O controle de mérito da discricionariedade administrativa e a Velha Roupa Colorida

May 29, 2017 | Autor: Mariana de Siqueira | Categoria: Public Administration, Direito Administrativo, Droit administratif
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31 de julho de 2016

O controle de mérito da discricionariedade administrativa e a Velha Roupa Colorida Mariana Siqueira (RE)PUBLICANDO

Semana passada, enquanto dirigia rumo à UFRN, ouvi em meu carro uma canção de Belchior, compositor que ocupa um lugar de apreço imenso em minha prateleira invisível de canções prediletas. A música eraVelha Roupa Colorida, imortalizada na voz de Elis Regina. Por alguma razão de ordem cognitiva que eu desconheço, minutos depois, ao falar em sala de aula sobre a atual visão direcionada à discricionariedade administrativa, me peguei lembrando de trechos da canção. A discricionariedade administrativa é tradicionalmente ensinada e entendida como forma de manifestação de vontade da Administração, pautada em conveniência e oportunidade e, portanto, dotada de alguma dose de liberdade. Convém reforçar já aqui que essa dose de liberdade é referente a uma liberdade juridicamente condicionada, conformada e moldada pelo Direito, não devendo ser assimilada de modo algum como sinônimo de arbitrariedade ou da possibilidade de agir sem qualquer amarra normativa. É comum que os alunos iniciem os seus estudos sobre atos administrativos de forma a analisar comparativamente os atos discricionários e os atos vinculados. As similitudes entre ambos e, mais especialmente, suas distinções, são vistas como nuances que facilitam a primeira leitura e compreensão do tema.

Enfatizando as diferenças, os autores expõem que os atos vinculados não oferecem ao administrador liberdade apreciativa para agir, pois o legislador não teria dado a ele esse espaço. Na ocorrência da exata hipótese normativa prevista, deve o gestor executar o específico comportamento que a lei lhe direcionou. Nos atos discricionários, diferentemente, expõem os juristas que há alguma margem de escolha deixada pelo direito positivo para o Administrador. É nessa liberdade de escolha, inclusive, que reside a ideia demérito[1] do ato administrativo discricionário. Ressaltando as coincidências entre ambas as categorias de atos, é usual que se diga que os atos discricionários não são plenamente discricionários, possuindo eles também elementos vinculados, a exemplo de sua forma, sujeito competente e finalidade. A sua marca discricionária, desse modo, estaria restrita aos elementos motivo e objeto. O mérito do ato discricionário, como já nos ensinava há anos o grande Seabra Fagundes (1967, rodapé 2, p. 149), não corresponde a elemento autônomo ou com posição própria; ao invés disso, “surge em conexão com o motivo e o objeto. Relaciona-se com eles. É um aspecto que lhes diz respeito. É uma maneira de considerá-los na prática do ato. É, em suma, o conteúdo discricionário deste.” Detalhando, diversificando e aprofundando o estudo do assunto, o discente mais curioso certamente irá se deparar com narrativas doutrinárias não tão uniformes, especialmente em se tratando do específico tema do controle do ato discricionário. Perceberá, sem sombra de dúvidas, divergências intensas e dizeres diametralmente opostos ao redor de um ponto específico: a (in)tangibilidade do mérito do ato administrativo. Vejam bem, a divergência não é sobre a possibilidade de controle do ato discricionário em si, nesse aspecto o discurso da doutrina é bastante linear e uniforme. A viabilidade de tal fiscalização é claramente defendida, não só pela existência de elementos vinculados no ato discricionário, mas também pela legalidade administrativa e inafastabilidade da jurisdição consagrada expressamente no art. 5º, XXXV, da Constituição Federal de 1988. As discussões e divergências residem na intangibilidade do mérito, marca ímpar do ato discricionário. Pode, afinal, o mérito ser controlado? Uma rápida e relativamente superficial pesquisa no Google pode revelar a frequência com que o tema tem despontado nos mais variados escritos da contemporaneidade. Ao inserir a expressão controle do mérito administrativo no sistema de buscas do referido site, 489.000 resultados aparecerem. Esse dado, ainda que não seja realizada a efetiva leitura de cada link apresentado, já é capaz de demonstrar uma mínima dose da medida de atualidade e intensidade de estudo do assunto – isso só na língua portuguesa! Saindo do universo virtual e me aproximando de algo mais tangível, decidi realizar uma minicatalogação de posições ao redor do tema a partir da leitura de alguns dos livros que possuo aqui na biblioteca de minha casa. Confesso que a escolha foi parcialmente aleatória, peguei alguns dos manuais que possuo, aqueles que habitualmente são mencionados como referências básicas nas mais variadas ementas das disciplinas de Direito Administrativo nas faculdades de Direito do país. Além deles, fiz uso do clássico e tradicional O Controle Judicial dos Atos Administrativos de autoria de Seabra Fagundes.

Eis o resultado... Alexandre Santos de Aragão, em seu Curso de Direito Administrativo, se revela favorável a um maior controle do ato discricionário. Ainda que não mencione expressamente ser favorável ao controle do mérito, mesmo não se utilizando especificamente de tal expressão, a sua narrativa parece conduzir o leitor ao entendimento de que o autor entende ser possível o controle do mérito do ato discricionário. Diz Aragão (2013, p. 623 – 628), inclusive, que num futuro breve provavelmente não mais fará sentido distinguir e trabalhar com as categorias de atos vinculados e discricionários. Todos serão atos vinculados com intensidades distintas de vinculação. José dos Santos Carvalho Filho (2011, p. 116), por sua vez, em seu Manual de Direito Administrativo se posiciona de forma contrária ao controle do mérito. Segundo ele, o Judiciário “não pode imiscuir-se nessa apreciação, sendo-lhe vedado exercer o controle judicial sobre o mérito administrativo.” Seabra Fagundes (1967, p. 148), no clássico aqui já mencionado, expõe posição contrária à tangibilidade do mérito do ato. Para ele, “Ao Poder Judiciário é vedado apreciar, no exercício do controle jurisdicional, o mérito dos atos administrativos. Cabe-lhe examinálos, tão-sòmente, sob o prisma da legalidade.” Celso Antônio Bandeira de Mello (2014, p. 1020), em seu Curso de Direito Administrativo, expõe que o “campo de apreciação meramente subjetiva (...) permanece exclusivo do administrador e indevassável do juiz, sem o que haveria substituição de um pelo outro, a dizer, invasão de funções que se poria às testilhas com o princípio da independência dos Poderes, consagrado no art. 2º da Lei Maior.” Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2016, p. 262), por fim, em sua obra Direito Administrativo, expõe que pode haver controle no desvio de poder, irrazoabilidade, desproporcionalidade, ausência de motivos ou motivação, violação a princípios. Aos seus olhos, alguns dizem que isso é controle de mérito, para ela, todavia, não seria controle de mérito, mas de legalidade. Diz a autora que “Poder-se-ia afirmar que estão controlando o mérito no sentido antigo da expressão, mas não no sentido atual. Somente se pode falar em mérito, no sentido próprio da expressão, quando se trate de hipóteses em que a lei deixa à Administração Pública a possibilidade de escolher entre duas ou mais opções igualmente válidas perante o Direito; nesse caso, a escolha feita validamente pela Administração tem que ser respeitada pelo Judiciário. Não se pode confundir controle do mérito com controle dos limites legais da discricionariedade.” Com os poucos exemplos aqui reunidos, é possível concluir que a doutrina administrativista realmente tem sido marcada pela não uniformidade no trato do tema do controle do mérito pelo Judiciário. E ele, o Judiciário, o que será que pensa e diz a respeito disso tudo? Como se posiciona ao redor do controle dos atos discricionários que cotidianamente lhe são direcionados? Se o leitor espera encontrar nos entendimentos judiciais os esclarecimentos para as dúvidas reunidas até esse ponto de leitura e a tão sonhada racionalidade no discurso sobre este polêmico assunto, possivelmente irá se decepcionar. Phillip Gil França (2012), em

trabalho científico dedicado ao tema, catalogou diferentes posturas jurisdicionais no âmbito do controle do ato discricionário. Há entendimento judicial no sentido de não aceitar a tangibilidade do ato administrativo; posições viabilizadoras do controle do mérito quanto à legalidade; decisões que realizam o controle indireto sem o admitir expressamente, por meio da ponderação de valores; e a efetivação do controle do mérito de forma regular e em casos extraordinários. Diante de tão díspares entendimentos doutrinários e judiciais, sofro eu, sofrem os discentes, sofrem os juristas como um todo na tentativa de entender como de fato a nossa história jurídica atual deve se referir ao ato discricionário. São muitas as perguntas que me vêm à mente em tal contexto; revelo aqui algumas delas: Faz sentido manter a categoria de ato discricionário hoje? O que verdadeiramente a diferencia dos atos vinculados, se a discricionariedade se sujeita na prática a tão amplo controle judicial? O mérito é ou não intangível? O controle de mérito pelo Judiciário relativiza a tripartição das funções estatais? Com o controle de mérito o juiz vira gestor? Bem, me parece que os autores, ao escreverem sobre o tema, trabalham com uma espécie de jogo de palavras, de forma a buscarem a coerência lógica de seu próprio discurso. Eu, particularmente, tenho sérias dificuldades, por exemplo, de compreender como se mantém a intangibilidade do mérito do ato administrativo durante o controle do ato discricionário a partir do argumento da razoabilidade. Em minha singela leitura, ainda que não se queira admitir, ali é feito o controle da escolha, da alegação de conveniência e oportunidade, do mérito, portanto. Na prática, aos meus olhos, é isso que hoje temos, estejamos nós a assumir ou não, estejamos nós a conceituar de modo distinto ou não a antiga ideia demérito. A ideia de discricionariedade enquanto liberdade relativa de decisão, dentro da atual conjuntura, parece manter algum sentido quando conectada ao universo do direito positivo em abstrato. Há ato discricionário no que diz respeito ao modo de sua previsão na normativa. Uma vez transposta a hipótese normativa para a vida real, analisado o texto diante do caso concreto com vistas à construção da norma, a partir das variáveis fáticas do caso, do que já existe consolidado na história institucional, dogmática e jurisprudência, o resultado dificilmente será o de duas escolhas em concreto objetivamente idênticas.[2]Parece-me que sempre há de haver uma mais correta que a outra, uma mais compatível com a Constituição do que a outra. É o antigo (e ainda novo) dilema da existência da resposta correta. E aqui, um problema nasce para essa modalidade de controle do ato discricionário hoje observada: O juiz decide, logo administra? Encontrar o ponto de equilíbrio entre esse controle, a tripartição das funções de Estado e a ontologia do ato de administrar parece ser aspecto extremamente relevante para o sucesso e equilíbrio dessa contemporânea experiência jurisdicional. Racionalizar o discurso desse tipo de decisão judicial, pensar e implementar mecanismos de fortalecimento da dialeticidade democrática dentro do Judiciário me parecem necessidades urgentes. O juiz, definitivamente, não é gestor do Estado e a atividade que desempenha, assim como aquela atinente ao gestor, possui limitações estruturais.

Neste lugar finalizarei a minha narrativa, já me comprometendo a retomar o assunto em breve. Pelo limite físico dos caracteres da coluna devo finalizar o texto, me omitindo com tantos outros aspectos que gostaria de abordar. E Belchior nisso tudo? Comecei com ele e com ele finalizarei. O mérito do ato discricionário, outrora visto como intangível, hoje vive realidade de controle. É como diz a canção, “no presente, a mente, o corpo é diferente, e o passado é uma roupa que não nos serve mais.” Aos administrativistas se ressalta a necessidade de pensar a discricionariedade atualmente, com racionalidade de discurso e compatibilidade com a contemporânea teoria do Direito e centralidade da Constituição. O novo deve ser pensado, porém sem que se desconsidere por completo o passado. Inovar também pode significar manter contato com o que outrora já foi considerado novo e hoje não mais é assim rotulado. Como diz a canção, “o que há algum tempo era jovem, novo, hoje é antigo, e precisamos todos rejuvenescer.” Referências: ARAGÃO, Alexandre Santos de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Forense Jurídica, 2013. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. São Paulo: Forense Jurídica, 2016. FAGUNDES, Miguel Seabra. O controle Judicial dos Atos Administrativos. Rio de Janeiro: Forense, 1967. FRANÇA, Philip Gil. A adequada tutela jurisdicional do ato administrativo discricionário como instrumento de promoção e realização dos objetivos fundamentais da república brasileira – fundamentos e contornos da ação direta de ilegalidade da discricionariedade administrativa de interesse nacional. Porto Alegre: PUC-RS, 2012. 298 f. Tese (Doutorado em Direito) - Programa de Pós-Graduação em Direito, Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2012. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2014. [1] Os autores que fazem uso da específica expressão mérito para se referir às peculiaridades das atuações discricionárias da Administração habitualmente mencionam a inspiração que buscaram na tradicional e clássica doutrina administrativista de Miguel Seabra Fagundes. Cidadão potiguar cujo nome batiza um dos Fóruns da cidade, o renomado jurista possui obra clássica de destaque ao redor do assunto, O controle dos atos administrativo pelo Poder Judiciário, onde discorre sobre os atos discricionários e os limites e possibilidades de seu controle judicial.

[2] A minha limitação criativa pode ter ensejado essa conclusão quanto à difícil existência concreta de duas escolhas objetivamente idênticas. Devo dizer, todavia, que se no mundo dos fatos isso vier a acontecer, no caso de verdadeiramente existirem duas hipóteses objetivamente idênticas para fins de escolha do administrador, o controle judicial do ato discricionário soará impertinente.

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