e a partilha, entre si, dos resultados. Contudo, torna-se necessário esclarecer que: O contrato de sociedade empresária não tem muita afinidade com o universo dos contratos ortodoxos. Nada tem de comum, para ser mais direto. Trata-se de uma avença diferenciada das demais modalidades contratuais porque vocacionada à constituição de uma pessoa jurídica. Também se aparta dos outros contratos de sociedade porque a pessoa jurídica que constitui é afetada por uma destinação empresarial, ou seja, ingressará no mundo jurídico como titular de uma atividade econômica organizada no sentido da produção e/ou circulação de bens ou serviços. (FÁZZIO JÚNIOR, 2009) Waldo Fázzio Júnior enfatiza que prevalece na doutrina o entendimento esposado por Tullio Ascarelli, no sentido de que o contrato de sociedade é um contrato plurilateral de organização, cuja função não termina: [...] quando executadas as obrigações das partes (como acontece, ao contrário, nos demais contratos); a execução d as obrigações das partes constitui a premissa para uma atividade ulterior; a realização desta constitui a finalidade do contrato; este consiste, em substância, na organização de várias partes em relação ao desenvolvimento de uma atividade ulterior (FÁZZIO JUNIOR, 2005, p. 155). Nesse sentido, o contrato é o instituto jurídico que viabiliza a criação de uma sociedade empresária concebida, em regra, por particulares. Não se olvide que o pacto, para merecer algumas vantagens e proteções legais, deve ser celebrado na forma escrita, conforme estatui os arts. 986 e 992, do CC. Contudo, nada impede que o mesmo seja elaborado verbalmente, ou até tacitamente.   O Conselho de Justiça Federal aprovou o enunciado proposto por Vinícius José Marques Gontijo e Lidiane Santos de Cerqueira, relativo ao artigo 981, do Código Civil brasileiro, no qual se evidencia que apesar de o aludido dispositivo referir-se somente ao contrato social, deve-se ler subentendendo também “estatuto social”, tendo em vista que a constituição de sociedade empresária pode dar-se pelo ajuste de vontades contratual e estatutário. 202

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O contrato social pode dizer respeito a uma sociedade de pessoas, classificação conferida àquela que tenha por elemento precípuo a qualidade dos sócios, ou à sociedade de capitais, classificação dada às sociedades que tenham como elemento preponderante o capital disponibilizado pelo sócio ou acionista à sociedade. Uma sociedade de pessoas se difere da de capitais também em virtude do feixe de relações jurídicas estabelecido, o que pode refletir uma dupla relação jurídica, sendo que por um lado se estabelece direitos e obrigações dos sócios entre si e para com a sociedade, e por outro, apenas dos sócios para com a sociedade, na media em seja, respectivamente, sociedade de pessoas ou de capitais. Na sociedade de pessoas, o vínculo entre os sócios é maior, pois importa saber que serão os sócios. Esse tipo de sociedade geralmente é destinado a pequenos empreendimentos. Na sociedade de capitais, sobretudo a sociedade anônima de capital aberto, não se revela preponderante a qualidade dos acionistas, mas tão-somente o seu aporte de capital, sendo a sua entrada ou saída do quadro de acionista extremamente facilitada. Em virtude do vínculo entre os sócios na sociedade de pessoas ser mais estreito, decorre naturalmente do contrato social por eles entabulado um feixe de relações jurídicas entre os sócios e a sociedade, e também dos sócios entre si, ao passo que na sociedade de capitais o feixe de relações jurídicas se estabelece apenas ente os sócios e a sociedade, não havendo maior relevância as relações entre aqueles que compõem o quadro societário. As relações jurídicas estabelecidas a partir do contrato de sociedade evidenciam a manifestação da autonomia privada, levada a efeito pela liberdade de contratar e pela liberdade contratual, na medida em que ninguém pode ser compelido a contratar ou a permanecer contratado e que os contratantes dispõem de liberdade para pactuar o teor contratual. Consequentemente, o contrato de uma sociedade empresária deve atender a sua função social, o que implica dizer que este “[...] não pode ser transformado em um instrumento para atividades abusivas, causando dano à parte contrária ou a terceiros [...]”. (REALE, 2003) Na medida em que atende sua função social, o contrato ou estatuto social jamais pode ser utilizado como meio para se atentar contra um dos sócios, contra a própria sociedade ou mesmo contra terceiros estranhos ao quadro societário. 3.3 A FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO DE SOCIEDADE EMPRESÁRIA O contrato social é um instituto de extrema importância para a atividade empresária. Por meio dele se exterioriza a vontade das pessoas que contribuem com recursos e esforços para a formação de uma organização destinada a desempenhar uma atividade fim, com o objetivo de lucro. 179

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Desde que escrito e devidamente arquivado, o instrumento contratual confere personalidade jurídica à sociedade que dele surge. Entretanto, o contrato não escrito ou escrito e não arquivado, não retiram o status de sociedade do grupo de pessoas que se reúnem mediante a contribuição de recursos e esforços para exercerem atividade empresária. Contudo, para que surja a personalidade jurídica da sociedade distinta da personalidade dos sócios, necessária é a regular inscrição na Junta Comercial competente. Trataremos, por ora, do contrato social de sociedade empresária como gênero, sem descer às especificidades de cada caso, tais como contratos escritos e inscritos ou não, sociedade de pessoas ou de capitais, dentre outras variações. Analisaremos como a função social impacta este instituto e quais as circunstâncias interferem no seu bom uso, seja em nível intrínseco ou extrínseco. A partir do momento em que a autonomia privada é exercida e se estabelece um contrato social, nascem diversos direitos e obrigações, especialmente para os sócios, os quais são responsáveis, pelo menos em um primeiro momento, pela avença entabulada. Deflui dos acordos iniciais e também da vida posterior da sociedade a obrigação dos sócios de cooperar para a consecução dos fins sociais, e todos os esforços exigidos dos sócios devem ser prestados para que o exercício da atividade pela sociedade possa ser alcançado. A cooperação pode ser revestir de várias formas, desde uma colaboração de cunho intelectual para a estratégia de atuação, passando pelo conhecimento de mercado, podendo chegar até uma contribuição extraordinária para a o aumento do capital social. Pela função social do contrato, a cooperação dos sócios deve ocorrer na exata medida da necessidade da sociedade, observando-se, contudo, a possibilidade de se exigir do sócio tais prestações. Essa cooperação deve ser levada a efeito sempre no objetivo de alcançar o objeto social, sem haver espaços para que interesses antagônicos aos sociais sejam admitidos e, mais ainda, sem que interesses de terceiros ou de algum sócio sejam sacrificados para a cooperação social. Do ponto de vista intrínseco ao contrato social, o dever que os contratantes/ sócios guardam, mutuamente, em relação ao respeito, à boa-fé objetiva e à lealdade negocial, observando, ainda, a equivalência material entre as partes revelam-se como os parâmetros para função social do contrato de sociedade. No que toca ao respeito e ao trato com hombridade, resta evidenciado que o homem probo nos negócios está adstrito ao comportamento cordial para com seus sócios, equivalendo dizer que as amarras do padrão de comportamento ético devem ser condizentes com a vida em comunidade, sobretudo no âmbito das relações profissionais. A probidade necessária aos sócios faz presumir que a sua ausência pode significar empecilho à consecução dos fins sociais. 180

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A boa-fé objetiva, por sua vez, exige que os contratantes guardem desde as tratativas até a posterior criação da sociedade um comportamento segundo o padrão, “[...] o modelo de conduta social, arquétipo ou standard jurídico, segundo o qual ‘cada pessoa deve ajustar a própria conduta a esse arquétipo, obrando como obraria um homem reto: com honestidade, lealdade, probidade’ [...]” (MARTINS-COSTA, 2000, p. 411). Uma das funções do princípio da boa-fé objetiva é o de limitar o exercício de direitos subjetivos. (BARROSO; REZEK, p. 29) Nesse sentido, os sócios devem compatibilizar o exercício de algum direito que viole ou sacrifique o direito dos outros sócios, da sociedade ou mesmo de terceiros. Todavia, tal compatibilização nem sempre é fácil de exigir ou possível de se realizar, em virtude dos diversos interesses subjetivos que podem existir em torno de um contrato social que, pela natureza, comporta uma multiplicidade de sócios. Outro ponto controvertido no que toca ao aspecto intrínseco do da função social do contrato de sociedade diz respeito à equivalência material das partes. Esta equivalência refere-se à distribuição isonômica das prestações das partes que celebram uma avença. No contrato de sociedade, por serem diversos os sujeitos, cada qual com seu interesse pessoal e compartilhando, ao mesmo tempo, um interesse comum, que é o social, a equivalência material pode restar prejudicada. O contrato de sociedade é, por natureza, um contrato que, diante da distribuição de quotas e da quantidade de sócios, o poder de tomar decisões e o direito de perceber lucros pode ser concentrado, o que acarretaria na não equivalência das partes/sócios. A própria lei estabelece quóruns de deliberações sociais que tem como critério de voto à parcela proporcional das quotas que cada sócio possui. Com efeito, o voto pode ser contabilizado per capta, mas resta evidente que pode, também, ter como parâmetro a parcela das quotas dos sócios, e nesse aspecto é que se evidencia a desproporção natural do contrato de sociedade. Diante dessas circunstâncias, o poder dos sócios difere do ponto de vista material, pois aquele que possuir maior quantidade de quotas pode, em tese, ter o controle das deliberações sociais. Ressaltese, por oportuno, que até mesmo a exclusão de um sócio pode ser deliberada com base na maioria dos sócios representativa de mais da metade do capital social. O que pode conferir contornos à função social e, consequentemente, limite aos direitos subjetivos dos sócios, diante dessa natural ausência de equilíbrio contratual em um contrato de sociedade empresária, é o interesse da própria sociedade. Deliberação alguma, ainda que formalmente regular por respeitar os quóruns legais e contratuais, pode ser tomada se houver prejuízo para sociedade, pois, do ponto de vista intrínseco, esta também é sujeita de direitos na relação com os sócios, ainda que majoritários, devendo prevalecer, em caso de conflito, os interesses sociais. 181

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Por sua vez, o nível extrínseco da função social do contrato de sociedade relaciona-se aos terceiros, à coletividade externa ao âmbito contratual. Nesse sentido, jamais poderá ocorrer hipótese em que os interesses contratuais puramente privados se sobreponham aos interesses externos e coletivos. Nesse aspecto a função social do contrato muito se aproxima da função social da empresa. Contudo, há uma tênue distinção, pois, a primeira se refere ao contrato que proporciona a consecução da atividade empresária, e a segunda refere-se à própria atividade. O nível extrínseco da função social refere-se ao impacto do contrato na coletividade. Por se tratar de uma criação jurídica, a personalidade atribuída à pessoa jurídica de direito privado quando do regular arquivamento do seu ato constitutivo, o contrato, abre a possibilidade da sociedade se relacionar na ordem civil como pessoa titular de direitos que também contrai obrigações. Nesse sentido, a autonomia privada confere aos sócios a possibilidade de estabelecer parâmetros contratuais que repercutem na esfera jurídica de terceiros. O melhor exemplo do reflexo do contrato social de uma sociedade empresária em relação a terceiros diz respeito à responsabilidade dos sócios por obrigações da sociedade. A responsabilidade dos sócios de sociedade empresária pode ser limitada ao valor das quotas ou ações subscritas e integralizadas, a depender, inclusive, da formatação societária adotada para o desenvolvimento da atividade empresarial. A conseqüência natural é a de que a os sócios, por terem personalidade distinta da sociedade e por terem responsabilidade limitada, não arcam com as obrigações societárias, em regra. A prática forense evidencia o mau uso da autonomia privada quando os sócios se valem das prerrogativas aludidas para se esquivarem de responsabilidades ou mesmo para fraudar a lei, notadamente em prejuízo de terceiros. Resta clara, em tais casos a afronta ao princípio da função social do contrato, pois, dele se valem sócios que se escondem por detrás de um véu, de uma personalidade, para lesar terceiros. No mesmo sentido, são comuns os casos em que uma pessoa natural, para se valer das vantagens da responsabilidade limitada, convida outra pessoa a figurar formalmente no contrato social para cumprir o requisito mínimo da pluralidade de sócios, para alguns tipos societários, simulando um ato jurídico, sem que haja, contudo, participação material efetiva com recursos e esforços para a consecução da atividade empresária. Outro ponto nebuloso refere-se ao patrimônio da pessoa jurídica que surge a partir do contrato. Este patrimônio consiste na garantia de terceiros que contratam com a sociedade. Os integrantes do quadro societário devem contribuir para sua formação. Essa obrigação tem um caráter social de extrema 182

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relevância, pois este patrimônio, se inexistente ou insuficiente em relação às obrigações, pode causar prejuízos aos terceiros. O princípio da efetividade, que exige a equivalência do capital real e a do descrito no contrato, vê-se comumente violado. Sendo assim, para que terceiros não sejam prejudicados, ou até mesmo os próprios sócios e a sociedade empresária sejam responsabilizados, os sócios devem integralizar as quotas subscritas, de forma efetiva. Nesse sentido, não se pode admitir que a constituição do patrimônio social ocorra de modo meramente ficto, ou seja, descrito no contrato, mas não integralizado e não posto à disposição da sociedade. Por fim, temos uma das funções da função social do contrato consiste na limitação de direitos subjetivos, como já declinado. Sendo assim, temos que os sócios podem se valer do contrato para constituir uma personalidade jurídica autônoma, inclusive com a limitação da responsabilidade, porém, jamais comprometendo terceiros. 4. A AFFECTIO SOCIETATIS Qualquer contrato tem sua gênese na consensualidade dos contratantes. Essa consensualidade se refere às liberdades de contratar e liberdade contratual, que indicam que os contratantes são, a princípio, livres para decidir se contratam ou não e, decidido isso, para decidir como contratam. A affectio societatis pode ser definida como sendo a intenção de contratar e manter uma sociedade, e apresenta um aspecto subjetivo (em dois momentos distintos) e um objetivo (MAMEDE, 2004, p. 125). O aspecto subjetivo da affectio societatis aparece, primeiramente, na vontade203 de se associar, de formar a sociedade. É a própria intenção de se criar a sociedade (que em um primeiro momento será sempre uma sociedade em comum). Em um segundo momento, esse mesmo aspecto subjetivo pode (e deve) ser verificado na intenção, renovada a cada dia, de permanecer em sociedade. Esse aspecto pode ser enxergado na norma contida no artigo 5º, XX, da Constituição da República que prescreve que “ninguém poderá ser compelido a associar-se ou a permanecer associado”, ou seja, os sócios são livres para se associar e para deixar a sua associação, dependendo exclusivamente de sua vontade. O aspecto objetivo da affectio societatis “traduz o dever geral de todos os sócios de atuarem a bem da sociedade permitindo que se realizem as suas funções jurídica, econômica e social” (MAMEDE, 2004, p. 126).   Não será discutida a questão acerca da “vontade” das pessoas jurídicas, lembrando-se de que, em alguns casos, admite-se as pessoas jurídicas como sócias. 203

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É ainda de Gladston Mamede que vem o ensinamento de que é forçoso reconhecer que o animus contrahendi pressupõe, no mínimo em atenção aos princípios da boa-fé (bona fides) e da função social do contrato, comportamento coerente das partes contratantes, que devem trabalhar a favor do ajuste, atendendo às legítimas expectativas da parte contrária. (MAMEDE, 2004, p. 126) É claro que, ao se tornar sócio de qualquer sociedade, seja ela de que tipo for, haverá a confiança daquele que assim age de que a sociedade agirá (ou continuará agindo) no mais absoluto respeito às normas jurídicas, inclusive às contidas no contrato ou estatuto social. Dessa forma, seja no início de uma nova sociedade, seja no trato diário de uma já existente, deverá haver por parte de todos os seus sócios a necessária intenção e efetiva contribuição para que ela, a sociedade, atinja seus objetivos e propicie, em retorno, que também cada sócio em separado atinja os seus (normalmente, o lucro). Veja-se que nas sociedades de capitais a affectio societatis se faz presente, ainda que de forma bastante mais tênue que nas sociedades de pessoas. A questão, por certo, haverá de ser verificada em cada caso específico. De fato, em enfrentamento à questão, o Superior Tribunal de Justiça decidiu, no julgamento do recurso especial nº 111.294 que: Pelas peculiaridades da espécie, em que o elemento preponderante, quando do recrutamento dos sócios, para a constituição da sociedade anônima envolvendo pequeno grupo familiar, foi a afeição pessoal que reinava entre eles, a quebra da affecttio societatis conjugada à inexistência de lucros e de distribuição de dividendos, por longos anos, pode se constituir em elemento ensejador da dissolução parcial da sociedade, pois seria injusto manter o acionista prisioneiro da sociedade, com seu investimento improdutivo, na expressão de Rubens Requião.204 O mesmo raciocínio é pertinente quanto às sociedades limitadas. A affectio societatis é mais sensível (e exigível) na limitada que tome a conformação de uma sociedade de pessoas que naquela que se amolde como de capitais, existindo, no entanto, em ambos os casos.   BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 111.294/PR. Relator: Ministro Barros Monteiro. DJ, Brasília, 28 maio 2001. Disponível em: . Acesso em: 1 abr. 2009. p. 1. 204

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A intenção de se tornar e permanecer como sócio, junto com a de envidar esforços para a consecução dos objetivos sociais, notadamente nas sociedades de pessoas, como a limitada que assuma essa conformação, é elemento essencial e constante de validade do contrato e sua ausência pode levar, como visto, à exclusão do sócio que não a cumpre em qualquer momento que seja. Ausente a affectio societatis, restará ausente a consensualidade necessária ao surgimento e manutenção dos contratos. A ausência desse elemento como causa para a desconsideração do contrato de sociedade que, assim, é meramente formal, já foi analisada pelo juízo trabalhista, que assim concluiu: SÓCIO - EMPREGADO - RELAÇÃO DE EMPREGO. EMPREGADO CONTRATADO FORMALMENTE COMO SÓCIO. SUBORDINAÇÃO JURÍDICA. AUSÊNCIA DE AFFECTIO SOCIETATIS. Diante do princípio tutelar da primazia da realidade, inerente ao Direito do Trabalho, sobreleva priorizar o que efetivamente ocorre no mundo dos fatos, e não o nomen juris que é dado à relação jurídica. Nesse aspecto, estando presentes os seus elementos tipificadores previstos no art. 3º da CLT, sobretudo a subordinação, cumpre reconhecer como de emprego a relação jurídica havida entre as partes, ainda que sob a roupagem de uma sociedade por cotas de responsabilidade limitada, na qual a Reclamante formalmente ingressa como sócia, mormente quando não há evidências de affectio societatis.205 Em rápida e primeira conclusão, tem-se que o negócio jurídico contratual societário tem validade plena condicionada à existência da affectio societatis. Essa afeição societária, vontade de se associar e de se manter associado (consensualidade), há de ser substancial e não meramente formal, tendo em vista a limitação à autonomia de vontade imposta pela boa fé objetiva; e mais, o contrato de sociedade (feito, repita-se, a partir da e com a affectio societatis) somente será plenamente válido se cumprir sua função social. 4.1 A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA A chamada disregard doctrine ou teoria da desconsideração da personalidade jurídica é um dos institutos mais intrigantes do direito e, como tal, ainda hoje não se encontra totalmente delimitado e compreendido. Pelo   BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho (3. Região). Recurso Ordinário nº 00147-2008073-03-00-9. Relator: Desembargador Márcio Ribeiro do Valle. Minas Gerais, Belo Horizonte, 23 ago. 2008. Disponível em: . Acesso em: 1 abr. 2009. p. 35. 205

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contrário, é instituto originador de inúmeras e grandes controvérsias, seja quanto aos seus aspectos formais, seja quanto aos materiais. Basicamente, a teoria significa a possibilidade de, verificadas determinadas situações previstas na lei, afastar-se pontualmente a personalidade jurídica e, junto, a sua autonomia patrimonial, para que os efeitos de obrigações determinadas sejam estendidos aos patrimônios dos seus sócios e/ou administradores. De forma pragmática, tem-se que o direito brasileiro agasalhou legalmente esta doutrina, nos artigos 28 da Lei nº 8.078/90, 18 da Lei nº 8.884/94, 4º da Lei nº 9.605/98 e, finalmente, 50 do Código Civil, este último assim redigido: Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica. A partir da norma legal, vê-se que os efeitos obrigacionais de certas e determinadas obrigações (e não, portanto, de forma indeterminada “todas as obrigações”) poderão atingir o patrimônio particular dos sócios que, a princípio, pela autonomia patrimonial dada às pessoas jurídicas, não podem ser responsabilizados pelas obrigações assumidas por essas. Para que isso ocorra, é necessário que o pedido, feito pela parte ou pelo Ministério Público, seja feito com fundamento na presença necessária de pelo menos uma das duas hipóteses legais autorizadoras e que indicam ter havido abuso da personalidade jurídica, a saber: o desvio de finalidade ou a confusão patrimonial. Desde já cumpre destacar que a personalidade jurídica não deixa de existir em momento algum. Ela será apenas afastada para que os efeitos, em uma dada situação concreta, atinjam os sócios ou os administradores da sociedade. Como ensina Luiz Antônio Soares Hentz, a doutrina anglo-americana sobre a qual se funda a teoria da desconsideração da personalidade jurídica “baseia-se no fato de que a personificação das sociedades decorre de um ato individual de concessão do poder político” (HENTZ, 2002, p. 93). A proposição, é claro, não deve ser recebida como pronta por nós, brasileiros, cujo direito é de tradição romano-germânica, sendo necessária uma adequação da leitura. Por aqui, a personificação, mais que autorizada (desde que observados todos os requisitos legais), é buscada pela lei. Esse fato surge da necessidade de se incentivar o empreendedorismo, ou seja, o exercício de empresas, para a geração de riquezas, empregos, tributos, dentre outros. A partir desse prisma, 186

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a lei põe à disposição tipos societários que garantem aos seus sócios que, em caso de insucesso do empreendimento, somente a parcela do patrimônio que se transferiu à sociedade responderá pelos prejuízos, ficando a salvo o restante de seus patrimônios particulares. No caso mais numerosamente adotado no Brasil, ou seja, no das sociedades limitadas, somente a parte do patrimônio que tenha sido transferido à sociedade ou que devesse ter sido transferida é que será atingida pelas obrigações da sociedade. Se já tiver havido a transferência à sociedade, não haverá, por certo, de se falar em afetação do patrimônio do sócio, mas sim do da própria sociedade. Haverá a afetação particular, portanto, no caso em que tenha sido assumido o compromisso (subscrição) de se transferir à sociedade determinada parcela de seu patrimônio pessoal (integralização) e isso ainda não tenha sido cumprido. Em qualquer caso, antes de se cogitar a busca pela responsabilização do patrimônio dos sócios, será responsabilizado o da sociedade (art. 1.024 do Código Civil). Dessa forma, o legislador dá ao empreendedor a garantia de que, no caso de o empreendimento ser mal sucedido, gerando prejuízos patrimoniais ao invés dos esperados lucros, o seu patrimônio particular não responderá pelas obrigações eventualmente assumidas. Não há dúvidas de que é um benefício concedido pelo legislador. Em troca do benefício, no entanto, e de forma justa, a lei cobra dos sócios e administradores que, na formação e na condução do negócio se aja sempre estritamente dentro da lei e com observância aos princípios que norteiam a atividade, dentre os quais os já mencionados neste texto. Caso essa contrapartida não seja observada, autoriza a lei que os patrimônios dos sócios e dos administradores venham a responder pelas obrigações assumidas pela sociedade em determinado caso. Nos dizeres de José Edwaldo Tavares Borba: A sociedade, ainda que unipessoal, representa um foco de interesses o interesse da empresa. Desvirtuada essa destinação, frustra-se a base teleológica do instituto - quebra-se a personalidade jurídica, de modo a permitir penetrá-la e responsabilizar o sócio. (BORBA, 2008, p. 34) São essas, portanto, a origem e a razão da teoria da desconsideração da personalidade jurídica. O abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, refere-se aos casos em que a sociedade (o ente personificado) é utilizada pelos sócios e/ou administradores para atingir fins que não são lícitos ou para empreender em desconformidade com o previsto em seus atos constitutivos. 187

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A confusão patrimonial diz respeito aos casos em que, a par da autonomia patrimonial da sociedade em relação aos seus sócios (e administradores), são praticados atos e instituídas relações jurídicas por estes últimos com a obrigação do patrimônio da sociedade. O patrimônio desta é usado como se fosse do(s) sócio(s) e como se com ele se confundisse. 4.2 A AUSÊNCIA DA AFFECTIO SOCIETATIS DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA

COMO

CAUSA

PARA

Como um dos pontos centrais desta pesquisa, põe-se a questão dos efeitos da ausência da affectio societatis na criação e manutenção de uma sociedade limitada quanto a terceiros, credores desta sociedade. A situação não é incomum. Pelo contrário, é bastante usual. Um empreendedor, pretendendo exercer empresa e, por certo, obter lucro, tem à sua disposição duas opções básicas: ou exerce pessoalmente a empresa, caso em que agirá como empresário individual; ou o faz criando uma sociedade, quando precisará, obviamente, de pelo menos mais um sócio. A opção da sociedade se mostra, sob diversos aspectos, mais vantajosa que a de exercer individualmente a empresa. E a principal dessas vantagens é exatamente a separação patrimonial e, por conseguinte, o não comprometimento de todo o seu patrimônio. De fato, não há qualquer separação entre a parte do patrimônio do empresário individual usado no exercício da empresa e a parte que não o é, restando passível de responder pelas obrigações a totalidade de seu patrimônio. Esse fato muitas vezes leva o empreendedor a buscar alguém que apenas “empreste” seu nome para a constituição de uma sociedade que, como já dito, é mais comum que seja a limitada.206 Daí se cria uma sociedade limitada com um dos sócios participando com 90% ou mais do capital social e o outro, meramente figurativo, com os restantes 10% ou menos do capital social. É comum que este “sócio” seja o cônjuge ou companheiro do empreendedor. Como se vê, o “sócio de fachada” não tem, em nenhum momento, seja na constituição, seja em momento posterior a ela, uma real vontade ou intenção de se tornar sócio e, nos termos do artigo 981 do Código Civil, reciprocamente se obrigar “a contribuir, com bens ou serviços, para o exercício de atividade econômica e a partilha, entre si, dos resultados”. Em suma, não se faz presente a affectio societatis, embora, com a assinatura do contrato social, ela formalmente ou aparentemente se faça presente. Maria Helena Diniz percebe o fenômeno e afirma que:   Este é um dos argumentos usados pelos que defendem a adoção, pelo direito brasileiro, da chamada sociedade unipessoal ou mesmo do patrimônio de afetação empresarial. 206

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[...] é recomendável a sociedade unipessoal porque muitas sociedades de responsabilidade limitada contêm um sócio majoritário contando com 90% a 99,9% de quotas, ficando o outro (parente, amigo próximo) com as restantes. Trata-se de fórmula usada para constituir sociedade, diante da obrigação imposta por lei de ter pelo menos um sócio para sua constituição, dando origem a uma ‘simulação autorizada de sociedade’. (DINIZ, 2008, p. 114-115) Apesar de arguta a observação da ilustre civilista, não é exato que a mencionada simulação seja autorizada. E isso traz sérias consequências. A falta da affectio societatis, como visto, seja no momento da formação da sociedade, seja em momento posterior, leva a que falte ao contrato de sociedade assim firmado ou mantido o requisito da consensualidade e a que ele seja simulado (sem autorização, repita-se). Não seria proporcional se admitir que os demais sócios possam pretender a exclusão do sócio pela quebra da affectio societatis, mas se negar que essa quebra (ou inexistência) possa ser invocada por terceiros prejudicados. Essa constatação leva, obrigatoriamente, a se discutir a questão à vista do disposto no artigo 166, III e VI, e 167, ambos do Código Civil. Prevê o artigo 166, III, que o negócio jurídico será nulo se “o motivo determinante, comum a ambas as partes, for ilícito”. O inciso IV do mesmo dispositivo legal, por seu turno, prevê a nulidade para o negócio jurídico que “tiver por objetivo fraudar lei imperativa”. Pois bem. A lavratura do contrato social, feita pelos dois “sócios”, dos quais apenas um portador daquela vontade e daquele intuito previstos no artigo 981 do Código Civil, é feita pelo motivo comum de se usar da proteção patrimonial decorrente da constituição de uma sociedade, pondo a salvo dos credores desta sociedade a parcela do patrimônio do sócio realmente empreendedor que não foi utilizado para o empreendimento, limitando, assim, os riscos de perda dele. É evidente que a personalidade jurídica não existe para ser usada para o que se bem pretenda. Tanto é assim que a lei prevê que, para a sua criação, é necessária a observância de diversos critérios, elementos e requisitos, dentre eles a existência da affectio societatis. Dessa forma, os sócios agem movidos por razão determinante comum que não é lícita, e o negócio jurídico - contrato social, sociedade -, é nulo, pelo menos a princípio. Igualmente, o negócio será nulo, também a princípio, porque o seu objetivo é fraudar a lei que prevê que a integralidade do patrimônio de uma pessoa responderá pelas obrigações por ela assumidas em empresa individual. Por fim, em casos assim se está diante de negócio jurídico evidentemente simulado porque no contrato social se faz, obrigatoriamente, declaração não verdadeira e, por conseguinte, nele haverá cláusulas também não verdadeiras (art. 167, §1º, II, Código Civil). O negócio jurídico simulado é nulo, somente subsistindo o que se dissimulou se ele for válido na substância e na forma, o que não é o caso já 189

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que, em substância, o negócio, como visto, é nulo. Importante, ainda, dizer que nesses casos os sócios não terão agido com a necessária boa fé objetiva de que já se cogitou neste trabalho. Mesmo entre eles, em que há um verdadeiro pacto de solidariedade, faz-se presente unicamente a boa fé subjetiva e não a objetiva. Quanto aos terceiros, notadamente quanto aos credores da “sociedade”, então, nem de longe há se falar em observância da boa fé objetiva já que a lealdade e confiança que marcam este princípio jamais terão existido. O que decorre desta constatação é drástico: o contrato social é nulo e, portanto, não existe sociedade. E os negócios jurídicos nulos não podem ser confirmados e o decurso de tempo não os faz convalescer (artigo 168 do Código Civil). Ou seja, tudo o que se tiver praticado em nome da sociedade será, igualmente, nulo. E já que a sociedade é inexistente, diante da nulidade do contrato que a criou, é inviável a continuidade do exercício de qualquer atividade por ela, o que levará à extinção da empresa (atividade) e encerramento da produção de riqueza, tributos, da geração de empregos, dentre outros. Tendo em vista o princípio da preservação da empresa, que como visto se faz presente inclusive na legislação falimentar, não parece que a simples declaração de nulidade do negócio jurídico seja a solução mais adequada a ser tomada, mormente se, de uma forma ou de outra, tal empresa esteja cumprindo sua função social. Por outro lado, aquele que eventualmente se veja lesado pela simulada proteção patrimonial criada não pode ser prejudicado. A solução para a questão, então, parece estar na desconsideração episódica da personalidade jurídica da sociedade, alcançando-se o patrimônio do sócio que tenha se beneficiado, satisfazendo os interesses do credor e mantendo-se a atividade produtiva. Diz Luiz Hentz sobre o assunto: A dificuldade para admitir novas formas de atuação empresarial, como a sociedade unipessoal, a empresa individual de responsabilidade limitada e o patrimônio de afetação, tem propiciado o abuso de modelos societários com o objetivo de limitar a responsabilidade dos sócios, que assim não se veem atingidos por obrigações originárias da empresa. A pessoa jurídica ergue-se como véu protetor do patrimônio dos integrantes da sociedade. José de Oliveira Ascensão enuncia a possibilidade de abuso em fraude à lei, à obrigação contratual, contra credores e em razão de controle societário, quando provada a falta da autonomia da entidade controlada. A verificação de qualquer hipótese, resultando penalização de credores, como a dificuldade para receber créditos ou executar direitos reais, dá lugar, mediante devido processo legal, ao afastamento do véu protetor da personalidade jurídica para alcançar a satisfação do direito de terceiros.207 (HENTZ, 2002, p. 91)   HENTZ, Luiz Antônio Soares. Ob. cit., p. 91.

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De fato, não há como se imaginar que, sendo usada com o objetivo de burlar a lei, a personalidade jurídica não esteja sendo desviada de seus fins. Dessa forma, lembrando-se novamente do princípio da preservação da empresa, a sociedade assim formada deve poder continuar exercendo a empresa. O que não se admite é a oposição da autonomia patrimonial, da distinção entre o patrimônio da pessoa jurídica e o de seus sócios, a terceiros que se mostrem credores dessa sociedade. Como o vício (a simulação) é continuamente repetido, é reiterado a cada dia de existência da sociedade, o resultado será o de que qualquer obrigação contraída pela sociedade poderá ter seu cumprimento imposto aos sócios. Extinto o vício com, por exemplo, a admissão de um sócio real, tornando presente a affectio societatis, cessa a causa da desconsideração e a sociedade passa a ter, verdadeiramente, autonomia patrimonial. 5. CONCLUSÃO A autonomia privada, que consiste na possibilidade das pessoas regularem suas relações de natureza eminentemente particular, possui força vinculante e obrigatória que as compele a proceder conforme pelas partes regulado. Tal manifestação só é possível por haver autonomia dos entes privados para regularem suas relações jurídicas pessoais permitidas pelo Direito. O direito de propriedade, ao ser exercido, vale-se do contrato para, pelo arbítrio da vontade das partes, transigirem sobre os direitos inerentes à propriedade. Sendo esta o objeto do contrato, tal instituto viabiliza a plena disposição pelo proprietário dos seus direitos. Na medida em que a propriedade como objeto contratual foi perdendo o seu caráter puramente privado, o contrato experimentou o mesmo processo. No mesmo sentido, as relações jurídicas estabelecidas a partir do contrato de sociedade evidenciaram a manifestação da autonomia privada, levada a efeito pela liberdade de contratar e pela liberdade contratual, na medida em que ninguém pode ser compelido a contratar ou a permanecer contratado e que os contratantes dispõem de liberdade para pactuar o teor contratual. O contrato social consiste em um instituto de extrema importância para a atividade empresária, pois, é por meio dele se exterioriza a vontade das pessoas que contribuem com recursos e esforços para a formação de uma organização destinada a desempenhar uma atividade fim, com o objetivo de lucro. Os contornos impostos pela função social do contrato aos contratantes estão a todo tempo em conflito com os direitos subjetivos exercidos ora pelos sócios, ora pela própria sociedade, o que demanda uma definição clara do limite para os sócios que se unem pelo contrato social e pela sociedade que age em nome próprio, mas por meio de um administrador. 191

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Se uma das funções da funções sociais do contrato consiste na limitação de direitos subjetivos, temos que os sócios podem se valer do contrato para constituir uma personalidade jurídica autônoma sem, contudo, comprometer os demais sócios ou terceiros fora da relação societária. A sociedade, por sua vez, deve respeitar os sócios, assim como qualquer terceiro, pois, apesar de personalidade autônoma em relação a dos sócios, seus atos não podem prejudicar qualquer um deles, tampouco a sociedade em geral. Sendo assim, ao contrato de sociedade se impõe um limite à manifestação da autonomia privada, a função social. Por fim, uma das conclusões a que se chega é a de que a sociedade de pessoas é o tipo de sociedade que pressupõe um elo de afinidade entre os sócios, do qual se parte para constituir e manter a união entre tais sócios. Se ausente tal vínculo, seja na constituição ou na continuação da sociedade, um dos pressupostos para esse tipo societário não está presente. Tratando-se de sociedade cuja presença de um dos sócios ocorre meramente para que o outro possa obter as vantagens da limitação da responsabilidade, forçoso concluir que este contrato de sociedade é simulado, razão pela qual é nulo, visto que a simulação é um vício do negócio jurídico, eivando-o de nulidade.

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ACORDOS TRABALHISTAS EXTRAJUDICIAIS: UMA POSSIBILIDADE DE COMPATIBILIZAR A AUTONOMIA E A INTERVENÇÃO ESTATAL EXTRAJUDICIAL LABOR AGREEMENTS: A POSSIBILITY OF HARMONIZING AUTONOMYAND STATE INTERVENTION Marcelo Ivan Melek208 RESUMO A conciliação é uma importante forma de solução de conflitos, pois as próprias partes põem fim a lide a partir de suas convicções, ou seja, não há intervenção estatal impositiva do Estado. No direito processual do trabalho, a conciliação é um princípio que norteia este ramo do direito e também é norma jurídica pois a Consolidação das Leis do Trabalho, determina que o juiz tente promover pelo menos em dois momentos processuais a conciliação. Vale dizer, que a conciliação realizada em juízo não encontra problemas principalmente no que tange a real vontade das partes e a segurança jurídica. Assim, o objeto de estudo do presente artigo está inserido precisamente nas conciliações que são realizadas extra juízo, ou seja, nas transações extrajudiciais. A problemática a ser enfrentada neste trabalho versa acerca da validade da transação e da (im)possibilidade e limites da homologação judicial da transação extrajudicial realizada pelas próprias partes, feitas ou não com o acompanhamento de um advogado. Sabe-se que a validade deste tipo de transação é muito questionada na Justiça e pela doutrina, tendo em vista a hipossuficiência do empregado face ao empregador, podendo conter vícios de consentimento daquele. Outra questão envolta de polêmica, que merece uma cuidadosa análise, é no que se refere a (in)competência da Justiça do Trabalho para homologar a transação extrajudicial, eis que a Constituição Federal de 1988 no seu art. 114 não contempla expressamente tal possibilidade. A pesquisa pautou-se em ampla pesquisa bibliográfica envolvendo o tema, com análise de jurisprudência identificando os argumentos jurídicos que ora defendem a possibilidade de homologação e ora negam essa possibilidade. A partir deste estudo, conclui-se, ao final, que é dever da Justiça do Trabalho fazer tal homologação, devendo ainda incentivar e promover a conciliação, inclusive a extra judicial, o que se comprova com a incidência de princípios e de normas jurídicas neste campo. Por fim, ressaltaBacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba. Especialista em Direito do Trabalho e Processual do Trabalho. Mestre em Educação. Advogado Trabalhista. Doutorando em Direito pela PUC/PR. Membro do Grupo de Pesquisa “Desregulamentação Do Direito, do Estado e Atividade Econômica: Enfoque Laboral”. Professor de Direito do Trabalho e Processo do Trabalho. 208

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se que diante da negativa do juiz em fazer tal homologação da transação, que efetivamente ocorreu, não resta outra alternativa para as partes, senão de simular uma reclamatória trabalhista, para que na primeira audiência se faça o acordo. Todavia, esta última possibilidade não pode prosperar no Direito Brasileiro como forma de solução de conflitos, sendo a homologação o instrumento jurídico que fornece segurança jurídica para as partes e eficácia da transação.  Palavras-Chave: Atividade Laboral, Homologação Extrajudicial, Conciliação.   ABSTRACT Conciliation is an important form of conflict resolution because the parties themselves put an end to proceedings from his convictions, ie, no forceful state intervention of the state. In the procedural law of the work, conciliation is a guiding principle for this branch of law and rule of law is also for the Consolidation of Labor Laws, provides that the judge try to promote at least two times the conciliation procedure. Ie, that reconciliation held in court does not find problems, especially regarding the real intentions of the parties and legal certainty. Thus, the study object of this paper is inserted precisely in that reconciliations are performed extra court, or in-court transactions. The issue to be addressed in this essay is about the validity of the transaction and the (im) possibility and limits of judicial approval of extrajudicial transaction performed by the parties themselves, or not made with the help of a lawyer. It is known that the validity of this type of transaction is very challenged in court and by the doctrine in view of the weaker of the employee against the employer, and may contain defects that consent. Another issue surrounded by controversy, which deserves careful analysis, as regards the (in) competence of the Labour Court to approve the transaction out of court, behold, the 1988 Federal Constitution in its article. 114 does not expressly contemplates that possibility. The research was based on extensive literature review of the subject, with analysis of case law identifying the legal arguments that now advocate the possibility of approval and now deny that possibility. From this study it is concluded in the end it is the duty of the Labour Court to make such approval, and shall encourage and promote reconciliation, including extra judicial, which is proved with the incidence of principles and rules of law in this field. Finally, we emphasize that the denial before the judge in making such an approval of the transaction, which actually occurred, there is no other alternative for the parties, but to simulate a labor claim, that the first audience to do the deal. However, this latter possibility can not thrive in Brazilian law as a means of conflict resolution, with the approval the legal instrument that provides legal certainty for the partie s and effectiveness of the transaction. Keywords: Labor Activity, approval Extrajudicial, Conciliation. 196

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1. INTRODUÇÃO Um dos princípios norteadores da Justiça do Trabalho, sem dúvida, é a conciliação. A conciliação permite que as próprias partes solucionem seus conflitos, sem necessariamente haver lide, isto é, sem a obrigatoriedade de haver a pretensão resistida. A própria CLT contribui como norma para que as partes realizem a conciliação, pois ao longo do processo do trabalho, o juiz é obrigado, nos termos desta norma, propor pelo menos duas vezes a conciliação. Vale lembrar que a conciliação é permitida a qualquer tempo, mesmo em fase de execução. Outro exemplo do interesse em realizar conciliação foi a edição da Lei n° 9.958/2000, que alterou o art. 625 da CLT, criando as comissões de conciliação prévia, com o intuito das partes resolverem seus conflitos em âmbito negocial, fora da Justiça do Trabalho, gerando diversos efeitos como por exemplo a diminuição do número de demandas a serem processadas e julgadas por esta Justiça Especializada. Ainda, os Tribunais Regionais, por recomendação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) têm promovido a chamada Semana da Conciliação, onde as partes são chamadas para juntamente com os conciliadores, que comumente são alunos das faculdades de direito ou servidores da Justiça, resolverem suas demandas. Vale dizer, que antes mesmo de haver uma demanda trabalhista, as partes podem se conciliarem transacionando extrajudicialmente. Todavia, neste caso a segurança jurídica fica abalada pelo fato de que uma das partes podem tentar vir a invalidar o acordo extrajudicial realizado pelas partes, por diversos tipos de argumentos jurídicos, como a coação, simulação ou outro vício. Todavia, a fim de fornecer maior segurança jurídica para as partes, o ordenamento jurídico prevê a possibilidade da homologação judicial da transação extrajudicial, precisamente no Código Civil e Processual Civil. Desta forma, estes dispositivos aplicados no Direito do Trabalho, atender-se-ia o princípio da conciliação, e neste caso sem a formação da lide, o que demandaria todo o processamento e julgamento do processo pela Justiça. No entanto, discute-se acerca da possibilidade da aplicação destes dispositivos no Direito do Trabalho, questionando-se sobre sua compatibilidade. Ainda, há também a alegação de que a Justiça do Trabalho não tem competência para a jurisdição voluntária. Não se pode olvidar que a conciliação face a intervenção Estatal de dizer o direito, é muito mais vantajosa para a atividade econômica, para o Estado e também para o trabalhador. Para as partes é a solução mais vantajosa, pois foram elas mesmas que decidiram as questões, sem imposição de um terceiro. 197

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Em seu turno, no que tange ao Estado este não tem interesse em intervir para decidir o conflito, ao menos que seja provocado e ainda assim, como visto, tenta a negociação através da Justiça do Trabalho. A partir destas considerações acerca da conciliação, como forma de solução de conflito, e sua importância, tem-se como objetivo deste estudo verificar a possibilidade da homologação judicial de transação extrajudicial na Justiça do Trabalho, de maneira que se atenda o princípio da conciliação, sem ferir as disposições legais trabalhistas. 2. DAS FORMAS DE SOLUÇÃO DE CONFLITO Antes mesmo de discorrer sobre as formas de solução de conflito, necessário fazer considerações a respeito dos conflitos. Os conflitos ocorrem em qualquer relação humana, especialmente a trabalhista, tendo em vista o conflito inerente a relação dialética entre capital e trabalho. Aliás, este conflito é inerente desde as formas mais primitivas do trabalho, como a escravidão e a servidão. A palavra conflito vem do latim, e quer significar combater, lutar, designando posições antagônicas209. Essa luta ou combate na relação trabalhista não é necessariamente nefasta a sociedade, pois como resultado dela os trabalhadores historicamente foram conquistando direitos e novas formas de trabalho, que não ferissem sua condição humana e de dignidade. Obviamente, há também o lado negativo dessa batalha, pois a atividade econômica que uma determinada empresa explora pode sofrer conseqüências profundas e até mesmo deixar de existir, frente a essa batalha, que em maior escala pode gerar, como dito, a extinção da empresa, e com ela todos os benefícios trazidos por ela, como emprego e renda, por exemplo. Como dito, apenas algumas considerações a respeito do conflito são fornecidas, já que o objetivo aqui é de verificar e analisar as formas de solução deles. Obviamente, outras colocações de ordem sociológica, filosófica e econômica caberiam na análise dessa luta. Na esfera trabalhista, comumente utiliza-se as expressões controvérsias ou dissídios para denominar o conflito, as quais possuem o mesmo significado em termos práticos. A greve e o lockout são exemplos de conflitos, os quais a doutrina os entende como sendo mais gerais e amplos210. Já os dissídios, vocábulo empregado pela CLT, estão atrelados a idéia de solução judicial, ou seja, de um conflito a ser solucionado pela Justiça do Trabalho.   Dicionário Básico de Latim Jurídico. 5ªed. São Paulo: Russell, p. 212.   Exemplo de doutrina que tem este entendimento é a obra Direito Processual do Trabalho, de Sérgio Pinto Martins. 27ªed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 46. 209 210

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Vale lembrar, que os dissídios podem ser de natureza individual e coletivo, cada qual com seu regramento jurídico. O primeiro diz respeito às relações individuais de trabalho, onde as partes são de um lado um empregado e um ou mais empregadores, ficando a decisão judicial com efeito apenas entre elas. Também, há as ações plúrimas onde há uma pluralidade de partes, seja do lado ativo ou passivo, tendo a sentença efeitos igualmente entre as partes. Os dissídios coletivos, os efeitos da sentença atinge toda uma categoria ou grupo de trabalhadores, tendo a figura dos Sindicatos grande destaque neste tipo de dissídio. Claro está que nesta distinção não importa necessariamente o número de indivíduos no dissídio, mas sim as naturezas dos interesses discutidos. Enquanto que nos individuais os interesses discutidos são concretos, os beneficiários são pessoas determinadas, individualizadas, já no coletivo os interesses discutidos são abstratos, pertinentes a toda categoria e os beneficiários são pessoas indeterminadas, representadas por um Sindicato de categoria patronal e outro de natureza profissional. Outro vocábulo jurídico relevante para a análise deste tema é a lide, que segundo Carnelutti211, é um conflito de interesses dotado de pretensão resistida, ou seja, há um conflito onde uma das partes nega ou modifica a pretensão da outra, e vice-versa. Neste caso, o conflito vai evoluindo para um dissídio, onde haverá duas teses que geralmente são diametralmente opostas, e dificilmente a resposta jurídica para este conflito não vai vir do Estado. Feitas estas considerações passa-se, então, a análise das formas de solução dos conflitos trabalhistas, propriamente dito. As formas de solução não são classificadas de maneira uniforme pelos doutrinadores, adotando para fins deste estudo a de Amauri Mascaro Nascimento212 o qual classifica da seguinte forma: autodefesa, autocomposição e heterocomposição. A autodefesa é a forma de solução de conflitos, onde as partes fazem a sua própria defesa, impondo sua vontade ou condição à outra. Esta modalidade de autodefesa é admitida em casos excepcionais na esfera trabalhista, sendo exemplos a greve e o lockout. Certo é que a greve nem sempre resolve o conflito, representando uma forma de pressão de uma parte sobre a outra, tendo que ser resolvida, inclusive sob sua legalidade ou abusividade pela Justiça do Trabalho. Já no que tange a heterocomposição, deve-se dizer que sua principal característica é de que a decisão vem de um terceiro, devendo as partes cumprir o que foi determinado por este terceiro fielmente e adstrito as determinações   CARNELUTTI, Francesco. Instituzioni del processo civile Italiano. 5. ed. Roma: Soc. Ed. Del “Foro Romano”, 1956, p.148. 212   NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de Direito Processual do Trabalho. 23ªed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 5. 211

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da decisão. São formas desta modalidade de solução de conflitos, a medição, arbitragem e a tutela e jurisdição. Em síntese, a mediação que vem do verbo em latim mediare, tem o sentido de mediar, dividir ao meio de intervir213, consistindo basicamente no chamamento pelas partes de um terceiro para solucionar o conflito, mediante uma proposição de solução as partes. Vale dizer, que as partes não estão obrigadas a aceitar tal proposição, mas podem realizar uma composição, por meio de um acordo de vontades. Esta modalidade apresenta-se em geral na forma extrajudicial, diferentemente da conciliação que pode ser judicial ou extrajudicial. Outra figura que se enquadra para alguns doutrinadores, como Sérgio Pinto Martins, como mediação são as comissões de conciliação prévia (CCP) criada pela Lei n° 9.958 de 2000, modificando o art. 625 da CLT, onde são realizadas propostas para solução dos conflitos apresentados. Vale dizer que a CCP não tem competência decisória, isto é, o mediador ou conciliador não tem competência para decidir, mas sim mediar e conciliar. No entanto, o entendimento que se tem acerca da natureza jurídica da CCP é a conciliatória de forma preponderante. Sobre a conciliação, incluindo a CCP, será abordado no próximo tópico de maneira mais apropriada. Ainda, na heterocomposição tem-se a arbitragem, cuja origem remonta nas Ordenações do Reino de Portugal, ainda no século XVII. Segundo Sérgio Pinto Martins214, arbitragem é uma forma de solução de conflitos, feita por um terceiro estranho à relação das partes ou por um órgão, que é escolhido por elas, impondo a solução do litígio. É uma forma voluntária de terminar o conflito, o que importa em dizer que não é obrigatória. Então, tem-se a figura do árbitro com a sua decisão denominada de sentença arbitral. As partes podem submeter o seu conflito ao árbitro de duas formas: por meio de cláusula compromissória ou pelo compromisso arbitral, ambos regulados pela Lei n 9.307/96, bem como todo o instituto da arbitragem. A aplicação da arbitragem no direito do trabalho é muito discutida e controvertida na comunidade jurídica como um todo. Há argumentos jurídicos relevantes defendendo a possibilidade, como há, também, argumentos igualmente relevantes defendendo, ao contrário, sua impossibilidade. O que se deve lembrar, é que de acordo com a Lei n 9.307/96, logo em seu artigo 1°, somente os direitos patrimoniais disponíveis podem estar sujeitos a arbitragem. Direito patrimoniais disponíveis são os de natureza privado ou contratual, que podem ser alienados. Aliás, este é um dos principais argumentos encontrados na doutrina brasileira215 que justificam a impossibilidade de aplicação deste   Dicionário Básico de Latim Jurídico. 4ªed. São Paulo: Russell, 2002, p. 531.   MARTINS, Sérgio Pinto. Direito Processual do Trabalho. 27ª ed. São Paulo: Atlas, 2007, p.58. 215 Neste sentido: DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 5ªed. São 213 214

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instituto no campo trabalhista, uma vez que o trabalhador não pode transacionar seus direitos diante do empregador, apenas em juízo. Como o objetivo aqui não é discutir o instituto da arbitragem no direito do trabalho, a abordagem do tema ficará limitada como forma de solução de conflitos, mediante heterocomposição. Finalmente, o que mais interessa no presente estudo é a última forma de solução de conflitos, denominada de autocomposição. Segundo Amauri Mascaro do Nascimento216, autocomposição é a técnica segundo a qual o conflito é solucionado pelas próprias partes, sem emprego de violência, mediante ajuste de vontades. Obviamente, está-se diante da melhor forma de solução de conflito, pois as próprias partes resolvem suas questões, em intervenção de um terceiro, ficam plenamente satisfeitas com o deslinde do conflito. A autocomposição pode ser realizada, de acordo com classificação doutrinária, como unilateral e bilateral. A primeira é caracteriza pela renúncia de uma das partes a sua pretensão. Já a segunda, ocorre quando há concessões recíprocas, ao que se denomina de transação. Exemplos de formas autocompositivas de solução dos conflitos trabalhistas são os acordos e convenções coletivas. Uma interessante posição doutrinária de Octávio Bueno Magano, que merece ser aqui trazida é de que a arbitragem e a mediação são formas de autocomposição, uma vez que as próprias partes escolherão uma pessoa para dirimir seus conflitos217. A conciliação pode ser feita por meio de um conciliador, que tem a função de aproximar as partes, sem fazer propostas, representando uma figura de facilitador que aproxima as partes. Também, a conciliação pode ser feita por iniciativa das próprias partes. A conciliação pode ser feita no âmbito judicial ou extrajudicial. A definição sociológica218 de conciliação é como sendo a forma consciente de acomodação. Envolve a mudança de sentimento com a diminuição da hostilidade. Há harmonização entre os antagonistas. Com esta definição enfatiza o fato de que as partes ficam satisfeitas, sentem-se justiçadas, pois as suas vontades foram levadas em conta e foram decisivas para por fim ao conflito. A conciliação traz consigo diversas vantagens para as partes, pois como dito, além do sentimento de justiça satisfeito, as partes não se expõem, isto é, são poupadas de discussões, de comparecimento às audiências, de serem obrigadas Paulo: Ltr,2006, p. 1451. 216   NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de Direito Processual do Trabalho. 23ªed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, p. 06. 217   MAGANO, Octávio Bueno. Manual de Direito do Trabalho: direito individual. São Paulo: Ltr, 1992, p. 53. 218   LAKATOS, Eva Maria. Sociologia Geral. 6ªed. São Paulo: Atlas, 1990, p. 309. 201

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a lembrar e comprovar, muitas vezes, situações desagradáveis que trazem ainda maior sofrimento para as partes. Há também, um aspecto econômico a ser destacado nesta modalidade de solução de conflitos, pois praticamente não há despesas judiciais e de honorários advocatícios, se comparados com uma ação processada e julgada pela Justiça do Trabalho. A conciliação também apresenta uma alternativa interessante à atividade econômica, pois por meio dessa consegue por fim ao conflito, diminuindo a previsão de passivo trabalhista do empregador, o que contribui para um melhor planejamento e organização da exploração da atividade por parte dos administradores. As conciliações, comumente, trazem grandes vantagens econômicas para ambos os lados: de um lado para o trabalhador, que recebe o montante de forma rápida e eficaz, ficando livre de compromissos judiciais, bem como pode também organizar e planejar melhor a sua vida, a partir do acordo celebrado; de outro lado, o empregador livra-se de custas, maiores despesas de honorários advocatícios, pagamento de eventual perícia, etc, sem dizer que os acordos celebrados são, quase que em sua maioria, valores muito aquém daqueles que seriam decididos pelo Estado, em caso de condenação. Além disso, o empregador também se desobriga a acompanhar o processo e suas fases, podendo se ocupar mais de sua atividade na administração de sua empresa. Para o Estado também é vantajosa a conciliação, pois não é sua função de intervir nos interesses dos particulares, senão mediante provocação de uma das partes. De igual modo, há vantagens econômicas e de eficácia da Justiça do Trabalho, pois na conciliação, praticamente não há custo para o Estado, bem como toda a estrutura judiciária não é ativada para por fim ao conflito, podendo ser mais célere com os processos em andamento, ou seja, provoca uma diminuição de demandas na Justiça do Trabalho. Como visto neste tópico, a conciliação ocupa papel de destaque, dentre as formas de solução de conflitos, uma vez que cabe as próprias partes resolverem seus conflitos, em contraposição de um terceiro que proferirá uma decisão de forma impositiva às partes, como ocorre no caso da heterocomposição. A autotutela, como visto, não é uma forma muito comum de solução de conflitos, uma vez que as hipóteses de utilização são pouco numerosas, se comparadas com as outras formas, no Direito do Trabalho. Em virtude de seu destaque dentre as formas apresentadas, a conciliação será o objeto de apreciação do próximo tópico. 3. A CONCILIAÇÃO NO DIREITO DO TRABALHO A conciliação é muito utilizada nas relações de trabalho, não só no Brasil, como em todo o mundo, pondo fim aos conflitos por meio da ação das próprias partes envolvidas. 202

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O Estado por meio de suas normas e pelo próprio Poder Judiciário motiva de várias formas a celebração de um acordo. As regras processuais do trabalho, contidas na CLT, colocam a conciliação como um princípio expresso a ser atingido no processo. Neste sentido, Amauri Mascaro do Nascimento, ao descrever os princípios específicos do direito processual trabalhista e ao falar da conciliação assim escreve: “a importância fundamental da conciliação nos dissídios individuais e coletivos”219. No mesmo sentido, Isis de Almeida220, afirma que considera o princípio da conciliação o mais peculiar, diante da sujeição, tanto dos dissídios individuais como coletivos, à fase obrigatória de conciliação. Neste mesmo sentido, Carlos Henrique Bezerra Leite221 diz que “embora o princípio da conciliação não seja exclusivamente do processo laboral, parecenos que é aqui que ele se mostra mais evidente, tendo, inclusive, um iter procedimentalis peculiar”. Diante destas contribuições doutrinárias, conclui-se ser a conciliação mais do que uma forma de solução de conflitos, mas um princípio com função de integração e de orientação. Como já dito anteriormente, a CLT enquanto norma também coloca a conciliação com papel de destaque, pois logo em seu segundo artigo de normas relativas ao processo do trabalho, art. 764, acrescenta que os dissídios individuais ou coletivos submetidos à apreciação da Justiça do Trabalho serão sempre sujeitos à Conciliação. E ainda, em seu parágrafo 1º determina que os Juízes e Tribunais do Trabalho empregarão sempre os seus bons ofícios e persuasão no sentido de uma solução conciliatória dos conflitos. Diante do conteúdo do artigo acima citado, nota-se que a conciliação é sempre possível e desejada ao longo do processo do trabalho, ainda que em fase de execução de sentença e colocam os juízes e tribunais como sujeitos ativos para promover a conciliação. Neste sentido, vale recordar as lições de Amauri Mascaro Nascimento222 que diz que: O direito processual do trabalho dá grande ênfase à conciliação, como forma de se atingir o objetivo da paz social. Interessa ao Estado que as próprias facções em litígio encontrem, elas mesmas, a fórmula capaz de compor suas divergências. Por isso, ao criar órgãos judiciários especializados em questões do trabalho, instituiu na função conciliatória   NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de Direito processual do trabalho. 23.ed. Saraiva: Rio de Janeiro, 2008, p. 118. 220   DE ALMEIDA, Isis. Manual de Direito processual do trabalho. São Paulo: Atlas, 1995, p. 125. 221   LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Curso de Direito Processual do Trabalho. São Paulo: Atlas, 2006, p. 79. 222   NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de Direito Processual do Trabalho. 23ªed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 208-209. 219

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deles, devendo o juiz atuar como mediador na busca de uma auto-solução pacífica para as pendências. Diante da citação, fica clara que uma das funções primordiais do direito processual do trabalho, enquanto instrumento, forma de se chegar à aplicação do direito material, é de buscar a conciliação, como forma de atingir a paz social. Desta forma, a CLT obriga o juiz a tentar pelo menos duas vezes ao longo do processo a conciliação, em dois momentos: assim que aberta a audiência, de acordo com o art. 846 da CLT; e logo após as razões finais, conforme o art. 850 do mesmo diploma legal, sob pena de nulidade processual de acordo com jurisprudência consolidada. Como visto, a lei processual do trabalho tenta ao máximo promover ou motivar as partes, a celebrar acordo, com a participação fundamental dos juízes e tribunais, os quais devem utilizar de sua experiência e habilidades de persuasão, a fim de que se promova a conciliação. No entanto, ainda na CLT há também a previsão legal das CCP, criada pela Lei 9.958, de 12 de janeiro de 2000, facultou a criação das CCP seja em âmbito sindical, seja no âmbito da empresa. A referia Lei acrescentou as letras “A” a “H” no art. 625 da CLT, disciplinando sobre a forma da criação, composição, eficácia e alguns procedimentos. Dentre as disposições a que merece especial destaque é a letra “D” do artigo em questão, uma vez que obriga todas as demandas de natureza trabalhista serem submetidas previamente a CCP, quando existente. Aqui, está-se diante de mais uma forma que o Estado encontrou em resolver as demandas trabalhistas por meio da conciliação. Quando realizada, lavra-se termo assinado pelo empregado, empregador ou seu preposto e pelos membros da Comissão, fornecendo cópias as partes, constituindo-se um título executivo extrajudicial, que confere eficácia liberatória geral, exceto nas parcelas expressamente ressalvadas. Como visto, teoricamente só há benefícios na constituição e no funcionamento das CCP, já que representa uma forma alternativa de por fim a um conflito, com eficácia liberatória geral, sem a interferência estatal, sem contar que contribui para o desafogamento das demandas trabalhistas na Justiça. Todavia, a prática tem demonstrado que muitos Sindicatos e empresas não possuem CCP, pelo menos na cidade de Curitiba, não sendo aplicados os dispositivos do art.625 da CLT e seus respectivos efeitos. E, quando existente, os resultados em termos de conciliação, variam muito de Sindicato para Sindicato, havendo, contudo, bons exemplos sindicais que obtêm bons resultados conciliatórios. Também, a respeito do funcionamento da CCP, muitos doutrinadores fazem juízos críticos sobre o instituto. Dentre eles, confere-se destaque para o seguinte: 204

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Não vislumbramos boas possibilidades de sucesso na atuação prática das Comissões de Conciliação Prévia, por várias razões. Em primeiro lugar, o termo de conciliação não oferece a segurança liberatória almejada pelo empregador. O processo trabalhista sempre recusou a força executiva aos títulos extrajudiciais, basicamente porque a situação de inferioridade em que se encontra o empregado prejudica a autenticidade de sua manifestação de vontade. (...)223. A este juízo crítico foi conferido destaque por evidenciar a insegurança jurídica das partes, especialmente aqui do empregador, na celebração do acordo, no que tange a sua eficácia, bem como a insegurança em possuir um título executivo extrajudicial, tendo em vista a hipossuficiência do empregado face ao empregador. Então, reforça-se neste juízo crítico a importância da garantia de haver uma homologação judicial mesmo em acordos celebrados que por garantia legal já teriam o status de título executivo extrajudicial. De qualquer sorte, pode-se dizer que a CCP, enquanto instituto jurídico pode ser aperfeiçoado e aprimorado pelas empresas e Sindicatos, podendo obter resultados mais expressivos em termos conciliatórios. Há que se dizer que a CCP tem sua importância em representar mais uma forma de solução de conflitos. Como já dito anteriormente, o Estado tem interesse na conciliação pelos motivos já expostos, fazendo os juízes e Tribunais terem papel de destaque na tentativa conciliatória, embora não seja atividade atribuída exclusivamente a eles. Neste sentido, o Conselho Nacional de Justiça, também vem atuando no sentido de promover a conciliação trabalhista. Exemplo disso, é a recomendação nº 8 de 2007224, a qual recomenda aos Tribunais de Justiça, Tribunais Regionais Federais e a realização de estudos e de ações tendentes a dar continuidade ao Movimento pela Conciliação. Expressamente na alínea “b”, nesta recomendação, o CNJ dispõe: b) o planejamento anual, no âmbito do Tribunal, do Movimento pela Conciliação, em que se podem inserir a fixação de um dia da semana com pauta exclusiva de conciliações, a preparação de semanas de conciliação e do Dia Nacional da Conciliação de 2007, a definição de metas, a realização de pesquisas, dentre outras atividades; Deste modo, em todo o País os Tribunais Regionais do Trabalho, têm promovido pelo menos uma vez por ano a chamada Semana da Conciliação,   NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de Direito Processual do Trabalho. 23ªed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2008, p.217. 224   Disponível em: http://www.cnj.jus.br/index.php?option=com_content&view=article&id=273 2:recomenda-no-8&catid=60:recomendas-do-conselho&Itemid=515. Acesso em 03/08/09. 223

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onde as partes são chamadas a comparecer na Justiça, com a figura de um conciliador que motiva e tenta promover a conciliação. Pelo o que foi pesquisado nos Estados de São Paulo, Paraná e também do Distrito Federal, os resultados têm sido bem expressivos e dignos de apresso. Como exemplo, pode-se colocar os resultados da Semana Nacional da Conciliação do TRT da 9 ª Região, que em cinco dias realizou 5961 audiências, com 2447 acordos, o que representa um percentual de 41% de acordos celebrados. O valor geral obtido com a conciliação foi no montante de R$ 22.776.058,94, ou seja, quase 23 milhões considerados os acordos da 1ª e 2ª instâncias225. Constata-se que o Movimento pela Conciliação coordenado pelo CNJ representa mais uma alternativa de solução de conflitos, por meio da conciliação, o que contribui em muito para a agilidade e eficácia da Justiça do Trabalho Brasileira. Todavia, a conciliação também pode ser obtida ainda quando não há lide propriamente dita, ou seja, quando há conflito sem haver pretensão resistida, neste caso sem haver demanda trabalhista. Assim, não há submissão há CCP, quando existentes, e tão pouco a Justiça do Trabalho. Esta forma de conciliação sem haver demanda trabalhista, ocorre quando as partes de comum acordo concordam em resolver seus conflitos, sem necessitar que uma das partes ingresse com uma ação trabalhista. Esta modalidade de conciliação denomina-se de transação extrajudicial. A ocorrência desta forma de solução de conflitos, em regra, é mais comum quando as partes já possuem um bom nível de diálogo, mesmo no momento do rompimento do vínculo contratual, o que facilita a aproximação delas, tendo como resultado a transação. Neste caso, as partes ficam satisfeitas e muitas vezes sequer vislumbram necessariamente um conflito, pois se concentram em resolver os problemas levantados por uma ou por ambas as partes. No entanto, há que se dizer que este tipo de transação apresenta o mesmo problema da falta de segurança jurídica em ser um título executivo extrajudicial, pelos mesmos motivos apresentados na conciliação feita na CCP, com o agravante de não haver uma comissão designada para este fim, sendo comumente realizada diretamente entre empregado e empregador. Desta forma, a fim de assegurar maior eficácia a esta forma de conciliação e assim maior segurança jurídica às partes, é interessante a homologação judicial dessa transação feita extra juízo, objeto do tópico a seguir.

 Apresentação dos dados disponíveis em: http://www.trt9.jus.br/internet_base/pagina downloadcon.do?evento=F9-Pesquisar&tipo=3#continuidade ao Movimento pela Conciliação. Acesso em: 02/08/09. 225

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4. A HOMOLOGAÇÃO JUDICIAL DA TRANSAÇÃO EXTRAJUDICIAL Sob o argumento principal da segurança jurídica no momento da transação extrajudicial, as partes, ou especialmente o empregador, tem interesse que esta forma de conciliação seja homologada judicialmente. No que diz respeito à legislação trabalhista, esta não prevê em seus dispositivos a homologação judicial de transação extrajudicial. Diante da omissão da CLT e demais dispositivos, busca-se fundamento em outras disposições fora do Direito do Trabalho ou Processual do Trabalho. O Código de Processo Civil (CPC) dispõe em seu art. 475-N, alínea III, Lei nº 11.232, de 22 de dezembro de 2005, que são títulos executivos judiciais o acordo extrajudicial, de qualquer natureza, homologado judicialmente. Desta forma, o CPC contempla expressamente a possibilidade do juiz homologar acordo extrajudicial de qualquer natureza, e aí se incluiria o trabalhista, tornando-o título executivo judicial. O Código Civil Brasileiro não é silente ou omisso nesta questão ao afirmar em seu art. 840 a licitude dos interessados de se prevenirem ou terminarem o litígio mediante concessões mútuas. Nota-se que mediante a transação as partes podem, inclusive, se prevenirem de um litígio, isto é, mesmo não havendo pretensão resistida, a lide, pode ser transacionada, e neste caso o CPC autoriza expressamente a sua homologação judicial, passando a ter status de título executivo judicial. Diante desta análise nos diplomas legais aqui trazidos, fica notória a possibilidade da homologação judicial, mesmo sem haver lide, de transação extrajudicial, nas relações privadas. Na esfera trabalhista é polêmica esta possibilidade, uma vez que muitos juízes e Tribunais concordam e assim fazem a homologação de transação extrajudicial e outros simplesmente entendem não ter a Justiça do Trabalho competência para tanto. Como dito, a jurisprudência ainda é bastante oscilante neste particular, e por isso foram selecionadas algumas delas com o objetivo de demonstrar a não uniformidade nos entendimentos e ao mesmo tempo apresentar os argumentos de cada uma das posições. Primeiramente, quanto às transações realizadas no âmbito da CCP parece não haver dúvida, por parte dos julgadores, acerca de sua validade e eficácia, salvo se comprovado por aquele que alegou a existência de vício de consentimento, embora haja ações tentando desconstituir o acordo. As duas ementas de jurisprudência abaixo comprovam esta afirmação: TRT-PR-27-02-2009 ACORDO FIRMADO PERANTE A COMISSÃO DE CONCILIAÇÃO PRÉVIA. VALIDADE. EFEITOS - A transação 207

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extrajudicial celebrada no âmbito da Câmara de Conciliação Intersindical instituída pelos sindicatos do autor e da ré possui plena validade, constituindo-se em título executivo extrajudicial e materialização da declaração de vontade emitida pelos litigantes, nos termos do parágrafo único do art. 625-E da CLT. A confissão do autor sobre a livre manifestação de vontade ao firmar o acordo extrajudicial não autoriza a declaração de sua nulidade.226 TRT-PR-08-07-2008 TRANSAÇÃO EXTRAJUDICIAL. COMISSÃO DE CONCILIAÇÃO PRÉVIA. ADMISSIBILIDADE. EFEITOS. O termo de transação extrajudicial, firmado por empregador e trabalhador perante Comissão de Conciliação Prévia, estando o obreiro ciente do completo teor e conseqüências do acordo, deve ser reputado como válido e eficaz, devendo o Judiciário Trabalhista respeitar a declaração de vontade emitida pelas partes, não lhe sendo lícito interferir nesse pacto, ainda mais quando não se comprovou o alegado vício de consentimento.227 Diante do exposto, conclui-se que a transação extrajudicial realizada em CCP goza de maior garantia jurídica, pois há previsão legal expressa reconhecendo sua validade e eficácia, além dos julgadores reafirmarem em suas decisões sobre sua validade e eficácia. Logo, pode-se entender que é difícil ver uma transação desta natureza desconsiderada pela Justiça. De outro lado, ocorre também que apesar das partes terem transacionado extrajudicialmente, uma delas tenta socorrer-se a Justiça na tentativa de pleitear os mesmos ou outros pedidos do mesmo período trabalhado constante na transação. Neste caso, a decisão abaixo é enérgica ao coibir este tipo de abuso, reconhecendo a transação extrajudicial, atendendo alguns pressupostos e respeitando o ato jurídico perfeito. TRT-PR-19-05-2009 TRANSAÇÃO EXTRAJUDICIAL LEVADA A EFEITO DURANTE O LITÍGIO - QUITAÇÃO CONTRATUAL - ALCANCE. A conciliação extrajudicial levada a efeito durante o litígio e submetida à chancela judicial, abrangendo não só os pedidos formulados, mas todo o contrato de trabalho, como ocorrido no caso em tela, há que ser respeitada, seja em homenagem ao ato jurídico perfeito - acordo realizado extrajudicialmente sem qualquer alegação de vício de  TRT-PR-31742-2007-007-09-00-7-ACO-06470-2009 - 1A. TURMA. Relator: EDMILSON ANTONIO DE LIMA.Publicado no DJPR em 27-02-2009. 227   TRT-PR-00280-2006-325-09-00-1-ACO-24047-2008 - 4A. TURMA.Relator: SÉRGIO MURILO RODRIGUES LEMOS.Publicado no DJPR em 08-07-2008. 226

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legalidade ou consentimento - seja à coisa julgada - apesar da roupagem de sentença processual, eis que expressa à extinção do processo sem a resolução do mérito, não se pode olvidar que o conteúdo do termo de fls. 217 tem cunho material, ou seja, adentrou no mérito do acordo celebrado e o validou, leia-se, homologou-o , tendo como corolário a impossibilidade de repropositura de idêntica ação, sob a despicienda alegação de que o processo anterior foi extinto sem resolução do mérito. Ora, considerando os termos do art. 471 do CPC, c/c art. 769 da CLT, incabível decidir-se, novamente, sobre o mesmo acidente de trabalho e os respectivos pleitos de indenização, eis que as partes já conciliaram no particular, cabendo a extinção da presente ação sem resolução do mérito, com fulcro no art. 267, V, do CPC. Ressalte-se que aos acordos extrajudiciais tem sido dada plena eficácia por esta C.Turma, máxime quando há quitação do contrato de trabalho sem quaisquer ressalvas. Exemplo disso é o acordo firmado perante as Comissões de Conciliação Prévia, anteriormente à tutela judicial e mesmo em casos em que a matéria litigiosa sequer abarca todo o contrato de trabalho. Com muito mais razão no caso em tela, onde o acordo foi firmado sobre o próprio litígio - acidente de trabalho e pedidos indenizatórios decorrentes -, no decorrer da lide, pelos próprios causídicos das partes e submetido à chancela judicial, atraindo a incidência analógica do art. 625-E da CLT e da OJ 132 da SDI-2 do TST, sendo destarte válido e dotado de eficácia liberatória geral de todos os direitos oriundos da relação de trabalho, contratual ou extracontratual. Inteligência da Súmula 13 deste E.TRT. ACOLHO a preliminar arguida e DECLARO extinto o processo sem resolução do mérito, com fulcro no art. 267, V, do CPC. LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ - PARTE E PROCURADOR. O ajuizamento de demanda postulando as mesmas parcelas já transacionadas anteriormente refletem o descaso, tanto da parte como da sua advogada, no tratamento com a Justiça, fazendo-se necessária a condenação do reclamante como litigante de má-fé, solidariamente com seu advogado, na forma dos artigos 17, CPC, 896, CCB, e 32, Lei 8.906/94).228 Observa-se que mesmo o juiz de primeiro grau ter homologado a referida transação, ainda assim a parte moveu ação trabalhista sobre o conteúdo e período já homologado judicialmente. Neste caso disciplinarmente e de forma acertada, a decisão condenou o reclamante em litigância de má-fé, solidariamente com seu advogado.  TRT PR - -99533-2006-006-09-00-3-ACO-14881-2009 - 1A. TURMA. Relator: CELIO HORST WALDRAFF. Publicado no DJPR em 19-05-2009 228

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Outra jurisprudência que merece grande destaque que corrobora nos argumentos deste estudo, proferida pelo Dr. Juiz de 1° grau do TRT da 9ª Região, Marlos Augusto Melek, nos autos n°04101-2009-015-09-00-6, que homologa a transação extrajudicial, mesmo contrariando o parecer do Ministério Público, apresentando fundamentos inequívocos: quanto a competência da Justiça do Trabalho para realizar tal feito; a existência latente do interesse de agir; o substrato principiológico que orienta a conciliação; o resultado social, dentre outros. Além de argumentos técnico-jurídico o magistrado faz uma reflexão empírica que merece ser aqui transcrita: Uma empresa paga ao empregado – dispõe do capital – desde que tenha segurança jurídica de que o valor acertado é o bastante. Atuar de forma diversa é assumir um risco desnecessário à atividade, pois se a “porta” está aberta à lide, porque pagar antes ? Finalmente, seria um caso quiça raro mas ilustrativo, que as partes já conciliadas sob os olhos do juiz, que aprecia um pedido de homologação de transação, passassem à lide, por atos, fatos, palavras (o que é aliás, factível). A competência jurisdicional nasceria com este conflito ? Ainda empiricamente, não se pode conceber que seja o juiz o melhor dos melhores conciliares, embora os Magistrados exerçam tal função com louvor. Não é monopólio do juiz a conciliação das partes, que podem resolverem seus problemas pela mediação, ou por si próprias, apenas pretendendo a chancela judicial. O momento, informado pela complexidade social inerente à facilidade do acesso às informações, às novas formas regulamentadas e ainda não regulamentadas de relações, requer certeza, e não incertezas, motivo pelo qual o conceito de segurança jurídica é salutar para a manutenção da paz social. O juiz existe para resolver problemas, não para criar mais. A partir dessa reflexão empírica pode-se dizer que a segurança jurídica é um elemento fundamental na solução de conflitos, e quanto maior a segurança melhor será as condições que favorecem a conciliar, pois sem haver segurança do conciliado não há porque conciliar. Também, é notório que não os juízes não possuem monopólio na conciliação, sendo desejável que as próprias partes encontrem obtenham a conciliação. O magistrado que não homologa a transação 210

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acaba por criar mais um problema jurídico para as partes, pois fornece uma grande insegurança jurídica para o empregador e uma grande possibilidade do empregado, já conciliado, promova ação trabalhista desconsiderando o acordo celebrado. Assim, denota-se a importância em se homologar no Judiciário a transação extrajudicial, eis que a segurança jurídica somente fica garantida na sua plenitude com o título executivo judicial. Por outro lado, o Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região entendeu não ter competência para homologar acordos extrajudiciais, já que a Constituição Federal de 1988 menciona que a competência da Justiça do Trabalho é de apenas conciliar e julgar dissídios em que haja lide. ACORDO EXTRAJUDICIAL. HOMOLOGAÇÃO. INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO. A Justiça do Trabalho, como prescreve o art. 114 da Constituição Federal tem competência para conciliar e julgar dissídios individuais, ou mais apropriadamente, litígios fundados em uma controvérsia, não se prestando, assim, para homologar acordos extrajudiciais229. Nota-se que a decisão é do ano de 2002, e o art. 474-N do CPC foi introduzido apenas em 2005. Todavia, acredita-se que a decisão seria a mesma, já que o fundamento para a não homologação baseou-se exclusivamente na competência da Justiça do Trabalho, definida pela Constituição Federal. Tantas outras decisões poderiam ser trazidas e analisadas. Todavia, o objetivo é apenas de demonstrar a existência das divergências de entendimentos na Justiça acerca desta questão. A partir do exposto, pode-se dizer que os argumentos que sustentam a possibilidade e até mesmo o dever do magistrado em homologar a transação extrajudicial, estão consubstanciados na aplicação subsidiária do CPC ao processo trabalhista, inclusive por determinação da própria CLT em seu art. 769 que diz que nos casos omissos, o direito processual comum será fonte subsidiária do direito processual do trabalho, exceto naquilo em que for incompatível com as normas processuais trabalhistas. Outro argumento utilizado e louvável é que o princípio da conciliação deve ser sempre o norteador da solução do conflito, já que é um objetivo a ser perseguido pelo Estado por meio de suas normas, magistrados e Tribunais. Diante do caso, não se pode falar em incompatibilidade da lei processual civil, muito pelo contrário, pois a norma processual civil complementa e possibilita a concreção dos fins processuais trabalhistas a ser atingidos, em especial os da conciliação. Desde que não haja vício na realização do acordo   TRT 2ª Região ACO 20020014796 8ª TURMA. Publicado no DOE SP, PJ, TRT 2ª em 29/01/2002.

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extrajudicial, como pode a Justiça do Trabalho virar-se de costas para seus jurisdicionados? Qual seria a alternativa das partes, no caso de não haver CCP e objetivarem o reconhecimento judicial do acordo, senão por meio da homologação da transação? Já os argumentos contrários a referida homologação são entendidos neste estudo como insuficientes e precários. No que tange a suposta falta de competência da Justiça do Trabalho prevista na Constituição Federal, esta deve ser rebatida, pois a Constituição não pode ser interpretada de forma literal e sim de forma sistemática. Entende-se que a Carta Magna ao utilizar a expressão dissídios individuais, não quis colocar como condição sine qua non a existência de lide para se definir a competência e assim autorizar o magistrado a processar e julgar a ação trabalhista. Quis isto sim, definir a competência material desta Justiça, e no caso da ação de homologação de acordo extrajudicial, o juiz teria toda a competência para analisar as matérias ali contidas e assim validar e atribuir eficácia judicial a transação efetuada. Além disso pela supressão da palavra conciliar no art.114 da Constituição Federal, que estabelece a competência da Justiça do Trabalho, não pretendeu tolher os poderes-deveres conciliatórios dessa Justiça uma vez que as normas infraconstitucionais não são incompatível com a nova redação. Neste sentido, Carlos Henrique Bezerra Leite230 é taxativo ao dizer que: “A omissão [da palavra conciliar], contudo, não desnatura o princípio em estudo, pois ele continua existindo no plano infraconstitucional e não se mostra incompatível com o novo texto da Carta de Outubro de 1988.”. Outro argumento observado é a ausência de pressuposto processual, qual seja a falta de interesse de agir. Qual interesse seria maior do que obter da Justiça uma chancela da solução do conflito realizada fora dela, exatamente com o intuito de se ter maior segurança jurídica? O interesse em agir está exatamente em haver a homologação judicial do acordo celebrado. Sobre o interesse de agir Tullio Liebman231, ensina que: O interesse de agir é o elemento material do direito de ação e consiste no interesse de obter o provimento demandado. Ele se distingue do interesse substancial, para cuja proteção se intenta a ação, assim como se distinguem os dois correspondentes direitos, o substancial, que se afirma caber ao autor, e o processual, que se exercita para a tutela do primeiro. O interesse de agir é, pois, um interesse processual,   LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Curso de Direito Processual do Trabalho. 4ªed. São Paulo: Ltr, 2006 p. 79. 231   Liebman, Enrico Tullio, Manual de Direito Processual Civil, trad. por Cândido Rangel Dinamarco, vol. I, Ed. Forense, 1984, p. 314. 230

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secundário e instrumental em relação ao interesse substancial primário, e tem por objeto o provimento que se pede ao magistrado, como meio para obter a satisfação do interesse primário, prejudicado pelo comportamento da contraparte. Diante do conceito de Liebman fica claro que o interesse processual requer, uma utilidade prática com o resultado da demanda, ou seja, que justifique buscar o Judiciário exercitando seu direito de ação. Como visto os argumentos contrários ao ato de homologar não são coerentes e vão de encontro de toda a principiologia e lógica do direito material e processual do trabalho. Conclui-se, então, que o instrumento processual adequado para a homologação de transação trabalhista, é a promoção de uma ação de homologação de transação extrajudicial, precisamente com o fulcro no art. 840 do CC e 475-N III do CPC, uma vez que os dispositivos legais são totalmente compatíveis com a CLT, diante de sua omissão. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS O presente estudo preocupou-se em abordar, ainda que de forma sucinta, todas as formas de solução de conflitos. A autocomposição mereceu maior destaque pelo objetivo do trabalho ser exatamente em analisar a possibilidade jurídica da Justiça do Trabalho homologar transação extrajudicial feita, sobretudo, fora do âmbito da CCP e da própria Justiça. Diante da problemática trazida por este estudo concluiu-se que a melhor forma de transacionar extrajudicialmente é por intermédio da CCP quando existente, pois há garantias legais que conferem validade e eficácia para os acordos que neste caso, mesmo não havendo lide podem ser celebrados. Como visto, ao longo deste trabalho demonstrou-se que a Justiça do Trabalho reforça as disposições legais pertinentes a CCP, principalmente no que tange aos acordos celebrados naquela seara. Todavia, ainda assim quer parecer que seria possível requerer em juízo a homologação da transação, passando de título executivo extrajudicial para judicial, o que sem dúvida, oferece maior certeza e segurança jurídica. O problema realmente reside quando as partes não dispõem de CCP para transacionar, pois assim elas não têm a opção de socorrerem-se a ela. Assim, fica patente a insegurança jurídica, já que historicamente a Justiça do Trabalho vê com muitas ressalvas os acordos extrajudiciais, pelo fato da situação de hipossuficiência do empregado. Aqui, a homologação, praticamente, passa a ser uma necessidade para conferir real eficácia à transação realizada. 213

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Neste caso, parece que a melhor solução seria que o juiz homologasse a transação, mediante a realização de uma audiência conciliatória, se achasse conveniente e oportuno, designada especialmente para este fim, qual seja a homologação para que o juiz possa se acautelar e assim ter certeza da real vontade das partes, evitando assim práticas simuladas pelas partes. Obviamente, nesta audiência o juiz não analisaria o mérito da questão, ficaria adstrita a confirmar ou não a existência de vícios de vontade, ou seja, saber se realmente as partes transacionaram por livre vontade e se têm ciência do que transacionaram. Tudo isto se justifica sob a égide de mais um argumento: nos casos em que o juiz não homologa a transação e as partes ainda pretenderem a garantia conferida por um título executivo judicial, não restaria outra opção senão simularem uma ação trabalhista, onde o acordo na primeira audiência será homologado. Assim, observa-se que a Justiça não pode motivar ou contribuir de alguma forma para a existência de simulação, já que isto sim representaria uma verdadeira simulação que deve ser repelida a todo custo pela Justiça. Não se vislumbra simulação de forma alguma no caso da ação que intenta a homologação de transação extrajudicial. Por fim, conclui-se que um dos fins da Justiça do Trabalho é motivar e promover a conciliação entre as partes, e caso não seja necessária sua atuação no sentido de promover o ato em si, então é seu dever contribuir para que haja concreção da transação extrajudicial para que surta os efeitos jurídicos desejados pelas partes, garantindo sempre a segurança jurídica das partes.

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BIBLIOGRAFIA CARNELUTTI, Francesco. Instituzioni del processo civile Italiano. 5. ed. Roma: Soc. Ed. Del “Foro Romano”, 1956. CLT Saraiva e Constituição Federal/obra coletiva de autoria da Editora Saraiva com a colaboração de Antonio Luiz de Toledo Pinto, Márcia Cristina Vaz dos Santos Windt e Lívia Céspedes. – 36.ed.atual. e aum. São Paulo: Saraiva, 2009. DE ALMEIDA, Isis. Manual de Direito processual do trabalho. São Paulo: Atlas, 1995. DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 5ªed. São Paulo: Ltr, 2006. Dicionário Básico de Latim Jurídico. 4ªed. São Paulo: Russell, 2002. Dicionário Básico de Latim Jurídico.5ªed.São Paulo:Russel, 2010. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/index.php?option=com_content&view= article&id=273 2:recomenda-no-8&catid=60:recomendas-do-conselho&Itemid=515.Acesso em 03/08/09. Disponível em: http://www.trt9.jus.br/internet_base/paginadownloadcon.do? evento=F9-Pesquisar&tipo=3#continuidade ao Movimento pela Conciliação. Acesso em: 02/08/09. LAKATOS, Eva Maria. Sociologia Geral. 6ªed. São Paulo: Atlas, 1990. LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Curso de Direito Processual do Trabalho. São Paulo: Atlas, 2006. Liebman, Enrico Tullio, Manual de Direito Processual Civil, trad. por Cândido Rangel Dinamarco, vol. I, Ed. Forense, 1984. MAGANO, Octávio Bueno. Manual de Direito do Trabalho: direito individual. São Paulo: Ltr,1992. NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de Direito Processual do Trabalho. 23ªed. rev.atual. São Paulo: Saraiva, 2008. MARTINS, Sérgio Pinto. Direito Processual do Trabalho. 27ªed. São Paulo: Atlas, 2007. 215

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A IMPORTÂNCIA DO PROJECT FINANCE NO DESENVOLVIMENTO DAS EMPRESAS BRASILEIRAS THE IMPORTANCE OF PROJECT FINANCE IN DEVELOPMENT BRASILIAN COMPANIES Isamara Seabra232 SUMÁRIO:1. Introdução 2. Project Finance: breve histórico 2.1 Project Finance no Mundo 2.2 Project Finance no Brasil 3. Características Gerais e Estrutura Básica do Project Finance 3.1 Distinção entre Development Finance, Corporate Finance e Project Finance 4. Aspectos Jurídicos do Project Finance 5. Riscos em Project Finance e suas Mitigações 6. A Importância do Project Finance para o Desenvolvimento das Empresas Brasileiras 6.1 Fontes de Financiamento de Project Finance 6.2. A Aplicação do Project Finance no BNDES 7. Conclusão. RESUMO Esse trabalho tem como escopo descrever os principais aspectos do project finance: sua origem no mundo e no Brasil, a sua distinção de outras estruturas de financiamento, como o corporate finance e o development finance, seus aspectos jurídicos, seus principais riscos e mitigações. Especial atenção é dada para as dificuldades de operacionalização do project finance no Brasil e as suas principais fontes de financiamento. Destaca-se, também, a importância da utilização do project finance para as empresas brasileiras na viabilização de projetos que demandam elevados montantes de financiamento e que não possuem garantias tradicionais, como as reais e fidejussórias. Expõe-se que no Brasil os principais agentes financiadores na estrutura de project finance são os bancos públicos, como por exemplo, a Caixa Econômica Federal, o BNDES e os Bancos Regionais de Fomento. Por fim, ressalta que o BNDES é o banco público que tem o maior destaque em operações de project finance e descreve como essa técnica é ali aplicada. ABSTRACT The objective of this paper is to describe the main aspects of project finance technique: its origin in the world and in Brazil, the distinction for other financing structures, such as corporate finance and development finance, its legal aspects, main risks and the mitigations involved in. Special attention is given to the difficulties to make operational the structure of project finance in Brazil. It is also presented the main   Advogada do BNDES. Mestranda em Direito e Políticas Públicas no UNICEUB. Especialista em direito público pelo Instituto Brasiliense de Direito Público. Bacharel em direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. 232

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institutions that work with this structure of financing. It also shows the importance of the use of project finance for Brazilian firms to viable projects that require large amounts of financing and lack traditional collateral like real ones. The paper also explained that in Brazil the main financial institutions using the project finance technique are public banks, such as CEF, BNDES and the Regional Development Banks (BASA, BNB and Banco do Brasil). At the end, the paper emphasizes that BNDES is the public bank that is not only the most important bank in financing the infrastructure sector but also the one that has emphasized on implementation of project finance technique in Brazil and also describes how it is applied by BNDES. Palavras-Chave: project finance; histórico; características; estrutura de financiamento; aspectos jurídicos; riscos; fontes de financiamento; BNDES. Keywords: project finance; history; features; financing structure, legal aspects, risks, financial resources; BNDES 1. INTRODUÇÃO Nos países em desenvolvimento e mesmo nos mais adiantados, os grandes projetos privados nas áreas de infraestrutura, mineração, indústria e de alguns segmentos do setor serviços, como o turismo e os serviços tradicionais do governo possuem, em termos relativos, dificuldades maiores na obtenção de recursos financeiros para implantação e desenvolvimento. As dificuldades são de duas ordens: (i) no aporte de garantias reais e pessoais, geralmente exigidas pelas instituições financeiras em operações de crédito a qualquer projeto, e (ii) nos elevados volumes de capital necessário, seja na forma de recursos próprios seja em financiamentos, a serem captados no mercado de capitais. Nos países onde o mercado de capitais é ainda incipiente essas dificuldades são ainda maiores. A solução encontrada em âmbito mundial para lidar com problemas de falta recursos para financiar projetos da infraestrutura vem sendo o uso de uma engenharia financeira baseada no fluxo de caixa dos próprios empreendimentos, denominada project finance. Na técnica de project finance as garantias oferecidas aos bancos financiadores são os ativos do empreendimento a serem adquiridos e os valores recebíveis ao longo do funcionamento do mesmo, ou seja, em última análise, a garantias corresponde ao próprio lucro gerado no fluxo de caixa do projeto233.   O fluxo de caixa de um projeto é representado por todas as entradas e saídas de dinheiro do empreendimento tais como, a compra de ativos, o pagamento da mão de obra empregada no projeto, as matérias primas, a compra de equipamentos e máquinas, o pagamento das construções e o recebimento das vendas e demais valores. 233

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Esse trabalho tem como escopo descrever os principais aspectos da sistemática de project finance, chamando atenção para as dificuldades de operacionalização dessa estrutura de financiamento e dando destaque para sua importância para viabilizar projetos que demandam montantes elevados de financiamento e cujos empreendedores e investidores não possuem garantias pessoais ou reais a oferecer. Além disso, expõe a importância e a necessidade da aplicação do project finance no Brasil para auxiliar as empresas na batalha por obtenção de crédito para investimentos, em um mercado bancário conservador e não disposto a correr riscos. Por fim, o trabalho discorre sobre a aplicação do project finance nos financiamentos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES, que, no Brasil, foi o pioneiro nestas operações, tendo alcançado a posição de principal fonte de recursos de longo prazo para financiar os diversos setores da economia. O trabalho está assim dividido: introdução, cinco tópicos de análise e conclusão. A primeira parte da análise destina-se a apresentar um breve histórico da técnica de project finance no mundo e no Brasil. A segunda analisa as características gerais e a estrutura básica do project finance, além de fazer a sua diferenciação de outras estruturas financeiras. O terceiro tópico traz os principais aspectos jurídicos envolvidos em um project finance . A quarta relata os mais importantes riscos envolvidos em project finance e como eles podem ser mitigados. Por fim, o artigo expõe como a técnica de project finance pode contribuir para o desenvolvimento das empresas brasileiras, ao auxiliar na obtenção de crédito. Mostra também quais os principais agentes financiadores que empregam a sistemática de project finance, dando destaque à sua aplicação pelo BNDES. No último item são apresentadas as conclusões finais. 2. PROJECT FINANCE: BREVE HISTÓRICO 2.1 O PROJECT FINANCE NO MUNDO O financiamento de empreendimentos com base nas características de project finance possui uma longa história, começando na antigüidade clássica, nos empreendimentos marítimos contratados sob a forma de comande ou comanda, relatados no Direito Comercial. Nesses empreendimentos, quem ajudava a armar e a financiar uma expedição comercial tinha direito a uma parte de seus resultados, porém bancava todos os riscos da empreitada. Dessa forma, projetos de grande porte que, sem outra forma de financiamento, seriam abandonados, puderam ser empreendidos através de estruturas societárias e creditícias originais, utilizando-se de uma estrutura financeira adequada para reduzir os riscos dos sócios empreendedores, 219

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utilizando-se de instrumentos como a segregação jurídica, a securitização de receitas, a gestão compartilhada das perdas e a diluição de responsabilidades. Assim foram financiadas as Cruzadas, as grandes navegações ibéricas, as expedições de corsários e as Companhias das Índias de Portugal. Há também registros que, no século XIII, a Coroa Britânica negociou um grande empréstimo junto ao Frescobaldi, à época, um dos importantes bancos de investimento de Milão, para explorar as minas de prata da região de Devon, na Escócia234. O contrato era um esboço do que existe atualmente sob a denominação de project finance, pois previa que o credor teria direito a controlar as operações das minas pelo período de um ano, quando usaria o direito de retirar quanto minério não refinado que conseguisse, tendo, porém, que assumir integralmente o custo e os riscos de operação das minas. E a Coroa Britânica não oferecia qualquer garantia quanto à quantidade ou qualidade da prata que poderia ser extraída durante aquele ano. Tais condições de empréstimo foram antecessoras ao que hoje se conhece como empréstimo com pagamento em produção235. Nos Estados Unidos, os primeiros financiamentos na base de project finance ocorreram na década de 1930, no segmento de exploração de recursos naturais, no projeto da Wildcat, uma empresa do ramo petrolífero que, nos estados do Texas e de Oklahoma, explorou campos de petróleo, a partir de financiamentos garantidos apenas pelo fluxo de caixa futuro do empreendimento a ser implantado236. Naquele país houve alguns estímulos públicos para a estruturação de financiamentos na forma de project finance, aprovado pelo Congresso NorteAmericano, como o Public Utility Regulatory Policy Act (PURPA) de 1978. Os incentivos serviram para incrementar os investimentos em fontes alternativas de energia, a partir da obrigação de as empresas concessionárias de serviços públicos comprarem energia das empresas produtoras, por meio de contratos de compra de longo prazo. Estes contratos permitiram às empresas produtoras de energia a projetar suas receitas com segurança, e com o uso de recebíveis de longo prazo representativos dos lucros futuros, as concessionárias poderiam captar financiamentos e tornar viável a implantação de seus projetos. 2.2 O PROJECT FINANCE NO BRASIL   Faria, Viviana Cardoso de Sá. O papel do project finance no financiamento de projetos de energia elétrica:caso UHE Cana Brava. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: Programa de pós-graduação de engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2003, p. 48. 235   Pereira, Renato Sundin. O project finance como fonte alternativa de recursos. Dissertação de Mestrado. Florianópolis: Programa de Pós-Graduação em Engenharia de Produção. Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC, Santa Catarina, 2003, p.16. 236   Ibidem. Pereira, Sundim; p.17. 234

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No Brasil, a década de 1970 foi marcada pela elevação da inflação e implantação de grandes projetos do governo, que demandavam elevado volume de recursos, providos por instituições financeiras internacionais ou pelo próprio setor público, com recursos do Tesouro e com baixo custo de financiamento. Na década de 1980, com a deterioração financeira e operacional do setor público, o País chegou a decretar moratória internacional, prejudicando substancialmente a captação de recursos e o crescimento da economia, e levando o governo a reduzir sua participação no total dos investimentos do País. De modo mais acentuado, os investimentos em infraestrutura foram reduzidos, gerando gargalos estruturais na economia237, fato que foi agravado pela falta de alternativas às fontes tradicionais de financiamento para os grandes projetos da infraestrutura. Nos anos 1990, o País implantou o Programa Nacional de Desestatização e vendeu a maioria das empresas públicas, buscando aliviar a situação das finanças do governo. No entanto, em face das sérias restrições orçamentárias, o Estado permaneceu incapacitado de manter a tradição histórica de financiar, por via fiscal, os grandes investimentos públicos (como comentado, os investimentos eram viabilizados por meio de recursos públicos e empréstimos de agências nacionais e multinacionais de crédito). Após a metade da década de 1990, tendo sido obtida a estabilidade econômica, o País buscou alternativas para realizar os investimentos na infraestrutura, contando principalmente com o setor privado. Em face da mudança de atuação do setor público, o setor privado passou a demandar volumosos financiamentos e garantias no mercado financeiro visando implementar as obras públicas. A partir de então a necessidade de criar formas alternativas para viabilizar os financiamentos demandados, e o project finance começasse a se desenvolver no País. A técnica de project finance foi empregada no Brasil, pela primeira vez, em 1996, através de uma operação pioneira de financiamento realizada pelo BNDES para um projeto privado na área de saneamento básico. Em seguida, os agentes tradicionais de financiamento ao setor de infraestrutura, tais como Caixa Econômica e o Banco do Brasil, também procuraram no project finance a solução para os problemas de funding e garantia, criados pelas novas demandas de recursos das empresas privadas238. 3. CARACTERÍSTICAS E ESTRUTURA BÁSICA DO PROJECT FINANCE Finnerty239define project finance como a captação de recursos para   Borges, Luiz Ferreira Xavier. Project Finance e infraestrutura: descrição e críticas. Revista do BNDES, Rio de Janeiro: Revista do BNDES, v. 5, n. 9, pg.105-121, jun. 1998, p. 2. 238  Ibidem,p.3. 239   Finnerty, Jonh D. Project finance. Rio de Janeiro: Qualitymark, 1999, p. 355. 237

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financiar determinado projeto de investimento, cujo capital seja economicamente segregável, através de uma empresa denominada Sociedade de Propósito Específico ou sociedade veículo do empreendimento (conceitos apresentados adiante) e sem a utilização de garantias reais para os financiamentos aportados. As principais características dessa estrutura de financiamento compreendem: 1) a busca da minimização dos riscos do projeto ao longo de sua vida útil, através de diversos meios, inclusive o estabelecimento de obrigações contratuais e 2) o baixo risco mercadológico do empreendimento a ser financiado, que garanta controle e previsibilidade às receitas do projeto. Por meio de arranjos contratuais com os recebíveis do empreendimento, os credores garantem o recebimento de seus créditos. Em project finance, a análise do projeto e a realização do financiamento são fundamentalmente baseadas no fluxo de caixa, gerado a partir das receitas e despesas previstas para o investimento. Ou seja, o que determina a viabilidade do projeto e o seu financiamento é a expectativa de que ele gerará retorno econômico e financeiro satisfatório e previsível, demonstrado em seu fluxo de caixa, e não a confiança ou segurança proporcionada por bens dos empreendedores, oferecidos em garantia aos financiadores. Em outras palavras, a viabilidade do projeto não deve depender do crédito geral ou do patrimônio da empresa tomadora do empréstimo, e sim da capacidade de geração de fundos no próprio projeto. O financiamento ficará garantido não por valores reais, mas sim por meio de compromissos contratuais, inclusive a contratação de seguros, que irão garantir a geração de lucro e o pagamento do crédito recebido. Por isso se diz que esse esquema de financiamento apóiase no mérito do projeto, ao invés de fundar-se na credibilidade da empresa responsável pelo empreendimento ou nos empreendedores, sejam pessoas físicas ou jurídicas. No emprego da técnica de project finance é fundamental a identificação, mensuração e análise dos riscos que envolvem o projeto, bem como dos meios empregados para mitigá-los. A análise e o tratamento dos riscos em project finance mostram uma outra característica importante do método: ser uma metodologia capaz de reduzir os riscos envolvidos no projeto, além de melhor distribuí-los entre os participantes, sejam investidores, fornecedores, financiadores ou outros. Segundo Bonomi e Malvessi240, as operações de financiamento a um empreendimento podem ser classificadas de acordo com as garantias concedidas aos seus financiadores, da seguinte forma: 1) Non recourse241 - sem cobertura de garantias reais, ou que não permite   Bonomi, Cláudio Augusto; Malvesse, Oscar. Project finance no Brasil. São Paulo: Atlas, 2002, p. 64.   Vale notar que no decorrer do trabalho serão usados termos em inglês habituais da prática bancária dos países anglo-saxões. 240

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aos credores acionar o patrimônio dos investidores ou de outros parceiros do empreendimento, em caso de inadimplemento; 2) Limited course – com cobertura parcial de garantias; um conjunto de garantias convencionais são cedidas pelos empreendedores e acionistas aos financiadores, como caução de ações, hipoteca, carta de crédito, acrescido dos recursos e bens do próprio empreendimento; essas garantias podem permanecer válidas durante certa fase do projeto ou durante todo o período de duração do financiamento e correspondem à parte das obrigações para com as instituições financiadoras, ou seja, o financiamento possui garantias que dão acesso parcial ou temporário aos ativos dos patrocinadores e investidores responsáveis pelo projeto, sendo o acesso aos ativos uma garantia subsidiária, durante uma fase do projeto (na fase de construção, geralmente), e depois liberadas, ficando os financiadores a partir daí cobertos em seus créditos apenas pela garantia dada pelas receitas líquidas do empreendimento. Correspondem à prática mais usual no sistema financeiro. 3) Full recourse - os credores contam com os recursos gerados pelo empreendimento, além de garantias convencionais, concedidas pelos acionistas, para garantir a totalidade das obrigações do tomador de recursos. Os financiamentos full recourse não se aplicam a project finance. No project finance a responsabilidade patrimonial dos empreendedores em relação ao financiamento deve ficar limitada à sua participação no capital integralizado do projeto, deixando o restante do seu patrimônio pessoal livre de qualquer compromisso relacionado ao empreendimento e aos financiamentos. Por isso, nos financiamentos dos tipos non recourse e limited recourse242, os agentes financiadores, por meio de esquemas legais pré-estabelecidos contratualmente, estão protegidos por um direito preferencial à principal fonte de pagamento do empréstimo, o fluxo de caixa do empreendimento243, e os financiamentos com estas características são candidatos a serem estruturados na forma de project finance. De modo geral, em project finance, o exercício da garantia fundamental, os recebíveis, se processa pela escolha de uma instituição, que fica responsável pela administração de uma conta bancária para receber as receitas do projeto. Na administração dessa conta fica estabelecida prioridade para o pagamento dos gastos operacionais e do serviço da dívida contraída. No caso de financiamento realizado por um consórcio de agentes financeiros é preciso que seja escolhido um banco líder para tratar, por mandato, do relacionamento com a sociedade veículo e com os demais participantes do empreendimento. Em geral, a principal instituição financeira é chamada de   Bonomi, Cláudio Augusto; Malvesse, Oscar,op.cit, p.65.   Idem.

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“banco líder ”244, e o seu papel como garantidor subsidiário dos pagamentos a todos os credores faz com que ela seja uma instituição trustee. Como mencionado, no Brasil, não existe a presença de project finance na modalidade full recourse. Em geral os financiamentos com base em project finance acontecem na modalidade limited recourse ou non recourse, em que os credores não têm seus créditos cobertos por garantias reais, ou estão garantidos apenas parcialmente. Seixas esclarece melhor alguns fundamentos essenciais do project finance, como a separação de riscos na sociedade veículo do projeto245 , sendo imprescindível que o projeto, desde a sua origem, permaneça segregado dos demais interesses e negócios de seus participantes e financiadores. Com isso, os bens e os demais componentes do patrimônio da sociedade veículo ficam vinculados apenas à realização do projeto, e este deve ser autosustentável. Em project finance, a estrutura de financiamento ao projeto é definida em função da análise e da atribuição de pesos aos diferentes riscos. Exige-se, além disso, que outros procedimentos sejam realizados, tais como: um planejamento para o uso racional das diversas fontes de financiamento disponíveis; a segregação do projeto de tal forma que o acervo patrimonial não tenha destinação diversa do objetivo original do projeto, e a organização de inúmeros instrumentos de segurança e de fiscalização administrativa do empreendimento para que o princípio da destinação única dos bens da sociedade veículo e do uso racional das fontes de financiamento do projeto sejam seguidos. Por outro lado, para que o princípio do non recourse project finance seja respeitado na estruturação do financiamento, os diferentes riscos e benefícios do projeto devem ser alocados de acordo com os interesses de cada um dos participantes do empreendimento, ou seja, deve haver diferente distribuição dos riscos e dos benefícios, sempre procurando alocar os riscos para aqueles que têm melhor capacidade de suportá-los, compensando-os com maior benefício a receber. Em project finance, o aporte de recursos próprios do empreendedor ao projeto varia de 10% a 20% do investimento total. O aporte de capital próprio possui os objetivos de mostrar o comprometimento dos empreendedores em realizar o projeto tal como foi planejado e reduzir o risco dos recursos financiados246. O valor remanescente do investimento total, ou seja, entre 90% ou 80%, é geralmente financiado por uma ou mais instituições financeiras.   Borges, Luiz Ferreira Xavier Borges. Aplicabilidade das Técnicas de Project Finance para Financiamento da Infraestrutura no Brasil: caso da Implantação da Telefonia Celular Banda B de 1997 a 2001. Tese de doutorado. Rio de Janeiro: UFRJ/COPPE, Engenharia da Produção, 2005, p. 102. 245   Seixas, Renato. Project Finance, em empreendimentos de pequeno e médio porte. Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais. Ano 10, nº 10, v. 37, pg. 30-47. Jul./Set. 2007, p. 38. 246   Seixas, Renato,op.cit, p. 40. 244

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Havendo dois ou mais financiadores, costuma-se dizer que o projeto é financiado por meio de um sindicated loan - por um pacote de financiamentos do qual participam vários investidores financeiros247. Assim, os riscos do projeto ficam distribuídos entre o empreendedor e os diversos financiadores. Quando os financiadores exigem garantias reais que pertencem à empresa veículo do projeto o pacote de garantias fica constituído pelo acervo patrimonial dela (chamado de security package), um patrimônio que necessita ser adequado, suficiente e de fácil liquidação e execução, tanto quanto possível, com riscos jurídicos mínimos ou inexistentes248. Quase sempre há nessa modalidade de financiamento a exigência por parte dos financiadores para que seja viável a execução extrajudicial dessas garantias à primeira solicitação (first demand garantee)249. 3.1 DEVELOPMENT FINANCE, CORPORATE FINANCE, PROJECT FINANCE: DISTINÇÃO Algumas vezes o project finance é confundido com outros esquemas de financiamento, tais como development finance e corporate finance, que são institutos de financiamento com realidades bem diferentes. Nos projetos organizados na base de development finance, conhecido também como “velho modelo de financiamento”, o governo majoritariamente provê os recursos e banca os riscos dos investimentos. Estes investimentos quase sempre são realizados por empresas estatais concessionárias de serviços públicos ou pela administração pública direta250. Em development finance o lucro dos projetos e das empresas financiadas é tratado como questão secundária, e a análise dos projetos não obedece a critérios apenas financeiros, mas sim atendem a conceitos de importância estratégica para o país e o interesse público. Ou seja, nesses casos, a visão dominante é que as características e o interesse públicos, presentes na edificação de infraestruturas e produção de serviços públicos, requerem necessariamente provisão por meio do Estado e financiamento público, e em algumas vezes monopólio, sendo em geral as garantias fornecidas pelo Tesouro Nacional, que é o tomador dos recursos ou o garantidor dos empréstimos. Esse modo de financiar projetos do setor público foi e ainda é praticado em todo mundo. Entretanto, como cada vez mais tem sido incentivada a presença da iniciativa privada em parceria ou não com o governo, nos grandes projetos dos segmentos da infraestrutura, as instituições financeiras cada vez mais observam   Ibidem, p. 41.   Idem. 249   Idem. 250  Borges, Luiz Ferreira Xavier Borges e Faria, Viviana Cardoso de Sá. Project Finance: considerações sobre a aplicação em infra-estrutura no Brasil. Rio de Janeiro: Revista do BNDES, v. 9, n. 18, p. 241-280, dez. 2002, p. 274. 247 248

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os princípios do project finance em suas operações de financiamento, e realizam a análise do financiamento e dos riscos. Por outro lado, no corporate finance, o estudo do financiamento é focado na análise da capacidade de pagamento da empresa tomadora dos recursos. Os financiadores não se asseguram, a priori, se os recursos solicitados serão necessariamente aplicados em determinado projeto, pois uma vez disponibilizados para a empresa podem ser absorvidos por outros projetos251. As operações financeiras com base no corporate finance são geralmente realizadas levando em conta que já existe uma planta em operação. Portanto, ela possui um histórico de resultados (pelo menos um ano), que permite projetar quais serão os resultados futuros da empresa em termos de lucro e capacidade de pagamento de um financiamento. Se os resultados projetados apresentam tendência à lucratividade, a empresa pode receber os empréstimos solicitados, oferecendo garantias que, inclusive, podem ser de terceiros252. A expansão das atividades da empresa e o posterior pagamento do financiamento são realizados com base nos lucros projetados. As garantias tradicionais, reais ou pessoais, concedidas aos financiadores, predominam nesse tipo de financiamento253. E, como mencionado, não existindo necessariamente a vinculação do financiamento a determinado projeto da empresa, há sempre o risco de a empresa envolver-se em outros projetos e os resultados financeiros se afastarem da situação inicialmente avaliada para concessão do crédito, criando incerteza para os financiadores. No corporate finance, os empreendedores têm liberdade de gerir seu próprio negócio, assumindo o risco de qualquer problema que possa ocorrer na empresa, o que faz dos financiadores simples observadores do processo de investimento. Para a realização do corporate finance, as organizações recebedoras do financiamento são geralmente estruturadas de forma corporativa e nas seguintes situações: os credores têm total direito de regresso junto ao empreendedor ou patrocinador do projeto; os riscos são diversificados entre os ativos do patrocinador e da empresa recebedora do financiamento; os riscos podem ser transferidos a terceiros através de contratação de seguros; os financiamentos podem ser rapidamente montados desde que a empresa tenha informações adequadas de suas operações passadas, que permitam projetar os lucros futuros; os recursos gerados internamente podem ser usados para financiar outros projetos da empresa; os credores se valem de toda a carteira de ativos do   Borges, Luiz Ferreira Xavier Borges e Faria, Viviana Cardoso de Sá. Project Finance: considerações sobre a aplicação em infra-estrutura no Brasil. Rio de Janeiro: Revista do BNDES, v. 9, n. 18, p. 241-280, dez. 2002, p.275. 252   Seixas, Renato, Op.cit, p. 32. 253   Pereira, Renato Sundin, op.cit,p. 20. 251

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patrocinador para garantir o pagamento do serviço da dívida; e há somente um contrato de financiamento254, que cobre as fases de implantação e de operação, sendo o credor e o devedor únicos. Diferentemente das modalidades corporate finance e development finance, acima discutidas, a estruturação de um project finance é muito mais complexa e envolve grande esforço de negociação para realização de acordos, não só entre os sócios e financiadores como também entre fornecedores, clientes, empresas seguradoras, etc. Como resultado, essas negociações geram uma estrutura de compartilhamento de riscos e garantias, que são expressos em diversos instrumentos jurídicos, sempre seguindo o princípio de buscar garantir o maior retorno financeiro para o projeto pela redução do custo financeiro. 4. ASPECTOS JURÍDICOS DO PROJECT FINANCE a) A Sociedade de Propósito Específico (SPE) Em project finance, o projeto é implementado por meio de uma pessoa jurídica, criada especificamente para realizar seus objetivos. Em geral, a pessoa jurídica adota a forma de uma sociedade por cotas de responsabilidade limitada ou de sociedade anônima (aberta ou fechada) em seu contrato social ou estatuto. A entidade relacionada com a implantação do projeto possui as seguintes denominações: sociedade-veículo (vehicle entity), sociedade de propósito específico (special purpose company, a denominação mais adotada no Brasil) e a sociedade de objeto exclusivo (exclusive purpose company). A Sociedade de Propósito Específico ou SPE não constitui um novo tipo societário na ordem jurídica brasileira. Ela se organiza sempre sob uma das formas previstas pela legislação255. A idéia central da SPE é que seja uma sociedade constituída exclusivamente para viabilizar a consecução de um projeto, e mais que isto, que todos os riscos e benefícios inerentes ao projeto fiquem nela contidos. A SPE não tem passado, nasce em determinado momento para a realização do projeto e desenvolve atividades exclusivamente vinculadas ao mesmo. Portanto, não há exposição a atividades passadas. Da mesma forma, a SPE não expõe os seus proprietários em suas outras atividades. Mais ainda, durante o tempo de duração do projeto, a sociedade-veículo permanece isolada dos riscos decorrentes de atividades passadas, presentes ou futuras de seus participantes ou dos investidores em seus   Pereira, Renato Sundin,op.cit,p. 23.   FERES, Marcelo Andrade. As sociedades de propósito específico no âmbito das parcerias público-privadas-PPP. Algumas observações de Direito Comercial sobre o art. 9° da Lei 11.079/2004. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 694, 30 de maio de 2005. p. 3. 254 255

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projetos. Para que esse isolamento ocorra são previstas diversas cláusulas no ato constitutivo dessas instituições256. Em geral, na constituição de uma SPE deve haver previsão de cláusulas de saída dos sócios. Se uma das partes quiser vender sua participação na empresa terá que oferecê-la primeiro aos demais sócios que terão direito de preferência na aquisição, em igualdade de oferta. Também é possível a exigência de aval dos bancos financiadores para a entrada de novo sócio. Na SPE, deve haver uma previsão para o caso de conflito de interesses: se um dos acionistas por intermédio de suas empresas contratarem serviços com a SPE, ele deverá abster-se de participar de qualquer decisão referente a essa contratação. Quanto ao controle da SPE, há vários meios para impedir que a sociedadeveículo esteja sob controle de um de seus membros ou de um bloco de controle isolado. Os dois principais meios para isso são257: 1) a criação de ação ou cota social, com direitos e prerrogativas especiais, como o direito de veto a respeito de certas deliberações e o direito de votar em separado matérias especificas; (2) estabelecimento no ato constitutivo da SPE do projeto de certas matérias para as quais serão exigidas deliberações unânimes; para outras matérias pode haver o direito de veto por parte de determinados membros. b) As garantias A regra básica em project finance é serem as garantias reais ou fidejussórias adicionais ou acessórias, pois os recebíveis do projeto constituemse na principal garantia. Para que haja proteção e preservação dos recebíveis e para as variações no fluxo de caixa do projeto devem ser estipuladas obrigações contratualmente ajustadas, as chamadas covenants258. O conjunto dessas garantias de suporte à obtenção das receitas previstas é chamado de security package. Como em project finance as garantias reais dão ao credor apenas uma forte posição de negociação, a importância e o papel dos covenants são reforçados. c) Os recebíveis Os recebíveis correspondem às receitas futuras do projeto. Os recebíveis de uma empresa são formalizados por meio de sua securitização (títulos de crédito ou valores mobiliários representativos das receitas futuras, que   Ibidem,p.3-5.   Seixas, Renato, op.cit,p. 39. 258   Borges, Luiz Ferreira Xavier. Covenants: Instrumento de Garantia em Project Finance. Rio de Janeiro: Revista do BNDES, v. 6, nº11, pg. 117-136, jun/1999, p. 119. 256 257

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lhe servem de lastro ou estão a elas vinculadas) ou de sua vinculação a títulos259. A securitização é materializada pelo mandato conferido a uma instituição financeira, que funciona como agente fiduciário da operação de financiamento, para reter em conta especial os valores para pagamento dos créditos recebidos pelo projeto. Nos Estados Unidos, a instituição financeira que controla e fiscaliza os recursos gerados pelo empreendimento edificado numa SPE é chamada de trustee. No direito brasileiro ocorre a adaptação da lei norte americana, havendo redução e especialização do conceito de trustee, que é interpretado como sendo um pouco mais que um mandatário260. Essa figura semelhante à do modelo norte americano é chamada de agente fiduciário261 e só é usada no caso de garantia de recebíveis. A forma operacional de acesso à receita do projeto se dá através de uma conta corrente, que deverá recolher os créditos do devedor (collection account) e efetuar os pagamentos aos credores (escrow account). O Banco é denominado escrow agent ou agente financeiro fiduciário do project finance262. A constituição do agente fiduciário é realizada por um contrato em que se estabelecem as condições de transferência de uma conta para outra, os investimentos para os quais os recursos se destinam e as obrigações da instituição financeira de prestar informações sobre a situação das contas correntes, quando solicitadas pelos credores. É importante ressaltar que, no Brasil, apesar desse instrumento ter uma visão mais limitada que o instituto do trustee da prática da legislação norte americana, nada impede que, dentro da liberdade contratual, as partes criem obrigações que reproduzam as práticas internacionais para o escrow agent e a escrow account. A conta bancária é denominada collection account e deve ser mantida em banco de notória solvência. Qualquer valor relacionado ao projeto será depositado e mantido nessa conta de coleta, tais como: o capital próprio integralizado do empreendedor, todos os empréstimos realizados para desenvolver o projeto, indenizações securitárias, receitas diversas, etc. Como suporte à garantia de recebíveis, nas operações de financiamento de um project finance é constituída uma aplicação financeira ou conta corrente vinculada, formando um “colchão de liquidez”263 para o caso de as receitas da   Ibidem, p. 129.   Trust, no direito anglo-saxão, é um contrato financeiro em que alguém, um grupo de pessoas ou uma organização, guarda ou investe direito alheio. 261   Borges, Luiz Ferreira Xavier. Aplicabilidade das Técnicas de Project finance para Financiamento da Infraestrutura no Brasil: caso da Implantação da Telefonia Celular Banda B de 1997 a 2001. Tese de doutorado, Rio de Janeiro, COPPE/UFRJ, Engenharia da Produção, 2005, p.87. 262   Borges, Luiz Ferreira Xavier. Covenants: Instrumento de Garantia em Project Finance, p. 136. 263   Ibidem, p. 137. 259 260

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conta centralizadora não serem suficientes para liquidação do serviço da dívida financeira com os bancos credores. Essa conta é chamada de conta reserva ou “colchão” e deve ser mantida pelo devedor durante todo o prazo do contrato de financiamento, para pagamento de parcelas do principal e respectivos encargos financeiros. Geralmente são mantidos nesta conta recursos no montante suficiente para cumprimento das obrigações financeiras durante um ano. d) os covenants O instituto do covenant constitui no direito anglo-saxão264 um compromisso ou promessa, para qualquer contrato formal de dívida, lícito e possível, protegendo os interesses do credor e estabelecendo que determinados atos não devam, ou devam, cumprir-se. Trata-se, portanto, de um sistema de garantias indiretas, próprio de financiamentos, representado por um conjunto de obrigações contratuais acessórias, positivas (positive covenants) ou negativas (negative covenants), objetivando o pagamento da dívida. Os covenants265 podem conviver com as garantias tradicionais por toda vida do contrato de financiamento, ou por prazo determinado, como também podem constar no contrato de empréstimo ou em outros contratos relacionados ao empreendimento. Os covenants podem ser protegidos e assegurados através de previsão contratual de juízo arbitral. As obrigações positivas, positive covenants, são exigências relativas à observância de determinadas boas práticas de gestão, consideradas indispensáveis à eficiente administração da empresa ou do projeto. As obrigações negativas, negative covenants, são exigências para que a empresa adote comportamentos restritivos em sua conduta. Os dois tipos consistem em obrigações civis ou comerciais acessórias, equiparando-se às obrigações de fazer e de não fazer, disciplinadas pelo Código Civil, as quais se prendem basicamente a três modalidades mais comuns de preocupações266: 1) limitação do grau de endividamento da empresa contratada através de uma expressão financeira genérica a ser seguida e relatada a partir de dados do balanço da empresa; 2) limitação ou impedimento para contrair novas obrigações e impedir a subordinação futura do direito do credor contratante, impedimento que se refere a créditos com garantia real ou privilégios, excetuando-se obrigações inerentes ao financiamento regular da empresa (essas obrigações já são normalmente previstas nos padrões contratuais das instituições   Azúa, Daniel Real de. Project finance. Uma modalidade de financiamento Internacional. São Paulo: Aduaneiras, 2002, p.33. 265   Borges, Luiz Ferreira Xavier. Aplicabilidade das Técnicas de Project finance para Financiamento da Infraestrutura no Brasil: caso da Implantação da Telefonia Celular Banda B de 1997 a 2001, p.102. 266   Borges, Luiz Ferreira Xavier. Covenants: Instrumento de Garantia em Project Finance,p. 132. 264

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financeiras); e 3) manutenção de capital de giro mínimo, estipulada a partir de um índice de liquidez corrente, calculado com base em valores do balanço auditado da empresa; a liquidez deve ser mantida para proteger o credor contra uma significativa expansão das responsabilidades a curto prazo ou contra uma possível diminuição do nível de negócios da empresa267. São exemplos de obrigações adicionais positivas: prestar regularmente informações que permitam o acompanhamento do projeto pelo credor, manter escrituração adequada, ceder cópias das demonstrações financeiras auditadas, informar fatos relevantes e suas prevenções, dar livre acesso à empresa a auditores externos, efetuar pagamento tempestivo geral, manter seguros adequados e respeitar a legislação sobre a livre concorrência. São exemplos de obrigações adicionais restritivas ou negativas: não assumir ou garantir obrigações de terceiros, exceto as ordinárias, não permitir privilégios e prioridades, bem como garantias reais ou pessoais que onerem seu ativo, exceto as já existentes, os destinados a negócios ordinários e as decorrentes de lei. Outros exemplos de obrigações adicionais negativas são: não vender, descontar ou dispor de títulos de crédito, exceto nas operações ordinárias; não mudar a natureza do negócio ou objeto; não efetuar incorporação, fusão ou cisão; não antecipar pagamentos e limitar empréstimos, investimentos, dividendos, resgate e remuneração de sócios e administradores; limitar o voto dos controladores quanto à alienação direta ou indireta do controle, distribuição de dividendos, endividamento, tecnologia; não dar em caução nem se desfazer de qualquer dos bens do ativo da empresa. A lógica do uso de covenants se completa com a estipulação da pena de vencimento antecipado em caso de inadimplemento das obrigações principais e acessórias, depois de um prazo determinado no contrato em que o devedor poderá regularizar a situação das obrigações assumidas268. É importante estipular que esse prazo para sanar o vício começa a contar a partir de interpelação judicial ou extrajudicial feita pelo credor. No caso de operações bancárias nacionais e internacionais existe ainda a possibilidade de ser previsto o vencimento cruzado de todos os contratos do devedor. 5. RISCOS EM PROJECT FINANCE E SUAS MITIGAÇÕES No financiamento corporativo os riscos são assumidos quase que integralmente pelos sócios da empresa tomadora do empréstimo. No project finance, são os financiadores que assumem o maior risco, ao financiar o projeto   Ibidem,p.133.   Borges, Luiz Ferreira Xavier. Covenants: Instrumento de Garantia em Project Finance.p. 134.

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em proporções muito acima da participação de equity ou do capital próprio. Neste tipo de financiamento, uma das etapas mais importantes de sua estruturação é a análise de todo o ambiente em que o empreendimento estará inserido, para antecipar cenários de adversidades e riscos e procurar formas de mitigá-los, principalmente através de arranjos contratuais. Somente a partir da qualificação e quantificação dos riscos é que se verifica se um projeto é “bancável”. Os riscos podem estar relacionados, dentre outros motivos, à imprevisibilidade dos parâmetros econômicos usados nas projeções do fluxo de caixa do projeto (risco do negócio) e às incertezas resultantes de variações dos juros pagos nos financiamentos, das disponibilidades de recursos no mercado financeiro e das flutuações do valor das moedas, utilizadas no processo de financiamento do empreendimento – o chamado risco financeiro ou financial risk269; Diferentemente da abordagem tradicional quantitativa, a análise de risco em project finance é qualitativa e usada para encontrar soluções com o maior nível de segurança possível para os riscos envolvidos no projeto. Como os empreendimentos em project finance são novos, de longo prazo de maturação e não possuem histórico de rentabilidade e longevidade, são necessárias garantias contra certos riscos básicos, a partir da utilização de instrumentos existentes no mercado270. Um exemplo da mitigação de riscos está no uso de consórcio (sindicated loan ) de agentes financeiros para a divisão do risco do financiamento do empreendimento. Outros exemplos compreendem: 1) a utilização da conta garantia centralizadora ou pagadora do empréstimo (escrow account), que é fundamental para a mitigação de diversos riscos de procedimentos na fase operacional do projeto271, e 2) a cobertura do financiamento com garantias adicionais reais ou pessoais, de fora do projeto, durante a fase de implantação, e a dispensa das mesmas durante a fase de operação/produção. Os riscos que cercam os grandes projetos podem ser agrupados nas seguintes categorias: a) risco político ou soberano O risco soberano ou risco país envolve aspectos políticos, como a credibilidade na estabilidade política, mesmo quando há mudança de poder, na estabilidade da moeda ou do câmbio272. Este risco está relacionado também à   Pereira, Renato Sundin. Project finance como fonte alternativa de recursos, p.30.   Pereira, Renato Sundin. Project finance como fonte alternativa de recursos, p. 32. 271   Borges, Luiz Ferreira Xavier. Aplicabilidade das Técnicas de Project finance para Financiamento da Infraestrutura no Brasil: caso da Implantação da Telefonia Celular Banda B de 1997 a 2001, p.98. 272   Borges, Luiz Ferreira Xavier Borges e Faria, Viviana Cardoso de Sá. Project Finance: 269 270

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possibilidade de expropriação, confisco ou nacionalização dos investimentos. Seguros são usados para cobrir esse risco, que são de elevado custo, e por isso mesmo, nos financiamentos que possuem esta característica de risco as taxas de juros são elevadas. b) risco regulatório e legal O risco regulatório é ligado à possível quebra ou mudança nas “regras do jogo”, determinada poder público, o Estado ou por agências reguladoras responsáveis pelas concessões dos serviços públicos setoriais. As mudanças ocorrem por ações normativas gerais ou específicas, não previstas em contrato ou em lei anterior ao início do projeto. Trata-se de riscos que podem afetar o contrato de concessão e atingir a segurança e a rentabilidade do empreendimento273. Esse risco inclui também mudanças na legislação tributária ou administrativa, como por exemplo, os riscos que existem na obtenção e renovação de licenças ambientais, ou de outras autorizações exigidas pelos órgãos públicos responsáveis pela aprovação de fiscalização do empreendimento. No risco legal podem ser incluídos aqueles resultantes da formatação da SPE, do não cumprimento das normas societárias e da má gestão do empreendimento, entre outros274. Outra questão sensível para os financiamentos na base de project finance refere-se à longa demora de solução dos processos litigiosos no judiciário, provocando, muitas vezes, um clima de desconfiança nos financiadores e investidores. Por isso, é muito comum que os participantes de um project finance, para solucionar eventuais conflitos relacionados aos projetos, tendam a buscar a via da arbitragem, quase sempre em jurisdição internacional. c) riscos de implantação e operacionais Os riscos de implantação estão relacionados a problemas na conclusão das obras e de instalação do projeto. Para mitigar esse risco existem algumas medidas que podem ser tomadas, tais como: análise da reputação do construtor, adoção de tecnologia conhecida, uso de auditoria especializada para a análise do projeto de engenharia e acompanhamento da construção. A previsão de penalidades para o construtor, a participação pari passu dos financiadores na construção, são também fatores mitigantes dos riscos na fase de implantação275. considerações sobre a aplicação em infra-estrutura no Brasil, p.252. 273   Teixeira, Mariana Quaresma Mendonça. Riscos regulatórios em Parcerias Público Privadas. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: Universidade Gama Filho, 2007,p.71. 274   Savoia, José Roberto Pereira. Shinohara, Daniel Yoshio. Parcerias público-privadas no Brasil. Baueri: Manole, 2008, p. 50. 275   Pereira, Renato Sundin. Project finance como fonte alternativa de recursos.p. 35. 233

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Nos projetos modulares (em que a implantação do empreendimento pode ser feita em módulos ou em etapas) o financiamento pode ser aprovado por meio de diferentes subcréditos (tranches), que são repassados ao empreendimento com diferentes prazos e condições ((vários desembolsos de recursos são realizados). A existência de várias tranches cria carências ou cobranças intermediárias dos financiamentos, em função de eventos previstos contratualmente. Isso facilita a continuidade dos investimentos em caso de problemas em um dos módulos. Facilita também o trabalho de fiscalização na fase de implantação276. Os riscos operacionais são aqueles que podem ocorrer durante a fase de execução do projeto. Eles são de diversos tipos. Por exemplo, o risco tecnológico ou de obsolescência é muito comum em empreendimentos que geram ou utilizam tecnologia de ponta. Projetos geradores ou concentradamente utilizadores de tecnologia de ponta, tais como as indústrias de computadores e de equipamentos de bens de capital, não são considerados apropriados para o financiamento por meio de project finance: os riscos são elevados e de difícil mensuração, podendo inviabilizar o retorno do capital investido, ao se cobrar elevada taxa de juros de compensação pelo risco277. Na fase operacional, é comum haver o risco relacionado ao fornecimento de matéria-prima para o projeto. Para a mitigação desse risco, os credores cercam-se de garantias, exigindo a contratação de empresas especializadas para realizarem estudos sobre a quantidade e a qualidade da matéria-prima para o empreendimento, disponível na região, ou podem cobrar a celebração de acordos terceirizados de fornecimento de matéria-prima, nos quais o fornecedor sofre forte penalidade se as entregas não forem realizadas conforme a combinação contratual278. Aparecem também na fase operacional os chamados “riscos de demanda”. Eles possuem uma natureza especial em project finance, tendo em vista que a garantia dos credores está quase que fundamentalmente apoiada nas receitas previstas para o projeto, que, portanto, não devem falhar. Estes riscos envolvem tanto as condições relacionadas à produção quanto as decorrentes de variações nas condições do mercado de determinados itens produzidos no projeto. Os riscos aparecem ao ocorrer diminuição significativa da demanda, gerando uma receita insuficiente para cobrir os custos operacionais e o serviço da dívida, ou ainda, se não for alcançada uma taxa de retorno esperada pelos investidores para o empreendimento. Os fatores mitigantes do risco de demanda compreendem a realização de contratos de venda de longo prazo e a realização prévia de estudos detalhados   Borges, Luiz Ferreira Xavier. Aplicabilidade das Técnicas de Project finance para Financiamento da Infraestrutura no Brasil: caso da Implantação da Telefonia Celular Banda B de 1997 a 2001,p. 93. 277   Fróes, Fernando de Carvalho. Infraestrutura: privatização, regulação e financiamento. Belo Horizonte: UNA Editora, 1999, p.465. 278   Ibidem. p. 466. 276

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do mercado, além da previsão contratual de ajustes de preços e tarifas, principalmente em projetos que exploram serviços públicos. d) riscos financeiros Os riscos financeiros estão relacionados com o impacto de possíveis desequilíbrios no fluxo de caixa do projeto, decorrentes de descontinuidades em relação às projeções (derivadas de fatores como a inflação, a taxa de juros e o câmbio). Estes riscos podem ser enfrentados por uma mistura de instrumentos do mercado financeiro e de capitais, que permitem obter um fluxo estável de recursos no fluxo de caixa independentemente de situações conjunturais. 279 O risco financeiro da taxa de juros existe porque os financiamentos são contratados a taxas de juros flutuantes, podendo afetar o fluxo de caixa do projeto quando a taxa no mercado se elevar consideravelmente. Este risco pode ser eliminado por operações de proteção do mercado financeiro, que consistem na contratação paralela ao financiamento principal de outro empréstimo que contenha um teto para as taxas de juros ou que seja realizado com taxa de juros fixa280. Por outro lado, o risco cambial ocorre quando o empreendimento toma financiamentos em uma moeda diferente daquela encontrada no fluxo de sua receita. Isto pode fazer com que em determinado ano as receitas do projeto, por causa da taxa de câmbio, cresça menos do que os valores a pagar do financiamento, afetando a rentabilidade do projeto281. O risco relacionado ao câmbio pode ocorrer mesmo quando investidores e financiadores de um projeto são do mesmo país. Neste caso, o risco de descasamento cambial decorre da existência, no projeto, de pagamentos e recebimentos em diferentes moedas (fato comum em projetos que envolvem a importação ou exportação de bens e serviços, onde não é possível compatibilizar os pagamentos e os recebimentos na mesma moeda). Uma forma de atenuar o risco cambial consiste em transformar em moeda local parte ou a totalidade da dívida contraída em moeda externa. 6. A IMPORTÂNCIA DO PROJECT FINANCE PARA O DESENVOLVIMENTO DAS EMPRESAS BRASILEIRAS Apesar das grandes mudanças estruturais que o País passou nas últimas décadas e a estabilização econômica adquirida, as empresas brasileiras ainda encontram grandes dificuldades para desenvolveram seus investimentos. A   Borges, Luiz Ferreira Xavier. Aplicabilidade das Técnicas de Project finance para Financiamento da Infraestrutura no Brasil: caso da Implantação da Telefonia Celular Banda B de 1997 a 2001,p. 94. 280   Operações denominadas hedge e swap de taxa de juros. 281   Pereira, Renato Sundin. Project finance como fonte alternativa de recursos,p.36. 279

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elevada e complexa carga tributária, o confuso sistema de normas legais e a falta de recursos para investimento são alguns motivos que explicam essas dificuldades. Outro grande empecilho é a falta de acesso ao crédito, seja para começar, incrementar ou expandir suas atividades. As empresas e os empreendedores, em geral, não possuem capital de geração própria para arcar com os investimentos necessários, e as instituições de crédito exigem em seus empréstimos garantias de elevado valor, reais282 e fidejussórias, além de não estarem dispostas a assumir os riscos de novos empreendimentos. Por isso, a moderna realidade empresarial283exigiu a formatação de novos instrumentos capazes de dar conta da complexidade das operações econômicas e financeiras a que estão envolvidas as empresas na atualidade. Conforme já comentado, no Brasil, o project finance só começou a ser utilizado após a década de 1990, quando houve a mudança do paradigma do Estado Interventor para o de regulador, e ocorreu a transferência para a iniciativa privada dos investimentos nos setores da infraestrutura, através dos processos de privatização e realização de concessões. Esses setores, cujos investimentos antes eram financiados pelo próprio Estado, com a transferência para a iniciativa privada, passaram a necessitar de novas fontes de financiamento.284 E a mudança de gestão dos investimentos produziu relevantes alterações no cenário econômico brasileiro, tornando necessário recriar e/ou inventar arranjos financeiros, capazes de financiar um setor vital para impulsionar o crescimento econômico.285 6.1 AS FONTES DE FINANCIAMENTO PARA PROJECT FINANCE Na composição do funding para o project finance , as empresas contam com recursos que podem ser próprios, dos acionistas286 (equity), de terceiros ou ainda apresentarem um mix de recursos, de terceiro e próprios (quasi equity)287. Em projetos que demandam elevados volumes de recursos, como os aplicados na modalidade de project finance não é possível a realização de investimentos só com recursos próprios, havendo a necessidade de ser feito   Normalmente os bancos exigem garantias reais correspondentes ao valor total do financiamento, além de uma contrapartida de recursos próprios. 283   Timm, Luciano Benetti e D’Avila Anderson Jardim. Alienação fiduciária em garantia no project finance no Brasil. Revista de Direito Bancário,v.14, janeiro-março de 2011,p.152. 284   Ibidem, p.132. 285   Borges, Luiz Ferreira Xavier e Faria, Viviana Cardoso de Sá. Project Finance: considerações sobre a aplicação em infra-estrutura no Brasil,p.263. 286   Normalmente uma operação de project finance se inicia com o aporte de capital por parte dos acionistas. 287   Faria, Viviana Cardoso de Sá. O papel do project finance no financiamento de projetos de energia elétrica:caso UHE Cana Brava, p.62-63. 282

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um mix de recursos próprios e de terceiros, e ocorrer o envolvimento de várias fontes de financiamento. Entre as principais fontes financiadoras estão as agências multilaterais de crédito, os bancos comerciais, o mercado de capitais, as agências de crédito à exportação, as agências de seguro e garantia e as agências nacional e estaduais de desenvolvimento. Agências Multilaterais As agências multilaterais são compostas por capitais de uma ampla gama de países, sendo que o foco de sua atuação não se restringe aos seus membros. A principal missão destas instituições é promover o desenvolvimento econômico e social, através do financiamento a projetos capazes de contribuir para a melhoria da qualidade de vida da população mundial e particularmente dos países em desenvolvimento. Os recursos dessas agências são provenientes da contribuição dos países membros e da emissão de instrumentos de dívida de longo prazo no mercado internacional288. A participação direta e até mesmo o envolvimento indireto das Agências Multilaterais e seus estudos são importantes para os projetos da infraestrutura em países em desenvolvimento. As seguintes agências multilaterais de crédito se destacam no cenário internacional: o Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD), que faz parte do Banco Mundial, a Corporação Financeira Internacional (IFC), um braço do Grupo Banco Mundial e a Corporação Andina de Fomento (CAF), o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), além do Banco Europeu e Asiático de Desenvolvimento. Bancos Comerciais Os bancos comerciais também financiam operações de project finance, e muitas vezes atuam como consultores financeiros para os grandes projetos. No Brasil, os bancos comerciais não possuem uma participação ativa e isolada de outras instituições de crédito no provimento de recursos na base de project finance. Entre os motivos deste comportamento podem ser citados a dificuldade para analisar a concessão de crédito, devido a complexidade do esquema financeiro na base de project finance, a falta de disposição para correr riscos e para aceitar garantias que não sejam as tradicionais, reais ou fidejussórias, e a falta de expertise técnica para análise de projetos. Enfim, há grande dificuldade para essas instituições implementarem novos padrões de financiamento no Brasil, especialmente os bancos comerciais mais tradicionais.   Faria, Viviana Cardoso de Sá,op.cit,p. 62-63.

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Para realizar operações de project finance, os bancos atuam geralmente através de sindicatos de bancos (consórcio de bancos) repartindo os riscos do empreendimento e do crédito, além de buscar apoio nas agências de crédito mais experientes nessa modalidade de financiamento. Mercado de capitais O mercado de capitais pode ser uma fonte de recursos de curto ou longo prazo para project finance. As formas mais comuns de captação de recursos no mercado de capitais compreendem os commercial papers289, as debêntures e o lançamento de ações. No Brasil o mercado de capitais não é ainda suficientemente desenvolvido para atender a maior parte da demanda por recursos, ou seja, não se pode ainda contar efetivamente com essa fonte de recursos para project finance, sendo sua solidificação primordial para viabilizar o financiamento direto em larga escala de projetos, a partir da formação de um sistema de crédito privado de longo prazo, em substituição ao crédito público e externo290. Agências Bilaterais As agências bilaterais de crédito são instituições governamentais cuja finalidade é promover a economia de seus países, através da concessão de crédito à exportação, de seguro e de garantia aos projetos, nas situações em que o setor privado de seu país esteja envolvido. As agências possuem apenas um país membro e limitam aí a sua atuação. As agências bilaterais podem ser subdividas basicamente em três categorias: Agência de Crédito à Exportação (ACE); Agência de Seguro e Garantia; e Agência de Desenvolvimento291. As Agências de Crédito à Exportação são órgãos governamentais que foram constituídos com o intuito de promover a exportação de seus países, oferecendo condições atrativas de financiamento aos importadores292, como ocorre, por exemplo, com o Eximbank (EUA) e o Hermes (Alemanha). As Agências de Seguro e de Garantia complementam o papel das agências de crédito à exportação, privilegiando a concessão de seguros contra o risco político e comercial.   Commercial papers ou notas promissórias comerciais dizem respeito a um título de curto prazo emitido por instituições não financeiras, sem garantia real, podendo ser garantido por fiança bancária, negociável em mercado secundário e com data de vencimento predefinida. 290   Faria, Viviana Cardoso de Sá,op.cit,p. 67. 291   Ibidem, p. 65. 292   Ibidem, p. 66-67. 289

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As Agências de Desenvolvimento, foco maior desse trabalho, são organismos criados para auxiliar na promoção do desenvolvimento de uma zona territorial determinada, contando com instrumentos financeiros diversos e, principalmente, com um nível apreciável de autonomia de gestão. Elas atuam por meio de instrumentos financeiros (incentivos e subsídios, empréstimos, concessão de garantias e avais e participação acionária) e não-financeiros (informação e assessoria). Os principais objetivos dessas agências são a atração de investimentos privados para empreendimentos que apresentem vantagens de localização relevantes, a orientação de ações públicas e privadas no processo de privatização e desregulamentação dos serviços públicos, o financiamento de empreendimentos considerados relevantes para a promoção do desenvolvimento regional, a ampliação dos espaços das parcerias entre o setor público e o privado e a atuação como agente catalisador, se posicionando entre governo e empresariado. No mundo, destacam-se as seguintes agências de desenvolvimento: o KfW (Alemanha); Jexim (Japão), CDC e ODA (Reino Unido) e no Brasil, a atuação do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social - BNDES. Vale notar que, no Brasil, os principais agentes financiadores de project finance são os bancos públicos. Os exemplos são a Caixa Econômica Federal, o BNDES e os bancos regionais de fomento (BNB, BASA e Banco do Brasil)293. Entre os bancos públicos destaca-se a atuação do Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social, que se constitui na maior fonte de financiamento de longo prazo da economia, em setores não ligados a saneamento e habitação, alvos dos financiamentos da Caixa Econômica Federal, e ao funding fiscal direto, cujas operações são realizadas pelo Banco do Brasil, Banco do Nordeste (BNB) e Banco da Amazônia (BASA)294. No Brasil, ainda hoje é essencial a intervenção dessas instituições financeiras públicas no mercado de crédito para prover os recursos necessários para os investimentos da economia. 6.2 A APLICAÇÃO DO PROJECT FINANCE NO BNDES O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) é uma empresa pública federal vinculada ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio. Como mencionado, o BNDES se constitui no principal instrumento de financiamento de longo prazo para investimentos em todos os segmentos da   Bone, Rosemarie Bröker. Indicador Econômico. FEE: Porto Alegre, v.29, nº 2,p.156-179, agosto de 2001, p.170. 294   Ibidem, p.171. 293

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economia. Além disso, através das políticas operacionais do BNDES, o Governo federal imprime uma determinada direção ou rumo para a economia do País Nesse sentido, todos os instrumentos que podem auxiliar o BNDES na concretização de seus objetivos e na atuação em project finance estão ali aportados: funding suficiente, regras compatíveis com as novas modalidades de financiamento, independência de procedimentos, etc. O Banco somente incluiu o project finance na sua política operacional como um dos mecanismos básicos de crédito a longo prazo depois dos anos 1990, apesar de aplicar recursos sob outras modalidades de financiamento há mais de seis décadas. A política operacional aplicável aos pleitos de financiamento sob a técnica de project finance exige que os investidores atendam, em seus projetos as seguintes características cumulativamente295: a) a beneficiária do financiamento deve ser uma sociedade de ações com propósito específico (SPE), constituída para implementar o projeto financiado e segregar o fluxo de caixa, o patrimônio e os riscos do empreendimento; b) o resultado líquido esperado para o fluxo de caixa do projeto deve ser suficiente para saldar os financiamentos obtidos; e c) as receitas futuras do projeto devem ser vinculadas, ou cedidas, em favor dos financiadores. A operação de financiamento poderá ser da forma direta, indireta ou mista, ou seja, realizada direta e unicamente pelo BNDES, por um agente financeiro do Banco, ou ainda por meio de vários bancos sindicalizados, com a participação do BNDES, que geralmente atuará como líder da operação. De maneira geral, os grandes projetos são financiados na forma direta, e a análise de concessão do crédito é toda realizada pela equipe técnica do BNDES. Além disso, a estruturação do pacote de financiamento trabalha com a premissa que os empréstimos serão pagos com os recebíveis a serem gerados durante a vida operacional do projeto. Normalmente uma operação de financiamento no BNDES passa por três fases básicas: análise, contratação e acompanhamento. Na fase de análise de uma operação na base de project finance o exame da série histórica da sociedade de propósito específico fica prejudicada, pois a mesma é criada para a realização de um projeto geralmente novo e para a segregação dos riscos envolvidos nele. Porém, é realizada a análise cadastral dos sócios da SPE e avaliada toda a estrutura societária. O BNDES também realiza uma análise detalhada do fluxo de caixa futuro do empreendimento, uma vez que os recebíveis a serem gerados são a  Disponemwww.bndes.gov.br/SiteBNDES/bndes/bndes_pt/Institucional/Apoio_Financeiro/ Produtos/Project_Finance/index.html, acesso 01.05.2011 295

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garantia do empréstimo, isolada ou em conjunto com outras garantias reais ou fidejussórias. Outro cuidado importante tomado pela equipe técnica durante essa fase é indicar as obrigações que devem constar do contrato de financiamento. Tais obrigações podem prever o cálculo e a apresentação de indicadores de performance financeira da empresa, de manutenção de patamares esperados de recebíveis, de apresentação das licenças legais exigíveis para se aprovar a operação, a contratação de auditoria e a elaboração de relatórios e balanços. No caso de descumprimento de cláusulas financeiras e não financeiras do contrato de financiamento, a Instituição exige o vencimento antecipado das obrigações financeiras. Na fase final de análise da operação também são indicados os prazos de carência296 e amortização do empréstimo (somados, representam o período total para pagamento do empréstimo), que são fixados de acordo com o tempo estimado para o projeto começar a operar e a alcançar receitas suficientes para o pagamento da dívida. Todas essas informações fazem parte do relatório de análise, que é submetido à Diretoria297 do BNDES para aprovação ou não da operação financeira. Se o projeto for aprovado começa a fase de elaboração do instrumento contratual, e após a sua aprovação dá-se a assinatura do contrato pelas partes e o seu registro. A partir daí ocorre a primeira liberação de recursos para o projeto, conforme cronograma físico e financeiro previsto no relatório de análise, desde que haja o total cumprimento das obrigações preliminares exigidas. Na fase dos desembolsos dos recursos previstos no financiamento, geralmente são realizadas visitas de acompanhamento ao empreendimento, que acontecem pari passu com as liberações dos valores. As liberações são realizadas de forma gradual, diminuindo o risco de inadimplemento, pois os problemas na implantação do projeto são rapidamente detectados. E uma nova liberação só é realizada se forem cumpridas as exigências previstas contratualmente. Durante a fase de acompanhamento são exigidos também relatórios e balanços auditados da SPE. Vale ressaltar que o processo de sedimentação das normas de project finance no BNDES começou há vários anos, desde 1996. Desde então, o BNDES vem adaptando sua estrutura operacional para melhor analisar as operações   Prazo em que o valor principal da dívida não é pago, mas pode haver ou não pagamento dos acessórios da dívida, como por exemplo, os juros. 297   Compete a diretoria do BNDES aprovar as concessões de crédito. O BNDES é administrado por uma diretoria composta pelo presidente, pelo vice-presidente e por seis diretores. Comete à diretoria aprovar as operações de crédito por maioria nas reuniões em que estejam pelo menos cinco dos seus membros, tudo conforme art.9º, 14º do Estatuto do BNDES, determinado pelo Decreto nº 4.418, de 11/10/2002 DE 2002. 296

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de financiamento sob a modalidade de project finance, pois durante a maior parte de sua existência trabalhou com operações estruturadas principalmente na forma de corporate finance. Durante a fase de implantação das operações de project finance no BNDES não se utilizou o conceito puro desta modalidade de financiamento. Ao contrário, foram mescladas características de financiamento do tipo corporativo (que sempre fez parte da tradição do Banco) com as características básicas de project finance298. Com essas características hibridas da fase inicial de atuação em project finance , houve maior segurança por parte do Banco na concessão dos financiamentos. Hoje, para a análise de diversos tipos de projetos são utilizados os principais conceitos de project finance299. Deve ser ainda destacada que a principal aplicação de project finance no BNDES se refere ao apoio às SPEs que são formadas pelos vencedores de certames licitatórios de concessões públicas. As dívidas das SPEs são pagas com os recebíveis obtidos com a exploração das concessões, com destaque para os projetos dos setores de energia elétrica, telefonia e rodoviário. No BNDES, o setor que mais se utilizou de financiamentos estruturados na base de project finance foi o de energia, tendo havido diversas operações de financiamento desde 2003. As condições operacionais de apoio financeiro aos projetos de investimento ao setor de energia vêm sendo aperfeiçoadas desde 1996, tendo ocorrido a diminuição do custo financeiro dos empréstimos por meio da queda nas taxas de juros, elevação dos prazos amortização, a redução do índice de cobertura do serviço da dívida e o aumento da participação máxima do BNDES sobre os itens financiáveis em cada projeto300. Isso foi possível principalmente pela criação de um ambiente institucional favorável à implantação de novos projetos, a partir do novo marco regulatório do setor (lei 10.848/04 do setor elétrico), que procurou atrair tanto o capital privado quanto o público para novos projetos setoriais301. 7. CONSIDERAÇÕES FINAIS O project finance é mais uma importante alternativa para o financiamento de grandes projetos, que lutam com a falta de garantias reais e pessoais, demandadas pelas instituições de crédito.   Borges, Luiz Ferreira Xavier e Faria, Viviana Cardoso de Sá. Project Finance: considerações sobre a aplicação em infra-estrutura no Brasil,p. 267. 299   Borges, Luiz Ferreira Xavier. Project Finance e infraestrutura: descrição e críticas. Revista do BNDES, Rio de Janeiro, v.5, n.9, jun. 1998,p.116. 300   Filho, Nelson Fontes Siffert. Alonso, Leonardo de Almeida. Chagas, Eduardo Barros das et al. O papel do BNDES na expansão do setor elétrico nacional e o mecanismo do project finance. BNDES Setorial, Rio de Janeiro, n. 29, p. 3-36, mar. 2009, p.34. 301   Ibidem. Filho, Nelson Fontes Siffert et al, p.35. 298

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Devido ao processo da atenuação dos riscos identificados nos projetos, esta modalidade de financiamento requer, necessariamente, maior tempo de análise e uma significativa malha de contratos e serviços de consultoria para os projetos envolvidos, resultando em custos de transação mais elevados. Na organização de project finance não há uma fórmula única; cada operação de financiamento é singular e deve ser analisada de uma forma específica, na qual todos os contratos envolvidos na implantação e operação do empreendimento convivam de maneira harmoniosa e coordenada. Essa poderosa forma de estruturação financeira tem se tornado uma aliada das empresas brasileira na superação dos desafios na obtenção de crédito para o desenvolvimento de suas atividades. Ou seja, o project finance pode se transformar em uma das mais importantes soluções para o desenvolvimento dos diversos setores da infraestrutura brasileira. No entanto, é importante lembrar, as condições do ambiente regulatório são extremamente importantes para a estruturação de projetos nessa modalidade, fazendo-se necessário a implantação de marcos regulatórios, como o formulado para o setor de energia. Ressalte-se que a estrutura de um project finance é baseada na geração de fluxos financeiros suficientes no empreendimento a ser financiado, não suprindo, portanto, a falta de viabilidade comercial, de mercado ou cambial. Há diversos obstáculos que dificultam o melhor aproveitamento dessa técnica de financiamento no Brasil, como o conservadorismo do mercado bancário, que reluta em adotar novos modelos de financiamento e exigir outras garantias para as operações financeiras, além das tradicionais. Também existem dificuldades de adaptar as características originais do project finance do direito anglo-saxão, onde esta modalidade ainda hoje é mais praticada, para o sistema do direito romano-germânico como o brasileiro. As fontes de financiamento público, principalmente as do BNDES, que foi o vanguardista na aplicação dessa técnica, são ainda essenciais na consolidação definitiva desse instrumento financeiro no Brasil, que pode contribuir ainda mais o para o desenvolvimento da infraestrutura e das empresas brasileiras.

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CONTROLE DA PUBLICIDADE DE PRODUTOS DERIVADOS DO TABACO ADVERTISING CONTROL AND TOBACCO-RELATED PRODUCTS Fernando Gama de Miranda Netto Doutor em Direito pela Universidade Gama Filho (RJ), com período de pesquisa de um ano junto à Deutsche Hochschule für Verwaltungswissenschaften de Speyer (Alemanha) e junto ao Max-Planck-Institut (Heidelberg) com bolsa CAPES/DAAD. Professor Adjunto de Direito Processual nos cursos de graduação e pós-graduação stricto sensu da Universidade Federal Fluminense (UFF). Líder do Laboratório Fluminense de Estudos Processuais (LAFEP/UFF). E-mail: [email protected]

Eric Baracho Dore Fernandes Estudante de Direito da Universidade Federal Fluminense, Monitor de Direito Constitucional

Área do Direito: Constitucional; Consumidor RESUMO O controle da epidemia do tabaco representa um dos maiores desafios para a saúde pública mundial. Nesse contexto, a publicidade direta ou indireta desse produto constitui um das maiores influências para o início do hábito de fumar, em especial para crianças e adolescentes. Justamente por isso, o presente trabalho tem por objeto o atual panorama das políticas públicas de controle da publicidade de produtos derivados do tabaco no Brasil, analisado: (a) os atuais níveis de restrição da propaganda do tabaco no Brasil; (b) a constitucionalidade e legitimidade desse tipo de restrição; (c) a possibilidade da interferência estatal para proteger o consumidor; (d) a responsabilidade civil da indústria pelos danos decorrente da propaganda de tais produtos. Palavras-Chave: Controle do Tabaco. Publicidade e Propaganda. Responsabilidade Civil. Controle de Constitucionalidade. ABSTRACT The control of tobacco epidemics represents one of the biggest challenges to world´s public health. On this regard, the publicity of such product constitutes one of the biggest influences that lead to smoke habits, especially amongst 247

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children and teenagers. For this reason, this paper broaches the current degree of development on Brazil’s public policies regarding the advertisement of tobaccorelated products, which shall be studied under four main aspects: (a) the current levels of advertisement control in Brazil; (b) the constitutionality and legitimacy of such control; (c) the possibility of state intervention to protect consumers; (d) civil libel regarding the damages caused by tobacco advertisement. Keywords: Tobacco Control. Publicity and Advertisement. Civil Liability. Judicial Review. SUMÁRIO: 1. Introdução - 2. O controle da publicidade do tabaco no Brasil - 2.1 Publicidade direta e publicidade indireta de produtos derivados do tabaco – 2.2 Publicidade do tabaco e autonomia da vontade do consumidor - 2.3 Restrição da publicidade do tabaco no Brasil - 3. Constitucionalidade e proporcionalidade das restrições da publicidade do tabaco - 3.1 Tutela da saúde como fim legítimo na restrição da publicidade do tabaco - 3.2 Adequação da restrição da publicidade do tabaco - 3.3 Necessidade do meio restritivo eleito - 3.4 Ponderação entre as vantagens e desvantagens na restrição da publicidade - 4. Responsabilidade civil da indústria do tabaco e a publicidade abusiva e enganosa - 4.1. Licitude da atividade de comercializar produtos derivados do tabaco - 4.2. Direito à informação versus publicidade ilícita - 4.2.1. Direito à informação e livre-arbítrio 4.2.2. Defeito de informação e produto de periculosidade inerente e nãodefeituoso - 4.3. Responsabilidade civil e o mito jurídico da falta de nexo de causalidade - 4.4. Dano moral difuso decorrente da publicidade de produtos fumígenos - 5. Conclusão - 6. Referências bibliográficas. 1. INTRODUÇÃO Não se pode negar seriamente o impacto que a publicidade provoca no comportamento do consumidor. É esta a razão pela qual as grandes empresas investem milhões de reais na divulgação de seus produtos. Neste campo, o consumidor é alvo de inúmeras informações, nem sempre precisas, acerca dos produtos que lhe são ofertados. Muito embora o Código de Defesa do Consumidor contenha inúmeros dispositivos que asseguram o dever de informação do fornecedor (arts. 4º, caput; 6º, II e III; 8º, 9º, 14, 30, 31, 33, 36, par. único; 43, apenas para citar alguns), surpreende que em algumas relações jurídicas este direito seja vilipendiado, desamparando o consumidor e deixando sem freio a atividade empresarial. O problema se torna mais evidente em atividades que geram riscos para a saúde do consumidor, notadamente as 248

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desenvolvidas por fabricantes de produtos derivados do tabaco, potencialmente capazes de afetar de forma mais intensa crianças e adolescentes e induzi-las ao consumo de produtos perigosos. A despeito do atual panorama legislativo de controle desse tipo de propaganda no Brasil, muito ainda se questiona a respeito da constitucionalidade desse tipo de restrição e da responsabilidade dos fornecedores de cigarros pelos produtos colocados no mercado. Diante do problema apresentado, o objeto deste trabalho é justamente uma análise crítica a respeito do panorama atual de controle da publicidade de tabaco no Brasil e a responsabilização civil dos fornecedores de tais produtos pelos danos causados por suas atividades, o que se pretende realizar através da resposta aos seguintes questionamentos: a) se a publicidade do tabaco interfere na autonomia da vontade do consumidor; b) a constitucionalidade e proporcionalidade das restrições à publicidade do tabaco; c) se é adequada à informação que envolve a publicidade dos produtos derivados do tabaco; d) se o Estado deve intervir nas relações jurídicas que envolvem a venda de produtos fumígenos e proteger o consumidor e sua capacidade de autodeterminação da publicidade ilícita; e) qual a relação entre o nexo causal e a publicidade para efeito de responsabilização civil. O estudo do tema que se pretende enfrentar será empreendido por meio de um roteiro composto por três eixos principais. Em um primeiro momento, de cunho predominantemente expositivo, serão apresentados o atual panorama de controle da publicidade (direta e indireta) do tabaco no Brasil e o debate acerca da natureza enganosa de tal atividade. A seguir, pretende-se discutir de forma mais profunda a constitucionalidade do atual marco legislativo e regulatório de controle da propaganda do tabaco diante das normas constitucionais que garantem a liberdade de expressão e de propaganda, análise que será empreendida à luz do princípio da proporcionalidade e seus subprincípios. Por último, será trabalhado o tema da responsabilidade civil dos fornecedores de produtos fumígenos e a aplicação das normas de proteção ao consumidor neste tipo de relação. Ao final, serão sintetizadas breves conclusões que, esperase, sejam capazes de responder de forma mais precisa aos questionamentos apresentados no parágrafo anterior. 2. O CONTROLE DA PUBLICIDADE DO TABACO NO BRASIL Um importante razão para que exista um controle da publicidade de produtos é impedir que o consumidor receba informações deficientes ou até mesmo falsas do ponto de vista científico, permitindo que a vontade do consumidor ao adquirir determinado produto não seja eivada de vício.302 Isto   Reza o art. 36, parágrafo único, do Código de Defesa do Consumidor: “O fornecedor, na

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porque um anúncio publicitário não significa apenas um convite à oferta. Há nele um conjunto de informações que despertam confiança e expectativas legítimas. Nesta linha, este tópico examina a distinção entre publicidade direta e indireta. Em seguida, relação entre publicidade e formação da vontade do consumidor, terminando com a atual situação legislativa no país. 2.1 PUBLICIDADE DIRETA E PUBLICIDADE INDIRETA DE PRODUTOS DERIVADOS DO TABACO Ao menos no Brasil, a publicidade direta de cigarros jamais teve cunho informativo e esclarecedor, tendo sido sempre promovida com o intuito de criar uma ambientação agradável e associada a imagens de atividades esportivas, sociabilidade, saúde, requinte ou sucesso profissional. Tal estratégia persuasiva usava imagens sedutoras para incitar ao hábito, e quando tal veículo de comunicação alcança uma criança, adolescente ou pessoas menos maduras, opera sua influência com um alcance ainda maior. Sendo assim, parece mentirosa uma propaganda que, deliberadamente, busque associar um estilo de vida ideal a um hábito que, de acordo com uma verdade factual, causa graves danos à saúde. Nesse sentido, extraímos a lição da professora Cláudia Lima Marques: “(...) não somente as empresas [do tabaco] desinformam voluntariamente seus milhares de consumidores, como enviaram mensagens que – para estes leigos – eram aceitáveis e acreditáveis. Em outras palavras, a informação publicitária (imagens, induções, sons, risos, frases, personagens, situações de esporte, lazer, prazer, etc.) é recebida e processada por um leigo, o consumidor brasileiro, que nela acredita...”.303 (destaque nosso) Além da publicidade direta, cujas conseqüências são mais amplamente conhecidas, é preciso analisar as conseqüências de uma publicidade indireta, muito mais sutil e igualmente sedutora. Entende-se por publicidade indireta, por exemplo, a estratégia de pagar atores e diretores de filmes para divulgar imagens positivas de cigarros durante as cenas dos filmes. Segundo informações,304 entre os anos de 1978 e 1988, aproximadamente 188 atores e diretores de cinema norte-americano receberam pagamentos das empresas produtoras de tabaco publicidade de seus produtos ou serviços, manterá em seu poder, para a informação dos legítimos interessados, os dados fáticos, técnicos e científicos que dão sustentação à mensagem.” 303  MARQUES, Claudia Lima. “Violação do dever de boa-fé de informar corretamente, atos negociais omissivos afetando o direito/liberdade de escolha”, Revista dos Tribunais, n.835, p. 75133, maio 2005. 304   As informações são de estudo publicado na revista Tobacco Control, vinculada à British Medical Association. Disponível em: [http://tobaccocontrol.bmj.com/]. Acesso em: 02.01.2010. 250

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para que seus produtos fossem exibidos. Lúcio Delfino, em obra que explora de forma profunda o tema da propaganda do tabaco, traz alguns exemplos memoráveis: (...) cite-se a cena em que a personagem Betty Boop vende maços de cigarros no filme “Uma Cilada Para Roger Rabbit”, de Robert Zemeckis; ou, ainda, a cena em que Sean Connery, na pele de James Bond, acende um cigarro com prazer em “007 – Nunca Mais Outra Vez”. O mesmo fizeram Paul Hogan em “Crocodilo Dundee”, Bruce Willis no primeiro “Duro de Matar” e vários personagens de “Grease – Nos tempos da Brilhantina” e “Wall Street”.305 Um acordo firmado entre indústria do tabaco e o governo dos Estados Unidos nos anos 90 determinava o fim desse tipo de propaganda indireta em filmes e na televisão. Entretanto, uma pesquisa realizada pelo Centro de Câncer de Norris Cotton (EUA), demonstrou que tal proposta jamais foi respeitada. Foram analisados os 25 filmes de maior audiência entre 1988 e 1997, dos quais 85% continham cenas de tabagismo. O aspecto mais preocupante do estudo foi que a veiculação de marcas de cigarro foi quase tão freqüente nos filmes adultos quanto nos filmes de adolescentes, reduzindo-se a 20% nos filmes infantis.306 De fato, a maioria dos filmes citados anteriormente ainda são diariamente assistidos por um público composto significativamente por crianças e adolescentes. A análise de tais estatísticas leva a uma conclusão curiosa. É consenso que esse tipo de propaganda não deva alcançar crianças e adolescentes. De fato, espera-se que, diferentemente dos jovens, os adultos tenham discernimento e maturidade suficientes para decidir acerca do hábito de fumar. Contudo, nem todos os adultos que atualmente são fumantes fizeram uma escolha pautada por uma livre manifestação de vontades. Por influência da forte propaganda das décadas passadas, experimentaram o cigarro ainda quando jovens, tornando-se rapidamente dependentes do produto, sem a força de vontade, maturidade ou condições necessárias para desvencilhar-se do hábito após uso prolongado do produto. Ou, similarmente, foram expostos a essa propaganda desde quando pequenos, ainda que viessem a experimentar o produto apenas na idade adulta. Destaque-se que apesar do posicionamento demonstrado publicamente pela indústria do tabaco sempre ter sido no sentido de que a propaganda não seria  DELFINO, Lucio. “O fumante e o livre-arbítrio: um polêmico tema envolvendo a responsabilidade civil das industrias do tabaco”. Revista Jurídica, n. 361, p. 78. 306  BRASIL. INCA. Multinacionais de cigarro e cinema hollywoodiano continuam associados. Disponível em: [http://www.inca.gov.br/atualidades/ano10_1/multinacionais.html]. Acesso em: 01.01.2010. 305

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direcionada a criança e adolescentes, documentos secretos307 dos fabricantes atestam o contrário. A Souza Cruz, por exemplo, afirma em seu website que “A Souza Cruz fabrica cigarros para uso exclusivo de adultos baseada nos melhores mecanismos e meios para a produção308”. Diversos documentos secretos da indústria, contudo, desmentem tal afirmação. A seguir, toma-se a liberdade de reproduzir o teor de um desses documentos: “É importante saber tanto quanto possível sobre os padrões de tabagismo dos adolescentes. Os adolescente de hoje são os potenciais consumidores regulares de amanhã, e a grande maioria dos fumantes começa a fumar na sua adolescência. Devido ao nosso grande espaço de mercado entre os fumantes mais jovens, a Philip Morris sofrerá mais do que qualquer outra companhia com o declínio do número de adolescentes fumantes.”309 2.2 PUBLICIDADE DO TABACO E AUTONOMIA DA VONTADE DO CONSUMIDOR Muitos defendem a liberdade de propaganda de produtos fumígenos sob o fundamento de que a liberdade de propaganda, em geral, seria um importante meio de persuasão inerente ao discurso político, jurídico e comercial.310 De fato,   Em 12 de Maio de 1994, os argumentos a favor da publicidade do cigarro sofreram um duro golpe, quando foram revelados documentos secretos referente às atividades desenvolvidas pela British American Tobacco e sua subsidiária nos Estados unidos, a Brown and British American Tobacco. Os documentos foram publicados em diversos periódicos científicos e em artigos do New York Times. Após recursos da empresa alegando interferência em sua privacidade, a Corte Superior do Estado da Califórnia reconheceu que tais documentos deveriam ser de domínio público. Em 1998, um acordo entre as sete maiores companhias produtoras de cigarro e o governo dos Estados Unidos determinou que tais empresas disponibilizassem ao público todos os seus documentos internos. Os dados alarmantes contidos em tais documentos, em um total aproximado de 5 milhões deles, passaram a subsidiar diversos argumentos contra a publicidade abusiva do cigarro, demonstrando a necessidade de políticas públicas mais incisivas para seu controle. Acesse algumas dessas informações em: [http://www1.inca.gov.br/tabagismo/frameset. asp?item=atento&link=arquivos_secretos.pdf]. Acesso em 03.01.2010. 308   Disponível em: [http://www.souzacruz.com.br]. Acesso em: 03.01.2010. 309   Tradução de um memorando enviado por um pesquisador da Philip Morris, Myron E. Johnston para Robert B. Seligman, Vice Presidente de pesquisa e desenvolvimento da Philip Morris, 1981. Documentos disponíveis em: [http://www.pmdocs.com/]. Acesso em: 03.01.2010. 310   “A propaganda é meio comunicacional de persuasão. A persuasão é um objetivo comunicacional que não se reduz ao instrumento publicitário. Integra o discurso político, o discurso jurídico, o discurso opinativo em geral, diferenciando-se dos discursos científicos, mas até deles fazendo parte na forma de discurso pedagógico. Persuadir significa argumentar de tal forma a obter um comportamento do destinatário, não importam as convicções que os argumentos nele produzam”. FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Direito Constitucional: liberdade de fumar, privacidade, estado, direitos humanos e outros temas. São Paulo: Manole, 2007, p. 234. 307

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não se nega que a propaganda comercial assuma papel essencial no sistema capitalista de consumo, trazendo a tona o constante desejo de comprar cada vez mais bens e produtos, e, com isso, mantendo a roda da economia em constante movimento. Contudo, mesmo sendo dotada dessa importante função social, tal liberdade deve encontrar limites na utilização de informações falsas ou mentirosas, que induzam o consumidor ao erro ou ao prejuízo de seus direitos fundamentais, “entendendo-se por mentira a falsidade deliberada que negue ou omita uma verdade factual”.311 Todo esse panorama de influências diretas e indiretas demonstra de forma bastante clara a forte influência da indústria do fumo no livre-arbítrio do consumidor. Sendo assim, se torna altamente questionável a hipótese de que dar início ao hábito de fumar seria uma decisão originada única e exclusivamente da livre manifestação de vontades do consumidor, isenta de vícios e influências externas. O que dizer, então, da decisão de parar de fumar? Com efeito, em um ambiente onde exista a plena liberdade de propaganda inexiste a plena liberdade do indivíduo, enquanto consumidor e cidadão titular de direitos fundamentais. Dessa forma, torna-se essencial a intervenção do estado para tutelar e proteger tal liberdade do consumidor, através da restrição dessa liberdade de propaganda. 2.3 RESTRIÇÃO DA PUBLICIDADE DO TABACO NO BRASIL As produções legislativas do Brasil nas últimas décadas demonstram que o país tem seguido essa tendência mundial de desestímulo a propaganda e consumo do cigarro. A Lei no. 9.294 de 1996 estabeleceu restrições à propaganda, que se tornaram mais severas ao serem modificadas pela Medida Provisória 1o 2.190-34 de 2001 e pela Lei no 10.167 de 2000, que restringiu a propaganda comercial dos produtos apenas aos pôsteres, painéis e cartazes na parte interna dos locais de venda. Tal restrição gerou reação da indústria do tabaco através da contratação de diversos pareceres que alegavam a inconstitucionalidade da lei. Destaque-se que a agência reguladora ANVISA também trouxe regulamentação restritiva à propaganda do tabaco, através das resoluções RDC no 104/2001 e RDC no 335/2003. O panorama é de progresso em relação ao tema. Contudo, a análise das restrições a propaganda do tabaco no Brasil nos remete a considerações mais complexas. O reconhecimento da necessidade de contenção da expansão do tabagismo como problemas mundiais fez com que, em maio de 1999, durante a 52ª Assembléia Mundial da Saúde, os Estados Membros das Nações Unidas propusessem a adoção do primeiro tratado internacional de saúde pública da   FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Op. Cit.

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história da humanidade. Trata-se da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco. Apesar de introduzir uma série de medidas de controle da propaganda do tabaco, a Convenção estabelece expressamente que tais restrições devem ser compatíveis com as constituições de cada um dos estados signatários.312 Dessa forma, se faz necessário empreender uma análise mais profunda quanto à constitucionalidade do nosso atual modelo de restrições à propaganda do tabaco, bem como quanto a sua legitimidade perante o direito internacional dos direitos humanos. É o que se propõe realizar a seguir. 3. CONSTITUCIONALIDADE E PROPORCIONALIDADE DAS RESTRIÇÕES DA PUBLICIDADE DO TABACO Conforme já dito, a Lei no 10.167 de 27 de Dezembro de 2000, ao alterar dispositivos da Lei nº 9.294, de 15 de julho de 1996, restringiu de forma severa a veiculação de propagandas que tenham por objeto produtos fumígenos.313 A partir da vigência do novo diploma, a propaganda comercial dos produtos em questão só pode ser efetuada através de pôsteres, painéis e cartazes, na parte interna dos locais de venda.314 Além disso, na propaganda passa a ser proibido veicular o consumo à prática de atividades esportivas ou em situações perigosas e ilegais, diferente da redação anterior que vedava apenas esportes olímpicos. Outro ponto relevante foi que a nova lei prevê não apenas a total proibição da presença de crianças e adolescentes na propaganda, mas também quaisquer referências às mesmas. É clara a tentativa do legislador em evitar que jovens se tornem destinatários dessa influência. O tema é polêmico. Registre-se o fato de a Confederação Nacional da Indústria ter ajuizado Ação Direita de Inconstitucionalidade (ADI nº 3311)315 perante o Supremo Tribunal Federal para atacar a legislação que veda a publicidade de cigarros nos veículos de comunicação de massa e determina a inclusão das advertências constantes nos maços. A Aliança de Controle do Tabagismo foi admitida na ação como amicus curiae e defendeu a manutenção   Artigo 13 - Publicidade, promoção e patrocínio do tabaco. 1. As Partes reconhecem que uma proibição total da publicidade, da promoção e do patrocínio reduzirá o consumo de produtos de tabaco. 2. Cada Parte, em conformidade com sua Constituição ou seus princípios constitucionais, procederá a proibição total de toda forma de publicidade, promoção e patrocínio do tabaco. (...). BRASIL. Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco. Decreto no 5.658 de 2 de Janeiro 2006. 313   BRASIL. Lei no 10.167 de 27 de Dezembro de 2000. 314   Art. 3o A propaganda comercial dos produtos referidos no artigo anterior só poderá ser efetuada através de pôsteres, painéis e cartazes, na parte interna dos locais de venda. Idem. 315   Acompanhamento processual disponível em: [http://www.stf.jus.br/portal/processo/ verProcessoAndamento.asp?numero=3311&classe=ADI&origem=AP&recurso=0&tipoJulgame nto=M]. Acesso em: 01.02.2010. 312

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da lei. No plano internacional, vale conferir a decisão da Suprema Corte NorteAmericana sobre a enganosidade dos cigarros de baixos teores (light),316 bem como a decisão da Suprema Corte do Canadá sobre a proibição de publicidade de produtos derivados de tabaco.317 Este cenário oferece um verdadeiro convite para questionar a constitucionalidade e proporcionalidade das restrições da publicidade do tabaco. Nesta linha, cumpre investigar a constitucionalidade das restrições da publicidade do tabaco, o que se fará à luz do postulado da proporcionalidade,318 perquirindo: a) legitimidade dos fins;319 b) adequação da medida para atingir os fins propostos; c) necessidade dos meios empregados; d) proporcionalidade stricto sensu (ponderação). Neste campo, a experiência internacional não pode ser descartada. Conforme lição de Paula Ligia Martins,320 o Direito Internacional dos Direitos Humanos não assume a liberdade de expressão como um direito absoluto, mas exige que qualquer limitação a ele imposta deva ser cuidadosamente desenhada.321 A Corte Interamericana de Direitos Humanos tem esclarecido em suas decisões322 que restrições à liberdade de expressão e comunicação devem (i) ser estabelecidas em lei e precisamente definidas; (ii) buscar atingir fins legítimos com as restrições impostas, ou seja, de acordo  Disponível em: [http://www.actbr.org.br/uploads/conteudo/210_supremacorteEUA cigar roslight.pdf]. Acesso em: 01.02.2010. Veja-se, a propósito: [http://new.paho.org/hq/index. php?option=com_content&task= view&id=1372&Itemid=1232]. Acesso em 01.02.2010. 317   Disponível em: [http://www.actbr.org.br/uploads/conteudo/178_CanadaSupremaCorte 2007 publicidade.pdf]. Acesso em: 01.02. 2010. 318  É curial aqui fazer uma advertência de ordem terminológica. Segundo ROBERT ALEXY, Theorie der Grundrechte, p. 100, n. 84, a proporcionalidade não tem status de princípio, porque seus sub-princípios (adequação, necessidade e ponderação) não são usados com referência a outros, isto é, não é uma norma que prevalece em alguns casos e em outros não. Para o autor, a pergunta é se os sub-princípios (Teilgrundsätze) estão satisfeitos ou não, podendo por isso ser a proporcionalidade classificada como regra. Talvez por esta razão prefira HUMBERTO ÁVILA, Teoria dos Princípios, p. 80-2, considerar a proporcionalidade como metanorma ou norma de segundo grau, preferindo, entretanto, o termo postulado, que oferece a vantagem de não confundir a proporcionalidade com outras normas. Assim, definimos o postulado da proporcionalidade como a metanorma que controla a aplicação de outras normas, com a análise da relação meio-fim. 319   Observe-se que alguns autores e também a Corte Européia de Direitos Humanos arrolam a “legitimidade dos fins” como uma das máximas do princípio da proporcionalidade que precede as outras três (cf. LUÍS VIRGÍLIO AFONSO DA SILVA, “O proporcional e o razoável”, in: Revista dos Tribunais, n. 798, p. 35). 320   MARTINS, Paula Lígia. “Conteúdo e Extensão da Liberdade de Expressão e suas Limitações Legítimas”, in: O STF e o Direito Internacional dos Direitos Humanos. 321   O teste usado pelo Comitê de Direitos Humanos para aplicação do art. 19 do Protocolo de Direitos Civis e Políticos encontra-se expresso no Comentário Geral 10 do Relatório do Comitê de Direitos Humanos à Assembléia Geral, 38a Sessão, Sup. no 40, 1983 (A/38/40), Anexo VI. 322   OEA. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Opinião Consultiva 5/85, la colegiacion obligatoria de periodistas. 316

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com os propósitos listados no art. 13 (2) da Convenção Americana de Direitos Humanos; e (iii) ser realmente necessária para garantir um daqueles fins legítimos. 3.1 TUTELA DA SAÚDE COMO FIM LEGÍTIMO NA RESTRIÇÃO DA PUBLICIDADE DO TABACO A restrição legal da publicidade do tabaco, além de profundamente delimitada, encontra fundamento na própria Constituição Federal, no capítulo destinado à Comunicação Social, no art. 220, § 4º.323 Luís Roberto Barroso entende, contudo, em parecer,324 que a legislação atual deixa de ser uma mera restrição à publicidade do tabaco, configurando um verdadeiro banimento. Segundo uma interpretação semântica do dispositivo, o autor afirma que a expressão “restrições” traz implicitamente a impossibilidade do banimento da propaganda, o que, em tese, teria ocorrido com a restrição da propaganda apenas a painéis, pôsteres e cartazes na parte interna dos locais de venda. É de se questionar tal interpretação. A idéia de que os direitos só podem ser restringidos pela própria Constituição é desmentida pela (a) indeterminação das normas constitucionais; (b) complexidade de grande parte dos casos que envolvam tais direitos. Afinal, nem sempre é possível delimitar com nitidez o âmbito de proteção definitiva dos direitos.325 Segundo tais teorias modernas de interpretação constitucional, é possível atribuir limites distintos aos que estabeleceu o professor Barroso através de interpretação exclusivamente semântica do dispositivo em questão. 326 Além disso, a afirmação da restrição da propaganda aos pôsteres e cartazes nos locais internos de venda configurar praticamente um banimento a essa propaganda é no mínimo contraditória.   Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição. (...). § 4º - A propaganda comercial de tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias estará sujeita a restrições legais, nos termos do inciso II do parágrafo anterior, e conterá, sempre que necessário, advertência sobre os malefícios decorrentes de seu uso. (Grifo nosso). BRASIL. Constituição Federal. 324   BARROSO, Luís Roberto. “Liberdade de expressão, direito à informação e banimento da publicidade de cigarro”, in: BARROSO, Luís Roberto. Temas de Direito Constitucional. Tomo I. 325   Novamente negando uma interpretação unicamente semântica do dispositivo, vale destacar que a doutrina nos mostra claramente a possibilidade de restrições de direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela Constituição, desde que pautadas por parâmetros racionais de controle. Nesse sentido, NOVAIS, Jorge Reis. As restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela constituição, passim. 326   Cf. PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Interpretação Constitucional e Direitos Fundamentais: Uma contribuição ao estudo das restrições aos direitos fundamentais na perspectiva da teoria dos princípios. 323

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Ainda no mesmo parecer, Luís Roberto Barroso afirma: “O cigarro é um produto maduro, vale dizer, está no mercado faz longo tempo e não há necessidade de criação de uma demanda específica pelo seu consumo. Diferentemente se passaria, por exemplo, com um novo sistema de transmissão de dados ou um novo programa de computador. Por ser um produto maduro, a publicidade não se destina a estimular o consumo, mas, sim, a atrair os consumidores para uma determinada marca”. (Grifo nosso)327 Ora, se a intenção da propaganda de produtos fumígenos não é atrair novos consumidores, mas apenas destacar as qualidades particulares de uma determinada marca em detrimento de outras, parece razoável que a propaganda seja restrita aos locais de venda. É uma forma de garantir que a propaganda alcance, de forma mais precisa, apenas o público alvo pretendido pela indústria de tabaco, visto que tais locais concentrariam os consumidores que já fazem uso do produto. O “espaço amostral” dos afetados pela propaganda tenderia a concentrar mais consumidores que já fumam, ao invés das propagandas televisivas que atingem um público composto também por não fumantes (o que potencialmente inclui, conforme já demonstrado no presente trabalho, crianças e adolescentes). O argumento de que a propaganda do tabaco tem como objetivo apenas convencer os fumantes a mudarem ou deixarem de mudar para outra marca de cigarro é argumento recorrente pelos críticos da restrição da propaganda de tabaco. Em relação a tal argumento recorrente, afirma Jens Karsten: “Eu penso que esse argumento está mal definido. Se prova científica for necessária para suprir a necessária fundamentação para satisfazer a demanda provando a relação entre a propaganda de tabaco e o ato de começar a fumar, pode-se confiar em um relatório completo do Departamento Nacional de Pesquisas Econômicas dos Estados Unidos (NBER). Esse relatório demonstra, tanto quanto a ciência social pode fornecer provas, que eliminar a propaganda leva a redução na média per capita do consumo do tabaco de aproximadamente 7%.”328   “Liberdade de expressão, direito à informação e banimento da publicidade de cigarro”, in: BARROSO, Luís Roberto. Temas de Direito Constitucional. Tomo I, p. 247. 328   KARSTEN, Jens. “Controle do tabaco na União Européia e a proibição de propaganda”. Revista de Direito do Consumidor, n.40, p. 18. O relatório ao qual o professor Jens Karsten se refere se trata de CHALOUPKA, Frank; SAFFER, Henry. Tobacco Advertising: Economic Theory and International Evidence. Disponível em: [http://www.nber.org/papers/w6958]. Acesso em: 02.01.2010. 327

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Perante o art. 13(2) da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, o nível atual de restrições se mostra igualmente legítimo. Confira-se: Artigo 13º - Liberdade de pensamento e de expressão 1. Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse direito compreende a liberdade de buscar, receber e difundir informações e idéias de toda natureza, sem consideração de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro processo de sua escolha. 2. O exercício do direito previsto no inciso precedente não pode estar sujeito a censura prévia, mas a responsabilidades ulteriores, que devem ser expressamente fixadas pela lei e ser necessárias para assegurar: a) o respeito aos direitos ou à reputação das demais pessoas; ou b) a proteção da segurança nacional, da ordem pública, ou da saúde ou da moral públicas. (Grifo nosso) Ora, toda e qualquer possibilidade de restrição à propaganda comercial prevista pelo Constituinte no art. 220, § 4º envolve produtos nocivos para a saúde. No caso do tabaco, é um consenso de que o produto se configura como fator de risco para diversas doenças.329 Logo, concluímos que antes de proteger a liberdade de escolha do consumidor de tais produtos, o poder constituinte buscou proteger o bem jurídico da saúde, tornando tal restrição legítima sob a ótica dos Direitos Humanos. Dessa forma, tendo sido demonstrada a legitimidade das restrições perante a ótica dos Direitos Humanos, parte-se ao requisito da adequação. 3.2 ADEQUAÇÃO DA RESTRIÇÃO DA PUBLICIDADE DO TABACO Em sentido instrumental, a adequação entre meio e fim da restrição significa que o meio empregado deve ser compatível com a finalidade a ser alcançada. Em um sentido de adequação constitucional,330 seria a exigência de que toda restrição aos direitos fundamentais seja idônea para o atendimento de um fim constitucionalmente legítimo. Faz-se necessário apreciar, aqui, a capacidade empírica do meio em contribuir para a realização do fim. A finalidade é, sem dúvida, diminuir o   Confira-se as estatísticas disponíveis no website do instituto nacional do câncer (INCA), em: [http:// www1.inca.gov.br/tabagismo/frameset.asp?item=atento&link=doencas.htm]. Acesso em: 01.01.2010. 330   GONÇALVES PEREIRA, Jane Reis. Interpretação Constitucional e Direitos Fundamentais: Uma contribuição ao estudo das restrições aos direitos fundamentais na perspectiva da teoria dos princípios. 329

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número de potenciais novos fumantes ao proteger a liberdade de escolha do consumidor alvo dessa propaganda, bem como um aumento no número de fumantes que deixam o hábito. Por conseguinte, alcançando assim um resultado positivo também no que tange o direito social e humano da saúde e a proteção da criança e adolescente, visto que os jovens se encontram entre os principais atingidos por esse tipo de propaganda. Entendemos haver uma adequação em sentido instrumental pelo fato de a restrição da Lei 10.167/2000 se adequar com a finalidade proposta. Ela não apenas restringe de forma mais precisa essa publicidade a um grupo que tende a concentrar indivíduos que já fumam (o que, diga-se de passagem, está em consonância com o argumento da própria indústria do tabaco de que tais propagandas têm como objetivo promover uma marca nova entre pessoas que já fumam), como também diminui o impacto da propaganda entre crianças e adolescentes. A perspectiva de adequação constitucional garante que interesses constitucionalmente legítimos não sejam restringidos em face de direitos que, hierarquicamente, não gozem de proteção idêntica. Não há dificuldade alguma em encontrar a adequação da restrição em questão com bens jurídicos protegidos constitucionalmente. Novamente, destacamos o direito fundamental e humano à liberdade do consumidor, o direito fundamental, social e humano da saúde, e, por fim, a criança e adolescente como categoria especial protegida pela Carta Magna. Deste modo, extrai-se a ilação de que a restrição é não apenas adequada para evitar que os modelos comerciais de um estilo de vida ideal baseado no cigarro seduzam o consumidor ao hábito de fumar, mas também evita que tais imagens seduzam crianças e adolescentes. 3.3 NECESSIDADE DO MEIO RESTRITIVO ELEITO Quanto ao critério da necessidade, este serve para restringir a escolha de meios adequados para a realização de um fim ligado a um direito ou princípio envolvido, de forma que se houver mais de um meio igualmente adequado para a execução de um fim, deverá ser privilegiado aquele interfere no direito ou princípio de forma menos gravosa.331 Deve-se realizar a, portanto, a verificação concreta se outra medida menos gravosa pode ser utilizada para alcançar o mesmo resultado. Em relação a esse questionamento, mais uma vez colacionamos as palavras de Jens Karsten: “Muito importante também é a observação do relatório de que a regulação inclusiva tem um claro efeito na redução do uso do tabaco, enquanto a regulação limitada quase não é eficaz. A regulação limitada não reduz o   BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Juízo de ponderação na jurisdição constitucional, 2009, p.174.

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impacto da propaganda porque permite a substituição por outro tipo de mídia. No total, uma redução na propaganda de tabaco não é alcançada com regulação limitada, por exemplo, na propaganda de televisão, mas deve, para ser efetiva, alcançar toda a mídia. Essas descobertas também trazem argumentos para dizer que não existem alternativas para a regulamentação da propaganda. Não há como obter meios menos restritos para alcançar o mesmo fim. Medidas positivas, como campanhas de informação que demonstram os perigos de fumar para a saúde, são severamente prejudicadas se a promoção do tabaco é ao mesmo tempo permitida”. 332 Assim, na perspectiva de Jens Karsten, não há alternativa menos gravosa senão a restrição severa das propagandas de cigarro na mídia, destacando que medidas pouco severas têm um grau mínimo de eficácia concreta na diminuição do número de fumantes. Tais conclusões não são exclusividade das fontes citadas. O Instituto Nacional do Câncer (INCA) informa o seguinte: “Diversos estudos mostram que o incremento na promoção do tabaco está diretamente ligado ao aumento do consumo de tabaco na população em geral. A promoção também está relacionada à iniciação ao tabagismo entre grupos específicos tais como mulheres e crianças como resultado de campanhas dirigidas a eles. Estudos também têm demonstrado que a eliminação ou a máxima restrição da promoção do tabaco reduz o seu consumo. Restrições parciais da promoção têm pouco ou nenhum impacto no consumo, normalmente porque somente quando alguns veículos de comunicação ou tipos de propaganda são restringidos, a indústria do tabaco simplesmente investe mais dinheiro em promoções através dos meios ainda permitidos.”333 Há até que entenda que o meio escolhido nem é tão gravoso assim. Afinal, a legislação restritiva da publicidade não proíbe o cigarro, não aumenta   Nessa passagem, o autor novamente se refere ao relatório do Departamento Nacional de Pesquisas Econômicas dos Estados Unidos (NBER), que assinala: Tobacco advertising is a public health issue if these activities increase smoking. (…) This paper also provides new empirical evidence on the effect of tobacco advertising. The primary conclusion of this research is that a comprehensive set of tobacco advertising bans can reduce tobacco consumption and that a limited set of tobacco advertising bans will have little of no effect. CHALOUPKA, Frank; SAFFER, Henry. Tobacco Advertising: Economic Theory and International Evidence. Disponível em: [http://www. nber.org/papers/w6958]. Acesso em: 02.01.2010. 333   Os argumentos dos opositores do controle do tabagismo: sugestões de resposta às questões mais freqüentes. Disponível em: [http://www1.inca.gov.br/tabagismo/frameset.asp?item=publicacoes& link=argumento_opositores.pdf]. Acesso em: 02.01.2010. 332

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os tributos, não obriga a indústria a custear o tratamento de saúde das vítimas do fumo (como fazem os americanos); apenas impede que as imagens de homens de sucesso, garotas sedutoras e práticas esportivas fomentem nos jovens a vontade de fumar e mergulhem na mais profunda dependência química existente.334 Dessa forma, concluímos pela necessidade da medida. Ainda que existissem outros meios menos gravosos, eles não atenderiam a necessidade de proteger o direito humano fundamental à saúde e a formação livre da vontade dos jovens com a mesma intensidade da restrição atual, devido ao elevado grau de interferência da liberdade de propaganda para com tais direitos. 3.4 PONDERAÇÃO ENTRE AS VANTAGENS E DESVANTAGENS NA RESTRIÇÃO DA PUBLICIDADE Em relação à proporcionalidade em sentido estrito, ou seja, a ponderação do equilíbrio entre as vantagens e desvantagens adquiridas pela restrição, Robert Alexy a destaca como sendo uma “otimização” das possibilidades legais.335 Seu objeto seria o limite de satisfação referente às suas possibilidades jurídicas. Para o autor, a aplicação da proporcionalidade em sentido estrito exige avaliar três aspectos, a saber: o grau de interferência de um direito em outro, o peso abstrato das normas em conflito e, por fim, a confiabilidade das premissas empíricas que fundamentam a restrição.336 Nesse sentido, a colisão de bens jurídicos que esse trabalho busca analisar pondera, de um lado, a liberdade de propaganda de produtos fumígenos, manifestação da liberdade de expressão comercial e da livre iniciativa. Do outro lado, encontra-se a liberdade do consumidor em decidir de forma plena sobre um hábito nocivo a sua saúde. De forma secundária, se torna também inevitável ponderar em face dessa propaganda, ao lado da liberdade do consumidor, o direito à saúde, bem como os direitos de proteção diferenciada das crianças e adolescentes. O primeiro aspecto diz respeito ao grau de interferência ou não satisfação de um dos princípios em jogo. Significa que quanto maior o grau de não satisfação ou de prejuízo de um dos direito, maior deverá ser o ônus argumentativo  VARELLA, Drauzio. A propaganda do cigarro. Disponível em: [http://www.drauziovarella. com.br/ExibirConteudo/401/a-propaganda-do-cigarro]. Acesso em: 20.04.2011. 335   “Balancing is the subject of the third sub-principle of the principle of proportionality, the principle of proportionality in the narrow sense. This principle expresses what optimisation relative to the legal possibilities means. ALEXY, Robert. Constitutional Rights, Balancing and Rationality. Oxford: Blackwell Publishing; 2003; p. 6. 336   ALEXY, Robert. “Epílogo a la teoria de los derechos fundamentales”. Revista Española de Derecho Constitucional, Ano 22, nº 66, 2002. Disponível em: [http://www.cepc.es/rap/Publicaciones/ Revistas/6/REDC_066_011.pdf]. Acesso em: 03.01.2010. Ainda, para uma discussão aprofundada sobre essa metodologia, BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Juízo de ponderação na jurisdição constitucional. São Paulo: Saraiva, 2009, p.177 e ss. 334

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para a prevalência do direito contraposto. Ora, em uma circunstância onde a publicidade do tabaco atinge consumidores de forma indiscriminada através da propaganda direta e indireta nos meios de comunicação de massa, há um grande comprometimento à formação do livre-arbítrio. Como conseqüência, além da interferência da propaganda com o direito individual e humano da liberdade, há um posterior dano a outro direito fundamental, a saúde. Por fim, o ônus argumentativo se acentua ainda mais se considerar que crianças e adolescentes estão entre os potenciais afetados pela propaganda enganosa do tabaco. Dessa forma, há de se considerar a não satisfação não apenas da liberdade, mas de três direitos distintos. O segundo aspecto consiste em verificar o peso dos direitos envolvidos, seja em abstrato ou diante do caso concreto examinado, procurando delinear ou desvendar a magnitude e extensão do mesmo em razão das particularidades verificadas. Quando se trata do peso em abstrato, não há hierarquia entre normas constitucionais, mas no jogo da ponderação um princípio pode se revelar mais valioso em face de outros princípios. No caso da liberdade de propaganda em face de outras espécies de liberdade ou em face do direito à saúde, o Direito Internacional dos Direitos Humanos claramente coloca a liberdade de propaganda em uma posição axiológica inferior. Novamente, nas palavras de Jens Karsten: “É consenso que a expressão comercial não contribui da mesma maneira para uma sociedade liberal e democrata como, por exemplo, a expressão política ou artística. A liberdade de expressão comercial é, por essa razão, matéria que implica restrições. A proteção da saúde é um dos fundamentos sob o qual o art. 10 (2) da convenção Européia de Direitos Humanos permite a imposição de restrições à liberdade de expressão. Essa previsão estabelece, em suas partes relevantes: o exercício dessas liberdades, uma vez que isso traz obrigações e responsabilidades, pode estar sujeito a formalidades, condições, restrições ou penalidades conforme estabelecido ela lei, e são necessárias em uma sociedade democrática, no interesse da (...) proteção da saúde (...)”. É notável que a Corte Européia de Direitos humanos (em Strasburgo), na aplicação dessa limitação, jamais tenha derrubado uma lei nacional banindo a propaganda do tabaco e tenha colocado muito menos ênfase no discurso comercial do que nas variedades políticas e artísticas”. Em relação ao direito a saúde, diga-se de passagem, o peso é ainda maior se levarmos em consideração a proteção diferenciada que o Direito Internacional dos Humanos atribui a esse direito, e em especial, à saúde das crianças e adolescentes. Tal proteção é expressa, por exemplo, no Pacto 262

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Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, em seu artigo 12.337 Vale lembrar o exemplo do direito norte-americano, no qual durante muito tempo a liberdade de propaganda sequer foi incluída no conjunto maior que constitui a liberdade de expressão338. Mesmo após sua inclusão nesse rol, a Suprema Corte entendeu o comercial speech como um valor inferior na escala de valores da Primeira Emenda. In verbis: “We have not discarded the “common-sense” distinction between speech proposing a commercial transaction, which occurs in an area traditionally subject to government regulation, and other varieties of speech. To require a parity of constitutional protection for commercial and noncommercial speech alike could invite dilution, simply by a leveling process, of the force of the Amendment’s guarantee with respect to the latter kind of speech. Rather than subject the First Amendment to such a devitalization, we instead have afforded commercial speech a limited measure of protection, commensurate with its subordinate position in the scale of First Amendment values, while allowing modes of regulation that might be impermissible in the realm of noncommercial expression.”339 (destaque nosso) Por fim, o terceiro aspecto a ser considerado na metodologia de Alexy para aplicação da proporcionalidade em sentido estrito é a confiabilidade das premissas empíricas, o grau de certeza a respeito dos efeitos concretos que a decisão jurídica produzirá no fato social ao se adotar uma ponderação específica. Classifica-se, dessa forma, o grau de confiabilidade das premissas em leve, médio ou alto. Em relação às produções jurídicas e pareceres que buscam defender a propaganda do tabaco, o grau de vinculação prévia da tese para com um resultado necessariamente favorável à propaganda impede que um grau de confiabilidade mais elevado seja atribuído. Um grau de confiabilidade das premissas empíricas mais elevado deve ser atribuído somente para as teses patrocinadas por grupos ou desenvolvidas por autores que não demonstrem uma tendência prévia de vinculação de suas conclusões a determinado resultado. Assim, uma tese ou parecer jurídico contratado na defesa de qualquer dos dois   ARTIGO 12.  1. Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa desfrutar o mais elevado nível possível de saúde física e mental. 2.  As medidas que os Estados partes do presente Pacto deverão adotar com o fim de assegurar o pleno exercício desse direito incluirão as medidas que se façam necessárias para assegurar: a)  a diminuição da mortalidade infantil, bem como o desenvolvimento são das crianças (...). (Grifo nosso) BRASIL. Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Decreto no 591 de 6 de Julho de 1992. 338   SUNSTEIN, Cass. Democracy and the Problem of Free Speech. New York: The Free Press, 1995. 339   Caso Ohralik v. Ohio State Bar Assn., 436 U.S 447 (1978). 337

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sentidos possui um grau de confiabilidade menor como premissa empírica. Já um relatório como o realizado pelo Departamento Nacional de Pesquisas Econômicas dos Estados Unidos (NBER) ou por órgãos governamentais possuiria um grau de confiabilidade maior, pois apesar de decidir no sentido de que as restrições são efetivas, não o faz patrocinado por interesses específicos.340 Assim, através da submissão às normas brasileiras de controle da propaganda do tabaco a um teste de proporcionalidade, concluímos que o nível atual de restrições estabelecido pela Lei nº. 10.167/2000 se mostra constitucional. 4. RESPONSABILIDADE CIVIL DA INDÚSTRIA DO TABACO E A PUBLICIDADE ABUSIVA E ENGANOSA Embora o Brasil tenha adotado inúmeras medidas legais e administrativas específicas para realizar o controle da atividade da indústria do fumo, ocupando uma posição de liderança, os tribunais brasileiros, em regra, não têm acolhido as pretensões indenizatórias de pessoas que foram acometidas por doenças associadas ao tabaco. A Aliança de Controle do Tabagismo, sob a coordenação de Clarissa Menezes Homsi, pesquisou como os tribunais pátrios têm se comportado diante de ações indenizatórias contra a indústria do tabaco. Nesta pesquisa foram analisadas 66 decisões dos Estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Espírito Santo e Distrito Federal, sendo que apenas 3 eram ações coletivas.341 No que diz respeito às   É possível destacar uma vasta gama de pesquisas com grau de confiabilidade elevado como premissa empírica que sejam favoráveis à restrição severa da propaganda do cigarro, a citar: CHALOUPKA, Frank J; GROSSMAN, Michael. Price, Tobacco Control Policies and Smoking Among Young Adults, JHE, Vol. 16, no. 3 (June 1997): 359-373; CHALOUPKA, Frank J. Tobacco Advertising: Economic Theory and International Evidence; GROSSMAN, Michael CRAWDORD, Moodie et al., “Tobacco Marketing Awarenes on Youth Smoking Susceptibility and Perceived Prevalence Before and After and Advertising Ban”, European Journal of Public Health 18:5 (2008); ROSEMBERG, José. Nicotina. Droga universal. São Paulo: SES/CVE, 2003; ROSEMBERG, José. Pandemia do tabagismo – Enfoques Históricos e Atuais. São Paulo – SES, 2002. 341   A Indústria do Tabaco no Poder Judiciário, p. 11. Em uma delas o Ministério Público/DF pleiteou que a indústria fosse obrigada a fazer contra-propaganda, além do pagamento em danos morais difusos. Apesar do reconhecimento de publicidade abusiva e enganosa, em grau de recurso foi negado o pedido quanto a obrigatoriedade de contra-propaganda e reduzido o valor dos danos morais de R$ 14.000.000,00 para R$ 4.000.000,00. Em outra ação coletiva a Associação dos Consumidores Explorados do Distrito Federal (Acode) pleiteou que a empresa de cigarro abstivesse de produzir e/ou comercializar cigarros no território nacional. Tendo sido considerado pedido impossível por entender o Judiciário que apenas o Estado poderia definir os produtos a serem fabricados ou comercializados, a ação foi extinta sem julgamento de mérito, tendo sido a decisão confirmada pelo TJDF. Por fim, em São Paulo a Associação de Defesa da Saúde do 340

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ações individuais pesquisadas, mais de 60% foram promovidas por fumantes, pouco mais de 30% por “familiares de fumante falecido (cônjuge, filhos, pais)” e curiosamente uma ação foi proposta por um fumicultor que alegou ter tido problemas de saúde decorrentes de sua atividade.342 Os problemas de saúde mais citados nas ações individuais são: doença pulmonar; câncer; doenças vasculares, até mesmo com amputação e doença psiquiátrica.343 A tutela judicial do consumidor de tabaco deixa a desejar, porque, em regra, tem sido acolhida a linha de argumentação dos advogados que trabalham para a indústria do tabaco,344 que alegam: a) a produção e comercialização de cigarros não só é lícita, mas amplamente regulamentada e todos os atos da Souza Cruz estão de acordo com o que dispõe a Constituição (art. 220, §4º), o Código de Defesa do Consumidor e os regulamentos da Anvisa; b) a propaganda do cigarro não é enganosa ou abusiva; c) O cigarro não é um produto defeituoso, mas um produto de periculosidade inerente; d) os riscos associados ao consumo de cigarros são de conhecimento dos consumidores há várias décadas; e) não há como estabelecer o nexo causal entre o ato de fumar e “doenças multifatoriais” (diversos fatores de risco são concorrentes), mormente pelo fato de que a associação dessas doenças ao tabaco é meramente estatística, não levando em consideração o indivíduo isolado; f) ao consumidor deve ser imputada culpa exclusiva, porque fumar é uma opção que envolve riscos conhecidos e nada impede que o fumante decida parar de fumar a qualquer tempo, já que a nicotina é incapaz de intoxicar o consumidor a ponto de afetar a sua autodeterminação.345 Algumas considerações devem ser feitas no que diz respeito aos argumentos acima apresentados para efeito de responsabilização civil.

Fumante (ADESF) propôs ação coletiva com pedido de “danos morais e materiais aos fumantes prejudicados pelo uso do cigarro, bem como para que as empresas adéqüem suas embalagens e publicidade nos termos da legislação consumerista”. Apesar de em primeira instância ter sido julgado procedente o pedido, até o dia 01/02/2010 o mérito ainda não havia sido julgado pelo Tribunal de Justiça (processo n. 387.231-5/6-00). 342   CLARISSA MENEZES HOMSI (coord.). A Indústria do Tabaco no Poder Judiciário, p. 11/12. 343   Idem, p. 14. 344   Veja-se, no entanto, sentença de procedência favorável à pretensão indenizatória por dano moral contra a indústria tabagista da lavra do juiz MAURO CAUM GONÇALVES, “Ação de indenização por danos morais contra a indústria tabagista”, in: Revista de Direito do Consumidor, vol. 66, p. 353/366. 345   Cf. JOSÉ CARLOS MOREIRA ALVES, “A causalidade nas ações indenizatórias por danos atribuídos ao consumo de cigarros” [Parecer], in: Estudos e pareceres sobre o livrearbítrio, responsabilidade e produto de risco inerente – o paradigma do tabaco: aspectos civis e processuais, p. 240/241. 265

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4.1. LICITUDE DA ATIVIDADE DE COMERCIALIZAR PRODUTOS DERIVADOS DO TABACO Ninguém nega que a comercialização do cigarro no Brasil seja lícita. Toda a cadeia produtiva, desde o cultivo até a preparação e comercialização do produto é amparada pela legalidade, sendo fiscalizada e tributada de forma regular pelo poder público. De fato, a manutenção deste como produto lícito é útil para que o Estado mantenha um nível tolerável de controle sobre a tributação e fiscalização acerca da qualidade dos produtos fornecidos ao consumidor.346 No entanto, “não deixa de ser estranha a licitude de um produto que mata, nada menos, que a metade de seus consumidores diretos, acarretando, inclusive, prejuízos altíssimos aos cofres públicos.”347 De qualquer forma, a licitude da atividade não torna lícito todos os atos empresariais. Do contrário, nunca uma empresa que vende aparelhos eletrônicos poderia ser responsabilizada com base no CDC. Ademais, a licitude da atividade não é significativa para a discussão acerca da responsabilidade da indústria, visto que a mesma é de natureza objetiva, conforme o artigo 12 do Código de Defesa do Consumidor.348 4.2 DIREITO À INFORMAÇÃO VERSUS PUBLICIDADE ILÍCITA Publicidade significa tornar público. Diga-se, desde logo, que a publicidade é uma das técnicas da informação e, por esta razão, não pode desinformar.349 No consumo de produtos derivados do tabaco há informação de todos os riscos que, aliás, são do conhecimento dos consumidores? O tema vem regulado da seguinte forma no Código de Defesa do Consumidor:   “É de ressaltar, desde já, que a exploração comercial do tabaco e da nicotina (venda de cigarros) representa um negócio extremamente lucrativo, mas tolerado pelo Poder Público que, com isso, previne a clandestinidade que uma súbita proibição poderia causar – tal qual o fenômeno verificado durante a Lei Seca nos Estados Unidos – fomentadora de sensível evasão (sonegação) fiscal, bem como prejuízo da ruptura do controle exercido sobre a qualidade e sobre os componentes disponibilizados ao consumidor”. CRUZ, Guilherme Ferreira da. “Responsabilidade Civil das Empresas Fabricantes de Cigarros”. Revista de Direito do Consumidor, n. 47, p. 78. 347   LÚCIO DELFINO. Responsabilidade Civil e Tabagismo no Código de Defesa do Consumidor, p. 107. 348   Art. 12. O fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador respondem, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos decorrentes de projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou acondicionamento de seus produtos, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização e riscos. BRASIL. Código de Defesa do Consumidor. 349   TERESA ANCONA LOPEZ, Nexo causal e produtos potencialmente nocivos: e experiência brasileira do tabaco, p. 89. 346

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Art. 37. É proibida toda publicidade enganosa ou abusiva. § 1° É enganosa qualquer modalidade de informação ou comunicação de caráter publicitário, inteira ou parcialmente falsa, ou, por qualquer outro modo, mesmo por omissão, capaz de induzir em erro o consumidor a respeito da natureza, características, qualidade, quantidade, propriedades, origem, preço e quaisquer outros dados sobre produtos e serviços. § 2° É abusiva, dentre outras a publicidade discriminatória de qualquer natureza, a que incite à violência, explore o medo ou a superstição, se aproveite da deficiência de julgamento e experiência da criança, desrespeita valores ambientais, ou que seja capaz de induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou segurança. § 3° Para os efeitos deste código, a publicidade é enganosa por omissão quando deixar de informar sobre dado essencial do produto ou serviço. Segundo Fábio Ulhôa Coelho, “o essencial, na caracterização da publicidade enganosa, é o potencial de indução em erro que a mensagem pode apresentar, e não necessariamente a falsidade da informação transmitida.”350 E arremata o mesmo autor: “Nenhuma lingerie é usada por mulheres feias; nenhum cigarro é consumido por doentes; nenhum produto é relacionado seriamente com o fracasso pessoal ou profissional. Apenas nos anúncios de formato bastante simples não se vislumbra qualquer apelo fantasioso”. 351 Isto parece contrariar, todavia, a redação do § 1° do art. 37 que se refere à informação ou comunicação “inteira ou parcialmente falsa”. Uma coisa é informar fornecendo dados verdadeiros, reconhecidos pela ciência; outra, bem diferente, é criar informações fantasiosas no campo científico. Seria inteiramente falsa, por exemplo, a informação de que fumar melhora o desempenho físico de um atleta. Diga-se, aliás, que o art. 66 do CDC tipifica a afirmação falsa ou enganosa como infração penal, e isto nada tem a ver com apelo fantasioso352. A conclusão que se chega é que a publicidade do cigarro é enganosa por omissão. Realmente, quais são os dados que precisam ser informados do cigarro? Alguns juristas sustentam que os males provocados pelo fumo já estão presentes na consciência da coletividade ou na cultura popular353. Chegam praticamente   “Análise da licitude da publicidade de cigarros à luz do Código de Defesa do Consumidor” [Parecer], in: Estudos e pareceres sobre o livre-arbítrio, responsabilidade e produto de risco inerente – o paradigma do tabaco: aspectos civis e processuais, p. 163. 351   “Análise da licitude da publicidade de cigarros à luz do Código de Defesa do Consumidor” [Parecer], in: Estudos e pareceres sobre o livre-arbítrio, responsabilidade e produto de risco inerente – o paradigma do tabaco: aspectos civis e processuais, p. 165. 352   No sentido do texto: LÚCIO DELFINO. Responsabilidade Civil e Tabagismo no Código de Defesa do Consumidor, p. 107. 353  Assim, por exemplo, ÁLVARO VILLAÇA AZEVEDO, “A dependência ao tabaco e a sua 350

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a dizer que todos nascem sabendo e que isto isenta os fabricantes de colocar informações nos produtos fumígenos. Esquecem que os principais consumidores atingidos são hipervulneráveis, porque são crianças e adolescentes, conforme tivemos a oportunidade de demonstrar anteriormente. Ademais, o caráter abusivo resta patente na medida em que a publicidade do cigarro faz a apologia de um produto que acarreta danos ao consumidor, aproveitando-se da carência de informações dos jovens que são atraídos pelos efeitos perversos da publicidade com a promessa de autoafirmação para uma vida adulta354. 4.2.1. DIREITO À INFORMAÇÃO E LIVRE-ARBÍTRIO Há quem não veja com bons olhos a excessiva intromissão do Estado no setor privado. Não estaríamos aqui diante de uma forte intervenção na autonomia da vontade – e por que não dizer – no direito de liberdade dos fumantes? Por outro lado, a dependência provocada pela nicotina não constitui uma forma de dano moral ao espaço de decisão do fumante que tenta desesperadamente abandonar o vício? Afinal, em que medida deve o Estado regular a publicidade dos produtos fumígenos? Até hoje está disseminada a idéia de que fumar é um ato consciente de vontade que está dentro da esfera de livre-arbítrio de cada um. Para Teresa Ancona Lopez, 355 a liberdade de fumar é um direito humano tanto quanto a liberdade de não fumar, e é dever do Estado tutelar e tornar harmônicas essas duas liberdades quando estiverem em rota de colisão. Para a autora,356 no entanto, deve-se evitar a todo custo o “higienismo estatal”, isto é, permitir que o Estado se intrometa na vida privada das pessoas, ocupando o lugar da família, formando uma sociedade de eternas crianças. De acordo com os defensores da propaganda, a decisão de fumar seria única e exclusivamente do consumidor fumante, um hábito adquirido por uma decisão racional e plenamente ciente dos prós e contras de tal decisão. Dessa forma, defendem uma linha de culpa exclusiva da vítima pelos danos causados. Essa tese se baseia na premissa de que não há, por parte das empresas, qualquer forma de influência que leve o consumidor ao hábito fumar ou os impeça de deixar de fazê-lo. Muitos sustentam, inclusive, que a finalidade da propaganda influência na capacidade jurídica do indivíduo. A caracterização de defeito no produto sob a ótica do CDC” [Parecer], in: Estudos e pareceres sobre o livre-arbítrio, responsabilidade e produto de risco inerente – o paradigma do tabaco: aspectos civis e processuais, p. 82. 354   LÚCIO DELFINO. Responsabilidade Civil e Tabagismo no Código de Defesa do Consumidor, p. 138/139. 355   Nexo causal e produtos potencialmente nocivos: e experiência brasileira do tabaco, p. 15. 356   Idem, p. 16/17. 268

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do tabaco seria única e exclusivamente a de “fazer com que um consumidor que já fume decida por uma determinada marca em detrimento de outra”. 357 No entanto, a idéia de um livre-arbítrio puro é equivocada para descrever o início do hábito de fumar. A suposta liberdade possuída pelo consumidor “pré-fumante” acaba sendo envolvida pelo bombardeiro de influências externas no processo de formação de sua vontade. Com efeito, a vontade humana não é invariável, inatingível ou totalmente livre de influências. A mesma pode ser conduzida e transformada por estímulos externos, advindos de uma realidade obtida pela experiência. Sempre que possível, na tentativa de analisar uma situação de fato na qual o fator determinante seja uma manifestação de vontades pautada no livre arbítrio, é necessário investigar possíveis interferências externas motivadoras, potencialmente prejudiciais à formação da vontade, e que induzem o indivíduo a um agir específico. Nesta linha, não há como afirmar que determinado hábito depende única e exclusivamente de um livre arbítrio quando não há liberdade plena em tal escolha. Recorde-se, aliás, que a prática do tabagismo é uma doença causada pela dependência da nicotina. E como doença deve ser tratada, “não bastando a simples vontade ou opção do enfermo para expurgá-la de seu organismo”. 358 Estudos demonstram que a primeira tragada do fumante ocorre não na fase adulta e sim quando adolescente. Os jovens sempre estiveram na mira da indústria do tabaco. Historicamente, a estratégia da indústria de tabaco tem se baseado em omissão de informações acerca dos males do fumo, e em técnicas de marketing que criam a imagem de um estilo de vida ideal.359 O fator genético também não pode ser ignorado. Estudos indicam que 90% dos fumantes são fisiologicamente dependentes da nicotina, enquanto 50% dos usuários de heroína apresentam esta predisposição genética e apenas 10% dos consumidores de álcool possuem dependência fisiológica.360 É simplesmente impossível que a pessoa que decide experimentar o cigarro pela primeira vez esteja ciente de todos os malefícios que pode vir a desenvolver, sem falar dos danos que pode provocar ao meio ambiente e à saúde de terceiros.361 Não há, por isso, total livre arbítrio no ato do homem médio que dá início ao   Cf. BARROSO, Luís Roberto. “Liberdade de expressão, direito à informação e banimento da publicidade de cigarro”, in: Temas de Direito Constitucional. Tomo I, p. 247. 358   DELFINO, Lucio. Responsabilidade Civil & Tabagismo, p. 229. 359   CF. ROSEMBERG, José. Nicotina. Droga universal. São Paulo: SES/CVE, 2003; p. 28. No mesmo sentido, ROSEMBERG, José. Pandemia do tabagismo – Enfoques Históricos e Atuais. São Paulo – SES, 2002. 360   AMANDA FLÁVIO DE OLIVEIRA, Direito de [não] fumar: uma abordagem humanista, p. 105. 361   Cf. AMANDA FLÁVIO DE OLIVEIRA, Direito de [não] fumar: uma abordagem humanista, p. 108/115. 357

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hábito de fumar em um ambiente onde existe plena liberdade de propaganda sem uma informação adequada sobre o produto que se está sendo vendido. Tal ambiente impede a possibilidade de uma decisão racional e a plena liberdade do indivíduo, enquanto consumidor e cidadão titular de direitos fundamentais. Dessa forma, torna-se essencial a intervenção do estado para tutelar e proteger tal liberdade do consumidor, através da restrição dessa liberdade de propaganda. 4.2.2 DEFEITO DE INFORMAÇÃO E PRODUTO DE PERICULOSIDADE INERENTE E NÃO-DEFEITUOSO Nos termos do art. 12 do Código de Defesa do Consumidor, consideramse produtos defeituosos aqueles que apresentam “defeitos decorrentes de projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou acondicionamento de seus produtos, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização e riscos.” Na lição de Gustavo Tepedino,362 cumpre distinguir a periculosidade inerente (riscos de fumar são conhecidos) de defeito do produto (segurança dentro dos padrões da expectativa legítima dos consumidores). Exemplifica que o ferimento provocado em um cozinheiro pela faca (perigo inerente previsível) não gera o dever de indenizar, e tampouco se poderia alegar defeito do produto de fogos de artifício com base em sua combustão. De acordo com Adroaldo Furtado Fabrício, poder-se-ia ter como defeituoso “um cigarro que não queimasse, ou que não tivesse sabor algum, ou, por ausência de qualquer dos componentes ordinariamente contidos nele, fosse incapaz de proporcionar ao fumante a sensação de prazer por ele esperada”.363 Embora esses autores não toquem no tema do defeito de informação, Álvaro Villaça Azevedo, sustentar inexistir tal defeito, porque somente com o advento da Portaria do Ministério da Saúde n. 695, de 1º de junho de 1999, é que foi imposta a obrigação de informar que “a nicotina é droga e causa dependência”.364   “Liberdade de escolha, dever de informar, defeito do produto e boa-fé objetiva nas ações de indenização contra os fabricantes de cigarro” [Parecer], in: Estudos e pareceres sobre o livrearbítrio, responsabilidade e produto de risco inerente – o paradigma do tabaco: aspectos civis e processuais, p. 196/199. 363   “Iniciativa judicial e prova documental procedente da Internet. Fatos notórios e máximas da experiência no direito probatório: a determinação processual do nexo causal e os limites do poder de instrução dos juízes” [Parecer], in: Estudos e pareceres sobre o livre-arbítrio, responsabilidade e produto de risco inerente – o paradigma do tabaco: aspectos civis e processuais, p. 31. 364   “A dependência ao tabaco e a sua influência na capacidade jurídica do indivíduo. A caracterização de defeito no produto sob a ótica do CDC” [Parecer], in: Estudos e pareceres sobre o livre-arbítrio, responsabilidade e produto de risco inerente – o paradigma do tabaco: aspectos civis 362

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Ora, se a nicotina, de fato, motiva a dependência, têm-se aqui mais uma prova de que o ato de parar de fumar seja um comportamento que dependa apenas do livre-arbítrio do fumante (que pode ter começado a fumar na adolescência). Uma vez ausente a vontade do viciado cai por terra a tese de que haveria culpa exclusiva do consumidor (art. 12, III, CDC). De qualquer forma, o CDC é de clareza solar no que diz respeito à obrigação de informar adequadamente e suficientemente e até hoje o defeito persiste. Como sustentar a culpa exclusiva do consumidor, se este desconhece qual seria a quantidade “segura” de consumo de um produto de reconhecida nocividade e periculosidade? Esta informação, sobre a quantidade máxima de cigarros que poderiam ser consumidos, obviamente não aparece nos maços. Os meios publicitários apenas estimulam o consumo do tabaco para que o consumidor desenvolva dependência física e psicológica, fazendo-o refém de inúmeras substâncias que, caso ausentes no organismo, provocarão efeitos indesejáveis.365 4.3. RESPONSABILIDADE CIVIL E O MITO JURÍDICO DA FALTA DE NEXO DE CAUSALIDADE Certamente um dos maiores óbices para que pessoas acometidas por doenças relacionadas ao tabaco possam pleitear algum tipo de indenização é o argumento da falta de nexo de causalidade. Todavia, a maioria dos autores restringe o exame do nexo causal ao aspecto fático do ato de fumar e a doença adquirida. Diferentemente, Teresa Ancona Lopez apresenta a distinção entre causalidade natural e causalidade jurídica, e dedica um trabalho inteiro aos aspectos jurídicos do nexo de causalidade. Nesta linha, a autora conclui que não há formação do nexo de causalidade: entre os possíveis danos do cigarro e a falta de conhecimento do fumante quanto aos males do fumo, porque não há defeito de informação sobre os riscos à saúde, e a publicidade não é enganosa ou abusiva. Entende a autora estar excluída a possibilidade de indenização ao fumante pelo fato de ser o cigarro um produto perigoso, e não defeituoso, e a vítima submeter-se, conscientemente, a um risco evitável.366 Embora bem fundamentado, é uma pena que o estudo acima tenha praticamente ignorado a teoria da imputação objetiva na responsabilidade civil.367 A teoria da imputação objetiva remonta à filosofia jurídica de Hegel. e processuais, p. 81. 365   ANDRIGHI, Fátima Nancy; ANDRIGHI, Vera Lúcia; KRÜGER, Cátia Denise Gress. “Responsabilidade Civil da Indústria Fumageira pelos Danos Causados a Direito Fundamental do Consumidor de Tabaco”, in: Responsabilidade Civil Contemporânea em homenagem a Sílvio de Salvo Venosa, p. 370. 366   Nexo causal e produtos potencialmente nocivos: e experiência brasileira do tabaco, p. 22 e ss. 367   Idem, p. 28/29. 271

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Dela é que Karl Larenz, no ano de 1927, colheu inspiração para publicar a obra Teoria da imputação de Hegel e o conceito de imputação objetiva.368 Para esse autor, a imputação tem a ver com a pergunta sobre a responsabilidade que deve ser atribuída a um sujeito com a sua ação de modo que ele seja feito responsável. Nesta ordem de idéias, a imputação não é outra coisa senão a tentativa de distinguir o próprio ato de acontecimentos casuais. Ela foi posteriormente também desenvolvida no campo do Direito Penal, mas a teoria da imputação objetiva ainda conserva valor inestimável para o campo da responsabilidade civil, sobretudo no tratamento da omissão. De fato, há problemas que, conforme lição de Calixto Díaz-Regañón García-Alcalá, “se circunscriben al tratamiento concreto de la imputación objetiva del daño y no del nexo causal material. Para ello, es preciso distinguir cuándo estamos ante un caso de responsabilidad civil donde la conducta del demandado es positiva o identificable con una “acción” y cuándo, por el contrario, estamos ante un comportamiento omisivo o negativo”.369 É dizer: no caso da imputação objetiva do resultado a omissão de uma conduta no plano dos fatos pode significar a realização de um risco juridicamente não permitido. Basta uma rápida leitura do Código de Defesa do Consumidor para perceber que o fornecedor só poderá explorar os produtos potencialmente nocivos se respeitar o dever de informar, de forma clara, adequada, precisa e ostensiva, a respeito da nocividade, composição e periculosidade do produto (art. 9º e 31). As pesquisas indicam que o cigarro possui mais de 4.000 substâncias tóxicas e estas nunca vieram elencadas nos maços de cigarro. Como pondera Lúcio Delfino, “as singelas advertências acerca dos malefícios ocasionados pelo consumo de cigarro, inseridas nos maços vendidos no Brasil, e na própria publicidade do produto, decorrem de previsão legal, mais especificamente, advém do dever do Estado de adotar medidas com a finalidade de preservar a saúde da comunidade, como também da obrigação de conscientizar a população sobre os agravos à saúde gerados pelo consumo de tabaco e seus derivados. Essas advertências não eximem as empresas fumígenas de seu dever de informar.” 370 É neste contexto que a conduta omitida (dever de informar de forma clara, adequada, precisa e ostensiva, a respeito da nocividade, composição e periculosidade do produto) caracteriza a criação de um risco não permitido e   Hegels Zurechnungslehre und der Begriff der objektiven Zurechnung: ein Beitrag zur Rechtsphilosophie des kritischen Idealismus und zur Lehre von der “juristischen Kausalität.” passim. 369   “Relación de causalidad e imputación objetiva en la responsabilidad civil sanitária”, in: Revista para el Análisis del Derecho, 2004, n. 1, p. 20. Disponível em: [http://www.indret.com/pdf/180_ es.pdf]. Acesso em: 01.02. 2010. 370   Responsabilidade Civil e Tabagismo no Código de Defesa do Consumidor, p. 116/117. Consultese, também, CARLOS ALEXANDRE MORAES, Responsabilidade civil das empresas tabagistas, p. 165. 368

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fundamenta a imputação objetiva do dever de indenizar.371 É o que basta para desmistificar o mito da falta de nexo causal. O Direito não pode trabalhar com mitos. Ademais, a relação consumerista baseia-se na boa-fé objetiva, o que por certo não ocorre para a hipótese em que o fornecedor omite, propositalmente, informações relevantes sobre a nocividade de seu produto. Há, portanto, a necessidade de que sejam informados os metais tóxicos (Arsênico, Cádmio, Acetato de Chumbo, Fósforo P4 e P6 etc.) os gases tóxicos (ex.: Monóxido de Carbono, Amônia, Tolueno, Cianeto, Butano, Cetona, Terebentina, Xileno, Ácido Levulínico etc.), bem como as substâncias cancerígenas (Alcatrão, Polônio, Níquel, Benzeno, Formaldeído, Acroleína etc.) e outras que podem interagir perigosamente com os produtos derivados do tabaco. Vencido o problema do nexo causal em sua faceta jurídica, resta ainda enfrentar o tema em seu aspecto fático. Isto porque vários juristas sustentam ser “indispensável a prova inequívoca da relação de causalidade entre o ato de fumar e a doença invocada, sendo insuficiente, para o caso concreto, a associação estatística e genérica, para fins epidemiológicos, da doença com o consumo de cigarros” 372. É absolutamente curiosa essa exigência de prova impossível para o consumidor do tabaco. Todos sabem que o fumo provoca diversos males à saúde e que existe um rol de doenças associadas ao consumo do tabaco. Esses juristas esquecem, no entanto, que também a Medicina é uma ciência de probabilidades. Assim, o médico, ao tratar de um paciente, vai eliminando possibilidades para se aproximar da certeza. De qualquer forma, o nexo de causalidade não pode mais ser ignorado. Através da Resolução WHA 52.18, a 52ª Assembléia Mundial de Saúde, em maio de 1999, estabeleceu um órgão de negociação aberto aos Estados Membros da Organização Mundial de Saúde para implementar uma coalizão mundial – denominada de Convenção Quadro para o Controle do Tabaco (Framework Convention on Tobacco Control) – para o controle do tabagismo.373 Cuida-se, a bem ver, de um verdadeiro Tratado Internacional versando sobre a Saúde Pública mundial.374   No sentido do texto: ANDRIGHI, Fátima Nancy; ANDRIGHI, Vera Lúcia; KRÜGER, Cátia Denise Gress. “Responsabilidade Civil da Indústria Fumageira pelos Danos Causados a Direito Fundamental do Consumidor de Tabaco”, in: Responsabilidade Civil Contemporânea em homenagem a Sílvio de Salvo Venosa, p. 368. 372   Cf. JOSÉ CARLOS MOREIRA ALVES, “A causalidade nas ações indenizatórias por danos atribuídos ao consumo de cigarros” [Parecer], in: Estudos e pareceres sobre o livre-arbítrio, responsabilidade e produto de risco inerente – o paradigma do tabaco: aspectos civis e processuais, p. 251. 373   JOSÉ ROSEMBERG, Nicotina: droga universal, p. 164. Disponível em: [http://www.inca.gov. br/ tabagismo/publicacoes/nicotina.pdf]. Acesso em: 31.01.2010. 374   O Decreto n.º 1.012, 28 de outubro de 2005, aprovou o texto da Convenção-Quadro sobre 371

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Um dispositivo importante e que merece transcrição é o do art. 8º que se refere à proteção contra a exposição à fumaça do tabaco, verbis: 1. As Partes reconhecem que a ciência demonstrou de maneira inequívoca que a exposição à fumaça do tabaco causa morte, doença e incapacidade. (destaque nosso) Aqui há o reconhecimento, pelo Estado Brasileiro, de que há nexo causal entre a exposição à fumaça do tabaco e a morte, doença e incapacidade. Ora, se consta no art. 8º da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco, que “a ciência demonstrou de maneira inequívoca que a exposição à fumaça do tabaco causa morte, doença e incapacidade, como podem os advogados da indústria do tabaco, sem nunca ter aberto um único livro de medicina, duvidar do consenso científico mundial? De tal arte, basta o consumidor provar que é fumante e possuir alguma enfermidade ou evento danoso relacionado ao tabaco para fazer jus à reparação do dano. 4.4. DANO MORAL DIFUSO DECORRENTE DA PUBLICIDADE DE PRODUTOS FUMÍGENOS Afinal, se fumar realmente é prejudicial à saúde, como apontam diversos estudos médicos, não deveria haver algum tipo de responsabilização daqueles que provocam este dano social, isto é, atingem o direito à saúde da coletividade e forçam o Poder Público a destinar mais verbas para os hospitais tratarem especificamente de doenças ligadas ao tabagismo? Um vídeo encontrável na rede mundial acabou sendo alvo do processo n. 2004.011102028-0, por veicular propaganda de cigarro fora do horário permitido por lei. Com efeito, O Ministério Público do Distrito Federal ajuizou ação civil pública em face das empresas Souza Cruz, Standart Ogilvy & Mather Ltda e Conspiração Filmes Entretenimento S/A, em virtude da propaganda televisiva intitulada “Artista Plástico II”, exibida no período de agosto a dezembro de Controle do Uso do Tabaco, assinada pelo Brasil, em 16 de junho de 2003 e, em seqüência, o Decreto nº 5.658, de 2 de janeiro de 2006, promulgou a Convenção-Quadro sobre Controle do Tabaco, adotada pelos países membros da Organização Mundial de Saúde em 21 de maio de 2003 e assinada pelo Brasil em 16 de junho de 2003. No art. 3º resta evidente o objetivo humanitário da Convenção: “O objetivo da presente Convenção e de seus protocolos é proteger as gerações presentes e futuras das devastadoras conseqüências sanitárias, sociais, ambientais e econômicas geradas pelo consumo e pela exposição à fumaça do tabaco, proporcionando uma referência para as medidas de controle do tabaco, a serem implementadas pelas Partes nos níveis nacional, regional e internacional, a fim de reduzir de maneira contínua e substancial a prevalência do consumo e a exposição à fumaça do tabaco.” 274

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2000, a qual teria causado dano a interesses difusos, de âmbito nacional, tendo a publicidade afetado o público infanto-juvenil de todo o país. Na decisão de primeiro grau, tais empresas foram condenadas ao pagamento de indenização milionária a título de danos morais coletivos375, tendo a sentença sido confirmada pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal.376 Com a severa restrição que enfrenta hoje a indústria do tabaco no que diz respeito à publicidade, é natural que os fabricantes procurem outros meios para divulgar e estimular o consumo de produtos fumígenos. Obviamente este tipo de publicidade pode afetar direitos metaindividuais, especialmente na hipótese de não observar a legislação pátria sobre o tema. A indústria aposta agora nas embalagens e nos pontos de venda.377 Atualmente, caixas de padarias, bancas de jornal e algumas lojas de shopping que comercializam livros e revistas são os postos de venda onde são exibidos os produtos fumígenos, geralmente com vitrines luminosas, contendo doces e alguns brinquedos. Uma rápida busca no portal do Youtube permite encontrar propagandas antigas de cigarro,378 mulheres com cigarro se exibindo379 e até brinquedos feitos com caixas de cigarro.380 Com isto, pode-se perceber que a exposição de nossos jovens à cultura do tabaco ainda é intensa e está longe de ser satisfatória. 5. CONCLUSÃO Através de uma análise acerca do estado atual do controle da publicidade do tabaco no Brasil, este trabalho procurou responder a cinco questionamentos pontuais: a) se é adequada à informação que envolve a publicidade dos produtos derivados do tabaco; b) a constitucionalidade e proporcionalidade das restrições à publicidade do tabaco; c) se a publicidade do tabaco interfere na autonomia da vontade do consumidor; d) se o Estado deve intervir nas relações jurídicas que envolvem a venda de produtos fumígenos e proteger o consumidor e sua capacidade de autodeterminação da publicidade ilícita; e) qual a relação entre o nexo causal e a publicidade para efeito de responsabilização civil.   BRASIL, TJDFT, Processo no 2004.01.1.102028-0, Juiz Robson Barbosa de Azevedo, DJE 03/03/2006. 376   BRASIL, TJDFT, Apelação Civil no 2004.01.1.102028-0, Rel. Des. Vera Andrighi, DJE 24.07.2007. 377   JOHNS, Paula. A publicidade da indústria do fumo. Disponível em: [http://www. conexaoprofessor.rj.gov.br/especial.asp?EditeCodigoDaPagina=375]. Acesso em: 20.04.2011. 378   Cf. [http://www.youtube.com/watch?v=LHy7RXJ7W8Y]. Acesso em: 17.04.2011. 379   Por exemplo: [http://www.youtube.com/watch?v=NqiPOPSMgFY]. Acesso em: 17.04.2011. 380   Veja-se a imitação de um robô da série Transformers: [http://www.youtube.com/ watch?v=0CwtrrDYdqQ]. Acesso em: 17.04.2011. 375

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O Brasil, nas últimas décadas, tem seguido a tendência mundial de desestímulo a propaganda e consumo do cigarro. A Lei no. 9.294 de 1996 estabeleceu restrições à propaganda, que se tornaram mais severas ao serem modificadas pela Medida Provisória 1o 2.190-34 de 2001 e pela Lei no 10.167 de 2000, que restringiu a propaganda comercial dos produtos apenas aos pôsteres, painéis e cartazes na parte interna dos locais de venda. A publicidade de cigarros jamais teve cunho informativo e esclarecedor no Brasil, tendo sido sempre promovida com o intuito de criar uma ambientação agradável e associada a imagens de atividades esportivas, sociabilidade, saúde, requinte ou sucesso profissional. Tal estratégia persuasiva usava imagens sedutoras para incitar ao hábito, e quando tal veículo de comunicação alcança uma criança, adolescente ou pessoas menos maduras, opera sua influência com um alcance ainda maior. Sendo assim, parece mentirosa uma propaganda que, deliberadamente, busque associar um estilo de vida ideal a um hábito que, de acordo com uma verdade factual, causa graves danos à saúde. Patente se revela o defeito de informação, na medida em que os fornecedores omitem, propositalmente, informações relevantes sobre a nocividade de seu produto nos maços de cigarro. No que diz respeito ao controle da propaganda do tabaco, as restrições estabelecidas pela Lei nº. 10.167/2000 se mostram constitucionais e atendem à norma da proporcionalidade. Em relação à legitimidade dos fins, percebe-se que as normas encontram pleno amparo no Direito Internacional dos Direitos Humanos. Em uma perspectiva de adequação, a restrição é não apenas adequada para evitar que os modelos comerciais de um estilo de vida ideal baseado no cigarro seduzam o consumidor ao hábito de fumar, mas também evita que tais imagens seduzam crianças e adolescentes. Em relação à necessidade, não há forma de alcançar aquela finalidade que seja menos gravosa à liberdade de propaganda. E por fim, a partir da técnica da ponderação, entende-se que o sacrifício da liberdade de propaganda resulta em um ganho proporcional aos demais bens jurídicos em questão. Afinal, em um ambiente onde exista a plena liberdade de propaganda inexiste a plena liberdade do indivíduo, enquanto consumidor e cidadão titular de direitos fundamentais. Dessa forma, torna-se essencial a intervenção do estado para tutelar e proteger tal liberdade do consumidor, através da restrição dessa liberdade de propaganda. No que tange è relação entre o nexo causal e a publicidade, a maioria dos autores restringe o exame do nexo causal ao aspecto fático do ato de fumar e a doença adquirida. É preciso, primeiramente, fazer a distinção entre causalidade natural e causalidade jurídica. É este último aspecto que nos interessa. Muitos danos do ocasionados pelo cigarro se devem à falta de conhecimento do fumante quanto aos males do fumo, porque há defeito de informação sobre os riscos à saúde, caracterizando-se a publicidade como enganosa e abusiva. É neste contexto que a conduta omitida (dever de informar de forma clara, adequada, precisa e ostensiva, a respeito da nocividade, composição e periculosidade do produto) cria um risco não permitido e fundamenta a imputação objetiva do dever de indenizar. É o que basta para desmistificar o mito da falta de nexo causal. 276

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O NOVEL ESTATUTO DA IGUALDADE RACIAL E SEUS IMPACTOS NA ATIVIDADE EMPRESARIAL: EFETIVIDADE OU MERA RETÓRICA? THE NEW RACIAL EQUALITY STATUTE AND ITS IMPACT ON BUSINESS ACTIVITY: EFFECTIVENESS OR RHETORIC? RESUMO

Felippe Abu-Jamra Corrêa

O artigo analisa inicialmente o contexto das ações afirmativas no Brasil e o advento da Lei 12.288 de 20 de julho de 2010 (Estatuto da Igualdade Racial). Nesse sentido faz breve análise do panorama atual da aplicação do princípio da igualdade, o qual indubitavelmente está intimamente ligado a legislação em comento. A seguir se verifica a importância da empresa no contexto do Estatuto, posto que essa foi conclamada a participar de sua implantação no Brasil, uma vez que inegavelmente é a força motriz da sociedade contemporânea. Por fim, se coteja se há possibilidade, diante do texto promulgado, de efetiva implementação da Lei no âmbito empresarial ou se essa não passará de mera retórica vazia, como é o caso de diversas Leis editadas no país. Palavras-chave: Empresa. Ações Afirmativas. Princípio da Igualdade ABSTRACT The article analyzes initially, the context of affirmative actions in Brazil and the convention of the Law 12.288 of July 20th of 2010 (Racial Equality Statute). In this sense a brief analysis of the actual situation of the application of the equality principle, which is  undoubtedly intimately connected to the legislation comment.  Following, it is verified the importance of the company in the context of the Status, set as it was urged to participate on it’s implantation in Brazil, once it is, undeniably the moving force of the contemporary society.   Finally, it its reflected if there is the possibility, facing the enacted text, from effective implementing of the corporatist scope or if it won’t go beyond mere empty rhetoric, just like the various edited Laws in the country. Keywords: Company. Affirmative Actions. Equality Principle. INTRODUÇÃO O presente estudo se pautará pela análise dos impactos trazidos pelo novel Estatuto da Igualdade Racial às empresas, visto que, conforme se verá 283

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adiante, essas foram devidamente convocadas pelo Estado a participar desse novo sistema de inclusão social criado no Brasil. Diante desse panorama buscar-se-á verificar, por meio da metodologia dedutiva, o histórico das ações afirmativas no Brasil (passando inicialmente por uma breve reflexão sobre o princípio da igualdade e sua pertinência). Em consequencia, se perquire o novo cenário da sociedade global, de verdadeira ascendência das minorias em busca dos seus direitos, o qual levou no Brasil a implantação do Estatuto da Igualdade Racial. Ainda, será realizado exame sobre a importância da empresa privada nesse novo contexto de ações afirmativas, sendo ao fim, verificado se, efetivamente a nova legislação alcançará seus objetivos (tendo em vista alguns pontos de ressalva constatados na redação legislativa) ou então, como em muitos casos brasileiros, a Lei não passará de mero exercício de retórica (política) vazia. A análise do tema proposto se mostra relevante não só pelo frescor da legislação (datada do final de 2.010), mas em especial quando atrelada a importância da inclusão da comunidade negra – uma das que pode ser considerada socialmente vulnerável –, primordialmente no ambiente laboral, ação essa que para ser alcançada certamente terá nas empresas um de seus atores principais. 1. PREFACIALMENTE: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O PRINCÍPIO DA IGUALDADE Inicialmente forçoso reconhecer ser pouco provável que se possa tratar diretamente de ações afirmativas (que é o caso do Estatuto) sem que se faça uma breve análise do tão aclamado princípio da igualdade. Evidentemente que o tema não será esgotado, seja por sua complexidade (tanto que os juristas ainda debatem sua aplicação e destinação) e ainda por não ser esse o objetivo do presente ensaio. Sem embargo, parece mais produtivo se fazer a análise do atual panorama desse caro princípio constitucional. Quanto a dito princípio, trata-se de norma prevista constitucionalmente, e que acaba reflexamente por gerar incidência sobre todas as demais normas. Ainda que não se vá colacionar diversos e repetidos conceitos sobre o tema, importante salientar as lições de Celso Antônio Bandeira de Mello que assim se pronuncia. O princípio da igualdade interdita tratamento desuniforme às pessoas. Sem embargo, o próprio da lei, sua função precípua, reside exata e precisamente em dispensar tratamentos desiguais. Isto é, normas legais nada mais fazem que discriminar situações, à moda que as pessoas 284

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compreendidas em umas ou em outras vêm a ser colhidas por regimes diferentes. Donde, a algumas são deferidos determinados direitos e obrigações que não assistem a outras, por obrigadas em diversa categoria, regulada por diferente plexo de obrigações e direitos. A lei não deve ser fonte de privilégios ou perseguições, mas instrumento regulador da vida social que necessita tratar equitativamente todos os cidadãos. Este é o conteúdo político-ideológico absorvido pelo princípio da isonomia e juridicizado pelos textos constitucionais em geral, ou de todo modo assimilados pelos sistemas normativos vigentes.381 Assim, e como notório, fala-se da velha máxima de tratar os iguais com igualdade e os desiguais de forma desigual. Mas qual o caráter dessa expressão atualmente no Brasil? Não parece difícil concluir que existem, e sempre existirão, grupos diferenciados dentro de uma mesma sociedade. E não menos lógico, até mesmo por determinação Constitucional, que o direito pode sem qualquer objeção tratar esses indivíduos de maneira diferente visando justamente estabelecer a igualdade (seja formal ou material). Tal princípio se mostra absolutamente importante e por essa razão garantido em nossa Carta Magna. Ainda assim é possível se observar que nem sempre é invocado de maneira correta. Aliás, essa tem se mostrado verdadeira tendência atualmente: para toda e qualquer ocasião se emana algum princípio qualquer para tentar justificar situação fática que sequer guarda qualquer relação com o preceito ventilado. O que se observa, em última análise, é nada além de utilizações principiológicas equivocadas e que acabam por enfraquecer o próprio sistema jurídico como um todo. Também, em muitas ocasiões os debates acerca dos temas acabam se dando de maneira partidária ou ainda imbuída de diversos (pré) conceitos pessoais do interlocutor, fato que anuvia qualquer possibilidade de conclusão coerente com aquilo que a própria Constituição efetivamente impõe. E não é diferente com o caro princípio da igualdade. Em diversas situações tal preceito é utilizado para criação de normas que visem dar tratamento diferenciado à determinado grupo. Contudo, nem sempre tal grupo é devidamente minoritário a ponto de efetivamente merecer qualquer guarida diferenciada. Mero exercício mental parece suficiente para se demonstrar a questão: uma Lei que eventualmente garanta benefícios aos idosos não parece passível de qualquer oposição. Trata-se de grupo diferenciado que, por sua condição, merece legitimamente guarida distinta dos demais.   MELLO. Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. São Paulo: Malheiros. 2006. 3 ed. p. 10/13. 381

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De outro lado, quando a discussão muda de patamar (com a questão de instituição de cotas para determinado grupo, por exemplo) a questão tende a gerar imensos debates, e, novamente, pelas razões já expostas, não há consenso sequer sobre os efetivos destinatários do princípio da igualdade, e muito menos, se, em determinada situação a discriminação positiva é legítima. Certo da mesma maneira que, tanto aqueles que entendem desnecessárias medidas protetivas quanto os que clamam por sua implementação, sempre terão terreno fértil não só na Constituição, mas em julgados e até mesmo na doutrina para embasar suas intenções. Mero passar de olhos sobre o artigo 5º da própria Carta Magna revela uma fonte razoavelmente grande de argumentos que podem, ao alvitre do interlocutor, embasar posicionamento tanto favorável quanto contrário a medidas diferenciadas a determinados grupos. Evidente que nem todas as interpretações serão adequadas (até mesmo constitucionalmente), razão pela qual a doutrina crítica e embasada será sempre de suma importância justamente para depurar aquilo que se demonstra (ou não) passível de proteção através do princípio da igualdade. Diante desse panorama, e certamente arrimado no princípio em debate, tem-se observado recentemente no Brasil algumas medidas que visam justamente a proteção e promoção diferenciadas de determinados grupos. De maneira frequente, e já tratando da questão racial, o legislador de todos os âmbitos tem promulgando medidas que visam a inclusão dos negros no Brasil. Assim se observou de forma recente a instituição de cotas em universidades, culminando com a promulgação em 2010 do Estatuto da Igualdade Racial. Em que pese a discussão favorável e contrária a tais medidas, inclusive já ventiladas de forma sumária acima, resta evidente que, convicções deixadas de lado, Leis com tal caráter têm sido promulgadas, logo, cabe ao jurista exatamente fazendo a análise mais apurada, verificar se as razões que embasam a novel legislação são legítimas, e mais e principalmente, se seus comandos são passíveis de efetivo cumprimento. Feitas as considerações anteriores, restam claras duas conclusões: a primeira de que não paira dúvida sobre a importância do princípio Constitucional da Igualdade, em especial em países em que sequer os preceitos basilares são integralmente observados (caso do Brasil). Do mesmo modo, e em mão inversa, os princípios têm sido invocados de forma inadequada, ora para embasar pretensões ora para garantir guarida a grupos que pouco possuem escorço fático legítimo para tais situações específicas. De qualquer maneira, e sem fazer qualquer julgamento sobre a adequação e contexto da promulgação da Lei 12.288/2010, certo é que a mesma já se 286

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encontra em vigor, e mais, vai impactar indubitavelmente o setor empresarial. Nesse mesmo diapasão caberá cada vez mais ao verdadeiro e gabaritado intérprete jurídico fazer a devida análise de questões como a que ora se ventila. 2. O CONTEXTO DAS AÇÕES AFIRMATIVAS NO BRASIL E O ADVENTO DO ESTATUTO DA IGUALDADE RACIAL Feitas as considerações anteriores, e diante da última afirmação de que caberá cada vez mais ao intérprete papel de destaque na análise de questões complexas, resta inegável que atualmente vasta gama de doutrinadores se dedica ao estudo das dificuldades enfrentadas pela sociedade contemporânea, e via de consequência, quais seriam são seus legítimos anseios. Nessa árdua tarefa, e objetivando o momento histórico social, lançam mão de diversas nomenclaturas para designá-lo como, como, por exemplo382, pós-modernidade, hiper-modernidade, nova modernidade, pós-positivismo, dentre tantas outras. Ainda que a idéia de criar nomenclaturas seja sempre válida (e quiçá necessária para conceituação científica do objeto de estudo), parece ainda mais relevante efetivamente entender – independentemente do nome que se queira dar ao fenômeno – o que realmente vem ocorrendo com a sociedade globalizada de hoje. E ainda mais importante (especialmente para a ciência jurídica) é que se entenda quais são os anseios de dita sociedade para que se possa tutelar de forma adequada todos os grupos sociais, visando em última análise cumprir a nobre missão do Direito de efetiva pacificação social. Nessa seara, alguns grupos ditos minoritários vêm buscando o devido reconhecimento e, mais, a efetiva proteção e promoção de seus interesses por parte do Estado que em alguns casos repassa essa responsabilidade também a iniciativa privada. Os grupos que podem ser considerados minoritários (não necessariamente numericamente, mas pelo tratamento que lhes é conferido) e que estão buscando cada dia mais a garantia de seus direitos, são numerosos: indígenas, mulheres, idosos, portadores de deficiência, homossexuais, negros, etc. De toda sorte, ainda no âmbito legislativo, num momento prévio a efetiva ação, resta a certeza de que a simples proclamação jurídica de garantias por si só na basta para reverter quadros históricos de discriminação, sendo inconteste que uma posição passiva do Estado em nada reverterá tal quadro.   O termo pós-modernidade é citado nas obras de Eros Grau e Ivo Dantas; Hipermodernidade é termo empregado pelo filósofo francês Gilles Lipovetsky para denominar fenômeno de superação da pós-modernidade; já a nomenclatura nova-modernidade é utilizada por doutrinadores como Luc Ferry; por derradeiro o termo pós-positivismo se encontra devidamente cotejado por Lênio Streck. 382

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Nesse mesmo diapasão, e especialmente se falando da comunidade negra, um dos mecanismos conhecidos e efetivos de inclusão e alteração do panorama histórico de exclusão são as ações afirmativas. Esse conceito é proveniente dos Estados Unidos, datado da década de 1960, através do qual, por meio de políticas estatais se buscava a discriminação positiva da minoria negra. Hoje é certo que ações dessa natureza já estão disseminadas por diversos países383 (ocupando-se dos mais diversos grupos minoritários), ainda que seus expoentes mais conhecidos no que tange a comunidade negra sejam justamente os Estados Unidos e a África do Sul. Visando conceituar ações afirmativas, colaciona-se a lição de Joaquim Barbosa, para quem podem ser descritas como conjunto de políticas públicas e privadas de caráter compulsório, facultativo ou voluntário, concebidas com vistas ao combate à discriminação racial, de gênero e de origem nacional, bem como para corrigir os efeitos presentes da discriminação praticada no passado, tendo por objetivo a concretização do ideal de efetiva igualdade de acesso a bens fundamentais como a educação e o emprego [...] visam atingir uma série de objetivos que restariam normalmente inacabados caso a estratégia de combate à discriminação se limitasse à adoção de regras meramente proibitivas de discriminação384. No mesmo sentido diz João Paulo de Farias Santos: A ação afirmativa é um conceito que exprime uma espécie de tratamento discriminatório de acordo com o ordenamento jurídico, fazendo que o direito seja garantia de tratamento mais equânime no presente como compensação à discriminação sofrida no passado. Ação afirmativa é tratar de forma preferencial aqueles que historicamente foram marginalizados, para que lhes sejam concedidas condições equidistantes dos privilegiados da exclusão. As ações afirmativas apresentam assim seu viés de constitucionalidade garantida, na medida da promoção da igualdade e de uma justa contribuição do direito para um mais correto reconhecimento da diversidade nacional, pois tais ações não buscam um assistencialismo ou um paternalismo estatal, mas   KAUFMANN, Roberta Fragoso Menezes. Ações Afirmativas à Brasileira: necessidade ou mito? Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 23. 384   GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação Afirmativa e Princípio Constitucional da Igualdade. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 40/44. 383

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a abertura dos caminhos decisórios também para os negros, para que estes construam, como vêm fazendo no movimento social, a igualdade racial.385 No Brasil, paradoxalmente ao panorama histórico, as ações afirmativas passaram a ser aplicadas apenas recentemente, já sendo possível observar alguns exemplos concretos. Uma das dificuldades que se tem, conforme defende parte da doutrina seria a de simplesmente se importar conceitos de outros países (como os EUA, por exemplo) e tentar aplicá-los sobre a realidade brasileira de forma indiscriminada. Nessa senda, Roberta Fragoso Kaufmann fala pontualmente: O tema das ações afirmativas desperta muitos debates e é alvo de discussões nem sempre pautadas pela racionalidade e pela cientificidade. Difícil se torna então, falar sobre um tema quando este já vem impregnado de diversas pré-compreensões, acompanhadas, no mais da vezes, por uma postura passional e extremista. No Brasil, dois fatos principais parecem conduzir à necessidade de uma análise toda própria da questão: nunca houve um sistema de segregação institucional entre as raças, seja por meio das leis, de decisões judiciais, ou por atos do governo. Além disso, a forma como fomos colonizados nos levou à formação de uma sociedade altamente miscigenada386. De qualquer forma, e em que pese não se tratar de um tema fácil ou ainda otimizado, certo é que se observam alguns exemplos positivos de sua aplicação no Brasil, e que, apesar de eventuais debates ou discordâncias, já vêm demonstrando potencial para gerar avanços sociais. Um dos primeiros exemplos de discriminação positiva trazido a realidade brasileira foi o sistema de cotas instituído através da Lei 3.708/01 de 2001 no Rio de Janeiro, o qual previa que 40% das vagas da UERJ e da UENF, a partir do vestibular de 2.002, fossem destinadas a alunos que se autodenominassem “negros ou pardos”. Seguindo o modelo carioca, inúmeros estados brasileiros inseriram cotas em suas universidades. Evidentemente que nem todos os segmentos da sociedade se sentiram confortáveis com tais ações afirmativas, e por diversas razões, buscaram guarida judicial para que não prosperasse tal sistema.   SANTOS, João Paulo de Faria. Ações afirmativas e igualdade racial. A contribuição do direito na construção de um Brasil diverso. São Paulo: Edições Loyola, 2005, p. 45/46/86/87. 386   KAUFMANN, Roberta Fragoso Menezes. Op. cit. p. 21/211. 385

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A questão também foi tema da ADPF 186-2 em trâmite perante o STF, através da qual um partido político (DEM) buscou barrar o sistema de cotas, sendo que, contudo, não obteve a liminar pleiteada. O Ministro Relator Gilmar Mendes, entendeu que muito embora seja pertinente a discussão, não é prudente na atual quadra histórica (e em sede liminar) alterar o sistema que vem funcionando na UnB desde o ano de 2004. Ainda, nessa mesma seara tem-se já em vigor (porém pouco observada) a Lei 11.645 de março de 2008, segundo a qual nos estabelecimentos de ensino médio, públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena. Ainda assim, o Brasil foi além. Através da Lei 12.288 de 20 de julho de 2.010 foi instituído o já mencionado Estatuto da Igualdade Racial, o qual pode ser encarado como verdadeira ação afirmativa, talvez, a mais importante já efetivada no país em busca dos direitos da população negra. Tanto a matéria tratada é polêmica que foi debatida no Congresso por aproximadamente dez anos, para então ter sua versão final enfim aprovada. Já em seu artigo 1º fica demonstrado de forma inequívoca qual é a intenção de referido Estatuto: “garantir a população negra a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o combate à discriminação e às demais formas de intolerância étnica”. Nota-se de plano que a missão do Estatuto é bastante espinhosa. Questões pouco (ou nada) cuidadas ao longo de diversas décadas serão agora atacadas pela presente medida, o que evidentemente, não será tarefa fácil, ao exemplo do que já vem ocorrendo com simples sistema de instituição de cotas em universidades. Feita essa breve análise do conceito de ações afirmativas e seu panorama atual no Brasil, cumpre analisar em que medida o novel Estatuto da Igualdade Racial se relaciona com a iniciativa privada, e mais, sua correlação com a atuação da empresa. 3. A IMPORTÂNCIA DA EMPRESA E O ESTATUTO DA IGUALDADE RACIAL Como é notório, o Estado contemporâneo não mais centraliza todas as suas atividades. Pelo contrário, ele busca repassar à iniciativa privada muitas de suas atribuições através das mais variadas formas, as quais não serão analisadas no presente estudo por não ser esse seu foco central. Afirma Geraldo Araújo que “o Estado ainda não conseguiu fazer surtir o resultado esperado. Aqui está o engodo, pois o seu passado e a história nos forçam a acreditar que ele não é capaz de exercer por si só, com razoabilidade, a responsabilidade social que lhe foi confiada”.387   ARAÚJO, Geraldo Bonnevialle Braga. A responsabilidade social da empresa e as fundações privadas. In: Oliveira, Gustavo Henrique Justino (Coord.). Direito do Terceiro Setor: Atualidades 387

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De toda sorte o que não mais se nega é que o próprio Estado ao verificar que sozinho não poderá arcar com todas as responsabilidades que lhe são inerentes claramente apóia-se nos particulares para alcançar tal nobre missão. A realidade tem mostrado que no hodierno panorama econômico a empresa é a verdadeira força motriz da sociedade contemporânea, especialmente diante do cenário de globalização e avanço das tecnologias, sendo que em contrapartida, essa mesma sociedade cobra do empresário respeito aos princípios basilares da nação, não sendo autorizado o lucro a qualquer preço. Diante disso, o atual momento traz o conceito de empresa imbuído das responsabilidades já mencionadas, sendo certo que o empresário é cada vez mais convocado a participar ativamente na resolução dos problemas sociais, nascendo uma verdadeira re-fundação da idéia de “responsabilidade social”. Nesse sentido, e em complemento ao que foi dito no primeiro tópico do estudo, imperiosa desde logo a indagação sobre a efetividade dos preceitos constitucionais em nossa sociedade atual. Como bem observa Lenio Streck388, evidentemente que em países de evolução tardia, como é o caso do Brasil “parte considerável dos direitos fundamentais-sociais continua imcumprida, passados dezoito anos da promulgação da Constituição”. Ou seja, é possível se afirmar que, em alguns casos, o próprio Estado não cumpre aquilo que vem expresso em sua Constituição, deixando de prover assim o cidadão, alvo direto de tais preceitos. De tal modo seria justo se pensar – tratando aqui o termo justiça como aquilo que constitucionalmente adequado – que então as empresas, devem diante da omissão do Estado auxiliar no provento das garantias pensadas pela própria Constituição. Até porque é inegável que “quando o constituinte estabeleceu que a ordem econômica deve atentar para o princípio da função social da propriedade, atingiu inegavelmente, a empresa que é uma das unidades econômicas mais importantes do hodierno sistema capitalista”389. E porque tal ônus recairia sobre as empresas? Se não bastasse a própria Constituição assim determinar, ainda é de se verificar que, uma vez inseridas no sistema capitalista, as empresas - como vem sendo defendido tomam caráter importantíssimo na sociedade. Isso porque “é nas empresas que a maior parte dos trabalhadores assalariados do país está empregada; é delas que o Estado recebe a maior e Perspectivas. Curitiba: OAB/PR, 2006, p. 84. 388   STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 26. 389   DALLEGRAVE NETO, José Affonso. Notas sobre a subordinação jurídica e a função social da empresa à luz do solidarismo constitucional. In: Gevaerd, Jair. Tonin, Marta Marília. (Coords.). Direito Empresarial e Cidadania – Questões Contemporâneas. Curitiba: Juruá, 2006, p. 208. 291

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parte das receitas fiscais; é delas que a maioria dos consumidores adquire bens e serviços”390. Portanto, resta verificada a premissa constitucional de que as empresas são também responsáveis pelo desenvolvimento da nação quanto aos seus aspectos mais relevantes havendo “a necessidade de adotar ou adaptar novas estruturas, políticas e rotinas que dêem suporte aos novos ou mais apurados padrões éticos”391. Fato é que hoje “a sociedade, [...], exige das empresas uma readequação ao novo cenário mercadológico, uma reestruturação de sua filosofia e uma adaptação fiel ao modelo socialmente responsável”392. Em suma, a empresa que de tal forma age, além de efetivamente atender aos preceitos constitucionais, estará a surpreender positivamente seus parceiros e consumidores, ou seja, além de agir de maneira constitucionalmente correta - mesmo que tal agir esteja imbuído de custos “utilizando seus próprios recursos e estrutura393” - estará fazendo um investimento em si própria, o qual pode inclusive ser motivo de propaganda e apelo ao seu consumidor final e/ou clientes. Pois bem, vista a importância das empresas no atual cenário mundial e as razões pelas quais sua atuação torna-se dia a dia mais importante, resta a indagação sobre a observância de ações afirmativas no âmbito empresarial. Como se observa no já mencionado Estatuto da Igualdade Racial, seu capítulo V dispõe sobre o acesso da população negra ao trabalho (ou seja, tema que de plano impacta as empresas). Inicialmente o próprio Estatuto fala que tal medida será de “responsabilidade do poder público”, nada obstante, a seguir e ao longo de todo o mencionado capítulo V se fale em “incentivo a adoção de medidas similares nas empresas e organizações privadas”. Portanto, é inegável que a empresa e organizações de cunho privado, mediante incentivos (os quais ainda não foram especificados pela própria Lei) terão de participar ativamente do processo de implementação de ações de promoção ao trabalho da comunidade negra. Devido a novidade do tema não é possível ainda se teorizar muito sobre como se darão os ditos “incentivos” previstos na Lei, sendo certo que haverá necessidade de algumas regulamentações posteriores para que o Estatuto seja inteiramente cumprido.   ARAÚJO, Geraldo Bonnevialle Braga. Op. cit., p. 87.   AGUILAR. Francis J. A ética nas empresas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996, p. 136. 392   CASTRO, Rodrigo Pironti Aguirre de. Terceiro Setor e responsabilidade social. In: Oliveira, Gustavo Henrique Justino (Coord.). Direito do Terceiro Setor: Atualidades e Perspectivas. Curitiba: OAB/PR, 2006, p. 148. 393  MELO NETO, Francisco Paulo; FROES, César. Responsabilidade Social e Cidadania Empresarial: a administração do terceiro setor. Rio de Janeiro: Qualitymark, 2000, p. 77. 390 391

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De toda sorte a intenção do presente estudo é a de verificar a importância do que dispõe o Estatuto e mais, o porquê a empresa foi efetivamente instada a participar de sua implantação. Como já se expôs previamente, a comunidade negra por razões históricas e culturais é inegavelmente submetida a diferenciação no acesso a renda, educação, cultura, etc. o que acaba culminando com adultos pouco preparados para o mercado de trabalho atual. Assim não se pode negar a importância da empresa já nesse tocante pois “o cuidado com o interesse dos trabalhadores está na preservação da dignidade do trabalho produtivo e no acesso a renda. A empresa deve estar comprometida com a idéia de que o trabalho é a atividade indispensável para o exercício pleno da cidadania”394. Ou seja, se verifica claramente o inconteste enlace entre o acesso de determinada comunidade a um emprego digno (que gere renda para uma vida adequada) e a própria questão de cidadania. Assim quando se fala no Estatuto que a empresa deverá buscar a inclusão da comunidade negra em seus quadros, o que se está buscando é justamente a promoção social desse grupo discriminado, o que por consequência, vai gerar uma vida mais digna e cidadã aos impactados pela medida. Evidente que não se fala aqui de uma inclusão a qualquer custo. Certamente que desvios históricos (como a baixa qualidade, ou pior, ausência de estudo de determinada população) não será de plano corrigido pela empresa. Mas parece ser necessário enxergar a Lei como um marco inicial para essa nova política de inclusão. A idéia principal parece ser a de que, incluindo-se a comunidade negra hoje (através de ações afirmativas com ao presente) suas gerações futuras terão acesso a melhor qualidade de vida, o que por sua vez irá culminar em adultos mais bem preparados que, talvez, sequer necessitem de ações da mesma natureza. Em suma, não se pode mais negar que a complexidade social de hoje Gerou um novo tipo de produção de norma jurídica, feita por, e para, grupos sociais de interesses, ou com uma identidade comum, específicos. Esses grupos são diferenciados, por consistirem em indivíduos vistos de maneira unida. [...] de maneira a enfeixarem e projetarem certos interesses sociais comuns. Deve-se observar, pois, que essa nova produção jurídica vem não só para   OLIVEIRA, Francisco Cardozo de. Uma nova racionalidade administrativa empresarial. In: Gevaerd, Jair. Tonin, Marta Marília. (Coords.). Direito Empresarial e Cidadania – Questões Contemporâneas. Curitiba: Juruá, 2006, p. 124. 394

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atender os interesses grupais, mas também em face de diferentes papéis sociais vividos pelas pessoas ou grupos de pessoas. [...] Na Idade Média o Direito aplicável poderia variar conforme o status social do indivíduo, na pós-modernidade essa variedade poderá advir dos vários papéis sociais atribuíveis a um mesmo cidadão395. Pois bem, sedimentada essa idéia, como fica especificamente a atividade empresária sob o viés dessa nova realidade? As empresas, nos moldes do já exposto, têm de se adaptar a nova realidade, sem, contudo, que tal adequação lhe seja prejudicial ou até mesmo contraproducente. É indubitável que “se os clientes demandarem haverá um estimulo para que o mercado desenvolva e ofereça bens e serviços que incorporem mecanismos que ajudem a dar conta da exclusão social, da preservação do meio ambiente ou quaisquer que sejam as demandas”396. Exatamente nessa seara deve ser encarado o Estatuto da Igualdade Racial, pois além de ser verdadeira estrutura que visa auxiliar na resolução de um grave e histórico problema de exclusão social, ainda, pode se reverter (em muitos casos) em verdadeiras vantagens para a própria empresa. E tal afirmação decorre da verificação de que em primeiro plano – e como já foi objeto de análise – a atividade empresarial estará efetivamente comprometida com o desenvolvimento da própria nação. Ou seja, os ideais constitucionais e basilares da nação estarão sendo alcançados também por essa que é hoje um dos mais importantes atores sociais do mundo globalizado. Ainda, um segundo aspecto que não pode ser desprezado é o inegável impacto positivo que a observância de ações como a presente tem diretamente no consumidor final de produtos e serviços. Nesse sentido destaca o doutrinador francês Gilles Lipovetsky que Pesquisas recentes revelaram que 70% dos investidores dispondo-se a vender suas ações se a empresa na qual investiram provoca algo grave, julgado socialmente não responsável. Quanto mais são exigidos níveis de rentabilidade elevados dos capitais investidos, mais a gestão ética ascende. Quanto mais as empresas nadam nas águas geladas do liberalismo econômico, mais se mostram em busca de alma; maior é a fúria da guerra  MACHIONI, Jarbas Andrade. Novos fundamentos do direito comercial sob o Código Civil de 2002. In: Simão Filho, Adalberto. LUCCA, Newton de (Coords.). Direito Empresarial Contemporâneo. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004, p. 313/314. 396   BESSA, Fabiane Lopes Bueno Netto. Responsabilidade Social das Empresas. Práticas sociais e regulação jurídica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 145. 395

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econômica, maior a exigência de uma moralização dos negócios.397 É evidente que uma empresa que atua de forma socialmente responsável, imbuída de valores e conceitos que tenham cunho verdadeiramente social, podem e devem utilizar-se de tal como medida para alavancar sua marca, e via de consequencia, o próprio incremento de sua lucratividade. Não se trata a publicidade nesse sentido de mero meio para obtenção de lucros. Trata-se sim de verdadeiro atestado de que determinada companhia age de forma a fomentar ações positivas para toda a nação. É claro também que não se pode olvidar que em alguns casos, as empresas podem utilizar-se dessa publicidade sem efetivamente fazer muito pelo social, sendo que para evitar esse tipo de abuso existem inúmeros institutos e órgãos (governamentais ou não) capazes de atestar com seriedade e correição a efetiva atuação consciente da empresa. A grande questão parece ser então que para a empresa o ir alem da imagem e da ostentação de selinhos beneficentes pressupõe uma visão estratégica institucional a organização/empresa como agente de desenvolvimento econômico e social e incluída na dinâmica social. A diferença que isso representa para a empresa é a mesma que existe entre sobrevivência a curto prazo e perenidade. É a mesma diferença que existe entre a dimensão puramente negocial e a dimensão institucional; entre o instrumento e a finalidade, enfim, entre o instrumental e o substantivo398. Conclui-se assim que diante da promulgação do Estatuto da Igualdade Racial dúvidas não mais restam sobre a verdadeira missão que foi instituída a iniciativa privada. O capítulo V de referida Lei é expresso: a empresa diante da inegável importância que tem atualmente no cenário econômico mundial foi chamada a, juntamente ao Estado, levar adiante essa importante ação afirmativa adotada agora em âmbito nacional. Como em toda quebra ou nascimento de novo paradigma, pode haver alguma resistência, ou até mesmo dúvidas quanto a operacionalidade e efetividade da Lei. Todavia, esse parece ser um novo horizonte que não pode ser simplesmente negado ou ignorado. De toda sorte, após a vigência do Estatuto resta a indagação: será possível cumpri-lo e alcançar efetivamente aquilo que foi planejado, ou, ao contrário,   LIPOVETSKY, Gilles. Metamorfoses da cultura liberal. Porto Alegre: Sulina, 2004, p. 42.   SANTOS, Elisabete Adami Pereira dos. A empresa cidadã: filantropia estratégica, imagem ou responsabilidade social?. In: Cavalcanti, Marli. (Coord.). Gestão social, estratégias e parcerias. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 63. 397 398

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a Lei, diante de suas eventuais imperfeições (como em incontáveis casos no Brasil), não alcançará os objetivos pretendidos? 4. A IMPLEMENTAÇÃO DO ESTATUTO NO ÂMBITO EMPRESARIAL: POSSILIBILIDADE OU MERA RETÓRICA? Como visto, através da Lei o Poder Legislativo deixou patente um verdadeiro chamado para que a iniciativa privada colabore e participe da implementação de ações que viabilizem a inclusão da comunidade negra em seus quadros. Ainda assim, restam algumas dúvidas sobre como efetivamente se dará essa participação. A seguir se fará a análise de alguns pontos que eventualmente podem afetar a prática da Lei e, em última análise, sua efetividade no âmbito da empresa. 4.1 A FALTA DE CLAREZA DA LEI EM ALGUNS ASPECTOS O Estatuto, numa primeira análise, parece padecer do mesmo mal crônico que não raramente se observa na legislação brasileira: apesar de boas intenções, a lei acaba formulada de maneira imprecisa em alguns aspectos, o que acarreta em comandos pouco claros ou ainda carecedores de nova regulamentação futura. Nesse sentido, sempre oportuna a lição de Paolo Grossi ao dizer que Excesso de atividade legislativa, uma quantidade tal a ponto de provocar como consequência letal a impossibilidade de seu conhecimento: leis que muito frequentemente abdicam da velha louvável virtude da generalidade, pois tem origem em demandas partidárias e são destinadas a tutelar interesses particulares; leis tecnicamente malfeitas, improvisadas, linguisticamente obscuras, às vezes até mesmo incoerentes em seu próprio tecido; um Parlamento surdo, resistente a dar-se conta das necessidades emergentes, ou então é lento, incrivelmente lento; muitas vezes um Parlamento impotente na sua divisão – e perene contraposição – partidária, e portanto incapaz também de corresponder a solicitações também urgentes da coletividade399. Assim, certo que a implementação imediata da Lei acaba prejudicada, pois algumas expressões da própria, como “por meio de incentivos” (ao setor privado), ou ainda, “promoção de empresários negros”, não são exatamente claras quanto a sua operacionalização.   GROSSI, Paolo. Primeira Lição sobre Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 86.

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Necessário destacar ainda que devido ao pouquíssimo tempo de promulgação e vigor do Estatuto, torna-se complexa a tarefa de precisar exatamente quais serão (se é que existirão) os incentivos concedidos a iniciativa privada e a promoção do empresário negro. Cabe enfatizar desde logo nesse sentido que foi retirada do projeto de Lei inicial a possibilidade do poder público conceder incentivos fiscais às empresas que contassem com uma cota mínima de 20% de trabalhadores negros. O então relator do projeto entendeu que tal medida poderia gerar a demissão de diversos trabalhadores brancos, que também se encontram em situação de baixa renda. Ou seja, resolve-se um problema (inclui-se o trabalhador negro no mercado) gerando outro (demissão de demais trabalhadores para abertura de tais vagas). Por derradeiro quanto a esse tópico, imperioso destacar que em diversos casos, no Brasil, a lei não é cumprida justamente porque em sua gênese já traz a necessidade de alguma nova regulamentação futura para que se torne efetiva. E esse talvez seja o caso do Estatuto. Ao se cotejar o Regulamento de discriminação positiva fica evidente em alguns de seus tópicos (como inclusive no tocante ao trabalho, título V) que diversas questões cruciais para a sua efetiva prática ficaram relegadas ao futuro, e talvez submetidas a boa vontade governamental de complementar as regras já instituídas. Pois bem, como é notório essa nem sempre é uma questão fácil. Mera troca de governo transforma questões antes tratadas como de suma importância em efêmeras, ou seja, o Estatuto por ter deixado diversos pontos carecendo de regulação posterior possa correr o risco de também – como diversas Leis –ser esquecido ao longo dos anos e não alcançar a nobre missão objetivada. Todavia, nesse caso específico e ante a nobreza de argumentos que revestem a Lei, esse não parece ser o panorama que se observará, posto que a questão racial há de ser encarada de forma responsável, sendo essa agenda obrigatória de agora em diante independentemente de qualquer falha legislativa na criação do Estatuto. 4.2 A CONCESSÃO DE “INCENTIVOS” COMO ESTÍMULOS AO SETOR PRIVADO PARA ADOÇÃO DE AÇÕES AFIRMATIVAS O artigo 39 da Lei fala sobre a promoção de “ações que assegurem a igualdade de oportunidades no mercado de trabalho para a população negra”, complementando no § 3º que “o Poder Público estimulará, por meio de incentivos, a adoção de iguais medidas pelo setor privado”. Diante disso, discussão que pode vir a permear a questão é se, no caso de concessão de incentivos por parte do governo à iniciativa privada, a tomada de medidas no sentido de inclusão da comunidade negra é efetivamente observância da responsabilidade social da empresa ou, apenas e somente, maneira de se alcançar um 297

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benefício econômico sem de fato se estar preocupado com a realização de ditas ações. Em outras palavras, se o empresário para a realização de uma ação afirmativa no âmbito empresarial recebe um benefício (seja ele de qualquer natureza), está realmente visionando a dita responsabilidade social da empresa? E mais, se o fizer realmente mirando o benefício concedido, ainda assim não estará levando a cabo uma ação afirmativa, o que em última análise e deixada de lado a valoração da conduta do empresário, é o objetivo da Lei? É certo que “em qualquer das esferas – jurídica, econômica ou social –, do discurso à ação há uma grande distância. A responsabilidade social pode virar uma commodity, ou uma estratégia gerencial”400. Assim, ao menos inicialmente, e enquanto não se tem uma regulamentação mais efetiva sobre como se dará o dito “incentivo” trazido na Lei, difícil mensurar como pode agir o empresário. De qualquer maneira desde logo nasce a obrigatoriedade do Estado em levar adiante referidos incentivos, pois uma vez que a Lei já se encontra em vigor, o próprio empresário pode exigir uma contraprestação ao adotar o Estatuto dentro de sua empresa, conforme inclusive leciona Célia Cunha Mello: No que se refere as promessas governamentais, cumpre ressaltar que essa via de emanação de planos é usualmente utilizada pelos governantes para induzir os agentes econômicos a procederem desta ou daquela maneira, sem que haja qualquer emanação normativa, ou seja, o agente econômico altera o seu comportamento normal, por acreditar na promessa levada a efeito por pessoas que, investidas em funções públicas, falam em nome do Estado.401 Ou seja, o Estado ao editar a Lei fez uma opção pela convocação da empresa a participar da promoção das ações afirmativas no âmbito do emprego, mas, em contrapartida deixou patente que haverá adoção de “estímulos” para tanto. Logo, “haverá violação ao princípio da boa-fé se não forem implementadas as promessas governamentais ou se o forem de forma diversa daquela apregoada”402. O Estado assim poderia não ter incluído na Lei a palavra “incentivo” ao tratar do setor privado. De toda sorte como o fez, tem – se não juridicamente, ao menos principiologicamente – o dever de boa-fé, a partir de então, em efetivamente apresentar alguma contrapartida ao empresário que se dispuser a cumprir a legislação tal qual promulgada.   BESSA, Fabiane Lopes Bueno Netto, p. 147.   MELLO, Célia Cunha. O fomento da administração pública. Belo Horizonte : Del Rey, 2003, p. 164. 402   Idem, p. 165/166. 400

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4.3 O PODER PÚBLICO PODE EXIMIR-SE DE ALGUMA DE SUAS RESPONSABILIDADES E REPASSÁ-LAS PARA O SETOR EMPRESARIAL? Conforme já foi exposto anteriormente, em diversas oportunidades o Estado demonstra não ter condições plenas de arcar com todas as responsabilidades que lhe são conferidas. Nesse viés, o próprio tem se mostrado afeito a idéia de repassar ao setor privado ditas responsabilidades, sendo exigido seu fiel cumprimento. Pois bem, o Estatuto em comento – frise-se imbuído certamente de inegável boa vontade e mecanismo necessário ao Brasil – pode relativamente a questão de geração de empregos justamente incorrer na mencionada situação. Isso porque como já foi exposto no tópico supra, a Lei é bastante clara sobre quem é o responsável principal pela adoção das medidas: o Estado. De toda sorte e como seria muito natural na quadra histórica atual, devido a sua inegável importância, a empresa privada foi incluída nesse chamamento para levar adiante essa novel política governamental. E como já exposto em diversas ocasiões o Estado brasileiro institui certas normas, mas posteriormente, ao não dar conta de levar a cabo suas pretensões, exige do particular que o faça em seu lugar. Não cabe aqui adentrar em discussões meritórias sobre os princípios da boa-fé ou da confiança que regem a Administração Pública, por não ser exatamente esse o foco do presente estudo. De qualquer maneira, imperioso que se observe que o próprio Estatuto deixa patente ao longo de todo o seu texto que o Estado é o principal responsável pela implementação da Lei, relegando sempre ao segundo plano a iniciativa privada. Assim o que se quer demonstrar é que a empresa ainda que instada a participar dessa nova era de ações afirmativas no Brasil, não pode jamais ser considerada como única responsável pela inclusão do negro no mercado de trabalho. Aliás, em observância inclusive ao princípio da confiança – e decorrente desse o da boa-fé – a Administração tem a obrigação de levar adiante o que foi prometido no Estatuto (seja quanto ao seu cumprimento, seja quanto aos incentivos, etc.), pois como autora da Lei se obriga a tal pela auto-vinculação. Em outras palavras, o particular pode e deve participar de maneira firme e séria da inclusão da comunidade negra nos quadros de funcionários das empresas, todavia, o “exemplo” tem de vir do próprio Estado, pois em última análise é ele (até mesmo por disposições legais) o principal responsável por tal mister, não se podendo jamais perder tal idéia de foco. 299

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4.4 A EMPRESA NÃO PODE SER A ÚNICA RESPONSÁVEL PELA QUEBRA DE PARADIGMAS Essa constatação se faz no sentido de que, ainda que haja incentivos para a empresa implementar em seus quadros funcionários negros, certo é que nenhum empresário irá contratar pessoa menos gabaritada apenas e tão somente pelo critério “cor da pele”. Ou seja, ainda que haja alguma espécie de fomento estatal (como já mencionado anteriormente), parece pouco crível que efetivamente se mude o panorama atual de exclusão mediante tão somente políticas junto ao setor empresarial. É certo na mesma medida que o próprio Estatuto prevê medidas similares em diversos âmbitos (como na educação, saúde, etc.), mas de toda forma, é fato facilmente verificável através de estatísticas oficiais403, que o negro encontra-se hoje a margem do mercado de trabalho não pela cor de sua pele, mas sim em virtude de sua histórica má-formação educacional, social e cultural. Tanto é assim que a Lei diz no próprio Capítulo V (que trata do trabalho) em seu art. 38, § 7º que “o Poder Público promoverá ações com o objetivo de elevar a escolaridade e a qualificação profissional nos setores da economia que contem com alto índice de ocupação por trabalhadores negros de baixa escolarização”. Logo, há o reconhecimento implícito (ou explícito?) de que a questão de inclusão no mercado de trabalho passa não pela mera abrangência “a qualquer custo” da comunidade negra. Pelo contrário, há latente necessidade de que sejam fornecidas melhores escolas, cursos técnicos e profissionalizantes, universidades públicas, etc. a toda a comunidade brasileira, ação que certamente formará adultos mais bem preparados para o mercado de trabalho como um todo. Assim, novamente cautela é necessária pois não se pode esperar do empresário brasileiro que de imediato passe a contratar inúmeros funcionários negros tão somente em virtude do critério racial. Há necessidade de que o Governo juntamente com a sociedade implemente todas as diretrizes da novel Lei para que então, ao longo dos próximos anos (quiçá décadas), a inclusão no mercado de trabalho de dita minoria se dê de forma gradativa através de profissionais efetivamente gabaritados para tanto.   Segundo dados do IBGE a população estimada do Brasil em 2009 era composta por 48,2% de brancos, ao passo que negros/pardos compunham 51,1 da sociedade.Entretanto, ao se analisar os indicadores relativos a média de anos de estudo os declarados brancos têm 9,2 contra 7,4 dos negros, o que reflete invariavelmente no rendimento médio mensal dessas pessoas: enquanto os brancos recebem em média 3,2 salários mínimos nacionais como remuneração, os negros recebem 1,8. 403

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4.5 OS CRITÉRIOS QUE DEVEM SER UTILIZADOS PARA AÇÕES AFIRMATIVAS NO BRASIL Por derradeiro, há necessidade de uma consideração extremamente relevante sobre as ações afirmativas, e que, por consequência atinge a legislação em comento. Como já tratado em sumárias linhas, a questão das ações afirmativas no Brasil é, além de nova, bastante peculiar. Isso porque como regra (e como parece ser costume brasileiro), têm-se simplesmente transportado do cotidiano estadunidense ações lá praticadas com sucesso, sem o devido cotejo e adequação para que entrem em vigor no Brasil. Não é necessário maior esforço para se concluir que existem diferenças latentes entre os dois países no tocante a estigmatização da comunidade negra. As notórias diferenças vão desde a colonização até recentes políticas governamentais de segregação de raças. No Brasil, a discriminação se revela de maneira bem diferente: não existe política pública de segregação, e a própria população costuma bradar que no país não há qualquer espécie de preconceito, sendo esse um belo exemplo de país miscigenado. De outro lado, pela análise histórica e cultural do país, resta bastante claro que os negros são, a evidência, em inúmeras situações deixados a margem da sociedade, logo merecedores de alguma espécie de guarida estatal para incluí-los. Contudo, eles não são os únicos. Os menos favorecidos brasileiros não são exclusivamente negros. São também brancos, deficientes, indígenas, enfim, todos aqueles que são expostos a um sistema de educação frágil que não forma cidadãos capazes de prover sua própria existência com dignidade. Logo, o que se propõe e parece mais adequado para a nação brasileira, é que se adote a discriminação positiva mediante critérios compostos, e não somente pelo critério racial. Assim, seria possível se incluir, mais especificamente no mercado de trabalho (e de maneira geral a todos os demais serviços de que dispõe o Estatuto) todos aqueles que são efetivamente hipossuficientes. Em outras palavras, o critério poderia ser o de pobreza combinado com a cor de pele, por exemplo, o que daria caráter mais isonômico em ações da natureza da Lei 12.288/2010. Nesse diapasão discorre Roberta Kaufmann Seria mais condizente com os ideais de justiça e de igualdade no Brasil a realização de uma política afirmativa em que a cor e a classe social fossem 301

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consideradas como conjunto. Mesmo porque, fortes indícios, colhidos na própria história, demonstram que o preconceito e a discriminação não atuaram, aqui, como barreira intransponível para os negros, tal como aconteceu na sociedade norte-americana404. Outra idéia não menos importante é que se observem ações afirmativas (principalmente quando se pretender falar em cotas) conforme a distribuição geográfica de negros em cada região do Brasil, por ser esse um país de verdadeiras dimensões continentais. Assim, o que se propõe é que em estados como a Bahia, por exemplo, em que a população negra/parda é muito maior que a de estados como da região sul, o critério obedeça as estáticas oficiais para implementação de ações afirmativas. Portanto, exemplificativamente, em um estado que a população negra chegue aproximadamente a 50% da população talvez seja adequado falar em reserva de vagas ou ações visando a inclusão desse percentual de pessoas, ao passo que em um estado federativo com menor população negra, se fale também em cotas e/ou ações de forma reduzida. O que não se pode almejar é tratar o Brasil com unicidade quanto a esse tema, sob pena de se incorrer em grande equívoco. Resta claro, portanto, que a discussão sobre como se implementar políticas de discrimen positivo no país ainda carece de certa análise, pois, os critérios a serem aqui utilizados talvez tenham de ser compostos, não sendo possível um isolamento específico de tão somente um deles, sob pena de se gerar de outro lado, a exclusão de outros grupos também minoritários do mercado de trabalho. Ainda assim e como no Brasil essa experiência é bastante recente, é crível que se possam alterar tais critérios para que o incremento das medidas possa ser mais efetivo. 5. CONCLUSÕES Diante de todo o exposto no presente estudo a lição remanescente é a de que a empresa efetivamente tomou caráter de inegável importância no atual momento histórico, e certamente cada vez mais será convocada pelo Estado para realização de políticas sociais, como é o caso do Estatuto da Igualdade Racial. É de se ressaltar inclusive que essa conduta do Estado não só se alinha ao momento histórico vivido (em que esse busca desinchar seu aparato sem perder de vistas os interesses sociais), como acima de tudo é o reconhecimento (talvez tardio) de que “o governo brasileiro hoje precisa e – porque não dizer? –   KAUFMANN, Roberta Fragoso Menezes. Op. cit. p. 295/296.

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depende da empresa para alcanças suas metas e fazer o que deve”405. Diante desse novo desafio de verdadeira responsabilidade social na inclusão dos negros no mercado de trabalho, alguns cuidados têm que ser tomados pois “as ações afirmativas não podem se transformar em promessas vazias, que não consigam superar o mito da democracia racial brasileira, retomando falsas e ideológicas idéias de passividade e cordialidade já tão inseridas em nossa sociedade”406. Ou seja, a atuação terá de ser ativa não só no âmbito empresarial, mas também de toda a sociedade e principalmente do Estado para que essa tão importante ação afirmativa que ora nasce no Brasil seja efetivamente levada a cabo, visando precipuamente a satisfação dos interesses dos negros (e não interesses políticos ou estranhos ao interesse inicial da legislação). Ainda que caibam discussões sobre o Estatuto (o que certamente irá acontecer de forma bastante acalorada) e mais, que o próprio ainda dependa de uma série de regulamentações pelo próprio Governo para que se torne efetivo, fato é que a simples promulgação da Lei em comento pode vir a ser um avanço para a sociedade brasileira. Evidente da mesma forma que a Lei padece de diversas questões que precisam ser amplamente discutidas e aprimoradas, para que possa, a curto ou médio prazo, alcançar os nobres objetivos que ensejaram sua promulgação. Não pensar dessa maneira pode significar ao Estatuto seu sepultamento, como, aliás, é corriqueiro no Brasil: as Leis são diariamente editadas, mas em diversos casos são simplesmente relegadas ao esquecimento e não atingem qualquer efetividade para a sociedade. De toda sorte, e observadas as premissas antes mencionadas, cabe a implementação firme e responsável do Estatuto por todos os setores da sociedade – e não somente pela empresa, que é mais um, mas não o único ator social relevante na atualidade – tratando o tema com a seriedade devida tendo em vista ser o assunto de importância ímpar em um país como o Brasil. Para as empresas não será diferente pois a inclusão dos grupos minoritários em seus quadros é não só uma questão de responsabilidade social, contribuição com a cidadania e o desenvolvimento adequado da nação, etc. Essa é agora uma meta a ser atingida, seja por vontade própria do empresário, seja porque como se viu, já existe legislação em vigor dizendo dessa forma. A questão racial enfim foi colocada em discussão no Brasil: Governo, sociedade, e mais especificamente, as empresas, já foram convocados para o debate e para dar efetividade ao Estatuto, oportunidade essa que, a nosso ver, não pode ser desperdiçada nessa quadra histórica.  Apresentação à obra Ética e responsabilidade social nos negócios. In: Ashley, Patrícia Almeida (Coord.). São Paulo: Saraiva, 2 ed., 2010, p. XVI. 406   SANTOS, João Paulo de Faria.Op. cit. p. 87. 405

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IV - Regulação no mercado financeiro e demais setores A REGULAÇÃO FINANCEIRA EM FACE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS THE FINANCIAL REGULATION IN FACE OF THE FUNDAMENTAL RIGHTS João Salvador dos Reis Neto407 RESUMO O presente artigo analisa a questão da regulação no mercado financeiro na atual realidade brasileira. À luz do paradigma jurídico-constitucional do Estado Democrático de Direito, busca-se identificar o motivo da necessidade dessa regulação e sua relação com os direitos fundamentais postos na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, bem como com aqueles não escritos. Abordando questões como as características do mercado financeiro atual, a divisão do sistema financeiro nacional, os órgãos de regulação, dentre outras, bem como as peculiaridades das negociações ocorridas naquele mercado, procura-se atentar para a legitimação alcançada pelos institutos pertinentes e mecanismos de regulação do mercado financeiro quando de sua adequação à sistemática constitucional relacionada aos direitos fundamentais postos e àqueles que se fizerem surgir da aclamação popular. Neste diapasão, este breve estudo propõe, com base nos discursos de diversos doutrinadores apresentados ao longo do trabalho, uma leitura constitucionalizante do mercado financeiro e de sua regulação, tendo como ponto de partida a teoria constitucional dos direitos fundamentais. Palavras-Chave: Mercado Financeiro; Regulação; Direitos Fundamentais; Estado Democrático de Direito. ABSTRACT This article analyzes the issue of regulating financial market in the current Brazilian reality. In the light of the paradigm legal-constitutional Democratic State of Law, seeking-if verify what is the reason for the need for this regulation and its relationship with the fundamental rights posts in the   Mestrando em Direito Privado pela Universidade FUMEC. MBA em Direito Tributário pela Fundação Getúlio Vargas. Especialista em Direito Tributário pela Universidade Gama Filho/RJ. Professor de Direito Empresarial e Tributário da Faculdade de Ciências Jurídicas Prof. Alberto Deodato. Advogado. 407

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Constitution of the Federal Republic of Brazil from 1988, as well as with those not written. Addressing issues such as the characteristics of the current financial market, the division of the national financial system, the regulatory agencies, among others, and, given the peculiarities of the negotiations taking place in that market, we look for legitimacy achieved by the relevant institutions and mechanisms of market regulation when their financial suitability to the scheme relating to fundamental rights constitutional posts and those that do arise from the popular acclaim. In this vein, this brief study suggests, based on the speeches of several scholars presented throughout the work, a constitucional reading of financial market and its regulation, taking as its starting point the theory of constitutional rights. Keywords: Financial Markets; Regulation; Fundamental Rights; Democratic State of Law. SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 O mercado financeiro. 2.1 Considerações iniciais. 3 O sistema regulatório do mercado financeiro. 3.1 A necessidade de regulação. 3.2 Função e composição do sistema financeiro e suas instituições reguladoras. 3.2.1 Banco Central do Brasil – BACEN: regulação prudencial e o risco sistêmico. 3.2.2 A Comissão de Valores Mobiliários - CVM - e a regulação do mercado de capitais. 3.2.3 A Superintendência de Seguros Privados – SUSEP. 3.2.4 A Superintendência Nacional de Previdência Complementar – PREVIC. 4 Teoria constitucional dos direitos fundamentais. 4.1 Breve análise da constatação de leituras constitucionalizantes do Direito Privado. 4.2 Proposta de leitura constitucional do direito do mercado financeiro. 4.3 Teoria constitucional dos direitos fundamentais. 4.4 O rol de direitos fundamentais expressos e os direitos não escritos. 4.5 A legitimação pelos direitos fundamentais. 4.6 Os direitos fundamentais que gravitam no mercado financeiro e de capitais. 4.6.1 Direito à livre iniciativa. 4.6.2 Direito do consumidor. 4.6.3 Direito á livre concorrência. 4.6.4 Direito fundamental à igualdade. 4.6.5 Direitos fundamentais dos sócios. 5 A regulação do mercado financeiro e de capitais sob o enfoque dos direitos fundamentais. 6. Conclusão. 7. Referências. 1. INTRODUÇÃO O presente artigo tem a pretensão de promover uma leitura constitucionalizante da regulação do mercado financeiro. Para tanto, partir-se-á do pressuposto de que essa regulação, bem como os diversos institutos desse 308

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mercado só serão adequados e legítimos se realizados sob a égide da proteção dos direitos fundamentais. Devido à égide da liberdade, pode-se crer que grande parte das negociações realizadas no mercado financeiro encontra-se eivada de desigualdade entre as partes, principalmente diante da assimetria de informações e do desequilíbrio no que tange ao poder econômico. Tais situações podem, em vários momentos, permitir abusos e infrações a diversos ideais previstos na sistemática constitucional vigente. No sentido de vedar tais abusos e infrações no âmbito do mercado financeiro, em princípio um ramo eminentemente privado, o Supremo Tribunal Federal já asseverou que os direitos fundamentais assegurados pela Constituição vinculam diretamente não apenas os poderes públicos, estando direcionados também à proteção dos particulares em face dos poderes privados.408 Motivado por este e outros julgados no mesmo sentido, optou-se por verificar como a questão dos direitos fundamentais tem sido tratada no Estado Democrático de Direito, tendo como objeto de análise a regulação do mercado financeiro. No item 2, serão tecidas algumas considerações sobre as características do mercado financeiro atual, identificando, principalmente, os atores nele inseridos e os destinatários dos direitos fundamentais pertinentes à matéria. No item 3, será abordado o mecanismo de regulação do mercado de financeiro, apresentando-se os órgãos reguladores do sistema financeiro nacional, bem como fazendo algumas considerações a respeito dele. O item 4 está reservado para a apresentação da teoria constitucional dos direitos fundamentais, atentando, principalmente, para aqueles cujos destinatários façam parte do mercado financeiro. Na oportunidade, serão investigadas algumas contribuições da doutrina e sua busca pela compreensão do papel desses direitos constitucionalmente protegidos. O item 5 se destina a traçar um paralelo entre a regulação do mercado financeiro e os direitos fundamentais, o que representa o cerne do presente trabalho, em que se verificará a legitimação da regulação e dos institutos do mercado financeiro através da observância dos direitos fundamentais postos na Constituição, e mesmo dos não inscritos. O item 6 encerra o presente trabalho, trazendo no seu bojo as conclusões obtidas ao longo da discussão.   BRASIL. STF. RE 201819/RJ. Rel. Min. Gilmar Mendes. Disponível em: . Acesso em: out. 2010. 408

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2. O MERCADO FINANCEIRO No presente item, serão apresentados alguns elementos e definições acerca do mercado financeiro no intuito de se construir um cenário para o desenvolvimento da presente discussão. A expressão “mercado”, segundo o Professor Otávio Yazbek, pode ser utilizada em diversos contextos, com os mais variados sentidos.409 Porém, neste trabalho será adotada a definição que o referido professor toma de Einaudi, a qual tem o mercado como um local em que compradores e vendedores de bens, tomadores e prestadores de serviços se encontram para negociar tais bens e serviços.410 Ditas negociações, expressas através de relações jurídicoeconômicas e sociais,411 necessitam de promoção, observável através da análise das funções do mercado financeiro, e proteção, verificável quando da análise do mecanismo regulatório desse mercado. Em relação às funções do mercado financeiro, colaciona-se o entendimento do professor Otávio Yazbek no que diz respeito à definição e função do mercado financeiro: [...] seria aquele em que são negociados instrumentos financeiros ou em que se estabelecem relações de conteúdo financeiro visando, fundamental mas não exclusivamente, dois fins nem sempre concomitantes, a repartição de riscos e o financiamento das atividades econômicas. [...] tal mercado cumpre as suas funções a partir de uma progressiva “financeirização “das relações econômicas, ou seja, de um processo pelo qual essas relações são, em certa medida, “monetizadas” e incorporadas a instrumentos negociáveis, para os quais se provê uma certa liquidez.412 Já os professores Andréa Andrezo e Iran Lima conceituam e apresentam a função do mercado financeiro nos seguintes termos: O mercado financeiro consiste no conjunto de instituições e instrumentos destinados a oferecer alternativas de aplicação e captação de recursos financeiros. Basicamente, é o mercado destinado ao fluxo de recursos   YAZBEK, Otávio. Regulação do Mercado Financeiro e de Capitais. Rio de janeiro: Elsevier, 2009. p. 53. 410   Idem, ibidem, p. 54. 411   O mercado financeiro possui não só relações econômicas, mas também sociais, como é o caso daquelas concernentes às sociedades empresárias e simples que atuam neste mercado; as quais serão abordadas adiante. 412   YAZBEK, ob. cit., p. 125. 409

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financeiros entre poupadores e tomadores. Dessa forma, o mercado financeiro pode exercer as importantes funções de otimizar a utilização dos recursos financeiros e de criar condições de liquidez e administração de riscos.413 Sobre o mercado em comento, o professor Ricardo Quiroga Mosquera discorre: O mercado financeiro e o mercado de capitais surgiram em decorrência do fluxo de capitais que é inerente a todas as comunidades sociais. Com efeito, os homens desde os primórdios da civilização começaram a relacionar-se e dentre as diferentes espécies de relacionamento temos as relações financeiras e de troca. Para suprir suas necessidades pessoais e familiares, o ser humano acaba por prestar serviços em troca de uma remuneração. Tal contrapartida se dava ou mediante o pagamento em bens de consumo ou, quando do surgimento da moeda, por intermédio de pagamento em pecúnia. Desse dado social, começa a emergir na sociedade um conjunto de relações de cunho comercial e financeiro que revelaram a circulação da riqueza entre os homens. Alguns em situações privilegiadas conseguiam poupar riquezas, enquanto outros eram necessitados delas. O excesso e a carência de capitais passaram a ser o verso e o anverso da mesma realidade econômica, qual seja, o fluxo de capitais. A poupança passou a mobilizar-se entre os doadores e os tomadores de recursos, fazendo desse transito de recursos uma atividade financeira rentável para alguns e onerosa para outros. 414 Não obstante a importância da contribuição de Ricardo Quiroga Mosquera, não se coaduna com sua afirmação quando elenca o mercado financeiro e o mercado de capitais como mercados autônomos. Acredita-se ser o mercado de capitais integrante de um conceito maior, o mercado financeiro, o qual também possui no seu bojo o mercado de crédito, dentre outros. Nesse sentido, este trabalho foi sistematizado de forma a abordar o mercado financeiro de forma geral, porém, enfocando com maior atenção o que concerne ao mercado de crédito e mercado de capitais. Ressalte-se que os demais mercados poderão ser objeto de outra pesquisa.   ANDREZO, Andréia Fernandes; LIMA, Iran Siqueira. Mercado financeiro: aspectos históricos e conceituais. São Paulo: Thomson Learning, 2002. p. 5. 414   MOSQUERA, Roberto Quiroga. Os princípios informadores do direito do mercado financeiro e de capitais. In: ______ (coord). Aspectos atuais do Direito do Mercado Financeiro e de Capitais. São Paulo: Dialética, 1999. p. 258. 413

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3. O SISTEMA REGULATÓRIO DO MERCADO FINANCEIRO 3.1 A NECESSIDADE DA REGULAÇÃO O Professor Otávio Yazbek exemplifica bem a necessidade de regulação do mercado financeiro: Esse emaranhado de instituições é integrado também por uma dimensão jurídica, destinada a prover mecanismos garantidores do funcionamento dos mercados, seja sob a forma de uma infra-estrutura permissiva e protetiva dos processos alocativos, seja pelo ordenamento do todo e de sua dinâmica.415 Não há que se falar em uma nação desenvolvida sem esta possuir um bom sistema financeiro416 e um mercado atrativo e eficiente.417 Para que este sistema seja bom e seu mercado tenha as características mencionadas, faz-se necessária uma regulação por parte dos Poderes Judiciário e Legislativo e, principalmente, das agências reguladoras, de modo a garantir seus institutos frente aos ideais do ordenamento jurídico-constitucional do país pertinente. Na realidade brasileira, entende-se que esta adequação será alcançada pela verificação dos direitos fundamentais postos e dos que ainda estão para serem escritos. De fato, o mercado financeiro e seu sistema demandam atenção. De acordo com Armando Castellar Pinheiro e Jairo Saddi, o mercado financeiro requer uma base jurídica sólida, pois, ao contrário da maioria das atividades comerciais: “As transações realizadas no mercado financeiro são estruturadas contratualmente e tem nas suas duas pontas, agentes que raramente se conhecem”.418 Os referidos autores atentam para a importância da fidúcia no mercado financeiro frente ao descompasso temporal do cumprimento das obrigações das   YAZBEK, Otávio. Regulação do Mercado Financeiro e de Capitais. Rio de janeiro: Elsevier, 2009. p. 55. 416   PINHEIRO, Armando Castelar; SADDI, Jairo. Direito, Economia e Mercados. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005. p. 448. 417   Eficiente talvez seja a palavra que melhor defina como um mercado deve ser. Nas palavras de Raquel Sztajn, a eficiência é a “aptidão para atingir o melhor resultado com o mínimo de erros ou perdas, obter ou visar ao melhor rendimento, alcançar a função prevista de maneira mais produtiva”. SZTAJN, Rachel. Law and Economics. In: ZYLBERSZTAJN, Décio; SZTAJN, Rachel (org.). Direito & Economia: análise econômica do Direito e das organizações. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005. p. 81. 418   PINHEIRO, Armando Castelar; SADDI, Jairo. Direito, Economia e Mercados. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005. p. 448. 415

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partes que realizam o negócio no mercado financeiro, como inclusive já havia sido tratado acima. Discorrendo ainda sobre a importância da regulação, os autores aduzem que: A regulação das instituições financeiras se justifica tanto por objetivos macro como microeconômicos. Os primeiros estão relacionados à capacidade de os bancos criarem moeda (escritural) e ao papel que desempenham como canais de transmissão da política monetária. Como as instituições captadoras de depósitos mantêm apenas uma fração desses depósitos como dinheiro vivo e reservas no Banco Central (BC), emprestando o resto, o total de moeda na economia e um múltiplo da base monetária - soma de papel moeda com as reservas bancarias no BC -, que é o agregado monetário cuja oferta e diretamente controlada pelo BC. À razão entre a oferta total de moeda e a base monetária dá-se o nome de multiplicador monetário. A política monetária, administrada pelas autoridades monetárias, objetiva, em grande medida, influenciar esse multiplicador, de forma a controlar a inflação. Os principais instrumentos regulatórios utilizados com esse fim são a proporção de depósitos compulsórios sobre depósitos a vista e a prazo e a taxa de redesconto, que é a taxa de juros à qual o Banco Central empresta recursos a bancos com problemas de liquidez. O Banco Central também pode influenciar o tamanho da base monetária por meio de operações de mercado aberto. A justificativa microeconômica para regular o mercado financeiro é dual: por um lado, buscar a eficiência, a equidade do sistema; par outro lado, evitar crises, ou seja, atingir certo equilíbrio. Para tanto, são estabelecidas normas indicativas, baseadas em três objetivos de política legislativa: estabilidade, eficiência e equidade. Assim, todo o sistema financeiro é afetado de forma igual por esses três objetivos.419 Roberto Quiroga Mosquera420 apresenta uma sistemática dos princípios que informam o Direito referente ao mercado financeiro. Demonstra-se interessante observá-la, haja vista poder sedimentar a importância que possui o mercado financeiro e, consequentemente, sua regulação.   PINHEIRO, Armando Castelar; SADDI, Jairo. Direito, Economia e Mercados. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005. p. 449-450. 420   MOSQUERA, Roberto Quiroga. Os princípios informadores do direito do mercado financeiro e de capitais. In: ______ (coord). Aspectos atuais do Direito do Mercado Financeiro e de Capitais. São Paulo: Dialética, 1999. p. 263-270. 419

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O mercado financeiro tem como princípio a mobilização da poupança nacional, possibilitando ao homem atuar no fluxo de capitais. A atuação do Direito no mercado financeiro deve alcançar a finalidade de, por meio de normas jurídicas, movimentar a poupança nacional, sendo as normas impeditivas desse fim consideradas uma afronta à própria Constituição da República de 1988. De acordo com o artigo 192, caput, mais adiante tratado, o texto constitucional impõe que o Sistema Financeiro Nacional deve estar estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade, devendo o legislador infraconstitucional editar normas jurídicas obedecendo aos ditames constitucionais de a) promover o desenvolvimento equilibrado do País e b) servir aos interesses da coletividade. Estas são as bases que a Constituição garante ao Direito para a proteção da mobilização da poupança nacional. O mercado financeiro reflete-se na poupança nacional, logo possui como princípio a proteção da economia popular, haja vista seus recursos advirem dessa economia. Fato é que, em se tratando de relações financeiras, pode acontecer de uma das partes tornar-se inadimplente. No mercado financeiro, as instituições financeiras ocupam um lugar na dupla relação creditícia, ora captando recursos dos poupadores, ora oportunizando recursos aos tomadores. Havendo inadimplência em qualquer uma das relações, o sistema poderá sofrer colapsos pecuniários, trazendo grandes prejuízos ao mercado e aos participantes. Da mesma forma, pode acontecer que o mercado de capitais tenha o fluxo prejudicado pelo descumprimento de obrigações. Se for caso, por exemplo, de uma participação societária, a consequência de uma eventual inadimplência seria a falência. Com efeito, os mercados financeiros e de capital estão intimamente ligados à poupança nacional de tal forma, que é sensível ao sucesso ou fracasso de operações, agentes e participantes. O princípio da proteção da estabilidade da entidade financeira está intimamente ligado ao princípio da proteção da economia popular. Não basta proteger a economia popular sem proteger as instituições financeiras que exercem função fundamental no mercado financeiro e de capitais, seja como intermediadoras, seja como prestadoras de serviço que viabilizam operações de crédito. Para tanto, o Direito tratou de exigir requisitos específicos rígidos para que determinada entidade se habilite como instituição financeira. O princípio da proteção do sigilo bancário prevê o segredo bancário nas relações do mercado financeiro, sendo inclusive uma definição positivada constitucionalmente, no artigo 5, incisos X421 e XII.422 Trata-se da defesa de um   “Art. 5º, inc. X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.” 422   “Art. 5º, inc. XII - é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de 421

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direito personalíssimo, em proteção da ética moral. Não obstante, tal ocultação não pode ocorrer de forma a dar guarida a atos criminosos, sendo certo, portanto, que o sigilo bancário no Brasil é relativo e não absoluto. O princípio da proteção da transparência de informações assegura igualdade de informações oportunizadas aos participantes do mercado financeiro e de capitais, no intuito de se relativizar ao máximo a assimetria de informações. O primeiro protege a informação íntima; o segundo, a informação pública. As normas que regulam o mercado financeiro e de capitais penalizam a denominada informação privilegiada (insider information), sendo certo que a norma advinda deste princípio se aplica a todos, mas mais especificamente às entidades financeiras, sociedades anônimas abertas e entidades governamentais, como o Banco Central do Brasil – BACEN – e a Comissão de Valores Mobiliários – CVM. Com efeito, todos esses princípios se relacionam com a regulação do mercado financeiro, de tal forma que se apresentam como normas jurídicas de caráter genérico, conferindo identidade e norte a este sistema jurídico na busca pela efetivação de valores previstos na própria Constituição da República, os quais giram em torno, principalmente, da poupança popular e de seu papel no desenvolvimento da economia. Nesse diapasão, o Professor Yazbek lembra ainda que os mercados estão, na realidade, imersos no conjunto de relações sociais, sobre eles incluindo um amplo leque de regras, procedimentos e padrões, formais ou informais.423 Explicitada a necessidade de regulação do mercado, cumpre observar como se compõe o Sistema Financeiro Nacional, o qual possui os mecanismos de fomento e regulação do mercado financeiro. 3.2 FUNÇÃO E COMPOSIÇÃO DO SISTEMA FINANCEIRO E SUAS INSTITUIÇÕES REGULADORAS Primeiramente, saliente-se que se tratará da composição do Sistema Financeiro Nacional tal como é apresentada pelo próprio Banco Central. Não serão abordados outros segmentos especializados do referido sistema, como o Sistema Financeiro de Habitação – SFH424 e o Sistema de Pagamentos Brasileiro – dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal.” 423   YAZBEK, Otávio. Regulação do Mercado Financeiro e de Capitais. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009. p. 55. 424   “Sistema Financeiro da Habitação (SFH) é um segmento especializado do Sistema Financeiro Nacional, criado pela Lei 4380/64, no contexto das reformas bancária e de mercado de capitais. Por essa Lei foi instituída correção monetária e o Banco Nacional da Habitação, que se tornou o 315

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SPB,425 dentre outros, ao quais poderão ser investigados em trabalho específico. Tendo como função precípua a intermediação e transferência de titularidade dos recursos financeiros entre os agentes econômicos,426 o Sistema Financeiro Nacional pode ser dividido de acordo com o QUADRO 1 a seguir: órgão central orientando e disciplinando a habitação no País. Em seguida, a Lei 5107/66 criou o FGTS. O sistema previa desde a arrecadação de recursos, o empréstimo para a compra de imóveis, o retorno desse empréstimo, até a reaplicação desse dinheiro. Tudo com atualização monetária por índices idênticos. Na montagem do SFH, observou-se ainda que havia necessidade de subsídios às famílias de renda mais baixa, o que foi realizado de maneira a não recorrer a recursos do Tesouro Nacional. Foi estabelecido então um subsidio cruzado, interno ao sistema, que consistia em cobrar taxas de juros diferenciadas e crescentes, de acordo com o valor do financiamento, formando uma combinação que, mesmo utilizando taxas inferiores ao custo de captação de recursos nos financiamento menores, produzia uma taxa média capaz de remunerar os recursos e os agentes que atuavam no sistema. [...] Da criação do SFH até os dias de hoje, o sistema foi responsável por uma oferta de cerca de seis milhões de financiamentos e pela captação de uma quarta parte dos ativos financeiros. O sistema passou a apresentar queda nos financiamentos concedidos a partir de uma sucessão de políticas de subsídios que reduziram substancialmente os recursos disponíveis. O SFH possui, desde a sua criação, como fonte de recursos principais, a poupança voluntária proveniente dos depósitos de poupança do denominado Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo (SBPE), constituído pelas instituições que captam essa modalidade de aplicação financeira, com diretrizes de direcionamento de recursos estabelecidas pelo CMN e acompanhados pelo Bacen, bem como a poupança compulsória proveniente dos recursos do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), regidos segundo normas e diretrizes estabelecidas por um Conselho Curador, com gestão da aplicação efetuada pelo Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão(MPOG), cabendo a CEF o papel de agente operador.” (BRASIL. Banco Central do Brasil. Legislação básica do sistema de consórcio. Disponível em: Acesso em: 17 nov. 2010.) 425   Até meados dos anos 90, as mudanças no Sistema de Pagamentos Brasileiro – SPB foram motivadas pela necessidade de se lidar com altas taxas de inflação e, por isso, o progresso tecnológico então alcançado visou principalmente o aumento da velocidade de processamento das transações financeiras. Na reforma conduzida pelo Banco Central do Brasil em 2001 e 2002, o foco foi redirecionado para a administração de riscos. Nessa linha, a entrada em funcionamento do Sistema de Transferência de Reservas - STR, em 22 de abril daquele ano, marca o início de uma nova fase do SPB. Com esse sistema, operado pelo Banco Central do Brasil, o País ingressou no grupo de países em que transferências de fundos interbancárias podem ser liquidadas em tempo real, em caráter irrevogável e incondicional. Esse fato, por si só, possibilita redução dos riscos de liquidação nas operações interbancárias, com conseqüente redução também do risco sistêmico, isto é, o risco de que a quebra de um banco provoque a quebra em cadeia de outros bancos, no chamado “efeito dominó” Disponível em: Acesso em 17 de novembro de 2010. 426   PINHEIRO, Armando Castelar; SADDI, Jairo. Direito, Economia e Mercados. Rio de Janeiro Elsevier, 2005 p. 434. 316

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QUADRO 1 - Estrutura atual do Sistema Financeiro Nacional ÓGÃOS NORMATIVOS

ENTIDADES SUPERVISORAS

Conselho Monetário Nacional CMN

Banco Central do Brasil - BACEN

Instituições financeiras captadoras de depósitos à vista

Demais instituições financeiras Banco de Câmbio

Comissão de Valores Mobiliários CVM

Bolsas de mercadorias e futuros

Bolsas de valores

Conselho Nacional de Seguros Privados CNSP

Superintendência de Seguros Privados SUSEP

Resseguradores

Sociedades seguradoras

Conselho Nacional de Previdência Complementar CNPV

Superintendência Nacional de Previdência Complementar PREVIC

Instituições financeiras Entidades fechadas de previdência complementar captadoras de (fundos de pensão) depósitos à vista

OPERADORES

Outros intermediários financeiros e administradores de recursos de terceiros

Sociedades de capitalização

Entidades abertas de previdência complementar

Fonte: Banco Central do Brasil

Ultrapassada esta fase, passa-se a analisar brevemente os órgãos reguladores instituídos no mercado financeiro. É mister salientar que os órgãos em si não são objetos da presente pesquisa, mas sim a adequação destes à ordem constitucional através da promoção dos direitos fundamentais. 3.2.1 BANCO CENTRAL DO BRASIL – BACEN: REGULAÇÃO PRUDENCIAL E O RISCO SISTÊMICO O Banco Central do Brasil – BACEN – exerce função primordial na regulação do mercado financeiro, notadamente no mercado de crédito e setor bancário, personificando efetivamente a mão visível do Estado.427 A função regulatória do BACEN corresponde à regulação e supervisão da atividade bancária e financeira e, em tempos de crise, constitui modulador das externalidades negativas. É a chamada regulação prudencial, responsável por assegurar as condições de acesso ao mercado e as condições ao exercício da atividade bancária.   MILAGRES, Marcelo de Oliveira. Banco Central e regulação: a mão vísivel do Estado. In: OLIVEIRA, Amanda Flávio de. Direito Econômico. Evolução e institutos. Obra em homenagem ao prof. João Bosco Leopoldino da Fonseca. Rio de Janeiro: Forense, 2009,. p. 381. 427

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Marcelo de Oliveira Milagres, citando o Professor João Bosco Leopoldino da Fonseca, lembra: Para o Professor João Bosco Leopoldino da Fonseca: “[ ...] O Banco Central do Brasil, surgido da transformação da Superintendência da Moeda e do Crédito, por determinação do art. 2° da Lei n° 4.595, de 1964, inserido no contexto do sistema financeiro nacional, sempre teve funções de regulação e controle, como se depreende dos arts. 8° a 16 da citada lei.”428 Diante de sua importância, o BACEN, como agência reguladora do sistema financeiro, deve ser autônomo, não vinculado a programas de governo, mas sim ter suas regras limitadas no artigo 192 da Constituição da República, o qual será tratado em seguida. O Professor Kildare Gonçalves, atentando para a importância do tema referente à atuação e autonomia do Banco Central, apresenta: Tema constante do sistema financeiro nacional, a ser disciplinado por lei complementar, diz respeito ao banco central e a sua autonomia, pois quando forte e independente desempenha papel relevante no processo político. As variáveis que devem ser consideradas para medir o índice de independência dos bancos centrais, são a autonomia legal, a formulação da política monetária, os objetivos do banco e limitações aos empréstimos, e a indicação e permanência no cargo do presidente do banco [...]429 3.2.2 COMISSÃO DE VALORES MOBILIÁRIOS - CVM - E A REGULAÇÃO DO MERCADO DE CAPITAIS A Comissão de Valores Mobiliários – CVM – foi criada pela Lei Federal nº 6.385/76, pela qual teve conferida competência para regular do mercado de capitais, atribuição anteriormente conferida ao BACEN através da Lei Federal nº 4.595/64. Desta forma, a regulação do sistema financeiro no Brasil ficou dividida, cabendo ao BACEN a regulação pelo sistema bancário, de crédito e monetário, enquanto à CVM coube a competência para regular o mercado de capitais. Tendo sua criação inspirada na Securities and Exchange Comission SEC - dos Estados Unidos, a CVM é autarquia federal vinculada ao Ministério da Fazenda, dotada de autoridade administrativa independente e ausência de subordinação hierárquica, funcionando como um órgão de deliberação colegiado.   Idem, ibidem, p. 382.   CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito Constitucional. Teoria do Estado e da Constituição. Direito Constitucional Positivo. 14 ed. rev. atual. amp. Belo Horizonte: Del Rey, 2008. p. 1.246. 428 429

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A CVM se diferencia da SEC no sentido de que surgiu como forma de fomentar o mercado de capitais na economia nacional, enquanto a SEC foi criada para por fim às práticas indevidas em um mercado já desenvolvido. De qualquer forma, ambas possuem como fundamento o da defesa do processo de prestação de informações pelos emissores de valores mobiliários, o chamado disclosure.430 3.2.3 SUPERINTENDÊNCIA DE SEGUROS PRIVADOS – SUSEP Conforme informações do BACEN, a Superintendência de Seguros Privados – SUSEP – é uma autarquia vinculada ao Ministério da Fazenda, sendo responsável pelo controle e fiscalização do mercado de seguro, previdência privada aberta e capitalização. Dentre suas atribuições, destaca-se a de fiscalizar a constituição, organização, funcionamento e operação das Sociedades Seguradoras, de Capitalização, Entidades de Previdência Privada Aberta e Resseguradores, na qualidade de executora da política traçada pelo Conselho Nacional de Seguros Privados – CNSP; atuar no sentido de proteger a captação de poupança popular que se efetua através das operações de seguro, previdência privada aberta, de capitalização e resseguro; zelar pela defesa dos interesses dos consumidores dos mercados supervisionados; promover o aperfeiçoamento das instituições e dos instrumentos operacionais a eles vinculados; promover a estabilidade dos mercados sob sua jurisdição; zelar pela liquidez e solvência das sociedades que integram o mercado; disciplinar e acompanhar os investimentos daquelas entidades, em especial os efetuados em bens garantidores de provisões técnicas; cumprir e fazer cumprir as deliberações do CNSP e exercer as atividades que por este forem delegadas; prover os serviços de Secretaria Executiva do CNSP. 3.2.4 SUPERINTENDÊNCIA NACIONAL DE PREVIDÊNCIA COMPLEMENTAR – PREVIC Novamente recorrendo a informações do BACEN, tem-se que a Superintendência Nacional de Previdência Complementar – PREVIC – é uma autarquia vinculada ao Ministério da Previdência Social, responsável por fiscalizar as atividades das entidades fechadas de previdência complementar (fundos de pensão). A PREVIC atua como entidade de fiscalização e de supervisão das atividades das entidades fechadas de previdência complementar e de execução das políticas para o regime de previdência complementar operado pelas   A política do disclosure, presente no art. 4º, inc. VI, e art. 22, § 1º, da Lei nº 6.385/76, consiste no processo de divulgação de informações amplas e completas pelas empresas a respeito delas próprias e dos valores mobiliários por ela ofertados, de forma equitativa para todo o mercado.

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entidades fechadas de previdência complementar, observando, inclusive, as diretrizes estabelecidas pelo Conselho Monetário Nacional e pelo Conselho Nacional de Previdência Complementar. 4 TEORIA CONSTITUCIONAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS 4.1 BREVE ANÁLISE DA CONSTATAÇÃO DE LEITURAS CONSTITUCIONALIZANTES DO DIREITO PRIVADO Historicamente, sempre que se suscitava o Direito Privado, relacionavase automaticamente sua fonte primária ao Código Civil, ao passo que, sendo o Direito Público a disciplina analisada, a fonte primária pertinente seria a Constituição da República Federativa de 1988 e leis correlatas. O Direito Privado é demonstrado como o sistema de normas jurídicas, tendo como principais disciplinas as que tratam das relações existentes entre os particulares no Direito Civil, no Direito Empresarial e no Direito do Consumidor. Pode-se incluir nesta lista o direito referente ao mercado financeiro, atentando para o fato que, diante de suas especificidades, possui elementos também presentes nas disciplinas de Direito Público. Fato é que, através do sistema privatístico, o particular integrante de uma relação horizontal431 é livre para manifestar sua vontade, podendo, inclusive, eleger livremente os efeitos da negociação da qual é parte para a sua vida privada. Ou seja, é faculdade do particular estabelecer para a sua vida normas privadas. Neste sentido, tem-se que o Direito Privado, através de seu regramento, demonstra-se como a seara viável à existência de normas nascidas da manifestação da autonomia privada, sendo este tratado como um princípio constitucional basilar das relações privadas. De outra sorte, o Direito Público constitui o sistema de normas jurídicas em que a relação dos participantes é desigual, haja vista ser ao menos um deles o Estado. Neste sentido, será a relação vertical, se tiver como participantes o Estado e o particular. Fato é que se viu surgir nos últimos anos esforços no sentido de se promoverem leituras constitucionalizantes do Direito Privado, inicialmente do Direito Civil, no intuito de se demonstrar que as normas deste ramo devem ser lidas à luz dos princípios e valores protegidos na Constituição da República   Horizontal no sentido de se tratar de uma relação privada, na qual as partes, particulares, teoricamente, estariam no mesmo patamar. De forma diversa, como se verá à frente, seria vertical se uma das partes fosse o Estado. Atente-se para o fato de o status de igualdade na relação privada ser apenas teórico, diante da constatação da assimetria de informações. 431

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Federativa do Brasil de 1988, sob pena de não ser alcançada a adequação de seus institutos à atualidade e ao Estado Democrático de Direito.432 É certo que não só o Direito Civil deve ser objeto de uma leitura constitucionalizada, mas o Direito Privado como um todo. Na verdade, não se está falando de uma constitucionalização do Direito Civil, como aduzem os Professores Paulo Luiz Netto Lôbo433 e Gustavo Tepedino,434 ou mesmo do Direito Privado, termo este que dá margem ao questionamento da constitucionalidade de um ramo do Direito. Mas sim, de uma leitura dos institutos e mecanismos do Direito sob a ótica dos valores protegidos constitucionalmente. 4.2 PROPOSTA DE LEITURA CONSTITUCIONAL DO DIREITO DO MERCADO FINANCEIRO Uma leitura constitucionalizante também deve ser dirigida ao Direito pertinente ao mercado financeiro e à regulação deste mercado, buscando-se a adequação dos institutos, que será encontrada nos moldes do paradigma do Estado Democrático de Direito. Interpretar o mercado financeiro sob o enfoque da teoria dos direitos fundamentais deve ser uma temática a ser buscada pela doutrina contemporânea. O processo de leitura com viés público dos diversos ramos do Direito, no caso presente daquele pertinente ao mercado financeiro, possibilitaria uma mudança necessária do pensamento dos agentes econômicos, até então caracterizado pelo pragmatismo,435 os quais passariam a atentar, de forma voluntária ou posta pelo Estado, para situações antes não observadas. Como visto anteriormente, institutos clássicos de Direito Público e Direito Privado estão sendo misturados como se fossem ingredientes de uma solução. E de fato, não poderia ser diferente, afinal, o Direito é uno, e o estudo individualizado de seus ramos decorre tão-somente da melhor sistematização da matéria. O Direito Privado deve ser lido também como um mecanismo de alcance dos ideais democráticos. Direitos fundamentais, como o da livre iniciativa, têm sua aplicação evidente em todas as situações, balizados por diversos princípios constitucionais que os protegem. O princípio da dignidade de pessoa humana436 é um destes.   FIÚZA, César. Direito Civil: curso completo. Belo Horizonte: Del Rey, 2008. p. 118.   LÔBO, Paulo Luiz Netto, Constitucionalização do Direito Civil. In: FIÚZA, César (coord.) Direito Civil: atualidades. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 200. 434   TEPEDINO, Gustavo. A constitucionalização do Direito Civil: perspectivas interpretativas diante do novo código. In: FIÚZA, César (coord.) Direito Civil: atualidades. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 115. 435   Cf BOTREL, Sérgio. Direito Societário Constitucional. São Paulo: Atlas, 2009. 436   Não obstante o reconhecimento da importância do princípio da dignidade da pessoa humana 432 433

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É certo que a leitura constitucionalizante dos ramos do Direito não é algo novo, na medida em que o Direito, como um todo, é fundamentado e regulado inicialmente na nossa Constituição da República de 1988, sendo, por si só, constitucional por nascimento. As relações no mercado financeiro, talvez o exemplo mais claro de liberalidade econômica, têm seu fundamento principal na própria Carta Magna, no art. 192, sendo relevante a análise de seus institutos e sua regulação sob a égide da sistemática constitucional. Explicitada a justificativa sobre a proposta de uma leitura constitucionalizante, colaciona-se a contribuição de Konrad Hesse ao tecer um paralelo entre as relações no mercado financeiro e os direitos fundamentais: Liberdade humana é posta em perigo não só pelo Estado, mas também por poderes não-estatais, que na atualidade podem ficar mais ameaçadores do que as ameaças pelo Estado. Liberdade deixa-se, todavia, garantir eficazmente só com liberdade uniforme: contanto que ela não deve ser na construção da democracia, receia-se a forma como ele pode ser utilizado. O mesmo mecanismo de vedação a abusos presente no bojo desse princípio pode ser utilizado para cometer abusos, se ele não for interpretado sob a égide dos ideais democráticos. Como exemplo cita-se o princípio da dignidade da pessoa humana, princípio basilar e dos mais importantes e fundamentais do Estado Democrático de Direito no qual se funda o Brasil. Suponha-se a seguinte situação, numa relação locatícia fictícia. O locador, diante da inadimplência latente do locatário, promove contra este a cobrança dos aluguéis atrasados, sob pena de ser proposta a necessária ação de despejo nos termos da Lei Nº 8.245/91, para ver resguardados seus direitos enquanto proprietário do imóvel locado. O locatário, não só se mantém inadimplente face à cobrança do locador, como propõe ação de reparação por danos morais com base no princípio da dignidade da pessoa humana por entender ter sido violada sua dignidade quando da cobrança intentada pelo locador. Diante do litígio que lhe é apresentado, o magistrado de primeiro grau responsável dá ganho de causa ao locatário, concordando com a ofensa ao princípio da dignidade humana, sendo que tal decisão gerará consequências, inclusive, na pretensa ação de despejo do locador. Em segunda instância, uma colenda turma de desembargadores mantém a sentença. Neste sentido, o locador, proprietário de imóvel, resta prejudicado no que tange ao valor dos aluguéis que lhe são devidos, resta prejudicado no que tange ao imóvel que se mantém em posse do locatário inadimplente e resta prejudicado principalmente no que tange à indenização que deverá pagar a este. Fato é que esta situação – em que o princípio da dignidade da pessoa humana é tomado de forma absoluta - não está tão longe de acontecer. Ora, a relação locatícia é da regência do Direito Privado, notadamente do Direito Civil, sendo a cobrança de alugueis e a ação de despejo institutos legais e devidos nas relações entre locadores e locatários. Proteger o locatário de forma irrestrita, sob a pretensa motivação de se defender o princípio da dignidade da pessoa humana, traz ao exemplo supramencionado insegurança e prejuízos inominados à relação locatícia e aos institutos de Direito Privado. Será que os efeitos da decisão que deu procedência ao pedido de indenização por parte do locatário foram observados pelo magistrado? Será que as consequências foram levadas em consideração, ou apenas buscou-se atender a este “fetichismo jurídico” que se demonstra a constitucionalização do Direito Privado? Será que este locador voltará a locar este imóvel novamente? Acredita-se que não. 322

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somente uma liberdade dos poderosos, carece ela de proteção, também contra prejuízos sociais. Essa tarefa foi antigamente entendida exclusivamente como objeto do direito legislado, especialmente do Direito Civil, do Direito Penal e do Direito Procedimental pertinente. Em época recente, a validez dos direitos fundamentais é estendida, em uma medida, em certos pontos, ainda aberta, também a este âmbito, ao neste aspecto ser aceito um dever do Estado para a proteção dos direitos fundamentais e, conexo com isso, um certo “efeito diante de terceiro” de direitos fundamentais.437 Partindo-se do estabelecimento da teoria constitucional dos direitos fundamentais como marco teórico do presente artigo, passa-se à sistemática constitucional pertinente. 4.3 TEORIA CONSTITUCIONAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS Inicialmente, uma observação se faz necessária. A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 traz no seu bojo um extenso rol de direitos fundamentais, característica esta inerente à maioria das Constituições de cunho democrático. Contudo, o presente artigo será sistematizado de forma a abordar somente aqueles direitos fundamentais que se entende tangenciam de forma mais evidente as relações no mercado financeiro e, portanto, passiveis de proteção através dos mecanismos de regulação. Não se tem a pretensão de afirmar que apenas os direitos fundamentais ora elencados são os pertinentes, esgotando a possibilidade de outros incidirem sobre a matéria. Ademais se entende que o referido rol de direitos é extenso, porém não exaustivo, ao passo que se reconhece a possibilidade de outros não escritos se fazerem pertinentes. Saliente-se, portanto, que os direitos fundamentais aqui elencados decorrem do critério deste Autor, que entende serem os mais tangentes sobre a matéria, sob pena de, despretensiosamente, ser cometido um equívoco. A ideia de democracia apresentada pelo atual paradigma constitucional possui como característica fundamental o governo pelo povo, o qual escolhe seus representantes, que, agindo como mandatários, decidem os rumos da nação. Contudo, este poder delegado não é absoluto, sendo certo que está indissoluvelmente combinado à ideia da necessidade de limitação.438 Dentre as várias limitações, a previsão de direitos fundamentais é a que mais interessa neste momento.   HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federativa da Alemanha. Tradução de Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998. p. 278. 438  MORAIS, Alexandre. Direito Constitucional. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2002. p. 56. 437

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Positivados no ordenamento jurídico como expressão dos anseios da sociedade, os direitos fundamentais trazem no seu bojo um ideal de democracia que permite avanços sociais e econômicos. Sobre a função limitadora dos direitos fundamentais, cabe observar o entendimento do Professor J. J. Gomes Canotilho: [...] a função de direitos de defesa dos cidadãos sob uma dupla perspectiva: (1) constituem, num plano jurídico-objetivo, normas de competência negativa para os poderes públicos, proibindo fundamentalmente as ingerências destes na esfera jurídica individual; (2) implicam, num plano jurídico-subjetivo, o poder de exercer positivamente direitos fundamentais (liberdade positiva) e de exigir omissões dos poderes públicos, de forma a evitar agressões lesivas por parte dos mesmos (liberdade negativa).439 Na mesma linha, o Professor José Afonso da Silva esclarece a amplitude de aplicação dos direitos fundamentais, sendo que: A expressão direitos fundamentais do homem, como também já deixamos delineado com base em Pérez Luño, não significa esfera privada contraposta à atividade pública, como simples limitação ao Estado ou autolimitação deste, mas limitação imposta pela soberania popular aos poderes constituídos do Estado que dela dependem. Ao situarmos sua fonte na soberania popular, estamos implicitamente definindo sua historicidade, que é precisamente o que lhes enriquece o conteúdo e os deve pôr em consonância com as relações econômicas e sociais de cada momento histórico. A Constituição, ao adotá-los na abrangência com que o fez, traduziu um desdobramento necessário da concepção de Estado acolhida no art. 1°: Estado Democrático de Direito. O fato de o direito positivo não lhes reconhecer toda dimensão e amplitude popular em dado ordenamento (restou dar na Constituição, conseqüências coerentes na ordem econômica) não lhes retira aquela perspectiva, porquanto, como dissemos acima, na expressão também se contêm princípios que resumem uma concepção do mundo que orienta e informa a luta popular para conquista definitiva da efetividade destes direitos.”440 Neste diapasão, é de se consignar a primordial importância dos direitos fundamentais e sua função inegável na legitimação do Direito e na viabilização da democracia prometida pela Constituição.   CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional. Coimbra: Almedina, 1993. p. 541.   SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 18. ed. rev. atual. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 182-183. 439 440

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Mas será que a Carta Magna traz no seu bojo todos os direitos fundamentais existentes em nossa sociedade? Reconhece-se que não, haja vista que os anseios da sociedade podem surgir em toda sorte de situações possíveis, inclusive naquelas ainda não previstas pelo ordenamento jurídico. Estamos falando, neste último caso, como doutrina José Adércio Leite Sampaio, de direitos não escritos.441 4.4 O ROL DE DIREITOS FUNDAMENTAIS EXPRESSOS E OS DIREITOS NÃO ESCRITOS A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 prima por trazer uma extensa lista de previsão de direitos fundamentais, característica esta inerente à maioria das Constituições de Estados com paradigmas democráticos. Uma lista extensa, porém, como aduzido, não exaustiva.442 O Professor José Adércio, fazendo referência a René Capitant, adverte que novas regras não produtos da atividade do legislador podem surgir no direito positivo através do reconhecimento que a própria nação faz de sua autoridade. Neste caso, deve-se conferir a esta nova regra a qualidade de direito não escrito.443 Tais direitos, introduzidos na ordem jurídico-constitucional através da consciência social, e não da atividade do legislador, devem ser, também, objeto de proteção pelos juízes constitucionais, alcançando o que o Professor José Adércio denomina ‘lista aberta de direitos fundamentais’.444 De fato, o entendimento do referido professor parece correto e pontual. Com efeito, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 traz em seu art. 5°, § 2°, a afirmação que o rol de direitos fundamentais previstos em seu bojo não é exaustivo, não sendo excluídos outros direitos decorrentes do regime e dos princípios pela Constituição adotados, ou mesmos de tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.445 Neste sentido, reconhece-se a possibilidade de que um direito fundamental, não escrito na Constituição, traga adequação a um instituto do mercado financeiro. Diante da celeridade das relações financeiras, não é demais imaginar uma situação ainda não prevista. Conforme atenta André-Jean Arnaud:   SAMPAIO, José Adércio Leite. A constituição reinventada pela jurisdição constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2002. p. 705 442   Idem, ibidem, p. 706-717. 443   SAMPAIO, José Adércio Leite. A constituição reinventada pela jurisdição constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2002. p. 705. 444   Idem, ibidem, p. 705. 445   “CRFB - Art. 5º, § 2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.” 441

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“O direito dos mercados financeiros encontra-se à proa de uma pluralidade de racionalidades em evolução”.446 4.5 A LEGITIMAÇÃO PELOS DIREITOS FUNDAMENTAIS Conforme verifica o Professor Sérgio Botrel,447 fazendo referência aos Professores Ingo Wolfgang Sarlet448 e Konrad Hesse,449 os direitos fundamentais, concebidos inicialmente como instrumentos de proteção frente a abusos do Estado na intervenção na sociedade, exercem atualmente a função de legitimação do próprio Direito, integrando, ademais, a ordem subjetiva. Com efeito, o paradigma constitucional vigente, fundado na ideia de democracia, prevê a instituição e proteção de direitos fundamentais no intuito de se limitar o poder daqueles que, nomeados pelo povo, governam como mandatários. Pode-se constatar, então, que a legitimação dos institutos e mecanismos dos diversos ramos Direito450 seria alcançada não só, mas principalmente, pela adequação destes aos direitos fundamentais previstos no ordenamento jurídico-constitucional. Novamente, o Professor Botrel, citando os Professores Ingo Wolfgang Sarlet e Luís Roberto Barroso, adverte para o papel legitimador dos direitos fundamentais: Nessa ordem de idéias, é de se insistir que, quando se faz alusão à leitura constitucional do Direito Privado, com o objetivo de conferir legitimidade à produção e aplicação do Direito, são os direitos fundamentais positivados no texto constitucional que desempenham essa tarefa de legitimação. [...] Na atualidade, juntamente com a função de assegurar a liberdade individual, os direitos fundamentais atuam como “fundamento material de todo o ordenamento jurídico, merecendo registrar, ademais, que o “ideal democrático realiza-se não apenas pelo princípio majoritário, mas também pelo compromisso na efetivação dos direitos fundamentais”.451   ARNAUD, André-Jean. As transformações do Direito. Revista de Direito Mercantil, ano 39, v. 117, jan.-mar. 2000, p. 46. 447  BOTREL, Sérgio. Direito Societário Constitucional. São Paulo: Atlas, 2009. p. 22. 448   SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 9. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 70-71. 449  HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federativa da Alemanha. Tradução de Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998. p. 228. 450  Não seria diferente com os institutos e mecanismos existentes no Direito do Mercado Financeiro. 451   BOTREL, Sérgio. Direito Societário Constitucional. São Paulo: Atlas, 2009. p. 19. 446

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Jürgen Habermas,452 comentado também pelo Professor Botrel, adverte que um sistema de Direito que pretenda regular a convivência de cidadãos por meios legítimos deve contemplar os direitos fundamentais.453 Como acentua o Professor Kildare Gonçalves de Carvalho: “O parâmetro de legitimidade do Direito e do Estado como Democrático de Direito leva à concepção dos direitos fundamentais universais (...)”.454 Sob a ótica da teoria do processo, coadunando com esse caráter legitimador dos direitos fundamentais, o Professor Carlos Eduardo Araújo Carvalho apresenta para sua pesquisa, dentre outras, a seguinte afirmação: O Processo, enquanto instituição jurídica constitucionalizada, impede a massificação do homem (sujeito de direito), frente aos abusos do Estado, na medida em que garante uma revisitação das decisões estatais, de forma irrestrita, constante e atemporal, através de uma demarcação teórica e da testificação ampla destas decisões por uma sociedade aberta de interpretes, que se dá pela verificação do ganho sistêmico, ou seja: com a implementação dos direitos fundamentais.455 No mesmo diapasão, o Professor José Adércio Leite Sampaio adverte sobre o caráter legitimador dos direitos fundamentais: Os direitos fundamentais desempenham um papel central de legitimidade da ordem constitucional, não apenas pelo seu catálogo formal, mas sobretudo por sua realização prática. Embora sejam, assim, o centro de gravidade da estrutura orgânica e funcional do sistema, não podem ser considerados como um “conjunto fechado” de valores, senão como um centro ligado, funcional e normativamente, com as outras partes do Direito Constitucional.456 A contribuição doutrinária acima elencada é uníssona no sentido de que os direitos fundamentais, além de exprimirem os anseios da sociedade, e justamente por isso, legitimam o Direito na suas mais variadas vertentes.   HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. v. I. p. 154. 453   BOTREL, ob. cit., p. 16. 454   CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito Constitucional. Teoria do Estado e da Constituição. Direito Constitucional Positivo. 14 ed. rev. atual. amp. Belo Horizonte: Del Rey, 2008. p. 670. 455   Cf. CARVALHO, Carlos Eduardo Araújo de. Legitimidade dos Provimentos. Fundamentos da Ordem Jurídica Democrática. Curitiba: Juruá, 2009. p. 23. 456   SAMPAIO, José Adércio Leite. A constituição reinventada pela jurisdição constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2002. p. 671. 452

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No caso do mercado financeiro, cuja regulação se mostra necessária, não é diferente. Sua legitimação está vinculada à verificação da sistemática constitucional dos direitos fundamentais, postos ou não escritos. 4.6 OS DIREITOS FUNDAMENTAIS QUE GRAVITAM NO MERCADO FINANCEIRO E DE CAPITAIS Salienta-se novamente que, ao elencar abaixo os direitos fundamentais que se entende tangenciarem o mercado financeiro, não se está exaurindo a possibilidade de outros também serem pertinentes. Pelo contrário, reconhece-se a possibilidade de outros gravitarem no mercado, haja vista a própria evolução da sociedade e a globalização dos mercados. 4.6.1 DIREITO À LIVRE INICIATIVA O princípio da livre iniciativa está inserido de forma indissociável ao mercado financeiro. Demonstra-se como o direito básico do homem inserido em um Estado democrático, trazendo o valor de que cada um deve ser livre para empreender, buscando realizar no mercado seus propósitos pessoais. A livre iniciativa abarca não só a liberdade de indústria e comércio, como também as atividades presentes no mercado financeiro e de capitais. Enfim, toda e qualquer atividade lícita que o indivíduo escolha realizar como sua fonte de renda ou não. Tal liberdade exerceu papel fundamental na formação do Estado moderno. Como era claro na Constituição de 1824,457 a afirmação da liberdade de indústria e comércio implicava a abolição das corporações de ofícios. Se, no período medieval, o exercício de atividades industriais e comerciais era condicionado ao pertencimento a corporações de ofício; com a modernidade, rompem-se os vínculos feudais, e cada indivíduo passa a poder, virtualmente, escolher quais atividades irá desempenhar. Cuida-se da hoje conhecida liberdade de empresa. No sistema capitalista, o indivíduo é idealizado como homem empreendedor, cabendo às instituições liberais garantir o resultado desse empreendimento. Nisso está o elemento central do que Constant denominava “liberdade dos modernos”.458 Tem-se entendido, com razão, que a livre iniciativa abarca também a liberdade de lucro. A Constituição certamente legitima as atividades lucrativas, e em nada lhes é refratária.   CRFB, art. 179, inc. XXIV e XXV.   CONSTANT, Benjamin. De la liberté des anciens comparée à celle des modernes. In: Id. Écrits politiques. Paris: Gallimard, 1997. p. 603. 457 458

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Como assevera Sérgio Botrel, a livre iniciativa, como os demais direitos fundamentais, não detém caráter absoluto, sendo não só possível como necessária a sua limitação pelo legislador.459 A livre iniciativa constitui, portanto, direito fundamental, passível de restrições, tanto pelo constituinte derivado, quanto pelo legislador ordinário. A hipótese é de típica norma de eficácia contida ou restringível. Tal natureza é ressaltada pelo art. 170 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, cujo parágrafo único assegura o “livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei”. A lei poderá justamente restringir as possibilidades de escolha individual no campo econômico com vistas à proteção de outros bens que merecem tutela constitucional. A restrição à livre iniciativa só seria compatível com a Constituição quando adequada, necessária e justificada pela promoção concomitante de outro direito fundamental. 4.6.2 DIREITO DO CONSUMIDOR Em todo o corpo da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 é feita referência à promoção e proteção do Direito do Consumidor. No art. 5º, inc. XXXII, a Constituição determina que “o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”, elevando-o à categoria de direito fundamental. Já no art. 170, inc. V, o Direito do Consumidor figura como direito do particular e princípio da ordem econômica. O art. 150, § 5º, institui o dever de a lei determinar “medidas para que os consumidores sejam esclarecidos acerca dos impostos que incidam sobre mercadorias e serviços”. Por fim, o art. 48 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT – atribui ao Congresso Nacional o dever de elaborar, em cento e vinte dias da promulgação da Constituição, o “Código de Defesa do Consumidor”, o qual foi inserido no nosso ordenamento jurídico em 11 de setembro de 1990, através da Lei n° 8.078. Como se vê, a proteção do consumidor foi amplamente assumida no texto constitucional, o qual legitima, em seu nome, importantes restrições ao princípio da livre iniciativa. De fato, tamanha preocupação com a proteção do consumidor está em consonância com as dimensões das práticas comerciais, empresariais e financeiras que têm lugar em nosso tempo. A produção hoje é feita em larga escala, por grandes empresas, por vezes atuantes em todo o globo, que têm em vista criar padrões massificados de consumo. Trata-se da sociedade de massas, e dos padrões de consumo e comportamento que lhe correspondem.   BOTREL, Sérgio. Direito Societário Constitucional. São Paulo: Atlas, 2009. p. 47.

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No antigo liberalismo do século XIX, vigorava como princípio mais importante de toda a ordem jurídica o pacta sunt servanda. Os indivíduos, como antes destacado, eram concebidos como livres e iguais, razão pela qual deveria ser respeitada e garantida a sua manifestação de vontade proferida por ocasião da elaboração de um contrato. Tal liberdade, já naquele momento, era fictícia, e o Estado, com a instituição do direito do trabalho, deu consequência prática a essa percepção, limitando a validade dos contratos com o propósito de proteger a parte mais fraca – o trabalhador. Na segunda metade do século XX, a percepção do desequilíbrio das relações econômicas se projeta para o plano das relações de consumo, e emerge todo um ramo do Direito preordenado à finalidade de proteger o polo mais fraco das relações de consumo – o consumidor. Observe-se, contudo, que a função das normas de proteção do consumidor não é apenas limitar a liberdade de contratação para promover maior igualdade entre as partes contratantes. É também proteger a própria liberdade, mas a liberdade real do consumidor. Há nas relações de consumo um evidente desequilíbrio, sobretudo em relação às informações sobre o produto comercializado. Enquanto o produtor as detém todas, o consumidor as ignora em grande parte. O consumidor costuma ser acometido por um déficit de informações que o impossibilita de manifestar de forma realmente livre a sua vontade. O que vigora é, muitas vezes, a manipulação do consumidor, seja através de propaganda enganosa, seja através da imposição unilateral de cláusulas contratuais, que constam dos chamados “contratos de adesão”. Para promover a proteção do consumidor, o legislador editou a lei prevista no supramencionado art. 48 do ADCT – o Código de Defesa do Consumidor, definindo diversas práticas abusivas.460 Os contratos de consumo, dos quais também fazem parte os contratos bancários e seguros, dentre outros, que resultem dessas práticas são considerados   Dentre diversas outras práticas abusivas previstas por esse estatuto, estão as de “condicionar o fornecimento de produto ou de serviço ao fornecimento de outro produto ou serviço, bem como, sem justa causa, a limites quantitativos”; “enviar ou entregar ao consumidor, sem solicitação prévia, qualquer produto, ou fornecer qualquer serviço”; “prevalecer-se da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista sua idade, saúde, conhecimento ou condição social, para impingirlhe seus produtos ou serviços”; “exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva”; “executar serviços sem a prévia elaboração de orçamento e autorização expressa do consumidor”; “colocar, no mercado de consumo, qualquer produto ou serviço em desacordo com as normas expedidas pelos órgãos oficiais competentes”; “elevar sem justa causa o preço de produtos ou serviços”; “aplicar fórmula ou índice de reajuste diverso do legal ou contratualmente estabelecido”. (CDC, art. 39). O Código proscreve também a prática da publicidade enganosa, entendida como tal “qualquer modalidade de informação ou comunicação de caráter publicitário, inteira ou parcialmente falsa, ou, por qualquer outro modo, mesmo por omissão, capaz de induzir em erro o consumidor a respeito da natureza, características, qualidade, quantidade, propriedades, origem, preço e quaisquer outros dados sobre produtos e serviços”. (CDC, 37, § 1º). 460

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nulos, desonerando-se o consumidor de cumprir obrigações que não assumiu através de uma manifestação autônoma de sua vontade.461 Outro instrumento também utilizado para promover a defesa do consumidor, sobretudo na hipótese de “aumento arbitrário dos lucros”, é o controle de preços. Por meio dele defende-se o consumidor quando o mecanismo de mercado não funciona, inexistindo competição entre as empresas que atuam em determinado setor. Cuida-se, contudo, de medida diferente daquelas propiciadas pela Lei de Defesa da Concorrência, acima citada. Enquanto esta autoriza a atuação repressiva do Estado, após a ocorrência das práticas abusivas; o controle de reajustes, o tabelamento e o congelamento de preços constituem medidas que incidem previamente ao seu advento, prevenindo a perpetuação do contexto lesivo. Os doutrinadores Armando Castellar Pinheiro e Jairo Saddi advertem sobre a importância da defesa ao consumidor no mercado financeiro, principalmente no que tange ao mercado de crédito: Em síntese, em função da especialidade dos bancos, se poderia dizer que são três as razoes - ou justificativas - pelas quais o Estado regula o setor Financeiro, como aqui descritas: a) Do ponto de vista do consumidor (e cidadão, trata-se de protegê-lo do risco desmedido e, em especial, criar uma rede de segurança para os poupadores que recorrem as instituições financeiras [...].462 Neste diapasão, conclui-se pela necessidade de uma regulação no mercado financeiro em prol da defesa do direito fundamental do consumidor. 4.6.3 DIREITO À LIVRE CONCORRÊNCIA Liberdade econômica irrestrita leva a abusos e ocorrência de crises, não obstante ideais liberais conceberem modelos de economia de mercado como sistemas capazes de se autorregular e de se autoequilibrar.   São ainda declaradas nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que “impossibilitem, exonerem ou atenuem a responsabilidade do fornecedor por vícios de qualquer natureza dos produtos e serviços ou impliquem renúncia ou disposição de direitos”, bem como as que “subtraiam ao consumidor a opção de reembolso da quantia já paga” e as que “estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade” (CDC, art. 51). Estas são exemplos de cláusulas abusivas, ou leoninas, com as quais o fornecedor muitas vezes visa se beneficiar em detrimento do consumidor, sobretudo daquele que ostenta maior hipossuficiência. 462   PINHEIRO, Armando Castelar; SADDI, Jairo. Direito, Economia e Mercados. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005. p. 460. 461

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A acumulação de poder econômico facilita a capacidade de controlar setores do mercado, no qual os empreendedores menos poderosos não têm força para competir, sendo dele excluídos. A concorrência deixa de existir, e a função de autorregulação dos mercados, que se exerce através da competição entre os atores econômicos, deixa de ter lugar. Os preços são fixados unilateralmente pelos detentores do poder econômico, que não precisam reduzir seus preços, nem aumentar a qualidade dos produtos, para que aumentem seus lucros. Os consumidores têm de se submeter às condições que essas empresas fixam. O mecanismo de mercado, que legitima o sistema capitalista, deixa de funcionar. Torna-se, então, necessária a intervenção estatal, para garantir a “livre concorrência”. O princípio está estabelecido no art. 170, inc. IV, da Constituição da República Federativa de 1988. Encontra-se ainda reafirmado no § 4º do art. 173: “A lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros”. Por derradeiro, Armando Castellar Pinheiro e Jairo Saddi advertem sobre a importância da defesa da livre concorrência no mercado financeiro, sobretudo no setor bancário: “Do ponto de vista concorrencial, garantir que não haverá competição predatória ou monopolística e que, na atividade bancária, os agentes serão tratados de forma igual.”463 Não há que se falar em um mercado financeiro atrativo e uma regulação legítima sem se falar em iguais condições de proteção contra abusos aos operadores deste mercado. 4.6.4 DIREITO FUNDAMENTAL À IGUALDADE “Todos são perante a lei...”. Umas das máximas mais importantes do paradigma constitucional, presente no caput do art. 5° da Constituição da República Federativa de 988,464 constitui coluna basilar de qualquer atividade econômica, realizada no mercado financeiro ou não. O status de direito fundamental à igualdade confere a garantia de que todos terão as mesmas condições de operar no mercado nacional, sendo vedada qualquer discriminação, ressalvadas as restrições de ordem constitucional.

  PINHEIRO, Armando Castelar; SADDI, Jairo. Direito, Economia e Mercados. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005. p. 460. 464   “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes [...]” 463

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4.6.5 DIREITOS FUNDAMENTAIS DOS SÓCIOS Os direitos fundamentais dos sócios estão inseridos no ordenamento jurídico-constitucional em vários ditames do art. 5° e se resumem basicamente ao direito da liberdade de se associar465 e de não permanecer associado,466 ao direito de propriedade467 sobre quotas ou ações em que se divide o capital social e ao direito de informação.468 469 Este último talvez seja o mais importante, haja vista a latente escassez de informação e assimetria entre os agentes econômicos, inclusive no âmbito das sociedades empresárias, sejam elas agentes econômicos do mercado financeiro ou não. 5. A REGULAÇÃO DO MERCADO FINACEIRO SOB O ENFOQUE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS Ultrapassados os paradigmas constitucionais do Estado Social e o do Estado Liberal, restou claro que seus erros foram maiores que os acertos, fazendo-se necessário que uma nova realidade fosse apresentada. Neste sentido, viu-se o erguimento da democracia sobre a égide do paradigma do Estado Democrático de Direito, o qual possui no seu bojo grandes parcelas de ideais de ambos os modelos, assentados de forma pacífica. Os melhores anseios sociais e liberais residem neste paradigma, às vezes de forma conflituosa, às vezes não. Mas, o fato é que ambos os paradigmas anteriores trouxeram contribuições à ordem constitucional democrática atual. O objeto do presente trabalho é uma contribuição do modelo liberal ao paradigma atual. Trata-se do mercado financeiro, força pulsante das economias de livre mercado. Não obstante, devido à ideia de liberdade existente no mercado financeiro, este mercado pode servir de local propício ao cometimento de abusos. É no sentido de evitá-los que as agências reguladoras dos setores do mercado financeiro devem atuar, sob pena de, na sua omissão, permitiremse danos consideráveis ordem econômica e social. Neste sentido, a atuação das autoridades reguladoras deve ser pontual, de modo que elas próprias não afrontem valores sociais constitucionalmente protegidos, pelo que, verifica-se aí, a contribuição do modelo social ao paradigma atual.   “Art. 5°, inc. XVII - É plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar.” 466   “Art. 5°, inc. XX - Ninguém poderá ser compelido a associar-se ou a permanecer associado.” 467   “Art. 5°, inc. XXII - é garantido o direito de propriedade.” 468   “Art. 5°, inc. XIV - é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional.” 469   BOTREL, Sérgio. Direito Societário Constitucional. São Paulo: Atlas, 2009. p. 57. 465

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No que tange ao mercado financeiro e seu sistema, em sua redação original, a Constituição da República de 1988 prefixou, nos incisos e parágrafos do art. 192, o conteúdo da matéria concernente ao sistema financeiro nacional. Não obstante, conferiu as regras deste à legislação complementar. Fato é que o referido artigo foi alterado pela Emenda Constitucional n° 40, de 29 de maio de 2003, passando a apresentar a seguinte redação: Art. 192. O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade, em todas as partes que o compõem, abrangendo as cooperativas de crédito, será regulado por leis complementares que disporão, inclusive, sobre a participação do capital estrangeiro nas instituições que o integram. Na oportunidade da alteração, foram revogados todos os incisos, alíenas e parágrafos do artigo, subsistindo apenas o mandamento do caput, redigido na forma supracitada. Sobre esta alteração promovida, o Professor Kildare Gonçalves esclarece que: Busca-se com a nova redação do artigo 192 viabilizar a aprovação de leis estruturadoras do sistema financeiro nacional. Ao contrário do texto anterior, que remetia tal regulamentação para lei complementar única, o atual dispositivo constitucional possibilita que a tarefa regulamentar se faça de modo fracionado, no conteúdo e no tempo, dando tratamento separado aos diversos mercados que compõe o sistema financeiro.470 Diante da não edição da referida lei complementar, cabe às agências reguladoras atuais adotar uma atuação eficaz e adequada, em prol da promoção de um mercado cada vez mais atrativo e em prol de não se verem afrontados direitos fundamentais daqueles que atuam ou são atingidos por este mercado. Coaduna-se com o entendimento do Professor Kildare Gonçalves, quando este atenta para a possibilidade de edição de várias leis complementares, ocasionando a regulação fracionada do mercado financeiro. Ora, não são poucas as relações econômicas e sociais que podem ser percebidas no mercado financeiro. Seja em operações bancárias típicas, no mercado de valores mobiliários ou através de contratos de seguros, cada relação surgida nestes setores do mercado financeiro é uma nova chance de cometimento de abusos. Tanto é assim que, como visto anteriormente, diversas são as instituições de   CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito Constitucional. Teoria do Estado e da Constituição. Direito Constitucional Positivo. 14 ed. rev. atual. amp. Belo Horizonte: Del Rey, 2008. p. 1.245. 470

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regulação do mercado financeiro, cada uma no seu setor. Neste sentido, com uma variada legislação complementar e, setorizada, se possível, acredita-se ser possível conferir mais segurança às relações que ocorrem no seu bojo. 6. CONCLUSÃO Desde o final da década de 1990471 até os dias atuais, o Sistema Financeiro Nacional vem passando por diversas transformações, em grande parte influenciadas pela difusão e globalização do mercado financeiro. Fato é que, frente a mudanças estruturais, cabe aos órgãos reguladores atentarem para o fortalecimento da solidez, eficiência e liquidez deste mercado, no intuito de garantir a permanência daqueles que hoje nele operam e de atrair novos atores. Não há que se falar em mercado eficiente sem se falar em responsabilidade e segurança jurídica. As normas regulatórias do Sistema Financeiro Nacional, sob pena de ineficácia, devem coadunar com o paradigma do Estado Democrático de Direito, notadamente no que tange à garantia dos direitos fundamentais. O Estado, enquanto ator, e o Direito, enquanto instrumento, são elementos fundamentais para a regulação social, principalmente em negociações que envolvem recursos próprios e de terceiros, como ocorre no mercado financeiro. A interdependência entre o Estado e o Direito é essencial, ao passo que a ausência de um ou de outro pode gerar prejuízos inestimáveis. A regulação no mercado financeiro deve ser tal que estabeleça modelos ideais para as situações já previstas e bases teóricas para aquelas inéditas, mesmo que sejam impossíveis de serem previstas. Ou seja, em prol da segurança jurídica, deverá a regulação do mercado financeiro ser a mesma em tempos de crise e em tempos de calmaria. Deverá, ainda, capitular situações ocorridas e estar receptivo a mudanças diante de novos fatos. Ora, não poderia ser diferente. A questão é harmonizar as relações financeiras, que são dinâmicas, com o Direito, que é estático, mas que deseja ser sensível às todas as situações que se avizinham. Esta é uma das funções precípuas do Direito: garantir a efetividade das ideias da ordem jurídicoconstitucional posta. Observado o mercado financeiro, em constante mudança, gerando a necessidade de mudanças na ordem jurídica que o regula, evidenciase a importância da normatividade baseada nas garantias constitucionais. Independentemente de qual seja a mudança ocorrida, seja no mercado financeiro ou não, é certo que as autoridades competentes não podem se esquivar de sua função regulatória, bem como devem dosar sua atuação ao previsto constitucionalmente. Tanto a referida atuação quanto sua dosagem   Utiliza-se como ponto de partida a data do Acordo de Adequação de Capital da Basiléia I, instituído em 1988. 471

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terão sua adequação e legitimidade pautadas pela verificação e proteção aos direitos fundamentais, sejam eles escritos ou não. Com efeito, a regulação do mercado financeiro por parte do Estado472 será eficiente se suas regras, frente às mudanças promovidas pela globalização, e pela própria evolução da sociedade, trouxerem no seu bojo a proteção do direito fundamental do qual for destinatário o agente econômico da negociação financeira. Celeridade e liberdade: estes são os elementos que definem o mundo contemporâneo. No que tange às relações financeiras, tais características ficam mais evidentes. Cabe aos operadores do direito garantir que esta celeridade e liberdade não decorram do enfraquecimento do Estado, enquanto regulador, ou do Direito, enquanto instrumento. Caso seja verificado esse enfraquecimento, estar-se-á possibilitando abusos e infrações, o que afastará cada vez mais o mercado financeiro do ideal de eficiência e liquidez, e a regulação da adequação e legitimidade. Ressalta-se que a eficiência do mercado financeiro está intimamente ligada à ideia de responsabilidade. No mesmo sentido, a regulação deste mercado deve garantir essa eficiência através de uma atuação pautada na observância dos direitos fundamentais, postos e não. Seja de forma voluntária, por parte dos agentes, seja pela interferência pontual das autoridades reguladoras, acredita-se que somente haverá legitimidade no mercado financeiro e, consequentemente, eficácia e responsabilidade, se observados sob a égide de uma leitura constitucionalizante.

472  Apesar de ter não sido objeto do presente artigo, reconhece-se a regulação dos mercados por outras forças, como a moral, e não apenas pela intervenção estatal. 336

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ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA CONSENSUAL: UMA NOVA TENDÊNCIA NOS ACORDOS DE PARCERIA PARA PROMOVER TECNOLOGIA E INOVAÇÃO473 PUBLIC ADMINISTRATION CONSENSUAL: A NEW TREND IN PARTNERSHIP AGREEMENTS TO PROMOTE INNOVATION AND TECHNOLOGY Roberto Correia da Silva Gomes Caldas Mestre e Doutor em Direito Público pela PUC/SP Professor da PUC/SP Advogado no Brasil e em Portugal

RESUMO

Rubia Carneiro Neves Mestre e Doutora em Direito Comercial pela UFMG Professora da Faculdade de Direito da UFMG

O presente estudo verifica o contexto em que os acordos de parceria para promover a tecnologia e inovação são influenciados pela atividade regulatória administrativa concertada. Assim, define-se regulação, classificando-a e diferençando-a de regulamentação de modo a, em seguida, observar-se a sinergia envolvida no seu exercício consensual contratual, mediante as distintas parcerias possíveis para os ajustes públicos em torno do fomento da tecnologia e inovação. Palavras-Chave: Regulação administrativa concertada; Regulamentação; Parcerias para tecnologia e inovação; Contratos administrativos. ABSTRACT This study evaluates the context in which the partnership agreements to promote technology and innovation are influenced by administrative concerted regulatory activity. Thus, we define regulation, classifying it and explaining its different levels in order to observe the synergy involved in the exercise of concerted covenant by the different possible partnerships for public settings around the promotion of technology and innovation. Keywords: Administrative concerted regulation; Partnerships for technology and innovation; Administrative contracts.   O presente estudo apresenta-se como uma fusão das idéias contidas em trabalhos dos autores já publicados, com as necessárias revisão, atualização e ampliação, de sorte a ter-se profícua interdisciplinaridade entre o Direito Empresarial e o Direito Administrativo na área de fomento da tecnologia e inovação. 473

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SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. Definição de regulação, classificação e sua diferenciação de regulamentação – 3. Atividade regulatória administrativa e o seu exercício sinérgico – 3.1. O contexto do exercício sinérgicopactual – 3.2. As premissas de regulação administrativo-econômica concertada sinérgica – 4. Regulação administrativa pactual concertada e o contexto associativo dos denominados contratos administrativos – 4.1. O contexto associativo dos “contratos administrativos” e a atividade regulatória administrativa pactual concertada – 5. A regulação administrativa pactual concertada e o acordo de parceria para a promoção da tecnologia e inovação – 6. Conclusões – 7. Referências. 1. INTRODUÇÃO O estudo em tela objetiva, em primeiro lugar, definir e classificar regulação administrativa, diferenciando-a de regulamentação nos ajustes com o Estado, para verificar seu conceito concertado (consensual), e exercício sinérgico-associativo neste âmbito, ou seja, quais os modos negociados de se regrar as forças dos agentes envolvidos nos pactos administrativos, capazes de contribuir para a potenciação das prestações de serviços públicos, precedidas ou não de obras, de sorte a estas apresentarem a maior adequação possível aos interesses públicos por si versados. Para tanto, o estudo da regulação administrativa concertada que aqui se cuida toma em consideração o modelo teórico trazido da doutrina francesa sobre o contrato administrativo474, vez que encerra um corte metodológico que permite uma análise clara sobre os vários atos (a serem regulados) que o compõem. Em segundo lugar, o estudo pretende demonstrar como a aplicação dessa teoria está condizente com o modelo de Estado Democrático de Direito adotado pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e como pode viabilizar uma maior eficiência na celebração de acordos de parcerias que visem à promoção da tecnologia e inovação. E para desenvolver-se essa reflexão, utilizou-se da vertente teóricojurídica, pois o trabalho também se apoiou na revisão bibliográfica para apresentar a hodierna teoria de regulação concertada e defender as teorias do Estado Democrático de Direito, do Capitalismo à luz da função social do contrato, principalmente o administrativo quando havido enquanto instrumento de concreção de políticas públicas. A dogmática também esteve presente no   A respeito, vide MELLO, Oswaldo Aranha Bandeira de. Princípios..., vol. I – Introdução, 3ª ed., 2007, p. 671-673; et “Contrato de direito público ou administrativo”. Revista de direito administrativo. Rio de Janeiro : Fundação Getúlio Vargas, nº 88, abr./jun. de 1967, itens “16” e “17”. 474

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desenvolvimento do trabalho, já que a estrutura do ordenamento jurídico e alguns dispositivos constitucionais (e legais) foram objetos da reflexão. Com isso, além desta introdução, da conclusão e das referências, o trabalho foi dividido em cinco partes, sendo que na primeira, abordou-se a respeito da definição de regulação, sua classificação e sua diferenciação de regulamentação; na segunda, examinou-se sobre a atividade regulatória administrativa e o seu exercício sinérgico; na quarta parte, analisou-se a regulação administrativa pactual concertada e o contexto associativo dos denominados contratos administrativos; na quinta parte, tratou-se a respeito das implicações da regulação administrativa pactual concertada sobre o acordo de parceria celebrado para promover a tecnologia e inovação. Assim, postas tais considerações preambulares, inicia-se a apresentação da primeira parte. 2. DEFINIÇÃO DE REGULAÇÃO, CLASSIFICAÇÃO E SUA DIFERENCIAÇÃO DE REGULAMENTAÇÃO A diferenciação entre regulação administrativa e regulamentação aplicada aos chamados contratos administrativos (ato regulamentar) não é apenas terminológica475. No diapasão dessa premissa supra-estabelecida, entende-se por regulação administrativa a atividade em exercício de função administrativa que conforma a atividade particular aos interesses públicos, englobando o conjunto das normas jurídicas (de modo geral) e controles administrativos476, divergindo do que se tem por auto-regulação477. Maria Sylvia Zanella Di Pietro afirma que a regulação administrativa   A respeito do conceito de regulação e as várias acepções em que empregue o vocábulo, vide ALMEIDA, Fernando Dias Menezes. “Teoria da regulação”. In: CARDOZO, José Eduardo Martins et alii. Curso de direito administrativo econômico. CARDOZO, José Eduardo Martins; QUEIROZ, João Eduardo Lopes; SANTOS, Márcia Walquíria Batista dos (Org.). São Paulo : Malheiros Editores, vol. III, 2006, p. 119 e 123. 476   Vide QUEIROZ, João Eduardo Lopes. “Principais aspectos jurídicos da privatização”. In: CARDOZO, José Eduardo Martins et alii. Curso de direito administrativo econômico. CARDOZO, José Eduardo Martins; QUEIROZ, João Eduardo Lopes; SANTOS, Márcia Walquíria Batista dos (Org.). São Paulo : Malheiros Editores, vol. III, 2006, p. 80. Sobre o sentido mais abrangente das atividades regulatórias, tem-se MEDAUAR, Odete. “Regulação e auto-regulação”. Revista de direito administrativo. Rio de Janeiro : Renovar, nº 228, abr./jun. de 2002, p. 123-128, especificamente p. 124-127. 477   Segundo ALMEIDA, Fernando Dias Menezes de. “Teoria da regulação”. In: CARDOZO, José Eduardo Martins et alii. Curso de direito administrativo econômico. CARDOZO, José Eduardo Martins; QUEIROZ, João Eduardo Lopes; SANTOS, Márcia Walquíria Batista dos (Org.). São Paulo : Malheiros Editores, vol. III, 2006, p. 127. 475

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alcança as atividades de certo conteúdo econômico, quer de ordem pública, quer de ordem privada, como também as atividades sociais (traz regras de conduta e controle, bem como a proteção de interesses públicos mediante uma organização econômico-social478). Edmir Netto de Araújo distingue a atividade de regulação administrativa da de regulamentação, afirmando que a primeira, genericamente, contém a segunda, pois regramento geral para submissão às leis – cunho normatizador geral –, enquanto que regumentação encerra maior especificidade, principalmente quanto à competência e ao modo de tratamento da matéria versada479. A par de tais orientações, nos ajustes públicos, as atividades de regulação administrativa são as limitações aos direitos de propriedade e de liberdade (“poder de polícia”, ou como também dito nesse setor por Maria Sylvia Zanella Di Pietro, regulação propriamente dita480), pautando o agir privado em decorrência direta da lei (supremacia geral da Administração), enquanto que as atividades regulamentares decorrem diretamente desse vínculo jurídico específico (manifestação da chamada supremacia especial ou relação especial de sujeição481). As ações regulatórias pactuais, salientese, estão também diretamente voltadas à implementação e concretização das políticas públicas setoriais482. É de se ponderar que as agências reguladoras, segundo sua atual conformação jurídica, exercem ambas as atividades (regulação administrativa e regulamentação) no âmbito dos pactos públicos483.   Parcerias na administração pública: concessão, permissão, franquia, terceirização, parceria público-privada e outras formas. São Paulo : Atlas, 5ª ed., 2005, p. 205-206. 479   “A aparente autonomia das agências reguladoras”. In: MORAES, Alexandre et alii. Agências reguladoras. MORAES, Alexandre de (Org.). São Paulo : Atlas, 2002, p. 41. 480   Parcerias na administração pública: concessão, permissão, franquia, terceirização, parceria público-privada e outras formas. São Paulo : Atlas, 5ª ed., 2005, p. 193. 481   MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. São Paulo : Malheiros Editores, 25ª ed., 2007, item “15” e nota de rodapé nº 18, p. 344-345. 482   SOUTO, Marcos Juruena Villela. “Agências reguladoras e entidades similares”. In: CARDOZO, José Eduardo Martins et alii. Curso de direito administrativo econômico. CARDOZO, José Eduardo Martins; QUEIROZ, João Eduardo Lopes; SANTOS, Márcia Walquíria Batista dos (Org.). São Paulo : Malheiros Editores, vol. III, 2006, p. 374; MARQUES NETO, Floriano Peixoto de Azevedo. Regulação estatal e interesses públicos. São Paulo : Malheiros Editores, 2002, p. 204; FREITAS, Juarez. O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais. São Paulo : Malheiros Editores, 4ª ed., 2009, p. 353; e AMARAL, Antônio Carlos Cintra do. “Observações sobre agências reguladoras de serviço público”. Revista de direito administrativo. Rio de Janeiro : Fundação Getúlio Vargas, nº 231, jan./mar. de 2003, p. 2. 483   DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na administração pública: concessão, permissão, franquia, terceirização, parceria público-privada e outras formas. São Paulo : Atlas, 5ª ed., 2005, p. 192-193. 478

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Dinorá Adelaide Musetti Grotti484, ao comentar sobre as agências setoriais de regulação administrativa, afirma exercerem amplo “poder normativo” (deverpoder de fiel execução da lei, na dicção constitucional do art. 84, IV), havido de várias legislações, junto com o fiscalizatório, sancionatório e de dirimição de conflitos, vendo uma tripla regulação, qual seja, a “regulação de monopólios” (minimizadora dos efeitos das forças setoriais de mercado), a “regulação para a competição” (que busca a manutenção da concorrência) e a “regulação social” (a qual visa à universalização dos serviços). 3. ATIVIDADE REGULATÓRIA E O SEU EXERCÍCIO SINÉRGICO 3.1 O CONTEXTO DO EXERCÍCIO SINÉRGICO-PACTUAL O intuito de parceria nos ditos contratos administrativos é uma maior repartição e melhor distribuição dos riscos envolvidos nos empreendimentos485, a impor a necessidade de um normatizar preciso e permanente, que estabeleça seu conteúdo, amplitude e modo de expressão, inclusive como forma de imprimir maior diálogo e garantia de segurança nos referidos ajustes (regulação administrativa pactual concertada)486. À luz dessa necessidade de precisão e permanência inerente ao regramento geral da regulação administrativa voltada à atividade pactual, põe-se que se sigam alguns princípios básicos para não se ter problemas quando do seu exercício sinérgico (e harmônico, de conseqüência), cuja ênfase e incentivo ao diálogo, consenso e associação487 é que lhe cunha o conceito de regulação administrativa 484   “A arbitragem e a administração pública”. In: PUCCI, Adriana Noemi et alii. Novos rumos da arbitragem no Brasil. GUILHERME, Luiz Fernando do Vale de Almeida (Coord.). São Paulo : Fiuza Editores, 2004, p. 158-159. Nessa mesma linha: AMARAL, Antônio Carlos Cintra do. “Observações sobre agências reguladoras de serviço público”. Revista de direito administrativo. Rio de Janeiro : Fundação Getúlio Vargas, nº 231, jan./mar. de 2003, p. 2. 485  MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. “Políticas públicas e parcerias: juridicidade, flexibilidade negocial e tipicidade na administração negocial”. BLC - Boletim de licitação e contratos. São Paulo : NDJ – Nova Dimensão Jurídica, ano 21, nº 1, janeiro de 2008, p. 39. 486   Nesse contexto, é de se dissociar a idéia de regulação como exclusiva da atividade desempenhada pelas agências regulatórias, conforme já salientado por Juarez Freitas [“Parcerias público-privadas (PPPs): natureza jurídica”..., p. 701, nota de rodapé nº 35], sendo mais apropriado seu tratamento, sua disciplina em uma Lei específica e própria, que fixe as normas regulatórias gerais. 487   JUSTEN FILHO, Marçal. Teoria geral das concessões de serviço público. São Paulo : Dialética, 2003, p. 61; DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na administração pública: concessão, permissão, franquia, terceirização, parceria público-privada e outras formas. São Paulo : Atlas, 5ª ed., 2005, p. 111; e FREITAS, Juarez. “Parcerias público-privadas (PPPs): natureza jurídica”. In: CARDOZO, José Eduardo Martins et alii. Curso de direito administrativo econômico. CARDOZO, José Eduardo Martins; QUEIROZ, João Eduardo Lopes; SANTOS, Márcia Walquíria Batista dos (Org.). São Paulo : Malheiros Editores, vol. I, 2006, p. 715.

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concertada, redutora, por excelência, dos riscos havidos nos pactuados públicos. A regulação administrativa concertada, em seu sentido lato, tem sido referida pela hodierna expressão “governança”, segundo uma transposição conceitual da dita “governança corporativa”, em âmbito local, regional, nacional e internacional (“global governance”), externando a idéia de um método ou mecanismo de regulação de conflitos ou problemas, mediante a obtenção de soluções mutuamente satisfatórias e vinculantes aos pólos de atuação, segundo negociação ou cooperação, pois que nenhum deles se revela independente o suficiente para impô-las e também, de outro lado, para delas poder prescindir488. Assim, a regulação administrativa, para as relações ditas contratualadministrativas (no âmbito dos chamados contratos administrativos e entre as prestadoras de serviços públicos489), é indelegável, pois obrigatória (deverpoder da Administração), sendo voltada à organização econômico-social e ao estabelecimento de regras de conduta e controle. A expressão “regulação” tem sido utilizada para designar um direito elaborado pelas agências, haurido de modo negociado entre o Estado e o particular interessado (malgrado pouco desenvolvido no Brasil), revelando a substituição da tradicional regulação estatal pelas “regulações sociais”490. Assim, Juarez Freitas afirma que regulação é tarefa, dever de Estado e não de governo, independente, autônomo e duradouro, sem favoritismos, partidarismos ou tendências governamentais, sendo vista como a tarefa magna das agências regulatórias491. Ante esse contexto regulatório estatal (e não simplesmente governamental), calha ter-se que as atividades regulatórias não devem ser desempenhadas conjuntamente com as de Poder contratante, regulamentares;   CHEVALLIER, Jacques. O Estado pós-moderno. Traduzido por Marçal Justen Filho. Belo Horizonte : Fórum, 2009, p. 273-277. 489   MODESTO, Paulo. “Reforma do estado, formas de prestação de serviços ao público e parcerias público-privadas: demarcando as fronteiras dos conceitos de ‘serviço público’, ‘serviços de relevância pública’ e ‘serviços de exploração econômica’ para as parcerias público-privadas”. In: SUNDFELD, Carlos Ari et alii. Parcerias público-privadas. SUNDFELD, Carlos Ari. (Coord.). São Paulo : Malheiros Editores, 2005, p. 469-470. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na administração pública: concessão, permissão, franquia, terceirização, parceria público-privada e outras formas. São Paulo : Atlas, 5ª ed., 2005, p. 192-193. 490   DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na administração pública: concessão, permissão, franquia, terceirização, parceria público-privada e outras formas. São Paulo : Atlas, 5ª ed., 2005,, p. 204. GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. São Paulo : Malheiros Editores, 4ª ed., 2002, p. 131. 491   “Parcerias público-privadas (PPPs): natureza jurídica”. In: CARDOZO, José Eduardo Martins et alii. Curso de direito administrativo econômico. CARDOZO, José Eduardo Martins; QUEIROZ, João Eduardo Lopes; SANTOS, Márcia Walquíria Batista dos (Org.). São Paulo : Malheiros Editores, vol. I, 2006, p. 715. Idem. O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais. São Paulo : Malheiros Editores, 4ª ed., 2009, p. 264-269 e 349-354. 488

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regulador deve ser apenas regulador, e não também contratante. De conseguinte, as agências regulatórias, no modelo legal brasileiro do século XXI, possuem apenas autonomia nominal. A solução seria a criação da carreira de agente regulador dentro da Administração, inclusive quanto às autarquias492, de sorte a alcançar-se a sinergia não apenas entre o Estado e o particular, mas também entre os reguladores, o que ainda precisa ser desenvolvido493. E uma outra maneira para tal sinergia ocorrer entre os reguladores (agências regulatórias, Tribunais de Contas e controladores internos, v. g.) e entre eles e os demais pólos de atuação nos pactos administrativos, é a intensificação da participação popular e do controle social na regulação (com maior cidadania ativa a ser desenhada como condição de validade no processo da atividade regulatória concertada), mediante, e. g., os novos mecanismos, além dos tradicionais de consultas e audiências públicas (sob pena de nulidade)494, trazidos pelo art. 48, da Lei Complementar nº 101/2000, consoante as alterações da Lei Complementar nº 131/2009. É a idéia do diálogo, e não da imposição, que se deve ter nos denominados contratos entre o Estado e os particulares, à luz de uma regulação impregnada das noções de Administração concertada495 e segundo princípios específicos de atuação. Daí, a noção de regulação administrativa pactual concertada, a qual de forma alguma elimina ou mitiga o poder de a Administração impor, em última hipótese, a organização econômico-social e as medidas de conduta e controle para a fiscalização, solução de conflitos e repressão de posturas indesejáveis   SANTOS, Márcia Walquíria Batista dos (Org.). São Paulo : Malheiros Editores, vol. I, 2006, p. . Idem. O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais. São Paulo : Malheiros Editores, 4ª ed., 2009,, p. 261-264. 493   SANTOS, Márcia Walquíria Batista dos (Org.). São Paulo : Malheiros Editores, vol. I, 2006, p. 715. Idem. O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais. São Paulo : Malheiros Editores, 4ª ed., 2009,, p. 261 e 263. Como exemplo da falta de sinergia entre os reguladores vide: SUNDFELD, Carlos Ari; CAMPOS, Rodrigo Pinto de. “Conflito de competências regulatórias entre entes federativos: o caso do gás natural liquefeito”. Interesse público. Sapucaia do Sul (Grande Porto Alegre) : Notadez, ano 8, nº 37, mai./jun. de 2006, p. 13-27. 494   FREITAS, Juarez. O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais. São Paulo : Malheiros Editores, 4ª ed., 2009, p. 358, item “IV”. Sobre as audiências públicas e seu regime jurídico, ver: MENCIO, Mariana. Regime jurídico da audiência pública na gestão democrática das cidades. Belo Horizonte : Fórum, 2007. 495   MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. “Novos institutos consensuais da ação administrativa”. Revista de direito administrativo. Rio de Janeiro : Fundação Getúlio Vargas, nº 231, jan./mar. de 2003, p. 146. Nesse mesmo diapasão, sobre a necessidade das empresas e organizações nãogovernamentais em geral tomarem a iniciativa e assumirem algumas funções governamentais para a solução de problemas comuns à sociedade, vide HEIDEMANN, Francisco G. “Do sonho do progresso às políticas de desenvolvimento”. In: HEIDEMANN, Francisco G. et alii. Políticas públicas e desenvolvimento: bases epistemológicas e modelos de análise. HEIDEMANN, Francisco G.; SALM, José Francisco (Org.). Brasília : Editora Universidade de Brasília - UnB, 1ª ed., 2009, p. 32-33. 492 715

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(expressão da supremacia geral). E, diante destas prerrogativas regulatórias, tem-se como pontos cardeais da ação governamental de regulação administrativa concertada (dita também governança em âmbito nacional, interno496), não apenas a redução de regulação e encargos administrativos desnecessários, como também a certeza de que ela e seu exercício sejam proporcionais497, com “accountability”498, consistência (dita também coerência)499, transparência500 (“discloure”) e focalização (dita também foco, orientação ou segmentação)501. São estes, os cinco princípios a serem seguidos pelos reguladores públicos para uma boa atividade regulatória administrativa concertada (“good governance”), segundo a conceituada entidade internacional, “The Better Regulation Commission”502.   CHEVALLIER, Jacques. O Estado pós-moderno. Traduzido por Marçal Justen Filho. Belo Horizonte : Fórum, 2009, p. 275. 497   Significa a intervenção, quando e na medida do necessário. Implica dizer que outras opções devem ser cogitadas a fim de se obterem menos custos em relação aos riscos envolvidos, dando-se preferência por educar em vez de sancionar (Better Regulation Task Force. “Principles of Good Regulation”. Disponível em: . Acesso em 03/06/09). A proporcionalidade, em última análise, no âmbito regulatório é um fator modulador de riscos. 498   Esse princípio encerra a significação de que as propostas regulatórias, quando apresentadas, devem ser tornadas públicas e, antes de qualquer coisa, com os afetados sendo consultados das decisões a serem tomadas, submetendo-se-as a prévio exame público (decisões as quais, diga-se de passagem, devem ser sempre justificadas) (Ibidem). Em relação à expressão accountability, optou-se por não traduzi-la em acolhimento ao entendimento também sufragado por Francisco G. Heidemann, quando da tradução de texto em inglês a respeito. Com efeito, corretamente esclareceu em nota que, “Em virtude da dificuldade de se encontrar uma palavra ou uma expressão em português que encerre a enorme amplitude conceitual contida no termo accountability – isto é, que traduza seu sentido genérico –, o tradutor preferiu manter intraduzida a palavra inglesa, em sua acepção ampla, na versão em português. O significado da palavra accountability, no entanto, pode ser contextual, pontual e especificamente apreendido, entre outras, pelas seguintes palavras: responsabilidade, prestação de contas, satisfação, explicação, atendimento. Nas poucas vezes em que se traduziu accountability nesta versão, a palavra portuguesa a que se recorreu está grafada em itálico. Pode-se, portanto, concluir que accountability diz respeito, genericamente, a alguma forma de prestação de contas ou de satisfação a detentores de expectativas diversas” (Nota de tradução. In: ETZIONI, Amitai. “Concepções alternativas de accountability: o exemplo da gestão da saúde”. Tradução de Francisco G. Heidemann. In: HEIDEMANN, Francisco G. et alii. Políticas públicas..., p. 287-288). 499   A implementação das medidas deve ser firme, precisa e coerente para não haver qualquer contradição (Better Regulation Task Force. “Principles of Good Regulation”. Disponível em: . Acesso em 03/06/09). 500   As regulações devem ser abertas e mantidas de forma simples e amigável (Ibidem). 501   Os objetivos devem ser bem traçados e direcionados com foco ao problema a ser enfrentado, sempre com metas pactuadas, é claro (Ibidem). 502   The Better Regulation Commission, Cabinet Office. “Five Principles of Good Regulation”. 496

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A estes princípios, somam-se os da conformidade no cumprimento das normas regulatórias (dito “compliance”) e do senso de justiça no seu desempenho (designado “fairness”)503. Cumpre registrar que todos esses princípios se encontram, de certo modo, em maior ou menor grau de intensidade, influenciando o direito fundamental do cidadão à boa administração pública, elevado por alguns ao patamar de princípio de Direito Administrativo (do qual o princípio da eficiência seria uma faceta), de sorte a significar uma atividade administrativa mais convergente, congruente, oportuna e adequada aos fins legais (sempre de interesse público), por meios e ocasiões melhores para tanto, sendo sua observância vinculante quando do exercício de competência discricionária. 3.2 AS PREMISSAS DE REGULAÇÃO CONCERTADA E SEU EXERCÍCIO SINÉRGICO

ADMINISTRATIVO-ECONÔMICA

Charles W. Eliot504, respeitável professor da Universidade de Harvard, analisando o modelo público norte-americano de regulação econômica, oferece outros fundamentos aplicáveis genericamente para uma nova ordem regulatória. Observa existir um conjunto do que chama de seis princípios, havido enquanto propriedades desejáveis a qualquer regime regulatório505. Dentre seus princípios estão os cuidados necessários para se evitar a cooptação dos reguladores pelo setor regulado. Igualmente ressalta que a promoção da auto-regulação se revela como forma de regulação, cujos próprios modelos irão mensurar os níveis dos riscos de capitais nos empreendimentos, com o controle estatal podendo se dar com base nos balanços apresentados pelas empresas506. Disponível em:. Acesso em: 03/06/09. Vide também a respeito: BOURN, John. “O papel do Grupo de Trabalho de Privatização da Intosai e a responsabilização dos entes reguladores no Reino Unido”. Revista do TCU. Brasília : TCU, ano 36, nº 104, abr./jun. 2005, p. 17-22. 503   ANDRADE, Adriana; ROSSETTI, José Paschoal.  Governança Corporativa: fundamentos, desenvolvimento e tendências. São Paulo : Atlas, 4ª ed., 2009, p. 562. 504   “Six principles for a new regulatory order”. In: SUMMERS, Lawrence. Financial Times – ft.com/economistsforum, 02 de junho de 2008, às 10:02 h. Disponível em . Acesso em 03/06/09. 505   “Six principles for a new regulatory order”. In: SUMMERS, Lawrence. Financial Times – ft.com/economistsforum, 02 de junho de 2008, às 10:02 h. Disponível em . Acesso em 03/06/09.; tradução livre.   “Six principles for a new regulatory order”. In: SUMMERS, Lawrence. Financial Times – 506 349

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Em terceiro lugar, pondera que a regulação deve ter por premissa a incapacidade das instituições, ou dos seus reguladores, em prever as condições do mercado futuro com muita confiabilidade. Afirma que, em vez de avaliarem onde e quando irá ocorrer a próxima crise, os reguladores têm de tentar garantir a resiliência, a flexibilidade do sistema com relação aos choques econômicos ou problemas em qualquer setor ou instituição507. Observa, ainda, que o foco da regulamentação deve deslocar-se das práticas de prudente supervisão das instituições para a saúde do sistema financeiro, como também que qualquer regime regulatório deve abordar, de forma realista, os riscos decorrentes das atividades bancárias paralelas508. Por fim, ensina que a política regulatória deve, o máximo possível, criar uma situação em que a falha de um indivíduo não é, em si mesma, fonte de risco sistêmico, sendo apenas desta forma possível a contenção dos perigos associados ao apoio governamental para as crises econômico-financeiras509. Entende-se, diante do acima apreciado, que tais premissas foram, de certa maneira, abarcadas pelo novo plano de regulação administrativo-econômica lançado nos Estados Unidos da América para se contornar a crise mundial setorial que lá teve seu início em 2008, dando-se reforço a um atuar sinérgico e potencializador do diálogo consensual nas avenças, inclusive e principalmente com o Estado. O programa de regulação administrativo-econômica norte-americano envolve, ressalte-se, além dos bancos, as seguradoras, empresas do setor de crédito e gigantes das áreas industrial e comercial, prevendo para o Governo mais poderes de intervenção no mercado (inclusive com autoridade para a assumpção ft.com/economistsforum, 02 de junho de 2008, às 10:02 h. Disponível em . Acesso em 03/06/09.; tradução livre. 507   “Six principles for a new regulatory order”. In: SUMMERS, Lawrence. Financial Times – ft.com/economistsforum, 02 de junho de 2008, às 10:02 h. Disponível em . Acesso em 03/06/09.; tradução livre. 508   “Six principles for a new regulatory order”. In: SUMMERS, Lawrence. Financial Times – ft.com/economistsforum, 02 de junho de 2008, às 10:02 h. Disponível em . Acesso em 03/06/09.; tradução livre. 509   “Six principles for a new regulatory order”. In: SUMMERS, Lawrence. Financial Times – ft.com/economistsforum, 02 de junho de 2008, às 10:02 h. Disponível em . Acesso em 03/06/09.; tradução livre. 350

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de empresas consideradas “grandes demais para cair”, ou seja, de significativo impacto negativo para a Economia global) e maior proteção aos consumidores de produtos financeiros (como, e. g., empréstimos ao consumo de bens móveis e imóveis, ou para o incentivo ao ensino, inclusive via cartões de crédito)510. Saliente-se, todavia, que dentre os pontos em que se funda esse programa norte-americano, destaca-se não apenas essa maior proteção aos consumidores de produtos financeiros e esses outros poderes de intervenção no mercado, mas também a introdução de mais transparência nas transações financeiras, seguida da necessidade de aumento de capital nos bancos (para que resistam a novas crises) e do controle das chamadas “operações exóticas” com derivativos e outros instrumentos511. Outro elemento importante desse pacote é que os bancos e instituições que atuarem no mercado de securitização de dívidas terão que ficar com pelo menos 5% (cinco por cento) dos títulos constitutivos de tais transações, obrigando-se-os à assumpção de uma parcela dos seus riscos, o que os leva a serem mais conservadores512. Depois, em paralelo ao programa norte-americano, na Europa se tem, como esforço para se contornar a crise econômico-financeira mundial surgida em 2008 (e se prevenir de futuras outras), não só a terceira análise estratégica do programa “The Better Regulation” na União Européia (a terceira revisão das Diretrizes Regulatórias), conduzida pela Comissão das Comunidades Européias513, mas, ainda, o novo plano de regulação administrativo-financeiro, malgrado nascido em meio a críticas austeras quanto à sua possível efetividade. Com efeito, o principal ponto do plano europeu, votado para vigorar no ano de 2010, é a criação do Comitê Europeu do Risco Sistêmico [por meio do Regulamento (UE) n. 1092/2010, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de novembro de 2010, relativo à supervisão macroprudencial do sistema financeiro na União Europeia] com poderes para Recomendações junto aos Governos dos 27 (vinte e sete) países da União Européia (e. g., a sua Recomendação, de 22   CANZIAN, Fernando. “Obama lança maior regulação desde anos 30”. Folha de S. Paulo Dinheiro, São Paulo, quinta-feira, 18 de junho de 2009. Disponível em . Acesso em 20/06/09. 511   CANZIAN, Fernando. “Obama lança maior regulação desde anos 30”. Folha de S. Paulo Dinheiro, São Paulo, quinta-feira, 18 de junho de 2009. Disponível em . Acesso em 20/06/09.. 512   CANZIAN, Fernando. “Obama lança maior regulação desde anos 30”. Folha de S. Paulo Dinheiro, São Paulo, quinta-feira, 18 de junho de 2009. Disponível em . Acesso em 20/06/09.. 513   Disponível em . Acesso em 03/06/09. O atuar do programa “The Better Regulation”, conduzido pela Comissão das Comunidades Européias, tem por escopo a adoção da regulação apenas “...quando necessário, da forma mais simples possível, com base num diálogo com os interessados e limitando ao mínimo os encargos para as empresas e os cidadãos” (Ibidem). 510

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de dezembro de 2011, relativa ao mandato macroprudencial das autoridades nacionais514), sem, contudo, proceder à implementação, à concreção direta das políticas públicas do setor econômico-financeiro, conforme exigência anteriormente trazida pelo Reino Unido515. Igualmente, entre outros pontos, ressai importante observar que haverá um sistema de agências de fiscalização financeira (para bancos, Bolsas e seguros), a fixar padrões comuns, reforçar a cooperação entre reguladores nacionais e supervisionar as agências de qualificação de risco516. As críticas existentes a esse plano europeu de combate à crise econômicofinanceira são traduzidas na possibilidade de o conselho sistêmico não vir a ter o poder suficiente para regular e influenciar as autoridades nacionais quanto às medidas necessárias a serem implementadas517. 4. REGULAÇÃO ADMINISTRATIVA PACTUAL CONCERTADA E O CONTEXTO ASSOCIATIVO DOS DENOMINADOS CONTRATOS ADMINISTRATIVOS A esta altura, depois de estabelecer-se a conjuntura da atividade regulatória concertada havida como adequada para melhor explorar o seu exercício sinérgico nos ajustes com o Estado, cumpre que agora se passe à análise da relação associativa que a regulação administrativa pactual concertada com eles trava, definindo-se quais os pólos de atuação neles verificados (reguladores, particulares, usuários e Estado) e as formas pelas quais os influencia ou pode influenciar o desempenho das atividades a eles inerentes (inclusive com auxílio da participação popular e do controle). No diapasão dessas idéias, toma-se, para efeitos meramente didáticos, como modelo de análise dos chamados contratos administrativos, o de origem gaulesa, cuja exposição dos atos que os compõem permite analisálos de modo muito mais claro e preciso à luz da regulação que a eles se possa pretender aplicar518.   Disponível em . Acesso em 07/05/12. 515   “Plano de regulação na UE nasce sob críticas”. Folha de S. Paulo - Dinheiro. São Paulo, sábado, 20 de junho de 2009. Disponível em < http://www1.folha.uol.com.br/fsp/dinheiro/fi2006200911. htm>. Acesso em 20/06/09. 516   “Plano de regulação na UE nasce sob críticas”. Folha de S. Paulo - Dinheiro. São Paulo, sábado, 20 de junho de 2009. Disponível em < http://www1.folha.uol.com.br/fsp/dinheiro/fi2006200911. htm>. Acesso em 20/06/09. 517   “Plano de regulação na UE nasce sob críticas”. Folha de S. Paulo - Dinheiro. São Paulo, sábado, 20 de junho de 2009. Disponível em < http://www1.folha.uol.com.br/fsp/dinheiro/fi2006200911. htm>. Acesso em 20/06/09. 518   Vide, a respeito: MELLO, Oswaldo Aranha Bandeira de. Princípios gerais de direito administrativo. Rio de Janeiro : Forense, v. I – Introdução, 3ª ed., 2007, p. 689-690; et “Contrato 514

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4.1. O CONTEXTO ASSOCIATIVO DOS “CONTRATOS ADMINISTRATIVOS” E A ATIVIDADE REGULATÓRIA ADMINISTRATIVA PACTUAL CONCERTADA À luz dessas ponderações, nos denominados contratos administrativos, embora uma de suas características primordiais ainda seja claramente o ius variandi (expressão da supremacia especial), é preciso se ver a coexistência de outras preocupações e eles relacionadas dentro de um espírito de cooperação (e. g., de defesa dos interesses dos usuários e consumidores519, ou da nova concepção de boa-fé), dando-lhes o tom associativo no cumprimento do dever de constante negociação de soluções construtivas e eqüitativas para as crises e dificuldades havidas durante sua execução520. Entre as características mais recentes dos pactos entre os particulares e o Estado, há o fato de outros organismos, inclusive com participação da sociedade civil, também exercerem a mesma atividade de acompanhamento, controle e fiscalização do cumprimento das obrigações “contratuais”, em concomitância à realizada diretamente pela “Administração-acordante” (é o caso dos órgãos ou entes reguladores, colegiados ou não, com tais atribuições legais específicas como, e. g., o Comitê Gestor das Parcerias Público-privadas – CGP, os conselhos deliberativos, as agências reguladoras de serviços públicos, etc.)521, além de que também ao “particular-acordante” é dada maior flexibilidade e liberdade de atuação para a prestação dos serviços ou realização das obras públicos522. de direito público ou administrativo”. Revista de direito administrativo. Rio de Janeiro : Fundação Getúlio Vargas, nº 88, abr./jun. de 1967, p. 31. Curso..., 20ª ed., itens “16” e “17”, p. 582. 519   Themistocles Brandão Cavalcanti, pelo menos desde a década de 1930, em seu Instituições de direito administrativo, via a possibilidade de utilização do ius variandi, por si dito jus imperii, nos ditos contratos de direito público (assim chamados por Oswaldo Aranha Bandeira de Mello), como também uma forma de defesa dos interesses dos usuários e consumidores, em claro prenúncio ao conceito do que neste estudo acoima-se de regulação administrativa pactual concertada (Parecer. In: SILVA, Nelson Rodrigues. Concessão, tarifa, interesse público. São Paulo : Prefeitura do Município de São Paulo, 1945, p. 457). 520   Sobre a questão da boa-fé nas avenças públicas vide: WALD, Arnoldo. “Novas tendências do direito administrativo: a flexibilidade no mundo da incerteza”. Revista de direito administrativo. Rio de Janeiro : Fundação Getúlio Vargas, nº 202, out./dez. de 1995, p. 46; FREITAS, Juarez. “Parcerias público-privadas (PPPs): natureza jurídica”..., p. 733. 521   A postura doutrinária de Juarez Freitas a respeito da relação jurídica complexa e plurilateral em que se consubstancia não apenas as parcerias público-privadas, mas também as concessões públicas e os ditos contratos administrativos [“Parcerias público-privadas (PPPs): natureza jurídica”..., p. 715], é a que se adota, com o reconhecimento de quatro pólos de atuação com uma trilateralidade funcional (os atos regulatórios – envolvendo a regulamentação e fiscalização –, os atos de prestação dos serviços e os atos praticados pelos usuários ao se beneficiarem dos serviços). 522   WALD, Arnoldo. “Novas tendências do direito administrativo: a flexibilidade no mundo da incerteza”..., p. 44; MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. “Políticas públicas e parcerias: juridicidade, flexibilidade negocial e tipicidade na administração negocial”. BLC - Boletim de licitação 353

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Tais situações surgiram como conseqüência do processo transformador contemporâneo do figurar estatal, deixando-se cada vez mais de lado a atividade regulatória operacional para se adotar a regulatória normativa523, exsurgindo a trilateralidade funcional (atividade regulatória, atividade prestadora e atividade de fruição das prestações, com os deveres e direitos delas efluentes) da relação jurídica complexa em que consubstanciadas as avenças com o Estado e os particulares, com quatro evidentes pólos de atuação nessa relação (“Estado-acordante”, “particular-acordante”, usuário e o regulador autônomo). A grande novidade que desponta nesse novo ato unilateral nos ajustes com o Estado, não é, como se pode ver, a introdução de atos formuladores de políticas públicas setoriais específicas, mas, repita-se em outras palavras, os atos regulamentares que passam a ser praticados não apenas pela “Administraçãoacordante”, mas também por órgãos reguladores e executivos, colegiados ou não, de composição mista (sociedade civil, os particulares, de um lado, e os administradores públicos, de outro), ou homogênea (apenas membros da Administração Pública), para o exercício das prerrogativas de acompanhamento, controle, fiscalização e dirimição de conflitos, em um claro grau de maior concreção da representatividade popular, ficando em um intermédio entre a representatividade tradicional (expressada na “Administração-acordante”) e a participação popular direta (a sociedade, os cidadãos, enfim, o povo)524. Com isso, verifica-se incrementado o controle social sobre a implantação das políticas públicas e sua concreção através dos “contratos administrativos” (o que se dá, inclusive, por agências executivas, eminentemente de âmbito federal, mediante a submissão dessas a contratos de gestão para desempenho de suas atividades525). Outra característica que também se tem como presente e marcante dos denominados “contratos” administrativos, em corte didático metodológico de análise, consiste no ato-condição, no ato-união que é também praticado pelo Estado, de forma recíproca e indissolúvel ao praticado pelo particular. Não se trata de apenas um ato-união, um ato-condição, mas de dois, justapostos um ao outro de forma indissociável, diferentes e impossíveis de serem confundidos, sendo um da Administração e outro do setor privado, com declarações de vontades coincidentes. e contratos. São Paulo : NDJ – Nova Dimensão Jurídica, ano 21, nº 1, janeiro de 2008, p. 35. 523   AGUILLAR, Fernando Herren. Direito econômico: do direito nacional ao direito supranacional. São Paulo : Atlas, 2006, p. 202; e PEREZ, Marcos Augusto. A administração pública democrática: institutos de participação popular na administração pública. Belo Horizonte : Fórum, 2004, p. 140 e 142. 524   TOJAL, Sebastião Botto de Barros. “Controle judicial da atividade normativa das agências reguladoras”. In: MORAES, Alexandre et alii. Agências reguladoras. MORAES, Alexandre de (Org.). São Paulo : Atlas, 2002, p. 152. 525   AGUILLAR, Fernando Herren. Direito econômico: do direito nacional ao direito supranacional. São Paulo : Atlas, 2006, p. 214-215. 354

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Com essa nova característica que se atribui à relação jurídica complexa atual em que se consubstanciam os chamados “contratos” administrativos, o cunho associativo exsurge também do fato de que, além do ato-regulamento e do contrato (havido em sua acepção clássica quanto à parte econômica da avença), o Estado pratica, igualmente, o ato-condição, segundo o qual aquiesce com o particular submetendo-se à situação objetiva por si estabelecida para a prestação do serviço público ou a realização da obra pública526. Tal circunstância contextualiza, de conseguinte, a noção mais consentânea e atual de regulação administrativa pactual concertada e seu viés associativo, a ser sempre observado quando de um exercício rotineiro. 5. A REGULAÇÃO ADMINISTRATIVA PACTUAL CONCERTADA E O ACORDO DE PARCERIA PARA A PROMOÇÃO DA TECNOLOGIA E INOVAÇÃO Essa perspectiva de regulação administrativa pactual concertada pode ser verificada na celebração e execução do acordo de parceria firmado entre o Estado, organizações empresariais e instituições de ciência e tecnologia. Inicialmente, cumpre considerar que além de a garantia do desenvolvimento nacional ser um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, o texto constitucional de 1988, nos arts. 218 e 219, prevê que o Estado brasileiro tem o papel de promover a ciência e a tecnologia, considerando que o mercado interno faz parte do patrimônio nacional, motivo pelo qual deve ser viabilizado o desenvolvimento cultural e socioeconômico, o bem-estar da população e a autonomia tecnológica do País. Combinando esses dispositivos com o art. 174 do texto constitucional, segundo o qual o Estado tem papel de agente normativo (regulador) e regulamentador da atividade econômica, verifica-se que a atuação do Estado deve ocorrer de forma articulada com as entidades da iniciativa privada, devendo assumir as funções de fiscalizar, incentivar e planejar ações voltadas a   E é imbuído desse espírito que os ditos contratos administrativos devem ser interpretados como uma união de forças, a consubstanciar vigorosa sinergia entre os setores público e privado para a execução das imperiosas obras públicas, em criação da infra-estrutura necessária, ou prestação dos serviços públicos de que a população é sempre tão carente. Manoel de Oliveira Franco Sobrinho explica que “A simples letra do contrato, ocorrendo contradições ou dúvidas, explica-se pela motivação e finalidade, já que pela reciprocidade dos interesses, na legitimidade prevalece o público mesmo com sacrifício do privado, o que a Administração procura realizar com a colaboração ou participação dos particulares” (“Interpretação dos contratos administrativos”..., p. 94). E, fundando-se na prestigiada doutrina de Georges Pequinot, continua lecionando que, “Sem dúvida, no tocante à vontade administrativa, toda e qualquer interpretação deve proceder da finalidade tendo em vista o serviço público como objeto essencialmente variável, e, por conseqüência volta-se para a vontade atual e não passada, uma vontade ligada aos modos executórios e aos procedimentos indicados por cláusulas entre si harmonizadas” (Ibidem, p. 94). 526

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tal atividade e, como não poderia deixar de ser, também para a área de ciência, tecnologia e inovação. Daí por que é possível verificar a regulação administrativa concertada na formação de alianças entre entidades públicas, organizações civis, empresariais e pessoas físicas, através das variadas modalidades de acordo de parceria. Ora, o Estado não pode concretizar a promoção de ciência, tecnologia e inovação sem a iniciativa privada que, por sua vez, depende da renovação para o aprimoramento de seus processos e produtos, aumentando, com isso, sua capacidade competitiva. A atual estrutura do Estado brasileiro foi concebida de modo a admitir que não atue como o principal agente econômico, mas, sim, precipuamente como o regulador dessa atividade, justamente por partir da premissa de que não tem fôlego administrativo, financeiro e orçamentário para, com exclusividade, promover o desenvolvimento social nas áreas de educação, saúde, saneamento, transportes, infra-estrutura e, ainda, o desenvolvimento econômico. Assim, é de se fixar na retentiva que consoante o modelo do hodierno Estado pátrio, ele não pode ser o principal ator econômico, mas, seguramente, tem que atuar, especialmente se considerada a área da inovação científicotecnológica, de forma direta, por meio das instituições de ensino públicas, ou indiretamente, regulando, regulamentando e também fomentando o seu desenvolvimento por intermédio de incentivos, inclusive. Em relação a esse novo papel do Estado, tem razão Calixto Salomão Filho ao admitir que em vez de gestão abstrata e macroeconômica da sociedade, cumprelhe fazer algo que o particular e o mercado jamais farão: incumbelhe redistribuir. É na redistribuição que deve ser identificada a grande função do novo Estado. Trata-se, portanto, de um Estado que deve basear sua gestão (inclusive do campo econômico) em valores e não em objetivos econômicos.527 Essa redistribuição não tem relação apenas com o Direito Tributário, Financeiro ou Orçamentário, mas também com a universalização, seja de serviços ou de conhecimento, que acaba se traduzindo em informação e poder, isto é, poder de decisão, de escolha e de ação. De acordo com Calixto Salomão Filho, a base de sustentação jurídica de regulação desenvolvimentista é a crença na necessidade de difusão do conhecimento econômico. Partindo-se   SALOMÃO FILHO, Calixto. Regulação e desenvolvimento. São Paulo: Malheiros Editores, 2002. p.41. 527

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do pressuposto de que a pretensão de isolar e teorizar o conhecimento econômico leva a resultados socialmente inconvenientes, é preciso que a regulamentação dê vazão e ofereça canais de transmissão do conhecimento econômico adquirido de forma difusa na sociedade.528 Para haver democracia, é preciso haver consciência política, cuja existência pressupõe inserção econômica da população, esta dependente de uma estrutura que garanta a diluição do poder econômico dos particulares e de pleno desenvolvimento econômico, que por sua vez exige o aprimoramento da educação, da ciência, bem como, a criação de tecnologia e inovação de produtos e de processos. A inovação, principalmente científico-tecnológica, requer vultosos investimentos de recursos em material e em capital humano, cuja soma não será proveniente apenas do investimento estatal, o que se justifica pela atual estrutura do Estado brasileiro já supra-referida. Nesse contexto, porém, calha observar-se a problemática decorrente do fato de que a esfera privada não tem despendido voluntariamente os recursos necessários para o investimento em pesquisa e desenvolvimento, seja pelo fato de deles não dispor, seja por falta de priorização da atividade inovadora. E é aí, em solução a essa situação, que se insere o acordo de parceria, o qual, sob a perspectiva da regulação administrativa pactual concertada (imbuída de claro espírito associativo), pode ser utilizado pelo Estado para incentivar as entidades particulares, juntamente com o investimento público, a realizar a promoção da inovação, do desenvolvimento econômico e, em última análise, da Democracia. O acordo de parceria entre instituições de ciência e tecnologia, Estado, e organizações privadas do setor produtivo contribui para uma maior repartição e melhor distribuição dos riscos envolvidos com a pesquisa e o empreendimento de transformação da ciência em inovação tecnológica529. Claro que tal parceria impõe, como já dito, a necessidade de um normatizar econômico-social preciso e permanente, que estabeleça seu conteúdo, amplitude   SALOMÃO FILHO, Calixto. Regulação e desenvolvimento. São Paulo: Malheiros Editores: 2002. p. 44. 529   Por administração de risco, também dita exposure managementou risk management, tem-se a Aplicação de análise financeira e utilização de diversos instrumentos financeiros no controle e na redução de determinados tipos de risco (GASTINEAU, Gary L.; KRITZMAN, Mark P. Dicionário de administração de risco financeiro. São Paulo : Bolsa de Mercadorias & Futuros, 1ª ed., 2000, p. 342). Administrar risco financeiro significa avaliar e tentar controlar o equilíbrio entre risco e retorno em empresas voltadas ao lucro e em organizações sem fins lucrativos (GASTINEAU, Gary L.; KRITZMAN, Mark P. Prefácio. In: _______. Dicionário de administração de risco financeiro. São Paulo : Bolsa de Mercadorias & Futuros, 1ª ed., 2000, p. 9). 528

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e modo de expressão, inclusive como forma de imprimir maior diálogo e garantia de segurança nos referidos ajustes (regulação administrativa pactual concertada). Em outro sentido, essa forma regulatória, se aplicada nesses ajustes de parceria, acaba por promover uma condição que pode aumentar a chance de efetivação da Democracia, pois havendo investimentos privados e públicos em pesquisa e inovação, haverá a transformação de conhecimento em tecnologias competitivas e, com isso, será criado um maior número de postos de trabalho, com maior distribuição de renda, circulação de recursos e recolhimento de tributos, ocorrendo, dessa maneira, uma melhoria nas condições econômicas e sociais da nação. Com esse aperfeiçoamento, haverá aumento do conhecimento econômico da população, que acabará adquirindo maior consciência política e maior condição de decidir sobre os rumos do Brasil. Rockefeller Brothers Fund explica que Em virtude de permitir a democracia tanta liberdade ao indivíduo e adjudicar-lhe tão grande poder de julgamento e autodisciplina, ela está subordinada mais que a maioria de outras formas de governo a uma compreensão natural e à sujeição voluntária da maior parte de seus cidadãos a determinados princípios morais.530. Ora, como permitir essa compreensão e sujeição voluntária ao regime democrático, sem consciência econômica, ainda mais se as pessoas vivem na pobreza e na miséria? Opina-se não ser possível haver consciência política sem consciência econômica, que decorre da inserção no mercado de trabalho, do acesso aos meios culturais e de comunicação. Segundo Vinícius Guilherme Rodrigues Vieira, Na Nova Ordem, não basta manter a tecnologia e o conhecimento restritos a um pequeno grupo, mesmo que ele produza benefícios que repercutam entre a população como um todo (...). No ambiente democrático, as massas precisam ter acesso direto à informação e ao conhecimento, bem como o domínio da técnica, a fim de atuarem de fato como cidadãos, reconhecendo direitos e deveres; como trabalhadores, na medida em que possuem reais oportunidades de se inserir no mercado de trabalho; e como pessoas, detentoras de um saber humanístico que lhes permita ter consciência do meio em que vivem, de modo que esses três sujeitos sejam interdependentes entre si, reunindo-se em todos os indivíduos.531.   FUND, Rockefeller Brothers. O Poder da idéia democrática. Tradução de Luiz Fernandes. 2.ed. Rio de Janeiro: Record, 1964. p. 11. 531   VIEIRA, Vinícius Guilherme Rodrigues. O papel do Estado na economia do conhecimento. 530

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Claro que o que se está a defender não é uma preocupação exclusiva com investimentos em pesquisa e desenvolvimento, sem considerar o necessário investimento na educação em geral; pelo contrário, admite-se ser necessária a combinação dos dois esforços. Reforça a tese aqui defendida, a análise de Rockefeller Brothers Fund sobre as condições econômicas de uma Democracia eficaz. Para ele, igualmente importante é a manutenção de uma economia que deixe a maioria de seus componentes com a convicção de que eles ou seus filhos têm uma oportunidade para progredir, e de que posição em sua sociedade é algo adquirido e não herdado. “Igualdade de oportunidade” é, portanto, uma das coisas mais importantes que a democracia significa quando traduzida em termos econômicos e sociais. A democracia política concede aos cidadãos o direito de opinar sobre questões públicas. Ela é amparada por um sistema econômico que concede aos cidadãos uma parcela de bem-estar de uma sociedade. (...) Uma sociedade democrática deve, portanto, comprometer-se, tanto por razões práticas como por razões morais, com luta contra a pobreza. A ética de concessão e a compreensão mútua em que se apóiam os processos políticos democráticos, requer cidadãos que não se sintam em apuros e que possuam uma ampla visão de interesses e cooperação. Pobreza é incompatível com essa situação.532 Ora, como evitar a pobreza? Dentre outras possibilidades, uma forma está relacionada com o fato de agregar valor aos produtos e aos processos, e para isso, será preciso investimento em pesquisa e desenvolvimento, cuja atuação estatal ou privada não será exclusiva, como já visto anteriormente. Dessas verdades, admitimos aquela segundo a qual a parceria, enquanto negócio jurídico, é uma das possibilidades a viabilizar investimentos públicos e privados no implementar de pesquisa e inovação. E como também se viu, a regulação administrativa pactual concertada pode ser utilizada para viabilizar a eficiente execução desse negócio de parceria, ante a sobranceira relação de Administração Pública que rege tal atividade sob a ideia mestra de cooperação supracitada por Rockefeller Brothers Fund. Segundo Giovani Clark e Nizete Lacerda Araújo, o Brasil, assim como outras nações tem um triplo desafio, isto é, gerar novos conhecimentos, transformá-los em tecnologias competitivas e fazê-lo em meio à recente crise O fortalecimento da democracia através das novas tecnologias. In: A revolução tecnológica, a economia do conhecimento e a democracia. Democracia: o espaço da paz. Império e ditadura: a geopolítica da guerra/[coordenação] (Coleção Prêmio Luís Eduardo Magalhães;6). Instituto Tancredo Neves – Brasília, 2004. p. 76. 532   FUND, Rockefeller Brotheres. O Poder da idéia democrática. Tradução de Luiz Fernandes. 2.ed. Rio de Janeiro: Record, 1964. p.47. 359

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econômica internacional. Para eles, em virtude da contida atuação estatal no domínio econômico, instalou-se uma aguda crise socioeconômica mundial iniciada nos setores imobiliário e financeiro dos Estados Unidos. Isso é reflexo de irresponsabilidade e ineficácia das políticas econômicas reguladoras. Daí porque reconhecem que uma das formas de alavancar o desenvolvimento econômico, no micro e no macroambiente, é através do estímulo à inovação; e ressaltam a importância do seu incentivo por meio de políticas públicas estimuladoras e sedimentadoras de um sistema criativo nacional, possibilitador de empregabilidade e gerador de renda interna.533 E o estímulo à inovação por parte do Estado, reitera-se, pode e deve ser viabilizado através da celebração de acordos de parceria. Arnold Wald, aliás, ressalta o uso de parcerias como forma de fomentar o desenvolvimento, para quem “a formulação atual do direito do desenvolvimento está vinculada a uma idéia que é, ao mesmo tempo, antiga e nova. Antiga na sua concepção, nova na sua densidade e nas dimensões que está alcançando. É a idéia de parceria. Parceria entre nações, parceria entre o Estado e a iniciativa privada, parceria entre moradores do mesmo bairro, parceria entre produtor e consumidor, parceria entre acionistas e dirigentes da empresa (...)”. 534 De acordo com a teoria da “hélice tríplice”, proposta por Etzkowitz em 1994535, o desenvolvimento de um país é resultante da ação conjunta de organizações empresárias, instituições de ensino superior e o Estado, nos setores de ciência e tecnologia. E cabe ao Estado fomentar, principalmente por suas ditas “agências de fomento” (e. g., FAPESP, CNPq, etc.), a integração entre o setor produtivo e o acadêmico, mediante acordos de parceria que criem um ambiente favorável à participação de organizações empresariais em atividades de pesquisa, realizadas primordialmente em departamentos do setor produtivo e nas instituições de ensino superior (públicas e privadas), em verdadeiro mutualismo. Além do aspecto macroeconômico, existem vantagens para os pactuantes da parceria celebrada entre as entidades privadas, as instituições de ensino e entidades estatais, como a união de recursos técnicos, humanos e financeiros para maximizar as chances de sucesso da pesquisa, bem como a divisão dos riscos do negócio e dos custos, sendo estes últimos os que se apresentam como uma constante elevada tanto para os departamentos de Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) das indústrias, como da pesquisa acadêmica536.   CLARK, Giovani. ARAÚJO, Nizete Lacerda. Incubadora de empresas e o Direito Econômico. Revista de Direito Empresarial. Curitiba, Juruá, n. 14, jul./dez. 2010. p. 189. 534  WALD, Arnold. O Direito de Parceria e a nova Lei de Concessões. Editora RT, 1996. p. 27. 535   ETZKOWITZ, H. Academic-industry relations: a sociological paradigm for economic development. In: LEYDERSDORFF, L.; VAN DEN BESSLAAR, P. Evolutionary economics and chaos theory: new directions in technology studies. London: Pinter, 1994, p. 141. 536   BRISOLA, Sandra; CORDER, Solange; GOMES, Erasmo; MELLO, Débora. As relações 533

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A inovação tecnológica, assim, é resultante das atividades de Pesquisa e Desenvolvimento (P&D), geralmente de grande risco financeiro, pois o retorno do investimento não é certo e seu desempenho é de alta complexidade, vez que exige nível elevado de técnica e conhecimento. Apesar do risco, cumpre mencionar-se, a P&D é uma atividade essencial para as indústrias (e demais setores produtivos do País) que devem buscar a criação e o aperfeiçoamento de seus produtos e processos, a fim de apresentarem condições para enfrentar a concorrência mercadológica. Nesse aspecto, para as organizações empresariais do setor produtivo é extremamente vantajoso conseguir realizar atividades de P&D em conjunto com instituições de ensino superior, uma vez que estas são grandes detentoras de conhecimento científico. Já para as instituições de ensino (públicas ou privadas), participar do processo de Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) juntamente com organizações privadas, em especial as empresariais do setor produtivo, resulta na captação de recursos financeiros, físicos e humanos adicionais e complementares para tal mister, maxime quanto ao desenvolvimento de pesquisas básicas e aplicadas, conservação de pesquisadores mais qualificados em seus quadros e o oferecimento de um ensino vinculado aos avanços tecnológicos. 537 Outra vantagem desse tipo de parceria é também a maior possibilidade de controle da Administração Pública por parte da sociedade civil, já que ela própria se mostra envolvida no projeto de criação da tecnologia e inovação (participação popular), além da coexistência dos princípios de Direito Administrativo e de Governança Corporativa, a implicarem o atual conceito de governança regulatória que pressupõe controle social. Em suma, os chamados acordos de parceria para desenvolvimento de pesquisas em cooperação entre organizações empresariais, entidades estatais e instituições de ensino superior (públicas e privadas) surgem no cenário nacional com o intuito de unir a técnica existente nessas últimas com o interesse comercial e os recursos do setor produtivo, proporcionando ganhos para os pactuantes, além de acarretar o desenvolvimento socioeconômico do País com maior certeza e segurança, pois também implementada a regulação concertada no desenrolar do que avençado. Tanto é que, ao ser constatada a inovação como uma questão de interesse público nacional, foi instituída a Política Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação (surgida na segunda metade do século XX, com a criação do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq, da universidade-empresa-governo: Um estudo sobre a Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Campinas/SP, dezembro de 1997, p. 2. 537   ALVIM, Paulo César Rezende de Carvalho, Inteiração Universidade-Empresa, Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia, Brasília, 1998. p. 99 a 125. 361

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Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior - CAPES e do FNDCT – Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), através da qual se pode verificar uma forte atuação do Estado para incentivar a integração de organizações empresariais, as instituições de ensino superior e entidades estatais, de forma participativa e regulamentadora. Esse atuar estatal de incentivo à ciência, tecnologia e inovação, de conseguinte, no modo participativo, é observado pela presença do Estado como parceiro ou participante nas relações que envolvem as instituições de ciência e tecnologia públicas. De outro lado, como fruto da teoria da regulação administrativa pactual concertada, verifica-se também pela presença do Estado com papel normativo, o qual cria ambiente propício ao desenvolvimento e pesquisa, quer regulando as parcerias em âmbito infra-legal, quer promovendo as alterações na legislação para conferir maior liberdade aos entes da Administração Pública em firmar acordos que versem sobre a inovação, a pesquisa científica e tecnológica538, ou quer ainda instituindo linhas específicas para disponibilizar crédito ao fomento da inovação. Com essas medidas, o Estado cumpre com o seu papel de democratizador do conhecimento, enquanto agente regulador que também promove desenvolvimento econômico-social e cria condições para tornar efetiva a Democracia e seus benefícios libertários tão almejados. Aliás, Hans Kelsen ao questionar sobre se a Democracia favorece mais o Capitalismo ou o Socialismo, responde que essa questão só pode ser respondida com base na experiência histórica e, na opinião dele, até aquele momento, a experiência concreta não era suficiente para dar uma resposta cientificamente fundamentada.539 Sem a pretensão de dar essa resposta científica almejada por Hans Kelsen quanto aos benefícios da Democracia, este trabalho reconhece que o Socialismo autoritário, salvo raras exceções, foi vencido e extinto, sendo que ela, a Democracia, é o regime de Governo que mais se adequa ao Capitalismo, adotado pelo Direito pátrio; assim, admite-se que se conseguirmos eliminar as injustiças e as desigualdades através do desenvolvimento científico e tecnológico, poderemos atingir o modelo ideal de sociedade. 6. CONCLUSÕES No caso dos acordos de parceria para a promoção de tecnologia e inovação, celebrados entre os entes estatais, as organizações empresariais do   Lei n. 10.973, de 02 de dezembro de 2004, dispõe sobre incentivos à inovação e à pesquisa científica e tecnológica no ambiente produtivo e dá outras providências. 539   KELSEN, Hans. A democracia. ed. 2. Tradução dos originais em alemão, Vera Barkow. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 254. 538

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setor produtivo e as instituições de ensino (públicas ou privadas), concluise, diante de tudo que se viu no estudo que se empreendeu, que a atividade regulatória administrativa pactual concertada é uma nova tendência sua, pois se apresenta sob a forma dialogada e associativa neste tipo de ajustes públicos. Com essa atuação regulatória estatal consensual, acaba-se por verificar a minimização de encargos às organizações empresariais produtivas e às instituições científicas, vez que o diálogo reduz as discussões, seus gastos e desgastes correlatos, resultando ao Estado, também por esse viés de normatização dialogada, o fomento do desenvolvimento da tecnologia e inovação, e, de conseguinte, do desenvolvimento nacional, em última instância, democrático. É de se concluir, outrossim, que a utilização da atividade regulatória administrativa pactual concertada no desenvolvimento dos acordos de parceria entre os entes estatais, as instituições científicas e o setor privado, em si, acaba por promover uma necessária sinergia para a exitosa inovação colimada, o que se tem, ainda, como atividade em atenção aos ditames da Política Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação. Conclui-se, ainda na subseqüência generalizante, que a atividade regulatória administrativa pactual concertada implica sua verificação dialogada e associativa de forma constante nos ajustes públicos, em busca de regramentos singelos e dentro do estritamente imperioso, além de se apresentar preocupada com a minimização dos encargos que traz para as organizações empresariais e os por si afetados direta ou indiretamente. Outra conclusão da qual não se escapa, é a existência da premente necessidade de uma Lei Geral de Regulação Administrativa que discipline a atividade regulatória e seu processo administrativo democrático (inclusive no âmbito pactual), isto é, da sanção de normas regulatórias gerais para fixar as competências no sistema regulatório administrativo concertado brasileiro (prescrevendo quem as detém – além das ditas agências regulatórias – e em que proporções e delimitações, a evitar, assim, também eventuais conflitos de competências), abordando tanto os serviços públicos outorgados, como as atividades econômicas – e não apenas essas, como explica Maria Sylvia Zanella Di Pietro540 – de relevante interesse coletivo, com a exposição das suas distinções e seus lindes, sempre que for o caso, estimulando-se a dita ação sinérgica541. Tal Lei Geral da Regulação é, ainda, a contribuição que se espera para   “...O objeto da regulação pode ser a sociedade, algumas de suas dimensões, como a economia, ou uma área de atividades sociais” (Parcerias na administração pública: concessão, permissão, franquia, terceirização, parceria público-privada e outras formas. São Paulo : Atlas, 5ª ed., 2005, p. 203). 541   FREITAS, Juarez. “Parcerias público-privadas (PPPs): natureza jurídica”..., p. 701, nota de rodapé nº 35. 540

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a solução da tradicional crise de credibilidade relacionada aos atores nos tratos públicos, a saber-se: a) do Estado brasileiro contratante, quanto à sua pontualidade para o cumprimento das obrigações, principalmente de cunho pecuniário, que assume frente aos particulares nos ajustes que com eles trava, em virtude de introduzir maior segurança institucional, com mais certeza de adimplemento público e, de conseguinte, redução dos riscos inerentes a tais avenças; b) do particular-acordante, quanto à prática de preços e custos reais e sem acréscimos de superfaturamento para além de uma margem de lucro aceitável, expurgando-se a possibilidade de cooptações de agentes públicos e reguladores em detrimento de uma adequada realização de obras e prestação de serviços públicos; c) dos próprios reguladores, no que tange ao conhecimento especializado e à independência necessários, de sorte a se afastarem, inclusive, conflitos de competência entre si. Trata-se, com isso, de se garantir o futuro dos investimentos privados na criação e ampliação da infra-estrutura do País, mediante um direito regulatório brasileiro a se tornar forte, cujo âmbito pactual deve englobar tanto as limitações à liberdade e propriedade como os atos regulamentares, retirando-se-o da incipiência obstacularizadora de uma cidadania ativa (também caracterizadora do exercício do poder tal qual preconizado no art. 1º, parágrafo único, da Constituição Federal de 1988), de modo a impulsionar a descentralização, sempre que possível, da definição de prioridades dos recursos e a ampliação da participação popular e do controle social, para serem verificados em graus de maior intensidade e coercitividade.

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ATUAÇÃO EMPRESARIAL NO MERCADO DE COMBUSTÍVEIS E DERIVADOS: ASPECTOS JURÍDICOS DECORRENTES DA ADULTERAÇÃO E O PAPEL REGULADOR DA ANP BUSINESS ACTING IN THE MARKET FOR FUELS AND DERIVATIVES: LEGAL ASPECTS ARISING FROM THE FUEL ADULTERATION AND THE REGULATORY ROLE OF THE BRAZILIAN NATIONAL AGENCY OF PETROLEUM, NATURAL GAS AND BIOFUELS (ANP) Alexandre Ferreira de Assumpção Alves RESUMO Estudo dos aspectos jurídicos da adulteração de combustíveis e das responsabilidades dos agentes que atuam nesse mercado. O trabalho, estruturado em três capítulos, inicia-se com a análise da Lei do Petróleo (Lei nº 9.487/97) na perspectiva dos objetivos da Política Energética Nacional, em especial a proteção do consumidor quanto aos preços, qualidade e disponibilidade de produtos, e da competência da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), órgão regulador e fiscalizador da atuação empresarial neste segmento do downstream. Na segunda parte são apresentadas as atividades que compõem o Sistema Nacional de Estoque de Combustíveis, as atribuições da ANP e as prerrogativas dos seus agentes no exercício da atividade. No mesmo capítulo, discorre-se sobre as sanções administrativas cominadas, com destaque para aquelas relacionadas com a adulteração, e o processo administrativo para verificação e eventual aplicação das medidas aplicáveis. O último segmento é dedicado ao exame das sanções impostas aos fornecedores e dos transportadores de petróleo, gás natural, seus derivados e biocombustíveis em relação aos vícios de qualidade e quantidade, também aqueles procedentes da disparidade com as constantes indicações do conteúdo, embalagem ou etiqueta, que os tornem impróprios ou inadequados para o consumo, ou diminuam seu valor. Nesta parte ganha destaque a possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica, prevista na Lei nº 9.847/99. Palavras-Chaves: Adulteração de combustíveis. Responsabilidades. Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural de Biocombustíveis (ANP) ABSTRACT Study of the legal aspects of fuel adulteration and the liabilities of the responsible agents in brazilian regulation. The first part begins with the analysis 371

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of the Law nº 9,478/97 (Law of the Petroleum) on the national policies for the rational utilization of the energy sources, that will aim at many objectives, among them the protection of the consumer interest with respect to price, quality and availability of products. In the second part are presented the activities that compose the National System for Fuel Stock, the performance of the Brazilian National Agency of Petroleum, Natural Gas and Biofuels (ANP) and the prerogatives of its agents in the exercise of the enforcing activity, the foreseen administrative infractions, with prominence for those related to the fuel adulteration, and the administrative proceeding for infraction verification and eventual application of the applicable measures. The third part is dedicated to the examination of the sanctions imposed to the suppliers and transporters of oil, natural gas, its derivatives and biofuels, specially the disregard of the legal entity, for the vices of quality or amount, also those proceeding from the disparity with the constant indications of the container, of the packing or labeling, that makes them improper or inadequate to the consumption or that diminishes their the value. Keywords: Fuel adulteration. Liabilities. Brazilian National Agency of Petroleum, Natural Gas and Biofuels (ANP). INTRODUÇÃO Em sentido oposto ao de trabalhos que procuram realçar o papel social da atividade econômica organizada por uma pessoa física ou jurídica de modo profissional (empresa), como instrumento da livre iniciativa e em face de princípios da ordem econômica constitucional, procura-se nesta pesquisa examinar o lado oposto: as distorções na atuação empresarial no mercado de distribuição e revenda de combustíveis e derivados e seus reflexos negativos para o consumidor e a livre concorrência. Para tanto, a fim de delimitar o objeto da investigação, toma-se por base a adulteração de combustíveis. A pesquisa realizada para a elaboração do trabalho é empírica, com fulcro na análise da norma jurídica no contexto da realidade em que se manifesta, utilizando-se de referências bibliográficas e documentais. O método adotado é o indutivo, sendo empregado o método comparativo como auxiliar, para confrontar espectros diferentes da adulteração de combustíveis e identificar relações entre eles. A adulteração consiste em adicionar ao combustível uma substância que não entra na sua composição, nos termos das prescrições legais, ou em percentuais além ou aquém das especificações técnicas (v.g. inserção de solventes ou de álcool na composição da gasolina acima do limite máximo). 372

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Em decorrência dessa prática, o empresário ou adulterador obtém um produto inferior, que é vendido como se legítimo fosse ao consumidor ou a revendido a outro empresário, por vezes com consciência do produto que é adquirido. A adulteração de combustíveis é tema sempre presente e seu estudo perpassa uma única área definida do conhecimento jurídico. Embora o enfoque da pesquisa seja empresarial, está também presente a repressão criminal ao delito, considerado crime contra a ordem econômica, bem como os efeitos civis e a fiscalização da ANP sobre os postos de combustíveis, distribuidoras e transportadoras. É fundamental compreender os aspectos desta prática ilícita e anticoncorrencial, a legislação aplicável e as responsabilidades decorrentes, a fim de traçar um paralelo entre as sanções previstas e sua aplicação pelo órgão regulador – a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), bem como pelos Tribunais, eis que das decisões administrativas cabe recurso ao Poder Judiciário, nos termos do inciso XXXV do art. 5º da Constituição Federal de 1988. [1] O trabalho inicia-se com a análise dos efeitos da adulteração de combustíveis para o consumidor, as formas usuais de adulteração e as condutas proativas que o consumidor pode tomar como precaução, além de expor como se dá a regulação desse mercado pela ANP. Passa-se, em seguida, ao exame da Lei nº 9.847/99, das atividades que compõem o Sistema Nacional de Combustíveis, a atuação da ANP, prerrogativas de seus agentes no exercício da atividade fiscalizadora, as infrações administrativas previstas, com destaque para aquelas relacionadas à adulteração de combustíveis e o processo administrativo para apuração de infração e eventual aplicação das sanções cominadas. A terceira parte é consagrada às sanções civis e criminais impostas aos fornecedores e transportadores de petróleo, gás natural, seus derivados e biocombustíveis pelos vícios de qualidade ou quantidade, inclusive aqueles decorrentes da disparidade com as indicações constantes do recipiente, da embalagem ou rotulagem, que os tornem impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam ou lhes diminuam o valor. Neste ponto, torna-se imperativo associar a responsabilidade objetiva prevista na Lei nº 9.478/97 ao Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90) e os princípios do direito do consumidor aplicáveis, bem como ilustrar a exposição com julgados pertinentes onde foi aplicada a “teoria menor” da desconsideração da personalidade jurídica. Para a efetivação da reparação dos danos causados ao Sistema Nacional de Combustíveis podem ser responsabilizados tanto as pessoas jurídicas como também as pessoas físicas, autoras, co-autoras ou participantes do fato e os sócios das pessoas jurídicas. Aliás, a prática demonstra que, na maioria das vezes, os responsáveis/denunciados são pessoas vinculadas a sociedades 373

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empresárias, seja na condição de sócio, administrador ou gerente. Por fim, examinam-se aspectos ligados à responsabilidade penal, em manifestações do STJ, tais como: a competência para julgar os crimes de adulteração de combustíveis e sua comercialização; a necessidade de individualização da conduta praticada por cada corréu; a desnecessidade de exaurimento da instância administrativa (processo administrativo junto a ANP) para o oferecimento da denúncia. 1. REGULAÇÃO DO MERCADO DE COMBUSTÍVEIS, A ADULTERAÇÃO E A PROTEÇÃO DOS INTERESSES DO CONSUMIDOR A Lei nº 9.478/97 (Lei do Petróleo), ao indicar os objetivos da política energética nacional, inclui entre eles a proteção dos interesses do consumidor quanto a preço, qualidade e oferta dos produtos (art. 1º, III) [2]. Tal orientação não é casual, haja vista ser a defesa do consumidor um dos princípios da Ordem Econômica Constitucional (art.170, V, CF), fundada também na livre iniciativa, sendo dever do Estado promover uma política de valorização do consumidor, reconhecendo sua vulnerabilidade e possibilitando o reconhecimento de direitos fundamentais (art. 5º, XXXII, CF). A má qualidade dos combustíveis acarreta várias conseqüências, todas negativas para o consumidor e para o empresário enganado por distribuidores, mas vantajosas para os autores da adulteração [3]. De plano, o veículo é a principal “vítima” da prática ilícita e criminosa. Solavancos na partida, aumento do consumo de combustível por quilômetro rodado, falhas no motor, reduzindo sua vida útil, e queda acentuada no desempenho do veículo levam o motorista, muitas vezes, a presumir que o produto ou determinada peça é defeituoso ou de má qualidade, quando, na verdade, podem ser indícios de que o combustível não é puro ou foi adulterado. Descoberta a raiz do problema, a adulteração pode ter danificado peças ou filtros em tal gravidade que será necessário substituí-los, com gastos adicionais e imprevistos [4]. A distribuição e comercialização de combustível em desacordo com as especificações técnicas não afeta apenas o desempenho dos veículos, alcança aspectos também relevantes, como ambientais (aumento da poluição do ar em razão da queima de combustível de má qualidade), concorrenciais (preços inferiores aos de mercado), flagrante violação à boa-fé objetiva contratual, tanto nos termos da oferta quanto no do conteúdo do contrato, até mesmo a segurança e saúde do consumidor. No que tange à saúde e à segurança do consumidor, os artigos 8º e 10 do Código de Defesa do Consumidor (CDC) impõem deveres ao fornecedor, 374

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tanto na fase pré-contratual quanto contratual a informar o consumidor de sua natureza e fruição dos riscos à sua saúde ou segurança, bem como sobre a periculosidade ou nocividade que apresentem. No caso do combustível adulterado, o fornecedor responde por omissão, ou seja, pela não informação ao consumidor dos riscos, especialmente à segurança do veículo, que pensa estar comprando um produto não defeituoso. O desgaste mais rápido de peças, exigindo sua substituição, pode vir a causar acidentes. O consumidor tem o direito de escolher o produto e serviço que está comprando e ser informado claramente o preço, a quantidade, o peso, a composição e a origem, inclusive no instrumento de oferta (art. 31). A venda, por exemplo, de gasolina de tipo diferente do que é anunciado (comum ao invés de superior ou aditivada) é caso típico de publicidade enganosa, proscrita pelo CDC (art.37) em razão de induzir o adquirente em erro quanto à manifestação de sua vontade a respeito da natureza do produto; da mesma forma é enganosa quando o fornecedor omite a verdadeira origem do combustível ou declaração uma procedência diversa da realidade. A regulação da ANP no setor de combustíveis impõe várias obrigações aos empresários que se dedicam: (i) às atividades de revenda [5] varejista de combustível automotivo; (ii) distribuição [6] de combustíveis líquidos derivados de petróleo, álcool combustível, biodiesel, mistura óleo diesel/biodiesel especificada ou autorizada pela ANP e outros combustíveis automotivos; (iii) revenda varejista de combustível automotivo com comercialização de gás natural veicular – GNV (Portarias ANP 116/2000, 29/1999 e 202/1999 e 32/2001, respectivamente). Em decorrência da atuação do empreendedor num mercado regulado como o de combustíveis, o princípio da liberdade de iniciativa para o exercício de atividade econômica, insculpido no parágrafo único do art. 170 da CF [7] sofre limitações, em defesa dos outros princípios da ordem econômica arrolados nos incisos do mesmo artigo, notadamente a função social da propriedade, a defesa do consumidor, do meio ambiente e da livre concorrência. Os mesmos princípios estão contidos na Lei do Petróleo (art. 1º, III, IV e IX), que regulamenta o art. 238 da CF [8] no art.8º, incisos I, XIII e XV, in verbis: Art. 8o A ANP terá como finalidade promover a regulação, a contratação e a fiscalização das atividades econômicas integrantes da indústria do petróleo, do gás natural e dos biocombustíveis, cabendo-lhe: I - implementar, em sua esfera de atribuições, a política nacional de petróleo, gás natural e biocombustíveis, contida na política energética nacional, nos termos do Capítulo I desta Lei, com ênfase na garantia do suprimento de derivados de petróleo, gás natural e seus derivados, 375

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e de biocombustíveis, em todo o território nacional, e na proteção dos interesses dos consumidores quanto a preço, qualidade e oferta dos produtos;  [...]    XV - regular e autorizar as atividades relacionadas com o abastecimento nacional de combustíveis, fiscalizando-as diretamente ou mediante convênios com outros órgãos da União, Estados, Distrito Federal ou Municípios. [grifos nossos] Com o fito de demonstrar o impacto da regulação na constituição da sociedade empresária, instalação e funcionamento do estabelecimento empresarial, bem como a importância que a proteção do consumidor e a preocupação com a qualidade do combustível têm na regulação da ANP, faz-se mister citar algumas determinações contidas na Portaria ANP nº 116/2000 – regulamenta o exercício da atividade de revenda varejista de combustível automotivo [9]. Preliminarmente, entende-se por atividade de revenda varejista a comercialização de combustível automotivo em estabelecimento denominado posto revendedor. Embora o local seja destinado à sua atividade precípua, o empresário pode desenvolver outras atividades comerciais e de prestação de serviços no local, sem prejuízo da segurança, saúde, meio ambiente e do bom desempenho da atividade. O distribuidor de combustíveis não pode exercer a atividade de revenda varejista, salvo quando o posto revendedor se destinar ao treinamento de pessoal, com vistas à melhoria da qualidade do atendimento aos consumidores. A autorização da ANP para exploração da empresa somente pode ser concedida à sociedade brasileira (art. 1.126 do Código Civil) que possua, em caráter permanente, registro de revendedor varejista expedido pela ANP e disponha de posto revendedor com tancagem para armazenamento e equipamento medidor de combustível automotivo.  O pedido de registro deverá ser instruído, entre outros documentos, com cópia autenticada do estatuto ou do contrato social, que especifique a atividade de revenda varejista de combustível automotivo, arquivado na Junta Comercial e, quando alterado, com todas as alterações posteriores ou a mais recente consolidação. Deferido o registro, antes do início da atividade, deverá ocorrer a publicação no Diário Oficial da União. O registro de revendedor varejista não será concedido à sociedade empresária que tenha em seu quadro administrador ou sócio que, nos cinco anos anteriores à data do pedido de registro, tenha sido administrador de sociedade que não tenha liquidado débitos e cumprido obrigações decorrentes do exercício de atividade regulamentada pela ANP. 376

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No tocante à qualidade do combustível automotivo adquirido e negociado, o revendedor varejista deverá informar ao consumidor, de forma clara e ostensiva, a origem do combustível automotivo comercializado, e somente poderá adquiri-lo de sociedade que possua registro de distribuidor conferido pela ANP e autorização para o exercício de uma das atividades descritas no art. 8º da Portaria. Ademais, é vedado ao varejista: a) alienar, emprestar ou permutar, sob qualquer pretexto ou justificativa, combustível automotivo com outro revendedor varejista, ainda que o estabelecimento pertença à mesma sociedade; b) condicionar a revenda de combustível automotivo ou a prestação de serviço ao consumidor à revenda de outro combustível automotivo ou à prestação de outro serviço (trata-se de venda casada, proscrita pelo inciso I do art. 39 do CDC); c) estabelecer limites quantitativos para revenda de combustível automotivo ao consumidor (prática comercial abusiva, conforme art. 39, I do CDC); d) misturar qualquer produto ao combustível automotivo. No rol das obrigações impostas ao varejista (art. 10) verifica-se o pleno atendimento ao princípio da defesa do consumidor e do objetivo descrito no art. 1º, III da Lei do Petróleo, notadamente os princípios da informação e da boa-fé objetiva, tanto na fase pré quanto na contratual [10]. As distribuidoras de combustíveis também devem adotar ações compatíveis com a proteção do consumidor e em prol da qualidade do combustível. Conforme o art. 20 da Portaria ANP 29/1999, destacam-se as seguintes obrigações: I - solicitar ao fornecedor autorizado atestado de qualidade do produto no ato da sua aquisição; II - fornecer combustíveis automotivos aditivados ao preço dos similares não aditivados, na falta eventual deste produto; III - garantir a qualidade e a quantidade dos combustíveis, quando transportados sob sua responsabilidade ou quando armazenados em instalações próprias ou de terceiros; IV - observar e respeitar as normas que regem a ordem econômica, o controle do meio ambiente e a segurança do consumidor. De acordo com a Federação Nacional do Comércio de Combustíveis e de Lubrificantes (FECOMBUSTÍVEIS), as formas usuais de adulteração e seus efeitos para o consumidor são [11]: a) álcool molhado: é o álcool anidro (álcool com até 1% de água) misturado à água e vendido com álcool hidratado, próprio para consumo de veículos. O consumidor é prejudicado porque a água misturada ao álcool contém sais minerais que provocam danos ao motor. b) gasolina com teor alcoólico acima do especificado pelo governo federal: se o teor de álcool na gasolina estiver em desacordo com o estabelecido, o combustível é irregular [12]. O adulterador acrescenta mais álcool à mistura e ganha no preço, porque o álcool é mais barato que a gasolina; o consumidor perde em rendimento do combustível e paga por uma gasolina mais cara. 377

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c) gasolina misturada com solvente: se a gasolina possui mais solventes do permitido, está adulterada. Ao misturar solvente à gasolina, por ser aquele mais barato, o adulterador melhora a rentabilidade do negócio em até 10%. d) gasolina misturada com óleo diesel: a tributação do o óleo diesel é menor do que a da gasolina e, por conseguinte, o produto final é mais barato. Com a mistura de óleo à gasolina o motor do veículo é prejudicado, porque ele é mais pesado e sua queima não é completa. e) combustível comum vendido como se fosse aditivado: o combustível aditivado é mais caro porque garante a limpeza do sistema de combustível do veículo. O consumidor é enganado quanto à qualidade do produto adquirido. f) óleo diesel misturado com óleo vegetal: óleo vegetal não é biodiesel, que deve passar por um processo químico chamado transificação para que seja próprio para o uso nos motores de veículos. Os motores de diesel não são preparados para funcionar com óleo vegetal e em curto prazo danos ao motor serão ocasionados. O consumidor, por sua vez, pode se precaver de danos potenciais ao não confiar em preços muito baixos do combustível, ainda que disfarçados por “mega promoções”. Trata-se de um forte indício de procedência duvidosa do produto ou qualidade inferior, além de suspeita de sonegação. Pedir nota fiscal é uma prova importante em eventual demanda judicial, já que é uma prova documental do vínculo jurídico que se estabeleceu no ato da compra e identifica inequivocamente o vendedor. Abastecer o veículo no mesmo estabelecimento, sempre que possível e ter as notas fiscais é outra atitude positivo em caso de contestação por parte do vendedor da conformidade do combustível comercializado. Os desembargadores da Oitava Câmara do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo negaram provimento ao recurso de apelação interposto por consumidor contra a sentença que julgou improcedente seu pedido indenizatório, em razão de danos causados ao motor pela adição de água ao combustível. No mérito, entenderam os julgadores que não restou comprovado que a apelante abastecia seu veículo sempre no mesmo local; ademais não havia prova da adulteração do combustível vendido. Como o fornecedor – a quem cabia o ônus da prova – atestou a excelência do combustível vendido, conforme ofício da fornecedora, que exerce rigoroso controle sobre seus produtos, não foi possível inferir que os danos causados possam ser atribuídos ao vendedor, até mesmo porque seus tanques de combustíveis eram operados eletronicamente e abertos somente quando a fornecedora entregava o produto [13]. 2. O SISTEMA NACIONAL DE COMBUSTÍVEIS E AS INFRAÇÕES ADMINISTRATIVAS A normatização do abastecimento nacional de petróleo ocorreu em 1938, com a edição do Decreto-Lei nº 395, regulamentado pelo Decreto nº 4.071/1939. O 378

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primeiro diploma declarou de utilidade pública o abastecimento nacional de petróleo, compreendendo as atividades de produção, importação, transporte, distribuição e o comércio de petróleo bruto e seus derivados, e a refinação de petróleo importado ou de produção nacional, qualquer que seja a sua fonte de extração. Somente o Governo Federal poderia autorizar, regular e controlar a importação, a exportação, o transporte, inclusive a construção de oleodutos, a distribuição e o comércio de petróleo e seus derivados; autorizar a instalação de quaisquer refinarias ou depósitos; estabelecer os limites, máximo e mínimo, dos preços de venda dos produtos refinados – importados em estado final ou elaborado no país – tendo em vista, tanto quanto possível, a sua uniformidade em todo o território nacional. O Decreto-Lei, editado sob a égide do Estado Novo, deixa claro seu caráter nacionalista, determinando a nacionalização da indústria de refinação do petróleo importado ou de produção nacional, mediante a organização das respectivas sociedades com capital social constituído exclusivamente por brasileiros natos, em ações ordinárias, nominativas; direção e gerência confiadas exclusivamente a brasileiros natos, com participação obrigatória de empregados brasileiros. O órgão mais importante do sistema era o Conselho Nacional do Petróleo (CNP), constituído de brasileiros natos, designados pelo Presidente da República, representando vários ministérios (Guerra, Marinha, Fazenda, Agricultura, Viação e Obras Públicas, Trabalho, Indústria e Comércio), assim como as organizações de classe da indústria e do comércio. O Conselho era subordinado diretamente ao Presidente da República e suas atribuições foram fixadas pelo art. 10 do Decreto-Lei nº 538/1938. Dentre elas destacam-se: “a) autorizar, regular e controlar a importação, a exportação, o transporte, inclusive a construção de oleodutos, a distribuição e o comércio de petróleo e seus derivados no território nacional; [...] f) autorizar e fiscalizar as operações financeiras das empresas constituídas, ou que se constituírem, para a exploração da indústria da refinação do petróleo, importado ou de produção nacional, qualquer que seja, neste caso a sua fonte de extração; [...] i) organizar e manter um serviço estatístico de todas as operações relativas ao abastecimento nacional do petróleo, inclusive dos preços de venda do petróleo bruto e seus derivados no território nacional;” [14]. Em 1990, o Decreto nº 99.244 reorganizou os órgãos da Presidência da República e dos Ministérios, criando o Ministério da Infra-Estrutura. Na estrutura desse Ministério foi criada a Secretaria Nacional de Energia e, em sua composição, o Departamento Nacional de Combustíveis (DNC). Como as atribuições conferidas ao DNC absorveram as do CNP (art. 222), esse órgão deixou de existir. A partir de então, o DNC passou a superintender, autorizar e 379

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fiscalizar o abastecimento nacional de petróleo, óleo de xisto e seus respectivos derivados; gás natural e suas frações recuperáveis. Em 1997, a Lei nº 9.478 criou em seu art. 7º a ANP, que somente foi organizada com a edição do Decreto nº 2.455, de 14 de janeiro de 1998. Conforme o art. 14, a ANP regulará as atividades da indústria do petróleo e a distribuição e revenda de derivados de petróleo e álcool combustível, no sentido de preservar o interesse nacional, estimular a livre concorrência e a apropriação justa dos benefícios auferidos pelos agentes econômicos do setor, pela sociedade, pelos consumidores e usuários de bens e serviços da indústria do petróleo. Com o início das atividades da autarquia, foram-lhe transferidos o acervo técnico e patrimonial, as obrigações, os direitos e as receitas do DNC (art. 25). A ANP é a responsável pela implementação da Política Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis, tendo em vista, dentre outros fins, a proteção dos interesses dos consumidores quanto a preço, qualidade e oferta dos produtos (art. 8º, I). Ademais, cabe à Agência regular e autorizar as atividades relacionadas à produção, importação, exportação, armazenagem, estocagem, transporte, transferência, distribuição, revenda e comercialização de biocombustíveis, assim como avaliação de conformidade e certificação de sua qualidade, fiscalizando-as diretamente ou mediante convênios com outros órgãos da União, Estados, Distrito Federal ou Municípios (art. 8º, XVI, com redação dada pela Medida Provisória nº 532, de 28 de abril de 2011). Dando concretude a esta diretriz, a Lei nº 9.847/99, fruto de conversão da Medida Provisória nº 1.883-17/99 (originária MP nº 1.670/98), dispõe sobre a fiscalização das atividades relativas ao abastecimento nacional de combustíveis, estabelecendo sanções administrativas [15] aos infratores, sem prejuízo das sanções de natureza civil e penal em caso de descumprimento de suas disposições. Contém, ademais, normas pertinentes ao exercício de atividades relativas à indústria do petróleo, ao abastecimento nacional de combustíveis, ao Sistema Nacional de Estoques de Combustíveis e ao Plano Anual de Estoques Estratégicos de Combustíveis. O Sistema Nacional de Combustíveis é atividade de utilidade pública, abrangendo as atividades de produção, importação, exportação, transporte, transferência, armazenagem, estocagem, distribuição, revenda e comercialização de biocombustíveis, assim como avaliação de conformidade e certificação de sua qualidade (art. 1º, § 1º, II, com a redação dada pela Medida Provisória nº 532/2011). De acordo com o § 3o do art. 1º, alterado pela Medida Provisória nº 532, de 28 de abril de 2011, a regulação e a fiscalização por parte da ANP abrangem também as atividades de produção, armazenagem, estocagem, comercialização, distribuição, revenda, importação e exportação de produtos que possam 380

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ser usados, direta ou indiretamente, para adulterar ou alterar a qualidade de combustíveis. [16] Não teria êxito a ação da autarquia se seus agentes não tivessem as necessárias prerrogativas no exercício da atividade fiscalizadora [17]. Nesse sentido, os servidores (inclusive dos órgãos conveniados) estão autorizados a emitir autos de infração, instaurar processos administrativos, a interditar, total ou parcialmente, instalações e equipamentos (como aposição de lacre em bombas de abastecimento), bem como apreender bens e produtos (arts. 5º e 12 da Lei nº 9.847/99). Independentemente da atuação dos agentes da ANP, qualquer pessoa, constatando infração às normas relativas à indústria do petróleo, ao abastecimento nacional de combustíveis, ao Sistema Nacional de Estoques de Combustíveis e ao Plano Anual de Estoques Estratégicos de Combustíveis, poderá dirigir representação à Agência, conclamando-a ao exercício do seu poder de polícia. A ANP deve ser comunicada, em até 24 horas, pelo agente responsável pela fiscalização se for interditado algum estabelecimento ou equipamento, bem como em caso de apreensão de bens e produtos, sob pena de responsabilidade funcional, encaminhando-lhe cópia do auto de infração e, se houver, da documentação que o instrui. A interdição ou apreensão, por ser medida temporária, pode ser levantada, uma vez cessadas as causas que a determinaram (§ 2º do art. 5º). As penas de apreensão de bens e produtos, de perdimento de produtos apreendidos, de suspensão de fornecimento de produtos e de cancelamento do registro do produto serão aplicadas, conforme o caso, quando forem constatados vícios de quantidade ou de qualidade por inadequação ou falta de segurança do produto. Para este fim são de suma importância as normas técnicas baixadas pela Agência em vários atos administrativos [18]. Tratando-se de produtos fora das especificações, com vício de qualidade ou quantidade, suscetíveis de reaproveitamento, total ou parcial, a ANP notificará o autuado ou o fornecedor para proceder à sua retirada para reprocessamento ou decantação, cujas despesas e eventuais ressarcimentos por perdas e danos serão suportados por aquele que, no julgamento definitivo do respectivo processo administrativo, for responsabilizado pela infração cometida. Após o recebimento do auto de infração, será instaurado processo administrativo, que deverá conter os elementos suficientes para determinar a natureza da infração, a individualização e a gradação da penalidade, assegurado o direito de ampla defesa e o contraditório (art. 13). Caso seja comprovada a importação, exportação, comercialização de petróleo, gás natural, seus derivados e biocombustíveis fora de especificações técnicas, com vícios de qualidade ou quantidade, inclusive aqueles decorrentes da disparidade com as indicações constantes do recipiente, da embalagem ou 381

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rotulagem, que os tornem impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam ou lhes diminuam o valor (infração prevista no inciso XI do art. 3º da Lei nº 9.847/99), após a decisão definitiva proferida no processo administrativo, a autoridade competente da ANP, sob pena de responsabilidade, encaminhará ao Ministério Público cópia integral dos autos, para a investigação criminal e eventual oferecimento de denúncia. 3. RESPONSABILIDADE CIVIL E CRIMINAL DOS INFRATORES E SÓCIOS Em relação às sanções civis impostas aos fornecedores e transportadores de petróleo, gás natural, seus derivados e biocombustíveis pelos vícios de qualidade ou quantidade que os tornem impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam ou lhes diminuam o valor, torna-se imperativo associar a responsabilidade objetiva prevista na Lei nº 9.478/97 ao Código de Defesa do Consumidor. O fornecedor de combustível adulterado (vendedor ou distribuidor) é responsabilizado pelo “vício do produto”, expressão utilizada no art. 18 do CDC para identificar os vícios de qualidade ou quantidade que o torne impróprio ou inadequado ao consumo a que se destina, bem como lhes diminua o valor, “assim como por aqueles decorrentes da disparidade, com as indicações constantes do recipiente, da embalagem, rotulagem ou mensagem publicitária” (quase sempre o combustível adulterado é de qualidade inferior ou não guarda relação com a indicação do rótulo ou de alguma mensagem publicitária). No mesmo artigo, o § 6º, inciso II, complementa o caput, dispondo que os produtos adulterados são considerados impróprios ao consumo. A responsabilidade civil de que trata o art. 18 é solidária, portanto, distribuidor e revendedor podem ser demandados conjuntamente, e, em razão do art. 23, objetiva, eis que “a ignorância do fornecedor sobre os vícios de qualidade por inadequação dos produtos e serviços não o exime de responsabilidade”. Ao lado da ação individual, movida pelo consumidor, o Ministério Público poderá pleitear a indenização dos fornecedores por meio da ação civil pública, nos termos das Leis nº 7.347/1985 (arts. 1º, II e 5º, I) e 8.078/1990 (art. 81 e 82, I). Sobre o tema decidiu a Sétima Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro que Os estabelecimentos que comercializam combustíveis adulterados possuem legitimidade para figurar no pólo passivo da ação civil pública. É dever dos fornecedores do produto disponibilizar no mercado produtos que observem as normas estabelecidas pelo órgão regulador. A Lei nº 7347/85 prevê a possibilidade de ação civil pública de responsabilidade por danos morais e materiais, sendo admissível seu ressarcimento 382

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coletivo. Desprovimento do primeiro e terceiro recursos e provimento do segundo. [19] Os sócios da sociedade empresária fornecedora podem ser responsabilizados pelos danos decorrentes da adulteração, com fundamento na responsabilidade extracontratual (art. 186 do Código Civil), devidamente comprovada sua participação, como decidiu a Décima Segunda Câmara do 1º Tribunal de Alçada Cível do Estado de São Paulo [20]: [...] 2. A responsabilidade atribuída à empresa ré é de natureza contratual. Assim, não há dúvida quanto sua legitimidade passiva. Os demais coréus não foram incluídos no pólo passivo em razão de serem sócios da primeira ré, mas sim por lhes ser atribuída responsabilidade de natureza extracontratual, própria, pessoal, consistente em promover adulteração com utilização de produtos químicos no combustível transportado. A responsabilidade civil independe da criminal e a inexistência de investigação dos fatos pela Polícia não obsta o ajuizamento da ação. Ademais, independentemente da incidência do CDC à relação contratual, o Código Civil estabelece a responsabilidade objetiva dos empresários e sociedades empresárias pelos danos ocasionados pelos produtos postos em circulação (art. 931). Para a efetivação da reparação dos danos causados ao Sistema Nacional de Combustíveis podem ser responsabilizados tanto as pessoas jurídicas como também as pessoas físicas, autoras, co-autoras ou participantes do fato e os sócios das pessoas jurídicas. O art. 18 da Lei nº 9.847/99, na linha do mesmo artigo do CDC, impõe a solidariedade entre os fornecedores e transportadores de petróleo e seus derivados, de gás natural e condensado, bem como de álcool etílico combustível, pelos vícios de qualidade ou quantidade, decorrentes da disparidade com as indicações constantes do recipiente da embalagem ou rotulagem, que os tornem impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam ou lhes diminuam o valor. A responsabilidade das pessoas jurídicas não exclui a das pessoas naturais, autoras, co-autoras ou partícipes do mesmo fato (§ 2º). Dentre as medidas previstas na Lei nº 9.847/99 para garantir o ressarcimento aos danos causados ao abastecimento nacional de combustíveis, ou ao sistema nacional de estoques de combustíveis, encontra-se a desconsideração da personalidade jurídica. Não se pode olvidar que o Sistema Nacional de Combustíveis é considerado atividade de utilidade pública (art. 1º, § 1º); por conseguinte, há um interesse especial do legislador em garantir a efetividade 383

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na aplicação das sanções previstas e a personalidade jurídica das sociedades envolvidas na indústria do petróleo não pode representar um freio à eficácia da norma, deixando impune o sócio que se locupleta através da autonomia subjetiva e objetiva da pessoa jurídica. O § 3º do art. 18 permite ao juiz aplicar o instituto quando verificar, no caso concreto, que a personalidade jurídica da sociedade é um obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados pela conduta da pessoa jurídica perpetrada por seus sócios ou administradores. A redação do dispositivo segue a orientação inaugurada pelo Código de Defesa do Consumidor (art. 28, § 5º), reproduzida na lei ambiental (Lei nº 9.605/98, art. 4º), ou seja, não enumera hipóteses de incidência da desconsideração, apenas enuncia a aplicação da medida em caráter subsidiário, quando o lesado não encontrar o ressarcimento pleno no patrimônio do lesante – a pessoa jurídica. Pela orientação legislativa, seriam pressupostos para a desconsideração a existência da pessoa jurídica, o dano sofrido e a presunção de insolvência do infrator, sendo os sócios chamados a responder, subsidiariamente, pela reparação não integralmente efetivada. O fundamento para a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no Brasil sempre trouxe controvérsias, tanto na doutrina quanto na jurisprudência. O fato de o art. 28 do CDC trazer causas diversas para a aplicação da medida judicial, isto é, no caput indicar comportamentos ilícitos dos sócios ou administradores, revelando o critério subjetivo na aferição do abuso da personalidade jurídica, e no § 5º simplesmente indicar que qualquer obstáculo ao ressarcimento devido à autonomia objetiva da pessoa jurídica enseja a desconsideração. Ressalte-se que diplomas posteriores, ao tratar do mesmo instituto, como as Leis nº 8.884/94, 9.605/98, 9.847/99, ou o Código Civil (art. 50), não adotaram critérios diferenciados. Para subsidiar o entendimento firmado pelo STJ em 2003, quando foi instado a se pronunciar sobre qual das duas “teorias” ou fundamentos seria aplicado na relação de consumo, cabe discorrer brevemente sobre as opiniões acerca do § 5º do art. 28 do CDC. A amplitude da aplicação da desconsideração da personalidade jurídica (“sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo”) deixa clara a intenção do legislador de proteger direitos básicos do consumidor, notadamente a efetiva reparação de anos materiais e morais (art. 6º, VI). No entanto, diante das limitações contidas no caput (abuso do direito, ato ilícito, violação ao contrato, etc), divergiram os doutrinadores sobre a possibilidade de conciliar o caput com o parágrafo. Na linha da possibilidade de conciliação, Domingos Afonso Krieger Filho [21], sustenta que o parágrafo será aplicado sempre que houver lesão ao consumidor e o patrimônio do fornecedor for insuficiente, desde que haja nexo 384

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causal entre a conduta e o dano. Assim, o parágrafo complementaria o caput, trazendo novas possibilidades para a desconsideração. No mesmo sentido, porém de forma restritiva, Fabio Ulhôa Coelho prevê sua aplicação apenas no sentido de sanções de caráter não pecuniário a que se encontra sujeito o fornecedor, que se utiliza da autonomia subjetiva para se furtar ao cumprimento de uma obrigação legal [22]. Pela aplicação exclusiva do caput pugna Rachel Sztajn, sustentando que a interpretação literal do § 5º implicaria na derrogação do caput e do princípio da autonomia da pessoa jurídica [23]. No mesmo sentido, Regis Fichtner Pereira expõe: O tratamento, portanto, dado à desconsideração da personalidade jurídica no Código do Consumidor, na hipótese de se interpretar a norma na sua literalidade, na verdade aniquilaria toda a teoria formada sobre este tema, uma vez que de fato somente se pode falar em desconsideração da personalidade jurídica, se se reconhecer a existência de uma personalidade a ser desconsiderada. O Código de Defesa do Consumidor, na sua expressão literal, simplesmente ignora o princípio da separação de patrimônios, ao preceituar que o patrimônio do sócio poderá ser atingido sempre que o credor não puder receber seu crédito da pessoa jurídica.[24] No estudo realizado sobre o tema [25], chegou-se à constatação que o § 5º do art. 28 faz sentido na sistemática do CDC (proteção dos interesses do consumidor que teve direitos básicos violados ou não atendidos) e de leis que visam à proteção especial de interesses tutelados pela própria Constituição Federal, como a defesa do meio ambiente e a livre concorrência. Tais princípios, conjugados, podem ser invocados para justificar o fundamento objetivo adotado pelo § 3º do art. 18 da Lei nº 9.847/99, inclusive se for considerada que ela visa atender aos objetivos da Política Energética Nacional, sendo uma complementação da Lei do Petróleo, onde tais princípios estão expressamente indicados. A questão principal a ser considerada na análise de todos os artigos de leis que apresentam a desconsideração sob forma de “obstáculo ao ressarcimento”, é que não se trata de desconsideração da personalidade jurídica, e sim de responsabilidade subsidiária de sócio, de modo objetivo e solidário. Há, portanto, uma designação equivocada sob o nomen juris “desconsideração da personalidade jurídica” de um outro instituto pertinente ao direito societário. “Obstáculo” refere-se à incapacidade patrimonial de a pessoa jurídica arcar com o prejuízo em razão de fatos internos ou externos a ela (v.g. má administração, gestão fraudulenta, recessão econômica, falta de crédito, etc), 385

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conduzindo a uma situação de insolvência econômica. Ademais, embora não tenha servido de inspiração ao legislador brasileiro, há semelhança entre o texto do § 5º do art. 28 com o art. 998 do Código Civil português vigente (DecretoLei nº 47 344 de 25-11-1966), in verbis: Artigo 998º - (Responsabilidade por factos ilícitos)



1. A sociedade responde civilmente pelos actos ou omissões dos seus representantes, agentes ou mandatários, nos mesmos termos em que os comitentes respondem pelos actos ou omissões dos seus comissários. 2. Não podendo o lesado ressarcir-se completamente, nem pelos bens da sociedade, nem pelo património do representante, agente ou mandatário, ser-lhe-á lícito exigir dos sócios o que faltar, nos mesmos termos em que o poderia fazer qualquer credor social. [grifos nossos]

Tanto o Código de Defesa do Consumidor quanto o Código Civil português estabelecem um benefício de ordem para os sócios. Ocorre que o Código português responsabiliza a sociedade perante o lesado, equiparando-o a qualquer credor, e, subsidiariamente os sócios, mas tendo como premissa atos ilícitos praticados por seus representantes em sentido lato (inclusive agentes e mandatários). No § 5º do art. 28, a regra é muito mais abrangente, eis que não é necessária a prova do ato ilícito, obviamente partindo-se do fato de que os requisitos do caput não seriam exigíveis para a aplicação da desconsideração e, portanto, os sócios respondem independentemente de culpa pela reparação civil. A contrario sensu, não seria exigido dos sócios nenhuma prestação se a pessoa jurídica puder efetuar o pagamento integral, mesmo que tenha sido verificado o abuso de sua personalidade por parte de um integrante. Conclui-se, em apertada síntese, que as responsabilidades solidária e subsidiária não se confundem com a desconsideração, pois enquanto esta altera a sujeição passiva do devedor perante o credor, aquelas a ampliam, reconhecendo seu caráter de co-responsabilidade (solidariedade) ou acessoriedade (benefício de ordem). Desta forma, pela sua generalidade e dissonância dos reais objetivos da desconsideração, isto é, coibir o abuso da personalidade jurídica perpetrado pelo sócio, tendo como premissa o inafastável elemento subjetivo, o § 5º do art. 28 está em descompasso com a disregard doctrine, ainda que possa ser utilizado como norma em favor do consumidor ou de outros interesses tutelados em leis especiais. Em 4 de dezembro de 2003, a Terceira Turma do STJ, no julgamento do Recurso Especial nº 279273/SP, por maioria, vencidos os Ministros Ari Pargendler e Carlos Alberto Menezes Direito, posicionou-se pela aplicação às 386

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relações de consumo da “teoria menor” da desconsideração, segundo a qual não é necessário ficar comprovado o abuso da personalidade jurídica pelos sócios para a efetivação da medida. O relator originário, Ministro Ari Pargendler, não concordou com o fundamento adotado pelo voto condutor no julgamento da apelação pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que admitiu ter o § 5º do artigo 28 do CDC criado nova hipótese ensejadora da desconsideração, tornando sua aplicação francamente objetiva (qualquer forma de obstáculo ao ressarcimento), independentemente de atuação culposa por parte dos administradores. Apoiado em Pontes de Miranda, ao discorrer sobre a autonomia da pessoa jurídica, em seu voto o Ministro reafirmou a existência de patrimônios distintos e, corroborando as opiniões de Cândido Dinamarco e Waldirio Bulgarelli [26], concluiu que, sem a presença de uma das circunstâncias do caput, o suporte fático para a desconsideração não se completa, portanto, não incide a aludida norma jurídica, sendo desinfluente o § 5º determinar que a desconsideração possa ser mero efeito da necessidade de ressarcir os prejuízos causados aos consumidores. Ademais, acrescentou, “na técnica de interpretação, o parágrafo não tem autonomia, subordinando-se aos limites do caput”. Em seu voto, a Ministra Nancy Andrighi, relatora para o acórdão, discordou do entendimento do Ministro Ari Pargendler sobre a subordinação do § 5º aos requisitos do caput do art. 28, destacando que a “teoria maior” da desconsideração. é a regra geral no sistema jurídico brasileiro e, segundo seu postulado, não pode ser utilizada a desconsideração com a mera demonstração de estar a pessoa jurídica inadimplente para o cumprimento de suas obrigações. Exige-se, para além desta prova, ou a demonstração de desvio de finalidade ou a confusão patrimonial, nos termos do art. 50 do Código Civil. Sem embargo, a teoria menor da desconsideração foi acolhida em no ordenamento jurídico pátrio no Direito do Consumidor e no Direito Ambiental, incidindo com a mera prova de insolvência da pessoa jurídica para o pagamento de suas obrigações, independentemente da existência de desvio de finalidade ou de confusão patrimonial. [27] Os demais Ministros da Terceira Turma, à exceção de Carlos Alberto Menezes Direito, acompanharam o entendimento da Ministra e, por conseguinte, firmou-se a interpretação de que o § 5º tem exegese autônoma em relação ao caput. Assim, o terceiro que contratou com a pessoa jurídica não suportará o risco empresarial decorrente do exercício da empresa, cabendo aos sócios e/ou administradores assumi-lo, “ainda que estes demonstrem conduta administrativa 387

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proba, isto é, mesmo que não exista qualquer prova capaz de identificar conduta culposa ou dolosa por parte dos sócios e/ou administradores da pessoa jurídica”, como consignado na ementa do acórdão. Como a redação do § 3º do art. 18 da Lei nº 9.847/99 é a mesma do § 5º do art. 28 do CDC, por analogia, a referência ao “Direito do Consumidor” e “Direito Ambiental” na ementa não é exaustiva, sendo a teoria menor também aplicável aos danos causados ao abastecimento de combustíveis. A adulteração de combustíveis também acarreta sanções criminais aos responsáveis, autores ou participantes dos atos delituosos, comumente sócios ou administradores de sociedades que exploram atividades como postos de gasolina ou de transporte de combustíveis e derivados. No exame da responsabilidade penal apresenta-se a sanção prevista no art. 1º, inciso I, da Lei nº 8.176/91 (detenção de 1 a 5 anos), que considera crime contra a ordem econômica adquirir, distribuir e revender derivados de petróleo, gás natural e suas frações recuperáveis, álcool etílico, hidratado carburante e demais combustíveis líquidos carburantes, em desacordo com as normas legais. Trata-se de norma penal que deve ser analisada, para fins de incidência do delito, à luz das disposições da legislação especial, inclusive os atos administrativos da ANP no uso de sua competência (art. 8º, I da Lei nº 9.478/97). Em relação à competência da Justiça Estadual para o julgamento do crime de adulteração de combustíveis, o art. 2º da Lei nº 8.176/91 [28] provocou interpretações divergentes sobre eventual interesse da União no feito, atraindo a competência da Justiça Federal, tal como relatado pelo Ministro Jorge Mussi, no Conflito de Competência (CC) nº 95591/MG, julgado em 2010 pela Terceira Seção do STJ. O Juízo Federal da 9ª Vara Criminal da Seção Judiciária do Estado de Minas Gerais, acolhendo a manifestação do Parquet Federal, suscitou conflito negativo de competência, sendo suscitado o Juízo de Direito da 2º Vara Criminal de Barbacena/MG. Concluído o inquérito policial, o Ministério Público do Estado de Minas Gerais ofereceu denúncia contra quatro pessoas pela suposta prática dos crimes de comercialização de combustível adulterado e exploração de matéria-prima sem autorização legal (art. 2º da Lei nº 8.176/91) e quadrilha (art. 288 do Código Penal). O Juízo de Direito da 2ª Vara Criminal de Barbacena, de imediato, remeteu os autos à Justiça Federal, asseverando tratar-se de matéria do interesse da União, [pois entendeu que havia crime contra o patrimônio desta, na modalidade de usurpação].[29] No voto do relator ficou consignado que “O fato ora apurado (comercialização de combustível adulterado e exploração de matéria-prima 388

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sem autorização legal), por si só, não apresenta qualquer lesão a bens, serviços ou interesses da União [...]”. Em razão da ausência de prejuízo evidenciado no processo a entidade federal, também “não há falar em competência da Justiça Federal em decorrência da fiscalização pela Agência Nacional de Petróleo-ANP”. O cotejo de vários julgados do STJ no mesmo sentido permite apontar os seguintes fundamentos para a fixação de competência da Justiça Estadual: a) Súmula 498 do STF: “Compete à Justiça dos Estados, em ambas as instâncias, o processo e o julgamento dos crimes contra a economia popular.” (AgRg no CC 90035/SP, Rel. Ministro Og Fernandes, Terceira Seção, DJe de 13/05/2009); b) “[...] o fato de na Lei n.º 8.176/91, no seu art. 2º, constar referência a bem ou matéria-prima da União, não excepciona em todos os casos o julgamento dos crimes dessa natureza pelo foro federal, tampouco sinaliza para interpretações nesse sentido, [...] devendo-se respeitar, como na espécie, o estrito interesse da comunidade local por onde se perfila a escolha do juiz natural.” (trecho do voto da Ministra Maria Thereza de Assis Moura, relatora do CC 56.804/SP, Terceira Seção, DJ de 9/4/07); c) A Lei n.º 8.137/90 não previu a competência diferenciada para os crimes elencados contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de consumo. Dessa forma, evidencia-se a competência da Justiça Comum Estadual, ex vi do art. 109, inciso VI, da Constituição Federal (CC 42.957/PR, Rel. Ministra Laurita Vaz, Terceira Seção, DJ de 2/8/04) [30]; e d) a possível prática de dumping ou adulteração de combustível deve provocar lesão a bens, serviços ou interesses da União ou de entidades federais, nos termos do art. 109, inciso IV, da Carta Magna. (CC 15.206/RJ, Rel. Ministro Fernando Gonçalves, Terceira Seção, DJ 23/6/97). Dentre os fundamentos apontados pelo STJ, a invocação da Súmula 498 do STF, que em seu verbete menciona os “crimes contra a economia popular”, permite concluir que a condenação transitada em julgado pelo crime de adulteração de combustível impõe ao sujeito passivo, enquanto perdurarem os efeitos da condenação, o impedimento para ser administrador de qualquer sociedade, nos termos do § 1º do art. 1.011 do Código Civil e do § 1º do art. 147 da Lei nº 6.404/76. Aspecto relevante na jurisprudência criminal do STJ é a inclusão na denúncia pelo crime de adulteração de combustíveis de sócios integrantes da sociedade empresária responsável pela infração, apenas pelo fato de comporem os quadros da pessoa jurídica, sem prova indiciária de sua participação. Sobre o tema, decidiu a Sexta Turma do STJ, no julgamento do recurso de habeas corpus (HC) nº 34.364/MG, que “A despeito de não se exigir a 389

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descrição pormenorizada da conduta do agente nos crimes societários, isso não significa que o Parquet possa deixar de estabelecer qualquer vínculo entre o denunciado e o fato a ele imputado.” Em seu voto, o relator, Ministro Hamilton Carvalhido, observou não ser suficiente para a persecução criminal o fato de o paciente ter a condição de sócio da sociedade empresária apontada como infratora, “se não restar comprovado, ainda que com elementos a serem aprofundados no decorrer da instrução criminal, o mínimo vínculo entre as imputações e a sua atuação na qualidade de sócio.” Citando precedente do STF (HC 89.105-5, Segunda Turma, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJU de 06/11/2006), o Ministro entendeu violados os princípios do devido processo legal (CF, art. 5º, LIV), da ampla defesa, do contraditório (CF, art. 5º, LV) e da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III). [31] Por outro lado, a Quinta Turma, no julgamento do Recurso Ordinário em Habeas Corpus (RHC) nº 17591/SP, entendeu que se a denúncia descreve, clara e objetivamente, a conduta do acusado, gerente dos postos de abastecimento envolvidos na prática delitiva, destacando a sua participação no grupo de pessoas que integravam a administração do estabelecimento onde se comercializava gasolina adulterada, não há ilegalidade da prisão. Para restar violado o princípio da ampla defesa deve existir prova inequívoca de que o acusado não exercia função de gerência na sociedade administradora do posto de abastecimento. Na fundamentação de seu voto, a Ministra Laurita Vaz, relatora, observou que “eventual acolhimento da alegação de ausência de elemento material indiciário [o fato de não ser gerente do estabelecimento], apto a justificar a imputação, requer, indubitavelmente, o exame acurado do conjunto fático-probatório, o qual somente poderá ser realizado na instrução criminal, sendo, como é sabido, incabível na via estreita do habeas corpus.” Advertiu também a relatora que não há inépcia da denúncia, pois “nos crimes societários é dispensável a descrição minuciosa e individualizada da conduta de cada acusado, bastando, para tanto, que a exordial narre a conduta delituosa de forma a possibilitar o exercício da ampla defesa.”[32] Em abril de 2009, a Sexta Turma, no julgamento do recurso de habeas corpus (HC) nº 71493/PE [33], afastou a responsabilidade solidária e objetiva, baseada em relatório do órgão fiscalizador, que atribuiu responsabilidade a todos os envolvidos, sem individualizar as condutas de per si. O Ministério Público do Estado de Pernambuco denunciou cinco pessoas pela prática do crime de adulteração (art. 1º da Lei nº 8.176/91), dentre elas ex-presidente de distribuidora de petróleo e derivados. A peça vestibular da ação penal foi feita com supedâneo no laudo emitido pela fiscalização da ANP, onde foram constatadas irregularidades numa amostra de combustível retirada de um posto de bandeira localizado em Recife. A coleta, segundo o 390

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laudo da ANP, mostrou que o ponto de ebulição do combustível era superior ao permitido pela regulamentação, o que prejudicaria a qualidade do produto vendido aos consumidores. Diante da impossibilidade de definir tecnicamente o momento da adulteração do combustível (se dentro ou fora do recinto da distribuidora), a Agência responsabilizou todos os envolvidos da cadeia de comercialização – distribuidor, transportador e varejista – pela irregularidade, aplicando o § 1º e o caput da Lei nº 9.847/99. A defesa dos pacientes sustentou que a denúncia do Ministério Público não teria justa causa, por estar lastreada nas conclusões do processo administrativo, que por sua vez se baseou numa disposição de lei cuja matéria não é criminal (fiscalização das atividades de abastecimento de combustíveis), prevendo, como consignado na ementa, sanções administrativas. Por conseguinte, segundo a tese da defesa, o MP não descreveu as condutas de cada réu, individualizando-as, mas sim responsabilizou a todos eles objetivamente, ou seja, sem observar sua culpa ou dolo. A relatora do HC, Ministra Maria Thereza de Assis Moura, reconheceu a procedência parcial das alegações da defesa, reiterando entendimento da Corte de que nos “crimes societários”, como o de adulteração de combustíveis, não se exige a descrição pormenorizada da conduta de cada denunciado [34]. Sem embargo, o uso de informações de processos administrativos pelo Ministério Público para embasar denúncias é inadmissível, quando a peça acusatória se reduz à simples reprodução de relatório, como o elaborado pela ANP, sem individualizar as condutas de cada réu e sua tipificação. Observou a julgadora que é inaceitável a responsabilidade solidária no processo penal, pontuando que, nessa seara, a responsabilidade é sempre pessoal. “A falta de imputação ou a imputação deficiente na denúncia impossibilitam o exercício da ampla defesa”, em desacordo com o art. 5º, LV, da Constituição, complementou a Ministra relatora em seu voto. A decisão unânime da Sexta Turma determinou a concessão de habeas-corpus a todos os pacientes, a anulação do processo penal a partir do oferecimento da denúncia, ressalvado o direito do MP formular nova acusação, desde que individualize a conduta dos acusados. Ainda em 2009, no julgamento do HC 69018/SP, a Sexta Turma manifestou-se no mesmo sentido, isto é, pela necessidade de individualização na denúncia da conduta de cada um dos acusados pelo crime de adulteração de combustíveis (ao contrário de uma imputação genérica), sob pena de restar caracterizado constrangimento ilegal. A decisão foi assim ementada: HABEAS CORPUS. ADULTERAÇÃO DE COMBUSTÍVEL. ART. 1º, I, DALEI Nº 8.176/91. DENÚNCIA. INÉPCIAFORMAL. NECESSIDADE 391

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DE INDIVIDUALIZAR MINIMAMENTE A CONDUTA PRATICADA PELOS ACUSADOS. CONSTRANGIMENTO ILEGAL. 1. São uníssonos os precedentes do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que, embora não se exija a descrição pormenorizada da conduta de cada denunciado nos casos de crimes societários, é imprescindível que o órgão acusatório estabeleça a mínima relação entre os denunciados e o delito que lhes é imputado. 2. É formalmente inepta a denúncia que não demonstra, sequer genericamente, a responsabilidade dos denunciados perante a empresa ou o nexo de causalidade entre a conduta deles e o crime supostamente cometido, tampouco aponta quais foram os meios empregados ou de que maneira foi praticado o delito. 3. Ordem concedida para anular a ação penal a partir da denúncia, inclusive, por inépcia formal, sem prejuízo de que outra seja elaborada com o cumprimento dos ditames legais, com extensão de ofício aos corréus [35]. A ausência de previsão de responsabilidade em ato administrativo regulador (Portaria da ANP) pode afastar a responsabilidade penal dos gestores de distribuidora de combustíveis, ou de qualquer outra pessoa que tenha concorrido para a perpetração do delito previsto no art. 1º, I, da Lei 8.176/91 (adulteração de combustível)? A questão proposta foi analisada no julgamento do HC 60652/PB [36]. Em apertada síntese a descrição dos fatos é a seguinte: X, sócioadministrador de uma sociedade distribuidora de combustíveis, foi denunciado pela suposta prática do crime de adulteração de combustível. Consta da denúncia que o paciente negociava o combustível adulterado em comunhão de ações e desígnios com mais duas pessoas, administradores de outra sociedade, e esta o comercializava em desacordo com as especificações da ANP, como demonstra a prova pericial. O Tribunal de Justiça da Paraíba denegou a ordem ali impetrada pela qual se pretendia o trancamento da ação penal, sob a alegação de negativa de autoria e de materialidade. Contra a decisão, foi impetrado no STJ habeas corpus substitutivo do recurso ordinário, com pedido de liminar. A negativa de autoria se deve ao fato de o sócio de uma distribuidora não poder ser réu na ação penal. De acordo com o art. 3º da Portaria nº 248/2000 [37], da ANP, a responsabilidade acerca da qualidade e quantidade dos combustíveis recai sobre o revendedor varejista (pessoa jurídica), cabendo a este coletar amostra de cada compartimento do caminhão-tanque que contenha o combustível a ser recebido e efetuar as análises descritas no Regulamento Técnico, bem como recusar o recebimento de produto desconforme. Quanto à falta de materialidade, 392

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sustenta-se que os testes de qualidade dos produtos descritos nas notas fiscais foram feitos e estão dentro das especificações da ANP. A Quinta Turma, seguindo o voto do relator, Ministro Arnaldo Esteves Lima, decidiu pela denegação da ordem, com base nos seguintes fundamentos: a) o trancamento de ação penal, pela via estreita do habeas corpus, somente é possível quando, pela mera exposição dos fatos narrados na denúncia, verificase que há imputação de fato penalmente atípico ou que não existe nenhum elemento indiciário demonstrativo da autoria do delito imputado ao paciente ou, ainda, quando extinta encontra-se punibilidade; b) distribuir combustível em desacordo com as normas estabelecidas na forma da lei constitui crime (art. 1º, I, da Lei 8.176/91); c) o ato administrativo regulador (Portaria ANP 248/00) que impõe obrigações administrativas ao revendedor varejista quanto à quantidade e à qualidade do produto não tem o condão de, por si só, afastar a responsabilidade penal dos gestores da distribuidora ou de qualquer outra pessoa que tenha concorrido para a perpetração do delito; d) o desfecho da lide pressupõe, necessariamente, o exame da prova, o que não se adéqua à ação de pedir de habeas corpus. CONSIDERAÇÕES FINAIS A adulteração de combustíveis acarreta conseqüências que transcendem a vítima e o autor das condutas ilícitas perpetradas. A sociedade e, sobretudo, o consumidor e os concorrentes do mau empresário sofrem os efeitos desta prática. O primeiro por estar adquirindo, inconscientemente, um combustível de má qualidade, com reflexos diretos (mediatos ou imediatos) no desempenho do veículo e em sua manutenção, sendo lesado em sua boa-fé objetiva tanto no momento da contratação como nas fases pré e pós-contratual. O concorrente por não poder praticar preço inferior aos desleais empresários, que não adquirem combustível de procedência controlada ou em desacordo com as especificações técnicas, perdendo parte de sua clientela em razão de prática anticoncorrenciais proscritas. Para garantir a responsabilização de todos aqueles que, de algum modo, intervêm na cadeia produtiva, a legislação estabelece, tal qual no diploma consumerista, a responsabilidade objetiva e solidária dos partícipes, cabendo em ação regressiva a verificação da conduta dolosa ou culposa dos responsáveis. Independentemente da medida, as sanções administrativas arroladas no art. 2º da Lei nº 9.847/99. Cabe a ANP a fiscalização desta atividade em todas as suas etapas, nos termos da Lei nº 9.847/99, bem como a aplicação das sanções administrativas competentes e, se necessário, poderá em juízo, na ação de cobrança das multas, ser requerida e aplicada a desconsideração da personalidade jurídica da 393

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sociedade infratora, a fim de impedir que a separação formal e patrimonial da pessoa jurídica não sirva de obstáculo ao ressarcimento dos prejuízos causados ao Sistema Nacional de Abastecimento de Combustíveis. Consoante a interpretação vigente no STJ esposada no RESP 279273/SP e considerando-se a redação similar do § 5º do art. 28 do CDC ao § 3º do art. 18 da Lei nº 9.847/99, aplica-se a teoria menor da desconsideração para as relações jurídicas entabuladas no sistema nacional de combustíveis. Portanto, sempre que houver presunção de insolvência da pessoa jurídica infratora, sendo necessário para garantir a efetiva aplicação da sanção, poderá o juiz responsabilizar subsidiariamente os sócios e administradores para que respondam pelos atos da sociedade, independentemente de culpa. Tal orientação legislativa, corroborada pelo STJ, denominada “teoria menor da desconsideração”, não se coaduna com a disregard doctrine, na medida em que se limita a traduzir a aplicação do instituto a uma hipótese de responsabilidade objetiva, solidária e subsidiária dos sócios, produzindo, na verdade, não a desconsideração, mas a despersonalização da pessoa jurídica. Como examinado, a responsabilidade solidária e subsidiária amplia a sujeição passiva do devedor, enquanto que a desconsideração altera essa imputação, transferindo-a da sociedade para o sócio, tendo como premissa o elemento subjetivo. No âmbito criminal, vários aspectos do crime de adulteração de combustíveis foram analisados, a partir do exame de julgados do STJ. O mais contundente é que, independentemente da obrigação de indenizar, a adulteração de combustíveis enseja a incidência da pena privativa de liberdade (detenção), podendo o MP oferecer denúncia com base no procedimento administrativo instaurado pela ANP ou em inquérito policial. Sem embargo, é imperativo que as condutas perpetradas sejam individualizadas, não se aplicando a teoria do risco proveito em matéria criminal, sob pena de eliminação ou restrição da garantia constitucional do contraditório e da ampla defesa.

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REFERÊNCIAS ALVES, Alexandre Ferreira de Assumpção. Fundamentos da desconsideração da personalidade jurídica no sistema jurídico da Common Law e sua aplicação nos direitos inglês e norte-americano – influência no Código Brasileiro de Defesa do Consumidor. In: ALVES, Alexandre Ferreira de Assumpção; GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da (Coord.). Temas de Direito Civil-Empresarial. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 1-56. BRASIL. Agência Nacional do Petróleo Gás Natural e Biocombustíveis (ANP). Cartilha do Posto Revendedor de Combustíveis. Inclui procedimentos para testes de qualidade de combustíveis e normas para comercialização da mistura diesel-biodiesel. 3.ed. Rio de Janeiro: ANP, 2008. BRASIL. Confederação do Comércio de Combustíveis e Lubrificantes. Direitos do Consumidor. Disponível em: http://www.fecombustiveis.org. br/index.php?option=com_content&id=102&task=view&Itemid=40&da te=2011-05-01. Acesso em 21/4/2011. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Terceira Turma. Responsabilidade civil e direito do consumidor. Recurso Especial nº 279273. Relator Ministra Nancy Andrighi, Brasília, DF, 04 de dezembro de 2003. DJ de 29/03/2004 p. 230. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Sexta Turma. Habeas Corpus nº 34.364. Relator Ministro Hamilton Carvalhido. Brasília, DF, 04 de outubro de 2005. DJU de 11/09/2006, p. 347. BRASIL Superior Tribunal de Justiça. Quinta Turma. Recurso Ordinário em Habeas Corpus nº 17591. Relatora Ministra Laurita Vaz. Brasília, DF, 02 de fevereiro de 2006. DJ de 20/03/2006, p.305. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Quinta Turma. Habeas Corpus nº 60652. Relator Ministro Arnaldo Esteves Lima. Brasília, DF, 21 de agosto de 2007. DJ de 01/10/2007. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Sexta Turma. HC 69018/SP. Relator Ministra Maria Thereza de Assis Moura. Brasília, DF, 03 de setembro de 2009. DJe de 19/10/2009. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Sexta Turma. Processual Penal. Habeascorpus nº 71493. Relator Ministra Maria Thereza de Assis Moura. Brasília, DF, 14 de abril de 2009. In DJe 03/08/2009. 395

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BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Terceira Seção. Conflito de Competência nº 95591. Relator Ministro Jorge Mussi. Brasília, DF, 23 de junho de 2010. In DJe de 30/06/2010. COELHO, Fábio Ulhoa. Da Desconsideração da Personalidade Jurídica. Das Práticas Comerciais (arts. 28 a 45). In: OLIVEIRA, Juarez de (Coord.) Comentários ao Código de Proteção do Consumidor. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 139-146. DIAS, Jefferson Aparecido (Coord.). Entendendo a adulteração de combustíveis. 3.ed. [s/l], 2007. Disponível em http://www.fecombustiveis.org.br/entendendoa-adulteracao-de-combustiveis.html. Acesso em 22/4/2011. KRIEGER FILHO, Domingos Afonso. Aspectos da desconsideração da personalidade jurídica societária na lei do consumidor. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v.13, p. 78-86, jan./mar. 1995. PEREIRA, Regis Fichtner. Origens e Evolução da Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica no Direito Brasileiro. Revista da Faculdade de Direito da UERJ. Rio de Janeiro: Renovar, n.5, 1997, p.61-83. SOUZA NETO, Gaudêncio Jerônimo de; MARINHO, Karoline Lins Câmara; SILVEIRA NETO, Otacílio dos Santos. Responsabilidade Civil dos Distribuidores e Revendedores por Adulteração de Combustíveis à luz do Direito do Consumidor. Trabalho apresentado no 3º Congresso Brasileiro de P&D em Petróleo e Gás, realizado de 2 a 5 de outubro de 2005 em Salvador. Disponível em http://www.portalabpg.org.br/site_portugues/3_congresso.html. Acesso em 17/4/2011. SZTAJN, Rachel. Desconsideração da personalidade jurídica. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v.2, p. 67-75, abr./jun. 1992. _____________________________________

[1] Art. 5º, inciso XXXV: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;” [2] Note-se que outros objetivos da Política Energética brasileira relacionados à proteção da qualidade do combustível são: “IV - proteger o meio ambiente e promover a conservação de energia; V - garantir o fornecimento de derivados de petróleo em todo o território nacional, nos termos do § 2º do art. 177 da Constituição Federal; [...] IX promover a livre concorrência; [...].” [3] Embora não seja o objetivo precípuo do trabalho, cabe ressaltar que a adulteração de combustíveis costumeiramente tem por finalidade fraudar o pagamento de tributos, 396

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sendo os outros objetivos do fraudador meios para atingir esta meta. Rodolfo Landim, engenheiro civil e de petróleo, ex-diretor-gerente de exploração e produção e presidente da Petrobras Distribuidora S.A. e articulista do jornal Folha de São Paulo, aponta as fraude mais comuns dos sonegadores: “A partir da criação de distribuidoras “barriga de aluguel”, alguns empresários praticam sistematicamente a sonegação da CIDE, do PIS/ COFINS e/ou do ICMS. Entre as práticas mais comuns, destacam-se: 1) a sonegação de tributos no diesel, devido a alíquotas de ICMS diferenciadas entre Estados; 2) venda de álcool supostamente para outros fins, com menor incidência de carga tributária; 3) falsa operação interestadual de etanol hidratado; 4) venda de álcool hidratado com nota fiscal de anidro (que, por ser misturado à gasolina, não paga imposto ao sair da usina); 5) reutilização de uma mesma nota fiscal; 6) venda sem nota fiscal. As “barrigas de aluguel” não possuem ativos e operam unicamente intermediando as operações. Essas distribuidoras são abertas e fechadas com grande velocidade, engordando as contas bancárias de seus proprietários e deixando passivos tributários significativos. Segundo o SINDICOM (Sindicato Nacional das Empresas Distribuidoras de Combustíveis e de Lubrificantes), essa perda tributária, apenas no álcool hidratado, pode chegar a R$ 1 bilhão em 2010, valor equivalente ao custo de construção de 100 mil casas populares. [...]Perdem as distribuidoras e os revendedores éticos, que sofrem prejuízo ao competir com preços predatórios e têm sua imagem desgastada. Por fim, perdem a sociedade e o Estado, que vêem a receita e a capacidade de investimento reduzidas. Mas a realidade é que as margens apertadas e o alto valor dos impostos envolvidos criam um ambiente favorável para a existência de uma competição desleal através de sonegação e adulteração, caso essas não sejam combatidas.” Disponível em http://www1.folha.uol. com.br/fsp/mercado/me1510201029.htm . Acesso em 19/4/2011. [4] O SINDIPOSTO - Sindicato do Comércio Varejista de Derivados de Petróleo no Estado de Goiás – aponta vários defeitos a que o veículo está sujeito com o uso freqüente de combustível adulterado pode causar vários defeitos, dentre eles: “O entupimento da bomba de gasolina que fica no tanque e leva o combustível até o motor. Com isso, o carro começa a falhar e o motor “morre” sendo preciso dar a partida várias vezes para o carro voltar a funcionar. Nesse caso, o conserto fica em torno de R$ 300,00. A corrosão do sistema de injeção eletrônica, que é um conjunto de peças que injetam a quantidade exata de gasolina nos cilindros para o motor funcionar, evitando desperdícios. Se este sistema parar de funcionar, o carro pára também. Um conserto no sistema de injeção eletrônica custa, em média, R$ 1.500,00 nos veículos populares. Acúmulo de resíduos na parte interna do motor, causado pela queima de gasolina adulterada. Esses resíduos ocupam o espaço de movimentação das peças móveis do motor, dificultando a articulação dessas peças. Os resíduos podem atingir também a bomba de óleo. Os defeitos no motor demoram mais a aparecer, cerca de 5.000 km depois dos primeiros abastecimentos com gasolina adulterada. Se o motor fundir, o conserto não fica por menos de R$ 1.200,00, variando de acordo com o veículo.” (http://www.sindiposto.com. 397

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br/paginas_associados/mercado_comb/adulteracao_comb.htm). Acesso em 22/4/2011. [5] Segundo a Lei do Petróleo (art. 6º, XXI), entende-se por revenda, para fins da regulamentação por parte da ANP, a “atividade de venda a varejo de combustíveis, lubrificantes e gás liquefeito envasado, exercida por postos de serviços ou revendedores, na forma das leis e regulamentos aplicáveis;” [6] Segundo a Lei do Petróleo (art. 6º, XX), entende-se por distribuição, para fins da regulamentação por parte da ANP, a “atividade de comercialização por atacado com a rede varejista ou com grandes consumidores de combustíveis, lubrificantes, asfaltos e gás liquefeito envasado, exercida por empresas especializadas, na forma das leis e regulamentos aplicáveis;” [7] CF, art. 170 [...] Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo os casos expressos em lei. [8] CF, art. 238. A lei ordenará a venda e revenda de combustíveis de petróleo, álcool carburante e outros combustíveis derivados de matérias-primas renováveis, respeitados os princípios desta Constituição. [9] A Portaria ANP 202/2000 dispõe sobre os requisitos a serem cumpridos para acesso à atividade de distribuição de combustíveis líquidos derivados de petróleo, álcool combustível, biodiesel, mistura óleo diesel/biodiesel especificada ou autorizada pela ANP e outros combustíveis automotivos. No tocante à constituição, instalação e funcionamento das sociedades distribuidoras, as disposições são bastante semelhantes com as exigências da Portaria 116 para os revendedores varejistas, como a nacionalidade brasileira da sociedade, o registro e a autorização, em caráter permanente, concedidos pela ANP e a vedação de concessão de registro à sociedade empresária com administradores ou sócios que, nos cinco anos anteriores à data do pedido de registro, tenha sido administrador de sociedade que não tenha liquidado débitos e cumprido obrigações decorrentes do exercício de atividade regulamentada pela ANP. Sem embargo, destacam-se como peculiaridades: (i) a possibilidade de transferência de titularidade do registro de distribuidor, mediante prévia e expressa aprovação da ANP, desde que o novo titular satisfaça os requisitos regulamentares; (ii) a exigência prévia à autorização de o empresário possuir base, própria ou arrendada (contrato com prazo igual ou superior a 5 anos com expressa previsão de renovação, registrado em cartório na forma de extrato, se for o caso), com instalações de armazenamento e distribuição de combustíveis líquidos derivados de petróleo, álcool combustível, biodiesel, mistura óleo diesel/biodiesel especificada ou autorizada pela ANP e outros combustíveis automotivos, autorizada pela ANP a operar, com capacidade mínima de armazenamento de 750 m³ (setecentos e cinquenta metros cúbicos); (iii) comprovação de capital social integralizado de, no mínimo, R$ 1.000.000,00 (um milhão de Reais), e comprovação da capacidade financeira para obter o registro de distribuidor, correspondente ao montante de recursos necessários à cobertura das operações de compra e venda de produtos, inclusive os tributos envolvidos. 398

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[10] Art. 10 da Portaria ANP 116/2000. “O revendedor varejista obriga-se a: [...] II - garantir a qualidade dos combustíveis automotivos comercializados, na forma da legislação específica; III - fornecer combustível automotivo somente por intermédio de equipamento medidor, denominado bomba abastecedora, aferida e certificada pelo Instituto Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial - INMETRO ou por empresa por ele credenciada, sendo vedada a entrega no domicílio do consumidor; IV - identificar em cada bomba abastecedora de combustível automotivo, no (s) painel (is) de preços, e nas demais manifestações visuais, de forma destacada, visível e de fácil identificação para o consumidor, o combustível comercializado, informando se o mesmo é “aditivado”, ficando facultada a identificação de “comum” para os demais combustíveis; V - informar ao consumidor, de maneira adequada e ostensiva, a respeito da nocividade, periculosidade e uso do combustível automotivo; VI - prestar informações solicitadas pelos consumidores sobre o combustível automotivo comercializado; VII - exibir os preços dos combustíveis automotivos comercializados em painel com dimensões adequadas, na entrada do posto revendedor, de modo destacado e de fácil visualização à distância, tanto ao dia quanto à noite; VIII - exibir em quadro de aviso, em local visível, de modo destacado, com caracteres legíveis e de fácil visualização, as seguintes informações: a) o nome e a razão social do revendedor varejista; b) o nome do órgão regulador e fiscalizador das atividades de distribuição e revenda de combustíveis: Agência Nacional do Petróleo – ANP, bem como o sítio da ANP na internet www.anp.gov.br; c) o telefone do Centro de Relações com o Consumidor CRC da ANP, informando que a ligação é gratuita e indicando que para o CRC deverão ser dirigidas reclamações que não forem atendidas pelo revendedor varejista ou pelo (s) distribuidor (es); d) o horário de funcionamento do posto revendedor; [...] XV- alienar óleo lubrificante usado ou contaminado somente às empresas coletoras cadastradas na ANP; XVI - permitir o livre acesso ao posto revendedor, bem como disponibilizar amostras dos combustíveis comercializados para monitoramento da qualidade e a documentação relativa à atividade de revenda de combustível para os funcionários da ANP e de instituições por ela credenciadas; XVII - atender às demandas do consumidor, não retendo estoque de combustível automotivo no posto revendedor [o comportamento contrário configura prática abusiva, nos termos do art. 39, II do CDC]; [...].” [11] BRASIL. Federação Nacional do Comércio de Combustíveis e Lubrificantes. Direitos do Consumidor. Disponível em http://www.fecombustiveis.org.br/index. php?option=com_content&id=102&task=view&Itemid=40&date=2011-05-01. Acesso em 21/4/2011. [12] Segundo a Resolução nº 30, do CONSELHO INTERMINISTERIAL DO AÇÚCAR E DO ÁLCOOL - CIMA, de 15/5/2003, é de 25% (vinte e cinco por cento) o percentual obrigatório de adição de álcool etílico anidro combustível à gasolina. [13] SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Oitava Câmara Cível. Apelação com revisão nº 0019736-44.1999.8.26.0000. Relator: Des. Burza Netto. Julg. em 14/4/2004. 399

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[14] BRASIL. Decreto-Lei nº 538, de 7 de julho de 1938. Organiza o Conselho Nacional de Petróleo, define suas atribuições e dá outras providências. Diário Oficial da União de 08/07/1938, p. 13.628. [15] De acordo com o art. 2º, as sanções administrativas podem consistir, cumulativamente ou não, em: multa, apreensão de bens e produtos, perdimento de produtos apreendidos, cancelamento do registro do produto junto à Agência Nacional do Petróleo, suspensão de fornecimento de produtos, suspensão temporária, total ou parcial, de funcionamento de estabelecimento ou instalação e cancelamento de registro de estabelecimento ou instalação. [16] O combustível é considerado não-conforme quando há desvio em relação a qualquer um dos itens da especificação definida pela ANP para o produto. A adulteração é a adição ilegal de qualquer substância a este produto. O produto não-conforme não é necessariamente resultado de adulteração proposital e pode ser resultante de contaminação. O óleo lubrificante é considerado não conforme quando há desvios em relação aos itens declarados no seu registro na ANP – características físico-químicas e nível de desempenho. Desde 1º de julho de 2008, o óleo diesel comercializado em todo o Brasil deve conter, obrigatoriamente, 3% de biodiesel. Portanto, desde aquela data, são autuados e interditados os postos que não estiverem vendendo biodiesel B3, conforme a especificação. [17] Nos termos do art. 8º, VII, da Lei nº 9.478/97, a ANP pode celebrar convênios com órgãos da Administração Pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios visando à promoção da atividade de fiscalização. Os convênios vigentes estão disponíveis em http://www.anp.gov.br/doc/petroleo/ fiscalizacao_convenios.pdf (acesso em 22/4/2011). [18] Consulte-se, como exemplos, a Resolução ANP nº 3/2011 (marcação dos solventes, com o objetivo de permitir a identificação do solvente quando utilizado para adulterar gasolina), Resolução ANP nº 7/2011 (especificações do álcool etílico anidro combustível ou etanol anidro combustível e do álcool etílico hidratado combustível ou etanol hidratado combustível), (Portaria ANP nº 309/2001 (Estabelece as especificações para a comercialização de gasolinas automotivas em todo o território nacional e define obrigações dos agentes econômicos sobre o controle de qualidade do produto), Resolução ANP nº 42/2009 (Estabelece as especificações para a comercialização de óleo diesel automotivo em todo o território nacional e define obrigações dos agentes econômicos sobre o controle de qualidade do produto) e Resolução nº 16/2008 (Aprova o Regulamento Técnico que estabelece a especificação do gás natural, de origem nacional ou importado, a ser comercializado no país). [19] RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça. Sétima Câmara Cível. Apelação Cível nº 0059087-40.2004.8.19.0001. Relator: Des. José Geraldo Antonio. Julg. em 16/02/2011. [20] SÃO PAULO. 1º Tribunal de Alçada Cível (extinto). Décima Segunda Câmara. Agravo de Instrumento nº 0059596-81.2001.8.26.0000. Relator: Juiz Andrade Marques. Julg. em 19/2/2002. 400

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[21] KRIEGER FILHO, Domingos Afonso. Aspectos da desconsideração da personalidade jurídica societária na lei do consumidor. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v.13, jan./mar. 1995, p. 83. [22] COELHO, Fábio Ulhoa. Da Desconsideração da Personalidade Jurídica. Das Práticas Comerciais (arts. 28 a 45). In: OLIVEIRA, Juarez de (Coord.) Comentários ao Código de Proteção do Consumidor. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 146. [23] SZTAJN, Rachel. Desconsideração da personalidade jurídica. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v.2, abr./jun. 1992, p. 74. [24] PEREIRA, Regis Fichtner. Origens e Evolução da Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica no Direito Brasileiro. Revista da Faculdade de Direito da UERJ. Rio de Janeiro: Renovar, n.5, 1997, p.81. Cf. ALVES, Alexandre Ferreira de Assumpção. Fundamentos da desconsideração da personalidade jurídica no sistema jurídico da Common Law e sua aplicação nos direitos inglês e norte-americano – influência no Código Brasileiro de Defesa do Consumidor. In: ALVES, Alexandre Ferreira de Assumpção; GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da (Coord.). Temas de Direito Civil-Empresarial. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 49-52, passim. [26] Pareceres de Cândido Dinamarco e Waldirio Bulgarelli que fundamentaram o voto do Ministro relator, destacando os seguintes trechos: “Candido Dinamarco, com apoio em Fábio Ulhoa Coelho, observou que: ‘Na realidade o caput do art. 28 está cuidando da responsabilidade direta dos sócios, em matéria que conceitualmente não se integra no fenômeno da desconsideração da personalidade jurídica. É regra comum de direito societário a de que os sócios respondem em nome próprio (e não por desconsideração) quando atuem com abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, violação dos estatutos societários ou quando pratiquem, na qualidade de sócios, certos atos ilícitos. Tal ilicitude é sempre de direito societário e, para ter a conseqüência descrita no art. 28, sequer seria necessário este” (parecer – fl. 1.692/1.693, 9º vol.). E concluiu: ‘... quando a lei manda desconsiderar a personalidade jurídica como meio de remover obstáculos ao ressarcimento (CDC, art. 28, § 5º) as formas pelas quais se houverem criado tais obstáculos não podem ser os mesmos fatos dos quais haja emergido a obrigação de indenizar. Interpretação contrária significaria – tanto quanto a que se repudiou no tópico precedente – haver por derrogada a regra da autonomia das pessoas jurídicas em face dos sócios (CC, art. 20) e a limitação da responsabilidade nas sociedades anônimas ou por quotas’ (parecer, fl. 1.694, 9º vol.). No mesmo sentido, o parecer de Waldírio Bulgarelli (fl. 864/890, 5º vol.): ‘Afora, pois, os casos de falência ou insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica por má administração, os demais casos arrolados como fatos a serem subsumidos pela norma se referem a figuras a bem dizer delituosas, e note-se, que tenham sido utilizados contra o consumidor, ou como diz a própria lei, no § 5º do art. 28 cit., como obstáculos. Tecnicamente, em termos de redação legislativa trata-se de uma daquelas chamadas pela doutrina, hoje, regras de decisão, cabendo ao 401

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juiz, aliás, como em outras que o Código contém, como a da inversão da prova, etc., decidir perante o caso concreto’ (fl. 884, 5º vol.)”. [27]BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Terceira Turma. Responsabilidade civil e direito do consumidor. Recurso Especial nº 279273. Rel. Ministra Nancy Andrighi. Julg. em 04/12/2003. [28] Lei nº 8.176/91, art. 2º. “Constitui crime contra o patrimônio, na modalidade de usurpação, produzir bens ou explorar matéria-prima pertencentes à União, sem autorização legal ou em desacordo com as obrigações impostas pelo título autorizativo.” [29] STJ. Terceira Seção. Conflito de Competência (CC) nº 95591/MG. Rel. Ministro Jorge Mussi. Julg. em 23/6/2010. DJe de 30/06/2010. [30] CF, art. 109. “Aos juízes federais compete processar e julgar: [...] VI- os crimes contra a organização do trabalho e, nos casos determinados em lei, contra o sistema financeiro e a ordem econômico-financeira.” [grifos nossos] [31] STJ. Sexta Turma. HC 34.364/MG. Rel. Min. Hamilton Carvalhido. DJU de 11/09/2006. [32] STJ. Quinta Turma. Recurso Ordinário em Habeas Corpus (RHC) nº 17591 / SP. Rel. Min. Laurita Vaz. Julg. em 02/02/2006. DJ de 20/03/2006, p.305. [33] Ementa: PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. ADULTERAÇÃO DE COMBUSTÍVEL. INÉPCIADAINICIAL. RESPONSABILIDADE PENAL SOLIDÁRIA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL. RECONHECIMENTO. 1. É inadmissível que a denúncia se reduza a mera reprodução de relatório de procedimento fiscalizatório da Agência Nacional de Petróleo, consagrando responsabilidade penal solidária. 2. Ordem concedida, confirmada a liminar e na esteira do parecer do Ministério Público Federal, para anular o processo a partir do oferecimento da denúncia, em relação a todos os corréus. [34] Precedentes citados: HC 117945/SE, Rel. Ministra Jane Silva (desembargadora convocada do TJ/MG), DJe 17/11/2008; HC 62330/SP, Rel. Ministro Gilson Dipp, DJ 29/06/2007; HC 69.240/MS, rel. Ministro Felix Fischer, DJ 10/09/2007. [35] STJ. Sexta Turma. HC 69018/SP. Relator Ministra Maria Thereza de Assis Moura. Julgamento em 03/09/2009. DJe de 19/10/2009. [36] STJ. Quinta Turma. HC 60652/PB. Relator Min. Arnaldo Esteves Lima. Julg. em 21/8/2007. DJ de 01/10/2007. [37] A Portaria nº 248, de 31/10/2000, da ANP, estabeleceu o Regulamento Técnico ANP nº 3/2000 para o controle da qualidade do combustível automotivo líquido adquirido pelo Revendedor Varejista para comercialização. A referida Portaria foi revogada pelo art. 14 da Resolução ANP nº 9/2007, que atualmente trata do tema. 402

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O NOVO MARCO REGULATÓRIO E AS JOINT VENTURES NA INDÚSTRIA DO PETRÓLEO: UM OLHAR CRÍTICO SOBRE A INTERVENÇÃO DO ESTADO NA AUTONOMIA PRIVADA THE NEW REGULATORY FRAMEWORK AND JOINT VENTURES IN THE OIL INDRUSTRY: A CRITICAL EYE ON THE STATE INTERVENTION IN THE PRIVATE AUTONOMY RESUMO

Alberto Lopes da Rosa

O artigo então desenvolvido busca efetuar primeiramente uma análise do conceito e da natureza jurídica das joint ventures, especificando suas peculiaridades, para posteriormente analisar a situação destas dentro do novo marco regulatório que se firma para exploração de petróleo, gás natural e outros hidrocarbonetos na região denominada de pré-sal e outras áreas estratégicas. Nesse sentido, foram analisadas as mudanças instituídas pela Lei n.º 12.351/2010, a qual instituiu o modelo de partilha de produção, no qual se observou uma mudança do Estado que deixa de ser mero regulador para atuar mais diretamente, de modo a influenciar a atuação empresarial, limitando a autonomia privada no referido setor. Palavras-Chaves: Joint Ventures – Estado - Marco Regulatório – Autonomia Privada e Atuação Empresarial. ABSTRACT The article then developed primarily seeks to analyze the concept and the legal nature of joint ventures, specifying its peculiarities, to further analyze their situation within the new regulatory framework that is firm to explore oil, natural gas and other hydrocarbons in the region called pre-salt and other strategic areas. Accordingly, we analyzed the changes instituted by the Law n.º 12.351/2010, which established the model production sharing, in which we observed a change in the State ceases to be mere regulator to act more directly, to influence the business performance, limiting individual autonomy in that sector. Keywords: Joint Ventures - State - Regulatory Framework - Autonomy and Private Business Activity.

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1. INTRODUÇÃO A prática empresarial tende a exigir de seus atores soluções dinâmicas e criativas para solucionar os problemas oriundos da atividade. Nem sempre é possível ao direito acompanhar a versatilidade e rapidez com que essas práticas se estabelecem. A atuação empresarial começou, então, a perceber que para o desenvolvimento de determinadas atividades mostrava-se mais viável a comunhão de esforços do que a concorrência entre si, desta forma, foram surgindo as associações entre sociedades empresárias para a consecução de um objetivo comum. Essas associações, tanto podem dar origem a uma nova pessoa jurídica corporate joint venture (Joint Venture Societária), ou não, as denominadas non corporate joint venture (Joint venture contratual). O espírito de cooperação e de colaboração entre os pactuantes é, sem sombras de dúvidas, primordial em uma joint venture, seja ela contratual ou societária, cabendo a cada um dos co-ventures contribuir para com a consecução do negócio, seja pela sua expertise ou know-how ou mesmo apenas com o capital. No que tange às joint ventures na indústria do petróleo, tema central do presente trabalho, importante será observar as alterações promovidas pelo novo marco regulatório – Lei n.º 12.351/2010, de modo a perquirir se as medidas adotadas para as atividades relacionadas à indústria do petróleo representam uma diretriz política de maior intervenção do Estado na autonomia privada, para isto, traçou-se um corte epistemológico de modo que seja analisada a figura dos consórcios (joint ventures) previstos no art. 20 do referido diploma legal. O intuito do trabalho, portanto, é constatar os eventuais efeitos decorrentes desta alteração do marco legal, de modo a verificar primeiramente se os novos parâmetros estabelecidos podem ou não ensejar em uma grande fuga de investimentos no setor, para em seguida verificar os papéis que serão desempenhados pela Petróleo Brasileiro S.A. - PETROBRAS e pela empresa pública, autorizada, porém ainda não criada, Empresa Brasileira de Administração de Petróleo e Gás Natural S.A. - Pré-Sal Petróleo S.A. (PPSA), de modo a correlacionar as atribuições de cada uma delas com a intervenção estatal na autonomia privada. Assim, a estrutura do presente trabalho dar-se-á de modo a primeiramente estabelecer o conceito de joint venture, verificando desde a gênese desta forma de colaboração, para em seguida definir a sua natureza jurídica. Definidos o conceito e a natureza jurídica, o trabalho concentrar-se-á nas joint ventures na Indústria do Petróleo, com especial enfoque sobre as eventuais implicações decorrentes do novo marco regulatório instituído, contrapondo a situação destas, bem como a posição do próprio Estado, no modelo de 404

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concessão, previsto na Lei n.º 9.478/1997 e no modelo de partilha, previsto na Lei n.º 12.351/2010. O presente trabalho adotou o método científico dedutivo, com a utilização de pesquisa bibliográfica e de textos normativos. 2. JOINT VENTURE A atuação empresarial na busca de soluções criativas para o desempenho de suas atividades tem consagrado ao longo dos anos novos fenômenos e mecanismos para a consecução de determinados empreendimentos. O grande salto tecnológico, associado a um mercado no qual a concorrência é cada vez mais acirrada e global, fez com que muitos homens de negócios vislumbrassem a associação empresarial como uma maneira de transpor barreiras, dividir os riscos e, assim, lograr êxito no negócio. As joint ventures se mostram como um modelo de cooperação empresarial no qual há exatamente esta divisão de riscos. Tendo em vista que não há uma tipificação para tal fenômeno, a autonomia da vontade é quem o rege, limitada pelas normas gerais de direito privado. 2.1. CONCEITO E NATUREZA JURÍDICA A expressão joint venture é proveniente da língua inglesa, não havendo em língua portuguesa um termo equivalente, podendo, por tradução literal, ser entendido como empreendimento comum ou aventura conjunta. Importante ressaltar que o primeiro termo parece ser mais adequado ao ordenamento jurídico brasileiro, por ser aquele utilizado na Exposição de motivos da Lei das Sociedades por Ações (Lei n.º 6.404/76) [1]. O surgimento do termo joint venture deu-se na Grã-Bretanha, no século XVI, e designava aquelas associações estabelecidas entre dois ou mais comerciantes para aprestar um navio e negociar no ultramar. Tais associações se davam de forma temporária e informal. As joint adventures, utilizando a designação inglesa da época, eram sociedades sem personalidade jurídica, de modo diverso das chartered companies.[2] [3] As chartered companies recebiam, por outorga real, os privilégios da personalidade jurídica e da limitação da responsabilidade, todavia, ficavam sujeitas a um rígido Estatuto, além da fiscalização da Coroa, ao passo que as joint ventures, organizadas à revelia do Estado, de maneira livre e informal estavam desvinculadas de restrições estatutárias [4]. Já nos Estados Unidos, muitos autores que se dedicaram ao estudo do tema indicam que o primeiro posicionamento das Cortes ianques se deu em 1808 [5] na 405

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Suprema Corte da Pensilvânia, todavia, o professor canadense Robert Flannigan [6] indica que, na verdade, o termo joint venture, já havia sido suscitado em decisão daquela mesma corte em 1806 [7], ou seja, dois anos antes. No julgamento apontado pelo professor canadense, os julgadores partiram de premissa na qual o vínculo existente entre as partes da lide era o de sócios [8] (partners) mesmo que em uma joint venture. Tendo em vista que, as disputas entre sócios são resolvidas por meio do juízo de equidade, através de uma ação de prestação de contas, o fato de existir uma joint venture não justificaria a propositura de uma ação em direito (assumpsit - ação por descumprimento contratual). O Juízo entendeu, portanto, ser impossível manter a ação, na forma como fora proposta [9]. Ainda sobre a questão processual, ou seja, o tipo de ação que pode ser utilizada pelas partes, cabe a transcrição de decisão da Suprema Corte de Nevada, in verbis: A principal diferença entre a partnership [10] e a joint venture é que, em muitas jurisdições, onde é considerada a existência desta, uma parte pode acionar a outra por descumprimento contratual; mas este direito não torna precluso o direito de demandar pedindo a prestação de contas no juízo de equidade [11] (Tradução livre). Apesar das primeiras decisões remontarem, como acima descrito, ao início do século XIX, foi apenas em sua segunda metade e no início do século XX, que houve as primeiras manifestações jurisprudenciais mais preocupadas em definir mais precisamente as características das relações estabelecidas em uma joint venture. Interessante observar que, da leitura de uma das muitas decisões das Cortes norte-americanas sobre o tema da joint venture, depreende-se a seguinte afirmação: os Tribunais ainda não deram uma definição exata do termo joint venture que possa ser usada, como uma regra, por meio da qual as questões concernentes podem ser determinadas [12]. Nichols [13] explica essa indefinição pelo fato de que nem todas as combinações às quais os homens de negócios chamam de joint venture são consideradas como tal aos olhos dos Tribunais de seu país. Algumas foram consideradas como simples sociedades (partnership), outras, simples acordos financeiros. Não tendo sido fixado pelos Tribunais uma definição precisa da joint venture, o conceito restou um tanto quanto fluido, sendo as definições estabelecidas em cada caso, consoante a natureza do negócio e de outros fatos. Tendo em vista ter surgido no curso da vida prática das negociações, buscando atender com incrível flexibilidade aos anseios dos homens de negócio, a joint venture, à primeira vista, parece não se submeter ao enquadramento das definições. 406

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Em virtude desta dificuldade para elaboração de um conceito unívoco, importante é observar o trabalho desempenhado tanto pela doutrina quanto pelos tribunais norte-americanos, que passaram cada vez mais a destacar as diferenças existentes entre a joint venture e a partnership, de modo a individualizar cada vez mais aquela. Dentre as distinções estabelecidas, podem-se citar as mais importantes, tais como: a) quem podem ser as partes – na partnership, somente podem participar pessoas físicas, enquanto nas joint ventures, podem também ser pessoas jurídicas [14]; b) delectus personarum – na partnership qualquer sócio pode vetar a entrada de um novo sócio provocando, em regra, a dissolução da sociedade, o que não ocorre na joint venture; c) relação entre os sócios – na partnership, há a delegação para um ou mais participantes para que estes exerçam a direção e representação da sociedade; já na joint venture, essa delegação de poderes não existe, a não ser que os sócios tenham realizado tal delegação de forma expressa, nesta, em regra, a gestão é conjunta; d) divisão de lucros ou perdas – nas joint ventures, a repartição de lucros não acarreta, obrigatoriamente, a repartição de eventuais prejuízos; já nas partnerships, esse princípio é fundamental; e) ação judicial – enquanto nas partnerships os sócios somente possuem um tipo de ação (real) cabível contra a sociedade, para recebimento de seus créditos, nas joint ventures os participantes dispõem, além desta, uma outra ação contra o inadimplemento de obrigação contratual; f) duração do empreendimento – as partnerships são tidas como associações duradouras, de tempo indeterminado, ao contrário das joint ventures, que são vistas como passageiras ou ad hoc. Todavia, esta última característica vem perdendo importância em face da existência de joint ventures cujos empreendimentos têm caráter temporal indefinido, em virtude da natureza do próprio negócio.[15] Com efeito, delineadas as diferenças existentes entre as partnerships e as joint ventures, não se poderia chegar a um conceito desta antes que, por último, fossem apontados os traços que a identificam. Desta forma, importante é trazer à baila a lição dada pelo Prof. Luiz Olavo Baptista [16] que busca tipificar as joint ventures com base nos elementos reiteradamente apontados em diversas decisões judiciais norte-americanas, quais sejam: 1) a reunião dos participantes em uma empresa – ou uma comunidade de interesses divididos entre os participantes em um ou mais projetos; 2) um motivo, quase sempre o lucro, que leva os participantes a participar da empresa; 3) um acordo para a gestão da joint venture que disciplina o exercício dos controles; 4) esse acordo deve ter os elementos de um contrato (tal como definidos pela Common Law); 5) a motivação e o interesse das partes em relação à empresa devem ser claros; assim como 6) a forma de distribuição dos lucros se a empresa visa lucro para si própria e não para outras empresas. 407

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Para ilustrar alguns dos requisitos, em seu artigo o mestre paulista traduz o trecho de uma decisão que, por sua técnica e conteúdo, merece ser transcrito: A joint venture não é um status created by Law, como observou um Tribunal Federal em Nova York, quando uma ação do governo dos EUA contra a Standard Oil Co. of California, teve que examinar a natureza jurídica da joint venture. Nesse caso, em que a joint venture foi examinada minuciosamente, ressaltou-se a exigência de um contrato, pois, segundo esse Tribunal, para afirmar se a joint venture foi criada ou não, depende-se integralmente da vontade das partes, expressa ou implícita. Continuava o julgado dizendo que a joint venture pode ter a mesma natureza de uma sociedade limitada a um único empreendimento, e não com propósito geral, e mais que ela é em geral descrita como uma combinação de propriedades, esforços, conhecimentos e decisões em um empreendimento comum. [17] Da leitura do trecho, nota-se que um dos requisitos apontados como condição sine qua non para que haja uma joint venture é a existência de um contrato, seja ele implícito ou explícito. Ou seja, nota-se a forte presença da autonomia da vontade, na medida em que é um contrato de forma livre, posto que não tipificado. A Suprema Corte norte-americana decidiu que o contrato que dá origem à joint venture deve ter ínsita a intenção de criá-la, e a verificação da existência, ou não, dessa intenção é uma questão a ser verificada de fato, caso por caso [18]. Além da característica supra, importante destacar que o decisum também estabelece a gestão conjunta, além do empenho de esforços de cada uma das partes para obtenção de lucros não apenas para si, mas para a sociedade. Das decisões dos Tribunais norte-americanos sobre o fenômeno, depreende-se que é feita uma análise casuística, na qual se observa se há o preenchimento dos requisitos, como em um teste, desta forma sendo preenchidos determinados requisitos, verifica-se que se trata de uma joint venture. Explicitados os conceitos acima, deve-se agora perquirir na definição da natureza jurídica da joint venture. Importante frisar que, para estabelecer a natureza jurídica de um fenômeno faz-se mister a análise da relação jurídica existente. Pelo já exposto, nota-se que o vínculo existente entre as partes não é imperativo - ex re, mas voluntariamente assumido, a relação entre as partes nasce do consenso - ex contractu. Assim, nota-se que, mesmo quando a joint venture adotar a forma de uma sociedade, sua natureza jurídica será contratual, já que a relação jurídica é estabelecida pelo consenso entre as partes, ou seja, pelo acordo de vontades. 408

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Na esteira daqueles que entendem a história como algo cíclico, dir-se-ia que as joint ventures de hoje se assemelham aos comerciantes da Idade Média e início da Idade Moderna que vislumbraram na associação de pessoas uma forma de transpor desafios e empreender atividades com as quais os custos um homem isoladamente dificilmente iria conseguir arcar. Naquela época, não muito longínqua, surgiram os diversos tipos de sociedades que se conhece atualmente, onde os homens reuniam seus esforços e capital e dividiam os riscos. Atualmente, em um mercado extremamente competitivo e globalizado, são as sociedades que encontram na união entre si, uma forma de superar os desafios da atividade empresária. Os contratos de colaboração visam diminuir os gastos que adviriam da celebração de diferentes contratos de intercâmbio, sem qualquer concatenação. Desta forma a celebração daquele tipo contratual enseja numa redução dos custos de transação, ou seja: Trata-se de realidade inegável: os empresários, em sua prática diária, trazem à luz contratos que pressupõem esforços conjugados, mas em que as partes, patrimonialmente autônomas, mantêm áleas distintas, embora interdependentes. Nem sociedade, nem intercâmbio, mas uma categoria que se situa entre esses dois pólos [19]. Destaque deve ser dado a esta ultima frase, visto que a joint venture pode adotar ou não uma forma societária. Desta forma, caberá agora efetuar uma breve análise das diferentes modalidades existentes do fenômeno, para entender as peculiaridades que revestem cada uma delas. 2.2. MODALIDADES Para adentrar o estudo das diferentes modalidades existentes de joint venture, importante se faz ressaltar que tal fenômeno se mostra como um campo livre da autonomia da vontade, donde as mentes criativas dos empreendedores vislumbram diversas possibilidades negociais. Assim, diferenças quanto aos riscos econômicos assumidos pelos contratantes, as eventuais formas possíveis para o fenômeno, além da distinção entre joint ventures nacionais e internacionais, serão abaixo explicitadas. 2.2.1. EQUITY JOINT VENTURES E NON EQUITY JOINT VENTURES Os juristas norte-americanos com base na clássica distinção econômica entre o equity capital (capital de risco, investimento direto) e o loan-capital 409

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(empréstimos ou investimentos indiretos) estabeleceram uma importante classificação entre as equity joint ventures e as non equity joint ventures. Nas equity joint ventures há um investimento direto de capital em outras sociedades já existentes ou criadas no ato, que se realiza através da aquisição, por qualquer forma, de participação no capital social. Importante destacar que a legislação de alguns países impõe que o investimento estrangeiro se dê através do modelo de uma equity joint venture. Tal imposição tem por fulcro impedir a implantação de sociedades subsidiárias integrais no território de tais países. Nos Estados Unidos as equity joint venture utilizam a estrutura da corporation (sociedade anônima), enquanto em outros países, como, por exemplo, no Brasil, além do referido tipo societário é possível também a utilização da sociedade limitada. Quanto às non equity joint ventures, a posição do participante não será a de sócio, mas a de um credor em um empréstimo, estando o investimento associado à álea do negócio. Esta última se demonstrava como o único meio de atuação em países socialistas, nos quais a legislação não admitia o direito de propriedade sobre os bens de produção. Como bem observa Luiz Olavo Baptista [20], foi sobre a non equity joint venture que os juristas norte-americanos se debruçaram para que prevalecesse o caráter contratual, e assim, fosse possível caracterizar as joint ventures, distinguindo-as das partnerships. Superado o estudo acerca da natureza do investimento efetuado pelos participantes no empreendimento, é possível agora trilhar rumo à próxima classificação, qual seja quanto à forma que será adotada pela joint venture. 2.2.2. CORPORATE JOINT VENTURE E NON CORPORATED JOINT VENTURE Inicialmente, observar-se-á a lição de Paula Andrea Forgioni sobre os contratos de colaboração entre empresas: Retornando à imagem de que nos valemos no início deste capítulo, dispuséssemos as formas jurídicas das relações entre empresas ao longo de uma linha imaginária, teríamos, em um extremo, os contratos de intercâmbio e, no outro, as sociedades. No entremeio, os mais variados tipos de contratos híbridos, que conjugam o elemento de intercâmbio com o de colaboração. Quanto mais próximo o contrato híbrido estiver daquele de intercâmbio, maior o grau de independência das partes e menor a colaboração entre elas. Ao nos deslocarmos paulatinamente na direção das sociedades, maior será o grau do vínculo e da colaboração. 410

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[21] Vale lembrar que o melhor exemplo de contrato de intercâmbio é a compra e venda, contrato no qual uma parte se obriga a pagar um determinado valor e, em contrapartida, a outra parte se obriga a fazer ou a dar alguma coisa, ou seja, o comprador paga o preço e o vendedor entrega a coisa ou presta o serviço, conforme o caso. Desta forma, após a conclusão do contrato, caberá a cada uma das partes cumprir com a sua obrigação, ocorrendo uma mera troca para satisfação dos próprios fins objetivados individualmente pelas partes. De modo diverso, na outra ponta encontra-se o contrato de sociedade que, por sua vez encontra sua melhor definição no próprio ordenamento jurídico, no art. 981 do Código Civil brasileiro, in verbis: Art. 981 Celebram contrato de sociedade as pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir, com bens ou serviços, para o exercício de atividade econômica e a partilha, entre si, dos resultados. Parágrafo único. A atividade pode restringir-se à realização de um ou mais negócios determinados. Neste diapasão, do próprio texto legal depreende-se que o caráter colaborativo é inerente aos contratos de sociedade, afinal, os sócios se obrigam a contribuir reciprocamente para o exercício da atividade, de modo a partilharem os resultados. Além disto, importante observar que, ao se referir a pessoas a lei não faz qualquer distinção entre pessoa natural ou moral, ou seja, tanto uma quanto a outra podem celebrar o referido contrato, desde que observadas as peculiaridades atinentes a cada tipo societário. Ademais, importante é observar o parágrafo único que deixa claro a possibilidade de constituição de uma sociedade para realização de apenas um negócio. A norma do art. 981 permite organizar sociedade cuja existência seja prevista para se protrair por tempo indeterminado, enquanto convier a todos, ou, como no caso do presente parágrafo, seja voltada para a realização de um único negócio, como, por exemplo, a formação de um consórcio que reúna várias sociedades para a consumação de uma só operação negocial. Irrelevante o tempo de duração. Com o completamento do negócio, a sociedade consorcial não tem mais razão para existir, uma vez que lhe falta objeto. Além dos consórcios de sociedades, outros negócios com a mesma característica, isto é, únicos, podem dar origem a organizações que se definem como sociedades. [22] 411

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Transcorridas estas primeiras observações, necessário é adentrar no cerne da questão que é observar a diferença entre a corporate e a non corporated joint venture. Para traçar tal distinção muito importante é se socorrer da ilustração bastante didática de Paula Andrea Forgioni que ao lecionar sobre os contratos de colaboração entre empresas, colocou de um lado os contratos de intercâmbio e do lado oposto as sociedades. Tendo em vista o caráter de colaboração, de empreendimento comum, ou seja, do esforço conjunto das partes (co-ventures), logo à primeira vista se percebe que as joint ventures tendem mais para uma sociedade do que para um simples contrato de compra e venda. Neste passo e, na medida em que no direito brasileiro predomina o princípio da autonomia da vontade, não havendo a exigência de uma forma específica para os negócios jurídicos, estes podem se realizar livremente, desde que não defesos em lei. Neste ponto começa a ficar mais evidente a diferença existente entre aqueles contratos que estão pendentes para o lado da sociedade daqueles que não estão apenas pendentes, porque na verdade são uma sociedade, preenchem os requisitos formais de modo que se vestem com as rígidas formas societárias. Estes são denominados corporate joint venture ou joint venture Societária, ao passo que aqueles são chamados de non corporated joint venture ou joint venture Contratual. A distinção se mostra presente quanto à forma jurídica adotada para desenvolver o empreendimento comum. Na non corporate joint venture ou joint venture contratual, apesar de haver uma associação de interesses para o compartilhamento dos riscos entre os parceiros, não há a formação de uma estrutura societária, ou seja, não há o nascimento de uma pessoa jurídica distinta dos pactuantes. Nesta modalidade o vínculo entre as partes é de caráter estritamente contratual, onde ocorre a associação de duas ou mais pessoas que, no intuito de efetuar um projeto, se unem para em conjunto unir recursos, sejam financeiros ou materiais, além de suas experiências e conhecimentos, para a consecução do projeto, convencionando também a divisão de lucros e perdas. Qualquer análise da joint venture contratual dentro do ordenamento jurídico brasileiro, não pode ser feita sem que também seja analisada a questão dos consórcios, instituto previsto nos artigos 278 e 279 da lei das sociedades por ações (Lei nº 6.404/76). Na doutrina é pacífico que a Lei nº 6.404 de 1976 é a lei geral dos consórcios. Nos dois artigos supracitados são indicados os participantes e o objeto do consórcio, há previsão textual de que este não tem personalidade jurídica. Além disso, da leitura do art. 278, § 2º, depreende-se que inexiste presunção de solidariedade entre as sociedades consorciadas. Todavia, como a 412

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maioria das regras comporta exceções, neste caso, não é diferente, por isso deve-se ressaltar o prescrito no art. 28, § 3° do Código de Defesa do Consumidor, in verbis: Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração. [...] § 3° As sociedades consorciadas são solidariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste código. Apesar de parecer inequívoco o erro legislativo, eis que inclui o consórcio, fenômeno que pela lei não é dotado de personalidade jurídica, em um artigo que versa especificamente sobre a desconsideração da personalidade jurídica. Todavia, enquanto não revogado o referido parágrafo, prevalecerá, no que tange as relações consumeristas, a solidariedade existente entre as sociedades consorciadas. [23] Passadas estas primeiras observações, é importante destacar que a lei disciplina o consórcio como uma modalidade de contrato de colaboração empresarial, sendo que parte da doutrina prefere inseri-lo no gênero dos grupos de sociedades, na espécie dos grupos de coordenação. O consórcio é uma forma de concentração administrativa, em relação de coordenação decorrente da comunhão parcial de interesses. Ele comporta a união parcial ou secundária de duas ou mais empresas, com a persistência das células individuais. Ele surge assim como opção onde a união integral revela-se inadequada, configurando uma estrutura de cooperação institucional que permite a conjugação de esforços e recursos. [24] Importante também é colacionar a lição de Mauro Rodrigues Penteado sobre o contrato de consórcio: Trata-se de contrato plurilateral, modalidade contratual superiormente sistematizada por Tullio Ascarelli, cuja nota marcante repousa na existência de escopo comum entre os interessados, que assumem 413

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direitos, obrigações e prestações que convergem para a sua consecução, diversamente das obrigações chamadas “correspectivas”, peculiares aos contratos bilaterais. [25] Desta forma, é possível chegar à conclusão de que existem muitos traços comuns entre os contratos de consórcio e as non corporated joint ventures, visto que em ambos os fenômenos há a união de pessoas as quais visam a concretização de um interesse comum, estabelecido por um vínculo contratual. Todavia é importante fazer a seguinte ressalva: por mais que o consórcio seja visto como uma non corporated joint venture, a recíproca não é verdadeira, eis que, aquele contrato é tipificado [26] em seu respectivo diploma legal, Lei das Sociedades por Ações, ao passo que este é associado à autonomia da vontade, podendo adotar outras formas que não as do contrato de consórcio. A prática mercantil costuma sempre anteceder a legislação, o que não se mostrou diferente no caso de colaboração entre sociedades empresárias. A regulamentação dos consórcios foi posterior à gênese do espírito de cooperação entre empresários, ou seja, as soluções se mostram oriundas das próprias sociedades, que observando os limites legais, buscaram, em conjunto, meios de empreender determinadas atividades as quais, separadamente, dificilmente seria possível realizar. Como lecionou Fabio Konder Comparato: Onde a concentração se revela impossível ou inadequada, a chave do êxito passa pela conjugação de esforços e recursos, sem a supressão da autonomia das diferentes unidades em causa. Cada empresa continua a perseguir o seu próprio objetivo, sob o controle independente de cada empresário, mas o método de trabalho não é mais individualista. Criamse estruturas de cooperação institucional, onde antes havia um conjunto de operações isoladas. [27] É exatamente na linha do pensamento de Fabio Konder Comparato, que é possível concluir a abordagem sobre a non corporated joint venture e dar início à discussão do tema relativo àquelas sociedades que, buscando estreitar ainda mais o vínculo de colaboração, estritamente contratual, tornam-se sócias em uma sociedade, para desenvolverem um negócio conjunto. Importante observar que haverá a criação de uma pessoa jurídica distinta da dos contratantes, sendo esta o meio utilizado para que os sócios (co-ventures) exerçam em conjunto as atividades que estarão estabelecidas no contrato de joint venture. Na Companhia Joint Venture [28], as sociedades participantes tem interesse em organizar uma empresa separada de suas respectivas 414

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empresas, a que deverá corresponder uma nova sociedade empresária com personalidade jurídica autônoma e patrimônio próprio. Geralmente, assim querem porque o objeto da associação exige a instituição de uma organização própria permanente e requer investimentos de maior vulto em capital próprio (daí porque tais associações são também chamadas de “Equity joint Ventures”). [29] Antes de expor uma definição da corporate joint venture, importante é fazer três observações. Primeiramente, cabe salientar que no ordenamento jurídico brasileiro inexiste uma obrigatoriedade de adoção de determinado tipo societário para a constituição de uma joint venture. Todavia, tendo em vista a limitação de responsabilidade dos sócios, a prática consagrou como mais utilizados os tipos de sociedade anônima ou limitada. Em segundo lugar, por mais que pareça óbvio, é importante destacar que o fato de as corporate joint ventures serem também equity joint ventures, se dá pelo fato de que nesta modalidade de joint venture, há o investimento de risco, ou seja, as partes contratantes assumem os riscos inerentes ao negócio. Sendo a sociedade um contrato plurilateral e, nas palavras de Orlando Gomes, “negócio jurídico pelo qual duas ou mais partes se obrigam reciprocamente a contribuir, com bens ou, quando permitido, com serviços, para o exercício de determinada atividade econômica”[30], depreende-se que em uma sociedade, os sócios, não visam apenas o próprio interesse, mas cooperam para a realização do fim comum. Por último, antes de definir a corporate joint venture, é forçoso perquirir a possibilidade de uma Sociedade de Propósito Específico (Special Purpose Company) ser uma joint venture. Para iniciar esta verificação, colacionase a lição de Nelson Eizirik, autor que se expressa pela possibilidade de comparação, veja-se: A SPE pode ser comparada a uma joint venture para a qual duas ou mais sociedades vertem seus esforços econômicos, tecnológicos, de pessoal, etc., com a finalidade de criar uma pessoa jurídica cujo único objetivo é realizar um empreendimento ou negócio específico. Sua existência fica expressamente condicionada à realização do seu propósito específico, tendo, normalmente, uma duração mais curta do que as sociedades mercantis. [31] Para chegar a tal conclusão, Nelson Eizirik cita Leonardo Guimarães, autor que critica o possível enquadramento da Sociedade de Propósito 415

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Específico como uma sociedade empresária, preferindo defini-la como um tipo de joint venture: A primeira consideração importante a ser ventilada acerca desta interessante forma de joint venture gira em torno de sua natureza jurídica. Trata-se a SPE de um novo modelo de sociedade mercantil? A resposta que se nos afigura mais acertada é não, porquanto, para que possa existir, exige-se da SPE, enquanto corporate joint venture – ou seja, joint venture constituída separadamente do corpo das suas controladoras -, que se revista de uma das formas societárias previstas no ordenamento jurídico pátrio. Destarte, a SPE, em si, não se pode conferir a qualidade de sociedade mercantil. [32] Importante ressaltar que para Leonardo Guimarães o fundamento que justificaria a impossibilidade de enquadramento da Sociedade de Propósito Específico como uma sociedade empresária está no fato de esta não ter vontade própria, pois é uma sociedade criada única e exclusivamente para prestar um serviço ou desenvolver um projeto específico, alcançado tal objetivo, dá-se a dissolução da sociedade. De modo diverso, este não é o destino necessário de uma corporate joint venture, pois tal sociedade poderá se estender no tempo. Além disso, o poder de decisão se dá no âmbito da própria joint venture, por deliberação dos sócios. Vista esta possibilidade, é fundamental ressaltar um aspecto muito importante e que, nos casos de Sociedade de Propósito Específico não pode ser esquecido, que é a impossibilidade de a corporate joint venture ser uma subsidiária integral [33], ou seja, uma sociedade controlada por outra sociedade. O controle no âmbito das joint ventures é partilhado entre os sócios. Aliás, existem mecanismos para que, mesmo no caso de participações distintas no capital social, o poder decisório se dê de forma equitativa aos parceiros. Por fim, tendo em vista tal impossibilidade, verifica-se que, nos casos em que a SPE é uma subsidiária integral não há que se falar em joint venture. Traspassadas estas primeiras linhas, necessário é trazer à baila a definição de joint venture societária, dada pelos mestres Alfredo Lamy Filho e José Luiz Bulhões Pedreira: É o contrato de sociedade entre dois ou mais empresários que se obrigam a reunir esforços e recursos com o fim de exercer em conjunto a função empresarial em determinado empreendimento econômico ou empresa. Duas são, portanto, as diferenças que o caracterizam, como espécie de contrato de sociedade: (a) os contratantes são empresários – pessoas 416

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naturais ou sociedades empresariais – e (b) o contrato é instrumento para que os contratantes exerçam a atividade empresarial. [34] Tendo em vista a constituição de uma sociedade, depreende-se que, existe um interesse maior quanto à rigidez da estrutura do contrato de joint ventures. Tal interesse acaba expressando um maior grau de comprometimento entre as partes, que passam a ser sócios. Ao escolher pela corporate joint venture, os co-ventures costumam avaliar vários fatores, em especial no que tange a natureza do projeto, bem como a sua duração, além de sopesar as características das legislações sobre o contrato de sociedade, haja vista as diferentes exigências existentes nos diversos ordenamentos jurídicos. Desta forma, caberá aos negociadores, a priori, efetuar uma análise da legislação de direito societário do país onde se quer constituir a joint venture, avaliando a possibilidade ou não de sua constituição sob a forma societária. Vale aqui destacar que, em determinados ordenamentos jurídicos, como, por exemplo, nos países socialistas, não é possível a constituição de uma sociedade, o que por si só, impossibilita a constituição de uma corporate joint venture. A fortiori, os negociadores deverão se debruçar sobre a análise acerca da viabilidade econômica. A constituição de uma sociedade em determinados ordenamentos jurídicos pode se mostrar bastante onerosa, para o empreendimento. Outro fator também a ser analisado é o tempo, tendo em vista as burocracias legais para se constituir uma sociedade. Após estas duas análises é que os negociadores poderão verificar se valerá à pena a constituição de uma corporate joint venture para a exploração econômica da atividade. A flexibilidade existente no fenômeno demonstra que este possui uma grande força de penetração no mercado internacional, e é exatamente neste sentido que será feita a terceira classificação das joint ventures, qual seja se nacionais ou internacionais. 2.2.3. JOINT VENTURES NACIONAIS E INTERNACIONAIS Conforme a nacionalidade dos participantes, pode haver joint ventures nacionais e internacionais. Na joint venture nacional são participantes duas ou mais sociedades empresárias de mesma nacionalidade, ao passo que, na internacional os participantes são duas ou três sociedades empresárias de nacionalidades distintas. Nesta, há uma associação entre a sociedade empresária estrangeira com alguma sociedade do país no qual aquela pretende executar um projeto ou empreendimento específico. As joint ventures internacionais costumam abarcar o sentido mais amplo empregado ao termo, pois podem expressar os mais diferentes mecanismos jurídicos aplicados ao fenômeno. 417

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Neste sentido expressa Astolfi: “En la prática la expresión joint venture es comúnmente utilizada para ilustrar acuerdos de colaboración internacional, prescindiendo de las modalidades de realización de ellos, y del significado histórico y jurídico de la misma expresión” [35]. Por meio deste tipo de associação empresarial, a sociedade empresária estrangeira terá a vantagem de ter como colaborador alguém que já conta com um conhecimento do mercado, e dos ambientes político, cultural e negocial do local. Além disso, muitas vezes também, a associação se mostra como a única forma legal de ingresso no mercado de determinados países. 3. AS JOINT VENTURES NA INDÚSTRIA DO PETRÓLEO Tendo em vista a importância atual do tema, bem como o advento de um novo marco regulatório para as áreas recentemente descobertas do pré-sal, é forçoso salientar as especificidades existentes no caso das joint ventures na indústria de exploração do petróleo. Sendo o petróleo uma das matérias-primas mais importantes do mundo, a sua exploração tende a ser uma preocupação mundial. Indústrias de todo o mundo desenvolvem pesquisas na busca de inovações tecnológicas o que torna a exploração do petróleo cada vez mais sofisticada. Os avanços tecnológicos tem permitido a exploração de petróleo em águas muito profundas, alias, este é o caso brasileiro, que tem na exploração off shore quase que a totalidade de sua produção, visto que suas maiores jazidas estão situadas nas profundezas do oceano. A exploração em alto mar requer um esforço conjunto que, por demandar grandes investimentos, acaba não se reduzindo a um plano interno, mas internacional. O processo de internacionalização da exploração petrolífera, congregando empresas oriundas de ordenamentos jurídicos distintos, com sujeição às leis e tradições de um terceiro país hospedeiro, diversificou e aprimorou os modelos de JOAs, atualmente utilizados. [36] Os JOAs (Joint Operating Agreement) são acordos de operações conjuntas, instrumentos contratuais com o particular interesse na indústria do petróleo, dele são participantes empresas internacionais, as quais firmam contrato de exploração com a empresa estatal do país hospedeiro. No Brasil, por exemplo, a empresa estatal é a Petróleo Brasileiro S.A. – PETROBRAS. Antes da EC nº 9/95, o mercado de petróleo e a exploração econômica do petróleo no Brasil eram monopólios da União, sendo exercido através de sua empresa – PETROBRAS, conforme art. 2º da Lei n.º 2.004/53 [37]. 418

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Sob este marco regulatório, a sociedade empresária estrangeira que pretendesse explorar petróleo no Brasil, deveria celebrar um acordo de operações conjuntas com a PETROBRAS, pois o modelo baseava-se no monopólio de exploração pela sociedade estatal, sendo, nesta hipótese, o Brasil o país hospedeiro, ou seja, o país onde se daria a exploração do petróleo. Com o advento da EC nº 9/95, houve a flexibilização do monopólio do petróleo, visto que tal emenda permitiu que a União pudesse contratar, não apenas com empresas estatais, mas também com sociedades empresárias privadas, a realização das atividades previstas nos incisos I a IV do art. 177 da Constituição. [38] Em 1997, foi promulgada a Lei n.º 9.478, a chamada Lei do Petróleo, que dentre outras mudanças previu que as atividades econômicas previstas no art. 177 da Constituição, poderiam ser exercidas, mediante concessão ou autorização, por empresas constituídas sob as leis brasileiras, com sede e administração no País. Outrossim, para a regulação e fiscalização daquelas atividades, foi instituída pela Lei do Petróleo a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis - ANP, entidade integrante da Administração Federal Indireta, submetida ao regime autárquico especial, como órgão regulador da indústria do petróleo, gás natural, seus derivados e biocombustíveis. Em um contexto político neoliberal de redução do papel do Estado, associado ao fato de ser o Brasil um país importador de petróleo e, além disso, carente de recursos para investir em novas lavras, em 1997, restou assim estabelecido na indústria do petróleo brasileira um paradigma baseado em um modelo de concessão o qual se fazia compatível com o potencial das bacias petrolíferas conhecidas que eram de alto risco e baixa rentabilidade. Todavia, com o anúncio da descoberta de grandes quantidades de petróleo e gás em nova província petrolífera, denominada Pré-Sal, em 2007, o Governo Federal entendeu que caberia realizar uma revisão do papel do Estado, de modo a viabilizar uma política econômica de fortalecimento de uma indústria nacional de fornecedores de bens e serviços e de uma necessária agregação de valores à cadeia de produção do petróleo e gás, ou seja, investimentos também nas industrias de downstream, para que não se exporte apenas o óleo in natura, mas refinado, com valor agregado. Assim, entendendo que o marco legal estabelecido na Lei nº 9.478/97, não seria suficiente para garantir o aproveitamento das reservas petrolíferas nas áreas da província do Pré-Sal, a comissão interministerial [39] afirma que o modelo instituído em 1997, no qual cabe ao concessionário arcar com a totalidade dos riscos e, portanto, obter o rendimento da exploração, mostrar-seia incompatível com a natureza da gigante área do Pré-sal40. Assim, a referida 419

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comissão propôs ao Presidente da República projeto de lei n.º 5.938/2009, o qual introduzia a possibilidade de exploração e produção de petróleo, de gás natural e de outros hidrocarbonetos fluidos mediante a realização de contratos de partilha de produção, projeto que após a devida tramitação, transformou-se na Lei n.º 12.351/2010. Nesta esteira, houve então a modificação do marco regulatório até então vigente, para a exploração de hidrocarbonetos na região do pré-sal, passando-se do modelo de concessões para um modelo denominado de partilha de produção. [41] Importante observar que no modelo de concessões havia Rodadas de Licitações para exploração de determinados blocos, sendo possível aos concorrentes se apresentar individualmente ou em consórcios. Assim, à sociedade empresária ou ao consórcio vencedor de determinado bloco caberá celebrar um contrato de exploração de petróleo com o Estado, sendo o concessionário responsável, por sua conta e risco, pelo desenvolvimento das atividades, adquirindo, em caso de sucesso, a propriedade dos recursos petrolíferos de fato produzidos, ou seja, o petróleo no subsolo era monopólio da União, mas passava a ser de propriedade do concessionário que o descobriu a partir da boca do poço, cabendo à União o recebimento de royalties, participações especiais, bônus de assinatura etc. Neste cenário supramencionado é possível observar a existência de uma menor interferência do Estado na autonomia da vontade [42], a limitação que ocorre no modelo de concessão, é feita através da regulamentação da Agência Nacional do Petróleo, que estabelece modelos padrões de contratos – standarts, que devem ser observados pelas partes, mesmo quando contratam entre si para a formação de consórcios. Assim, o Estado regulador estabelece os limites da autonomia da vontade em benefício da ordem pública. O que no momento ocorre, e o jurista não pode desprender-se das idéias dominantes no seu tempo, é a redução da liberdade de contratar em benefício da ordem pública, que na atualidade ganha acendrado reforço, e tanto que Josserand chega mesmo a considerá-lo a “publicitação do contrato”. Não se recusa o direito de contratar, e não se nega a liberdade de fazê-lo. O que se pode apontar como a nota predominante nesta quadra da evolução do contrato é o reforçamento legal do contrato, a fim de coibir abusos advindos da desigualdade econômica; o controle de certas atividades empresárias; a regulamentação dos meios de produção e distribuição; e sobretudo a proclamação efetiva da preeminência dos interesses coletivos sobre os de ordem privada, com acentuação tônica sobre o princípio da ordem pública, que sobreleva ao respeito pela 420

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intenção das partes, já que a vontade destas obrigatoriamente tem de submeter-se àquela. [43] (grifos nossos) Ocorre que com o advento da Lei n.º 12.351/2010, nota-se que para a região do pré-sal o Governo Federal, ao revés do marco regulatório anterior, pretende intervir diretamente nas atividades da indústria petrolífera, fundamentando-se, justamente no interesse público, ao afirmar que a alteração do modelo objetiva assegurar para a Nação a maior parcela do óleo e do gás, apropriando para o povo brasileiro parcela significativa da valorização do petróleo44. Para garantir a sua participação direta, bem como no intuito de diminuir a assimetria de informações entre a União e as empresas de petróleo por meio da atuação e acompanhamento direto de todas as atividades na área de exploração e produção, em especial o custo de produção do óleo, o Governo Federal instituiu a Empresa Brasileira de Administração de Petróleo e Gás Natural S.A. - Pré-Sal Petróleo S.A. (PPSA) [45], empresa pública estatal que irá gerenciar a exploração de petróleo do pré-sal. A atuação desta empresa se concentrará na gestão dos contratos de partilha de produção, não cabendo a esta a assunção de quaisquer riscos, nem mesmo com os custos e investimentos referentes às atividades de exploração, avaliação, desenvolvimento, produção e desativação das instalações de exploração e produção decorrentes dos contratos de partilha de produção. [46] Importante é ainda observar a posição dada pela lei à PETROBRAS que como operador ficará responsável pela condução e execução, direta ou indireta, de todas as atividades de exploração, avaliação, desenvolvimento, produção e desativação das instalações de exploração e produção. [47] Além da posição de operador, caberá à PETROBRAS atuar como contratada, isoladamente ou em consórcio por ela constituído com o vencedor da licitação, para a exploração e produção de petróleo, de gás natural e de outros hidrocarbonetos fluidos em regime de partilha de produção. [48] Insta salientar que diferentemente do modelo de concessão, a participação da PETROBRAS é imprescindível na formação dos consórcios, sendo que esta deve ter a participação mínima de 30% (trinta por cento) [49], ou seja, no modelo de partilha ora vigente para o pré-sal, a autonomia privada encontra-se amplamente restringida, visto que as exigências legais impedem a formação de parcerias empresariais que não sejam formadas com a PETROBRAS e a PréSal Petróleo S.A. (PPSA). Ademais, cabe salientar a possibilidade de se sustentar um vício de inconstitucionalidade da Lei n.º 12.351/2010, na medida em que dá um tratamento diferenciado à PETROBRAS que poderá ser contratada diretamente pela União dispensada a licitação. [50] Como sociedade de economia mista 421

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a PETROBRAS deveria competir em pé de igualdade com as sociedades de direito privado, sob o risco de prejuízo à livre concorrência [51], assim, a dispensa à licitação além de caracterizar um tratamento não isonômico, também desestimula a livre iniciativa. Outra preocupação que se apresenta, já no campo econômico e não tanto no jurídico, diz respeito a uma eventual incapacidade de a PETROBRAS poder arcar com os elevadíssimos custos para a exploração e produção do petróleo, afinal, como dito alhures, para extração em regiões muito profundas como as do pré-sal, são necessárias vultosas quantias. Vale lembrar que pelo novo marco regulatório caberá à PETROBRAS a participação em pelo menos 30% (trinta por cento) de cada consórcio, desta forma, cabe uma reflexão quanto à viabilidade econômica da referida sociedade empresária no que tange arcar com todos os custos inerentes aos riscos da atividade. 4. CONCLUSÃO Da análise do conceito das joint ventures foi possível depreender que tal fenômeno se trata de um modo de colaboração empresarial, hodiernamente, bastante utilizado na prática empresária. Quanto à natureza jurídica do referido fenômeno importante observar que ela é eminentemente contratual, visto que o vínculo existente entre as partes não é imperativo - ex re, mas voluntariamente assumido. A relação entre as partes nasce do consenso - ex contractu. O que permite verificar que, mesmo quando a joint venture adotar a forma de uma sociedade, sua natureza jurídica será contratual, já que a relação jurídica é estabelecida pelo consenso entre as partes, ou seja, pelo acordo de vontades. Verificada a presença do caráter de colaboração existente, na medida em que se expressa pelo esforço conjunto das partes (co-ventures), forçoso é concluir que as joint ventures tendem mais para uma sociedade do que para um simples contrato de intercâmbio. Após visualizar as diversas modalidades de joint ventures existentes, o estudo se dirigiu para a análise destas no âmbito da indústria do petróleo. Tal inclinação deu-se, principalmente em virtude do novo marco regulatório recentemente estabelecido para as áreas do pré-sal e que ensejou a mudança do antigo modelo de concessão para um novo modelo de partilha de produção. Neste modelo de partilha de produção verificou-se que haverá uma maior intervenção do Estado sobre a autonomia privada, na medida em que, além da criação de uma empresa pública Pré-Sal Petróleo S.A. (PPSA), para gerenciar os contratos de exploração de petróleo, gás natural e outros hidrocarbonetos na região do Pré-sal, o diploma legal também estipulou que a PETROBRAS terá necessariamente uma participação mínima, estabelecida na lei, nos consórcios 422

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que forem estabelecidos com o licitante vencedor, nos termos do artigo 20 da Lei n.º 12.351/2010. Importante também foi verificar a possibilidade de a União contratar diretamente com a PETROBRAS, sem que seja efetuada prévia licitação. Tal situação, não só caracteriza um tratamento não isonômico, mas, como acima exposto é contrário a livre iniciativa e a livre concorrência, pois privilegia sociedade de economia mista, que deveria estar sujeita às mesmas normas aplicáveis as pessoas de direito privado. Por fim, coube destacar alguns questionamentos de cunho econômico os quais, provavelmente, só o tempo irá responder, tais como uma eventual impossibilidade de a PETROBRAS ter recursos financeiros para conseguir explorar as atividades de exploração de petróleo e gás natural, nos termos do diploma legal, bem como a possibilidade de haver uma possível fuga de investimentos estrangeiros.

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amplos privilégios, autorizando-a, em nome dos Estados Gerais, a “fazer contratos, pactos e alianças com príncipes e naturais dos países compreendidos nos limites, construir fortalezas e fortificações, admitir gente de guerra, nomear governadores e funcionários da justiça e outros, para os serviços necessários à conservação das praças, manutenção da ordem e policia, distribuição da justiça e desenvolvimento do comércio, deportar e demitir funcionários e colocar outros em seu lugar. Cf. VALVERDE, Trajano de Miranda. Sociedade por ações, vol. I. Rio de Janeiro: Forense, 1959, p.11-12. [4] Cf. LOBO, Carlos Augusto da Silveira. As Joint Ventures. Revista de Direito Renovar, Rio de Janeiro, v. 1, jan./abr. 1995, P. 77. [5] Hourquebie v. Girard, 12 Fed. CAs. 6732, 2 Wash. C. C. 212 (1808); Lyles v. Styles, 15 Fed. Cas. 8625, 2 Wash. C. C. 224 (1808). [6] The Joint Venture Fable, disponível em http://ssrn.com/abstract=1604084, acessado em 15.10.2010. [7] Ozeas v. Johnson Binn. 191 (Pa. 1806). [8] Além de utilizar a palavra sócio, tradução do termo em inglês partners, optou-se por também mencionar este último, posto que pela decisão, haveria no caso concreto uma partnership. [9] The proper remedy, for one partner against the other, is by an action of account render. No case has been cited by the plaintiff’s counsel to show that an action like the present can be maintained, unless the partners have settled their account, and struck the balance. It is of importance that the forms of action should not be confounded. They are founded in good sense, and convenience. The defendant has an interest in insisting that the proper form of action should be preserved, of which this court has no right to deprive him. It is most convenient that the partnership accounts should be settled before auditors. It would be extremely difficult, and in many cases almost impossible to settle them by a jury. I am therefore of opinion that the plaintiff cannot maintain his action. Tradução livre: O meio apropriado de um sócio litigar em face de outro sócio é pela ação de prestação de contas. O advogado do autor não indicou qualquer decisão que demonstrasse a necessária manutenção da presente ação, ou mesmo que os sócios tenham liquidado suas contas, e finalizado o saldo. É importante que as formas de ações não sejam confundidas. Elas são criadas de acordo com a conveniência e o bom senso. O réu tem o interesse em insistir que seja adotada a forma apropriada de ação, não tendo a Corte o direito de privá-lo deste meio. É mais conveniente que a prestação de contas da sociedade ocorra antes da auditoria. Seria extremamente difícil e em alguns casos até mesmo impossível o julgamento por um júri. Eu sou, por isso, da opinião de que o autor não pode manter esta ação. [10] A partnership do direito norte-americano, no ordenamento jurídico brasileiro, seria semelhante à sociedade simples, na qual a responsabilidade dos sócios, em regra, não é limitada, salvo o previsto no inciso VIII do artigo 997 do Código Civil, que prevê a possibilidade de os sócios estipularem no contrato social que a responsabilidade se 427

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dará de forma subsidiária. Além deste fator, há nestas sociedades uma forte presença do caráter intuitu personae. Desta forma, no presente estudo, para evitar confusão, será evitada a tradução do termo para a língua portuguesa. [11] Miller v. Walser, 42 Nev. 497, 181 Pac. 437 (1919), (The principal distinction between a partnership and a joint venture is that in most jurisdiction, where any is regarded as existing, one party may sue the other at law for a breach of the contract; but this right will not preclude a suit in equity for an accounting). [12] Rae v. Cameron, 112 Mont 159, 168, 114 p. 2d. 1060 (1941), apud BAPTISTA, Luiz Olavo, in  A Joint Venture – Uma Perspectiva Comparatista, Revista de Direito Mercantil, ano XX, 42, abr/jun 81. “A reading of the cases on the subject confirms the observation to the effect that the courts have not laid down an exact definition of the term joint adventure which can be used as a general rule by means of which the ultimate question can be determined”. [13] NICHOLS.“Joint Ventures” in Virginia Law Review, vol. 36, n. 4, 1950, p.425429. apud BAPTISTA, Luiz Olavo, op. cit., p. 43. [14] Importante ressalva é que esta regra não é válida em todos os estados da federação norte-americana, já que no Estado de Nova Iorque, por exemplo, admite-se que uma pessoa jurídica (Corporation) seja sócia de uma partnership. [15] Cf. GAMBARO, Carlos Maria, O contrato internacional de joint venture in Revista de Informação Legislativa, v. 37, n.º 146, abr./jun. de 2000, p. 89. [16] BAPTISTA, Luiz Olavo, op. cit., p. 42. [17] United States v. Standard Oil Co. of California, 155 F. Supp. 121 (S.D.N.Y. 1957), aff’d 270 F2d 50 (2d Cir. 1959) in BAPTISTA, Luiz Olavo, op. cit., p. 48. [18] Commisioner of Internal Revenue v. Tower, 327 U.S. 280 (1946). [19] FORGIONI, Paula A., Teoria geral dos contratos empresariais, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 173. [20] BAPTISTA, Luiz Olavo, op. cit., p. 55-56. [21] FORGIONI, Paula A., op. cit.,p. 174-175. [22] FONSECA, Priscila M. P. Corrêa da. Código civil comentado, vol. XI: direito de empresa, artigos 887 a 926 e 966 a 1.195. São Paulo: Atlas, 2008, p. 136. [23] O § 3° trata da responsabilidade solidária das sociedades consorciadas, caso em que nem se poderia cogitar de desconsideração, pelo fato de não possuir o consórcio personalidade jurídica, requisito indispensável à aplicação da teoria. In ALVES, Alexandre Ferreira de Assumpção. Fundamentos da desconsideração da personalidade jurídica no sistema jurídico da Common Law e sua aplicação no direito inglês e norteamericano - influência no Código Brasileiro de Defesa do Consumidor in Temas de direito civil-empresarial. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. [24] RIBEIRO, Marilda Rosado de Sá. op. cit., p. 74. [25] PENTEADO, Mauro Rodrigues. O contrato de consórcio in Novos Contratos Empresariais (Coord. Carlos Alberto Bittar). São Paulo: Editora Revista dos 428

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Tribunais, 1990, p. 76. [26] Art. 278. As companhias e quaisquer outras sociedades, sob o mesmo controle ou não, podem constituir consórcio para executar determinado empreendimento, observado o disposto neste Capítulo. § 1º O consórcio não tem personalidade jurídica e as consorciadas somente se obrigam nas condições previstas no respectivo contrato, respondendo cada uma por suas obrigações, sem presunção de solidariedade. § 2º A falência de uma consorciada não se estende às demais, subsistindo o consórcio com as outras contratantes; os créditos que porventura tiver a falida serão apurados e pagos na forma prevista no contrato de consórcio. Art. 279.  O consórcio será constituído mediante contrato aprovado pelo órgão da sociedade competente para autorizar a alienação de bens do ativo não circulante, do qual constarão: I - a designação do consórcio se houver; II - o empreendimento que constitua o objeto do consórcio; III - a duração, endereço e foro; IV - a definição das obrigações e responsabilidade de cada sociedade consorciada, e das prestações específicas; V - normas sobre recebimento de receitas e partilha de resultados; VI - normas sobre administração do consórcio, contabilização, representação das sociedades consorciadas e taxa de administração, se houver; VII - forma de deliberação sobre assuntos de interesse comum, com o número de votos que cabe a cada consorciado; VIII - contribuição de cada consorciado para as despesas comuns, se houver. Parágrafo único. O contrato de consórcio e suas alterações serão arquivados no registro do comércio do lugar da sua sede, devendo a certidão do arquivamento ser publicada. [27] COMPARATO, Fabio Konder. Ensaios e pareceres de direito empresarial. Rio de Janeiro: Forense, 1978, p. 223. [28] No presente estudo, à sociedade criada com o intuito de efetuar o empreendimento comum, preferir-se-ão os termos Corporate joint venture ou joint venture societária, em detrimento da denominação Companhia joint venture utilizada pelo autor. [29] LOBO, Carlos Augusto da Silveira. op. cit., p. 81. [30] GOMES, Orlando. Contratos. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 481. [31] EIZIRIK, Nelson. Temas de direito societário. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p.573. [32] GUIMARÃES, Leonardo. “A SPE – Sociedade de Propósito Específico” in Revista de Direito Mercantil, nº 125, jan.;mar. de 2002, p. 137. Apud EIZIRIK, Nelson. Op. cit., p. 573. [33] Para uma holding, uma joint venture seria um componente afiliado, e não um componente-controlado, porque a joint venture não permite um controle absoluto de um parceiro da sociedade, a holding pode consolidar o capital investido, mas precisa 429

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reconhecer a independência da pessoa jurídica da joint venture perante o público geral e a justiça. Cf. RASMUSSEN, Uwe Waldemar. Holdings e joint ventures. São Paulo: Aduaneiras, 1991. [34] LAMY FILHO, Alfredo e PEDREIRA, José Luiz Bulhões. A Lei das S.A. Rio de Janeiro: Renovar, 1992, p. 363. [35] ASTOLFI. El contrato internacional de “joint venture”, RDCO, 1981, p. 676 apud FARINA, Juan M., Contratos comerciales modernos, Buenos Aires: Astrea, 1999, p. 783. [36] RIBEIRO, Marilda Rosado de Sá. As joint ventures na indústria do petróleo. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 171. [37] Art. 1º Constituem monopólio da União: I- a pesquisa e a lavra das jazidas de petróleo e outros hidrocarbonetos fluídos e gases raros, existentes no território nacional; II- a refinação do petróleo nacional ou estrangeiro; III- o transporte marítimo do petróleo bruto de origem nacional ou de derivados de petróleo produzidos no País, e bem assim o transporte, por meio de condutos, de petróleo bruto e seus derivados, assim como de gases raros de qualquer origem. Art. 2º A União exercerá, o monopólio estabelecido no artigo anterior: I- por meio do Conselho Nacional do Petróleo, como órgão de orientação e fiscalização; II- por meio da sociedade por ações Petróleo Brasileiro S. A. e das suas subsidiárias, constituídas na forma da presente lei, como órgãos de execução. [38] Art. 177. Constituem monopólio da União: I - a pesquisa e a lavra das jazidas de petróleo e gás natural e outros hidrocarbonetos fluidos; II - a refinação do petróleo nacional ou estrangeiro; III - a importação e exportação dos produtos e derivados básicos resultantes das atividades previstas nos incisos anteriores; IV - o transporte marítimo do petróleo bruto de origem nacional ou de derivados básicos de petróleo produzidos no País, bem assim o transporte, por meio de conduto, de petróleo bruto, seus derivados e gás natural de qualquer origem. [39] Comissão interministerial, composta pelos ministros Edison Lobão, Dilma Rousseff, Guido Mantega, Miguel Jorge e Paulo Bernardo e convocada pelo então Presidente da República, Lula, para apresentar proposta de adaptação da Lei do Petróleo ao novo cenário aberto com as descobertas do Pré-sal. [40] A descoberta dos reservatórios do Pré-sal mudou o patamar das reservas petrolíferas do País, baixando o risco exploratório em um momento em que o preço internacional do petróleo está relativamente alto, compensando os custos de exploração e produção em águas ultraprofundas e garantindo ótima rentabilidade. Disponível em http://blog. planalto.gov.br/pre-sal-exposicao-de-motivos/trackback/, acessado em 28.04.2011. [41] Art. 2º Para os fins desta Lei, são estabelecidas as seguintes definições: 430

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I - partilha de produção: regime de exploração e produção de petróleo, de gás natural e de outros hidrocarbonetos fluidos no qual o contratado exerce, por sua conta e risco, as atividades de exploração, avaliação, desenvolvimento e produção e, em caso de descoberta comercial, adquire o direito à apropriação do custo em óleo, do volume da produção correspondente aos royalties devidos, bem como de parcela do excedente em óleo, na proporção, condições e prazos estabelecidos em contrato; [42] Em suas linhas gerais, eis o princípio da autonomia da vontade, que genericamente pode enunciar-se como a faculdade que tem as pessoas de concluir livremente os seus contratos in PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, vol. III, Rio de Janeiro: Editora Forense, 2004, p. 25. [43] PEREIRA, Caio Mario da Silva, op. cit., p. 29. [44] Para isto há a previsão de criação de um Novo Fundo Social que tem por objetivo proporcionar uma fonte regular de recursos para as atividades prioritárias, quais sejam o combate à pobreza, a educação de qualidade e a inovação científica e tecnológica, transformando a riqueza baseada nos recursos naturais em riqueza para as pessoas, em oportunidades e desenvolvimento humano [45] Lei n.º 12.304/2010. [46] Art. 8º da Lei n.º 12.351/2010. [47] Art. 2º, VI da Lei n.º 12.351/2010. [48] Art. 2º, VII da Lei n.º 12.351/2010. [49] Art. 10, III, “c” da Lei n.º 12.351/2010. [50] Art. 8º, I da Lei n.º 12.351/2010. [51] Importante destacar que, no modelo de concessões, previsto na Lei do Petróleo (Lei n.º 9.478/1997), tal situação mostra-se bastante diferente, veja-se, in verbis: Art. 61. A Petróleo Brasileiro S.A. - PETROBRÁS é uma sociedade de economia mista vinculada ao Ministério de Minas e Energia, que tem como objeto a pesquisa, a lavra, a refinação, o processamento, o comércio e o transporte de petróleo proveniente de poço, de xisto ou de outras rochas, de seus derivados, de gás natural e de outros hidrocarbonetos fluidos, bem como quaisquer outras atividades correlatas ou afins, conforme definidas em lei. § 1º As atividades econômicas referidas neste artigo serão desenvolvidas pela PETROBRÁS em caráter de livre competição com outras empresas, em função das condições de mercado. (grifos nossos)

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