O CORPO DA PALAVRA E A PALAVRA DO CORPO: Um estudo sobre Eu Não de Samuel Beckett e A Menina de Tatsumi Hijikata

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O CORPO DA PALAVRA E A PALAVRA DO CORPO Um estudo sobre Eu Não de Samuel Beckett e A Menina de Tatsumi Hijikata

por

ANA CECILIA REIS DE AZEVEDO

Monografia apresentada ao Departamento de Teoria do Teatro da UNIRIO como parte dos requisitos para obtenção de bacharelado em Artes Cênicas – Teoria do Teatro. Orientador: Prof. Dr. Leonardo Ramos M. Munk Professor avaliador: Profª. Dra. Laura Rabelo Erber

Rio de Janeiro, segundo semestre de 2015

RESUMO Este estudo se propõe a analisar as potências do corpo e da palavra presentes na dança butô de Tatsumi Hijikata e na escrita dramatúrgica de Samuel Beckett, relacionando em particular as montagens A Menina, de Hijikata, e Eu Não, de Beckett, em diálogo com diferentes autores que refletiram sobre a linguagem cênica a partir do corpo, da voz, da palavra escrita, do silêncio e da ausência. Palavras-chave: Beckett; Hijikata; palavra; corpo.

ABSTRACT This study intends to analyze the potencies of the body and the word present in the butoh dance of Tatsumi Hijikata and in the dramaturgy of Samuel Beckett, especially in Hijikata's A Girl and in Beckett's Not I, in dialogue with different authors who reflected on the scenic language from the body, the voice, the written word, the silence and the absence. Keywords: Beckett; Hijikata; word; body.

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AGRADECIMENTOS

Aos meus familiares, por sempre apoiarem meus projetos, aos meus amigos e amigas que me dão força para existir e persistir, ao Alexandre Cesar, pelos cafés e companhia, ao professor Leonardo Munk pelas conversas instigantes, às professoras Ângela Materno e Flora Süssekind pelas aulas transformadoras (muitas palavras desse estudo são ecos de suas vozes), ao Marcos Melo, pelos seus achados bibliográficos, ao Ronaldo Ventura, por ter me despertado o amor pela arte japonesa.

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SUMÁRIO

1. 2. 3. 4. 5.

Introdução......................................................................................................05 A Dança Teatral de Hijikata..........................................................................06 A Escrita-Corpo de Samuel Beckett..............................................................12 A Palavra anterior às Palavras.......................................................................15 Um Corpo-Palavra Transcendente.................................................................21 Presentificações da Ausência: o corpo da palavra e a palavra do corpo.......27 Conclusão: tentando tocar o horizonte..........................................................36 Referências Bibliográficas.............................................................................38

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INTRODUÇÃO

O começo é uma questão sempre complicada. Como começar? Já que quando você começa, se não há nada antes de você, você não pode sequer começar, mas se já existe alguma coisa antes de você começar, você não pode verdadeiramente começar. Em resumo, você não consegue nunca começar qualquer coisa que seja, é sempre um outro que começa. Um outro que você ignora começa antes de você, enquanto você não existia ou quando você ainda não sabia que algo começava. Você nunca pode dominar o começo. Kuniichi Uno, A Gênese de um corpo desconhecido.

O estímulo para o tema do meu estudo monográfico partiu da vontade e da necessidade de buscar novas conexões culturais para além do eixo eurocêntrico. Especificamente nesse trabalho, escolhi dois objetos de estudo aparentemente deslocados: a performance denominada A Menina de Tatsumi Hijikata, um dos criadores da dança japonesa butô, de 1973, que faz parte do espetáculo Temporal de Verão1 (sua última performance com seus bailarinos) e a peça Eu Não2 de Samuel Beckett, encenada pela primeira vez no Forum Theater of the Lincoln Center, em Nova York, em setembro de 1972. O objetivo do trabalho é reconhecer potências que a princípio parecem não ter vínculos e aproximá-las tendo como premissa as novas relações entre corpo, linguagem e encenação surgidas nas artes cênicas após a Segunda Guerra Mundial. Como sugere o crítico literário Edward Said em seu livro Orientalismo, começar a falar sobre qualquer assunto implica em “um ato de delimitação pelo qual algo é cortado de uma grande massa material, separado da massa e obrigado a representar, bem como a ser, um ponto de partida, um início” (SAID, 2007, p. 45). Sendo uma estudante brasileira de teatro, e buscando falar sobre artistas que realizaram suas obras em localidades diferentes – no caso, Beckett na Europa e Hijikata na Ásia –, é preciso estar ciente de que apesar de partir do pressuposto dessa oposição, a intenção desse estudo não é criar uma exposição dicotômica sobre a arte “oriental” e a arte “ocidental”. O primeiro desafio é olhar esses objetos a partir das referências existentes e ainda assim conseguir enxergar particularidades, buscando não cair na armadilha das generalizações.

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Originalmente: Natsu no Arashi. Tradução de Rubens Rusche e Luis Roberto Benati, 2007b.

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Minha premissa, ao comparar os dois trabalhos, é que tanto Hijikata quanto Beckett, além de serem contemporâneos, exploraram profundamente os limites da linguagem cênica em seus respectivos países. Ambos buscaram alargar as fronteiras da experiência artística, desestruturando a identidade do sujeito exposto. Nos trabalhos dos dois artistas encontramos um interesse menor em propor um discurso e ditar o significado de suas experimentações e maior em ultrapassar as esferas da recepção habitual, explorando linguagens em desnudamento onde tanto a palavra quanto o corpo podem ser vistos como ruído, como um lugar que desmorona, criando abismos. O estudo também entrecruza reflexões sobre os modos de silêncio presentes em ambos, como forma de presentificar ausências no espaço da cena.

1. A DANÇA TEATRAL DE HIJIKATA

Tatsumi Hijikata nasceu em 1928, em Akita, na região Tohoku, no norte do Japão. Ele é conhecido como o fundador da dança butô, junto com Kazuo Ohno. A dança butô surgiu no período do pós-guerra, no final da década de 1950. Inicialmente, esse novo experimento cênico foi nomeado de Ankoku butô. Hijikata foi polêmico ao romper com as estruturas tradicionais da dança em seu país, chegando a ser expulso da Associação de Dança Japonesa. Embora mantivesse uma influência ancestral das técnicas da dança japonesa, também recebeu influências da dança expressionista alemã de Mary Wigman, dos pintores modernistas da Europa, da literatura “maldita” francesa, como afirma o professor do programa de pós-graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal de Ouro Preto, Éden Peretta, autor do livro O soldado nu: raízes da dança butô: A literatura francesa, particularmente através de nomes como Conde de Lautréamont, Jean Genet e Marquês de Sade, figurava como leitura de cabeceira de muitos dos personagens mais importantes da revolução artística do pós-guerra japonês. Isso porque através de seus escritos poéticos, conseguiam dar forma à centralidade de um corpo constantemente em oposição, à uma sexualidade metamórfica e ilegal, que pareciam apresentarse em uma perfeita sintonia com a aura de dissidência social e revolução corporal gerada pelas ruas de Tóquio daqueles anos (PERETTA, 2015, p. 0809).

O butô se tornou uma forma de resistência anti-imperialista, no período da ocupação americana no Japão. Depois dos bombardeios sofridos, Tóquio virou uma cidade em cinzas. De acordo com Éden Peretta, esse ambiente de destruição fez com que os jovens artistas tivessem a impressão de começar do zero: “uma perda profunda 6

carregava em si um paradoxal sentimento de libertação” (PERETTA, 2015, p. 07). Essa busca trazia consigo um despertar para um novo corpo, um “corpo-memória” que deveria resgatar lembranças profundas, surgidas a partir do barro, das memórias sensoriais da infância, da observação do ciclo da natureza. Christine Greiner, professora de pós-graduação da PUC/SP, em seu artigo O colapso do corpo a partir do ankoku butô de Hijikata Tatsumi3 fala um pouco sobre esse ambiente efervescente da época: No entanto, é importante perceber que o ankoku butô não foi uma experiência isolada, contando com a cumplicidade de outros eventos conhecidos como os teatros angura (do inglês, underground), a arte de obsessão, o movimento anforumeru (do francês, informelle), as ações performáticas dos grupos Gutai e Mono-ha (A Escola das Coisas), entre tantos outros eventos, por vezes, inomeáveis. Não apenas o butô, mas muitos destes manifestos artísticofilosóficos apresentaram novos treinamentos, o que no contexto da cultura japonesa significava, antes de mais nada, novos corpos e novos pensamentos (GREINER, p. 03).

E descreve como Hijikata se relacionava com sua dança:

Para Hijikata, a expressão era o nome daquilo que esqueceu a sua origem. Como ato, a origem surgiria no momento da sua própria impossibilidade e a expressão designaria uma espécie de secreção. Neste contexto, a origem nunca seria pré-existente ao ato, e sim por ele secretada, expressa, criada. Assim, a secreção seria sempre produzida por um corpo sem intenção nem vontade, como uma produção intransitiva parecendo um derramamento de si mesmo, distinto de qualquer forma e de qualquer produto. Esta secreção informe que emerge de si mesma, porque é fruto de uma autosecreção, colocaria em jogo a própria ideia de origem e de raiz, assim como a noção de corpo como instrumento de alguma coisa, algo pronto ou dado. Por isso o corpo no butô é sempre processo, inacabado, perecível, indistinto do lugar onde está e eternamente em crise de identidade. O corpo que dança butô implode a noção clara de individualidade, mas guarda ambivalências. Ao mesmo tempo em que não é um sujeito monolítico e controlador, mas permeável aos ambientes onde luta para sobreviver; ele se apresenta absolutamente singular. Rompe a hierarquia do sujeito como mais importante do que os objetos inanimados do mundo. Volta à lama para experimentar a passagem do informe à forma e vice-versa, num continuum que segue sem fim. Nada é taxativo, objetivo, permanente. A ambivalência faz parte da sua construção e o torna único, na medida em que é fruto de um treinamento específico para disponibilizá-lo, o que exige anos de dedicação (Ibidem, p.04).

Considerada a primeira performance oficial do butô de Hijikata, em 1959, Kinjiki (Cores Proibidas) teve como inspiração o romance homônimo de Yukio Mishima. O espetáculo consistia na presença de um homem (o próprio Hijikata), um menino (o jovem Yoshito Ohno, filho de Kazuo Ohno) e uma galinha, que ao final do 3

Christine Greiner, em artigo: O colapso do corpo a partir do ankoku butô de Hijikata Tatsumi, disponível em: http://www.japonartesescenicas.org. (última consulta em 27/02/2015)

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espetáculo era degolada. De acordo com Greiner, durante a apresentação, o público e a crítica não conseguiam distinguir o gênero do espetáculo e nem identificar suas influências. O público considerou a apresentação “perigosa e nada artística” (Ibidem, p. 02). O espetáculo dialogava não apenas com a dança, mas também com as artes plásticas, a fotografia, o teatro, sendo realmente difícil defini-lo. Éden Peretta afirma que O impacto que a dança e o pensamento de Tatsumi Hijikata provocou no universo corêutico japonês deixou profundas cicatrizes em seu desenvolvimento futuro. Muito além da excelência de seu estilo ou de sua gestualidade, Hijikata jogou na face de toda uma geração a experiência do abismo da existência, das contradições e da escuridão que atravessavam seu corpo, capaz de contaminar, de modo significativo, diferentes âmbitos da prática artística japonesa. Muito mais do que a codificação de uma série de técnicas de movimento, ele acabou concebendo um momento de insurreição no interior das estruturas de poder da sociedade de seu tempo (PERETTA, 2015, p. 143-144).

A linguagem cênica de Hijikata abdica de palavras e se estabelece através de estados sonoros externos (música e ruídos) e movimentos que em muitos momentos “deformam” o corpo, que na dança tradicional japonesa era visto como virtuoso, suntuosamente vestido e codificado, como por exemplo, no teatro nô. Hijikata não dançava mitos ou histórias narrativas, ele investigava como uma determinada energia percorre o corpo do bailarino. Por isso esse corpo precisava se despir de tudo o que fosse supérfluo (roupas, cenários, luzes, etc). A dança de Hijikata nega o corpo disciplinado, o glamour, o elegante, o sublime. Não há a preocupação de seguir o ritmo da música, com indicações de crescentes, colaborando para uma leitura permeada de assimetrias, onde o público pode estabelecer novas relações entre o ouvir e o ver. Em A Menina, por exemplo, a relação da dança com a música não é uma relação de contato rítmico. O som é uma nova camada no espetáculo, e a ação do bailarino é múltipla, atmosférica. O público seria convidado não mais a seguir um fluxo de movimento ditado pelo ritmo, que poderia remeter a sensações de tristeza, euforia, entre outras, mas sim a tornar-se movimento junto com o bailarino, sem exigir uma compreensão encadeada prévia. Hijikata trabalhava a partir da ideia de um “corpo zero”, algo que vem antes da matéria formada. Um corpo que se impõe, mas que é também capaz de desaparecer em cena, gerar uma forma etérea e proporcionar essa sensação na plateia também. Kurihara Nanako, tradutora das obras de Hijikata para o inglês, em seu artigo Hijikata Tatsumi: The Words of Butoh4 diz que o artista se perguntava sempre: “Para onde os seres 4

The MIT Press, Vl 44 No1.

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humanos vão depois da morte?” (NANAKO, 2000, p. 25). Em suas performances, essa tensão entre presença e ausência pode ser encontrada, bem como a busca por um “corpo emancipado” – sem começo nem fim.

Meu butô começa ali, com aquilo que aprendi da lama do início da primavera, não de algo que tenha a ver com artes performativas de santuários e templos. Estou claramente consciente de que nasci da lama e de que meus movimentos hoje são todos construídos sobre ela (Apud: PERETTA, 2015, p. 67).

Segue um trecho das notas que Hijikata escreveu para fazer os estudantes dançarem, na época da apresentação de Kinjinki, retiradas do livro A gênese de um corpo desconhecido, do filósofo Kuniichi Uno:

Esta apresentação de dança, que se desenvolverá ao se deixar ver o corpo, excluirá de sua superfície toda dança como movimento dado pelo exterior. Esta apresentação de dança reduz o corpo a sua pura existência, se bem que quando o endereço e o nome de um indivíduo lhe são arrancados, o corpo terá naturalmente seu lugar. Pouco importa o que você faz. Importa somente o que você se deixa fazer; então se pode dizer que é o mundo que se lança no corpo. [...] Pequenas placas de metal se metamorfoseiam bruscamente em telas. As imagens projetadas lá embaixo não são cadáveres de uma ação. Fragmentado através destas telas, vocês terão pela primeira vez o corpo decomposto e unificado de uma só vez (Apud: KUNIICHI, 2012, p.48).

Hijikata se mostra como um artista interessado nessa carnalidade, buscando novas experiências a partir de um esvaziamento, uma deterioração do corpo socialmente estabelecido. Trabalha a partir de instabilidades, e suas técnicas de composição não possuem uma intenção estética ou exibicionista, mas sim um aprofundamento nas sensações de um corpo que é memória. Para Christine Greiner:

as suas questões eram de outra natureza e diziam respeito, antes de mais nada, ao colapso do corpo, à exploração da consciência (...), ao enfrentamento da morte e à investigação de campos de percepção ainda não suficientemente pesquisados (GREINER, p.02).

Ou seja, a busca é por um corpo informe, muitas vezes defeituoso, pouco atraente, mas um corpo-intensidade, que pode ser comparado ao deleuziano “corposem-orgãos”, inspirado no poema “Para acabar com o juízo de Deus” de Antonin Artaud. O filósofo e ensaísta José Gil, em seu livro Movimento Total, fala sobre essa desestruturação do “corpo-organismo”, dando como exemplo o ritual de cura dos

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Wolofs5, do Senegal, que consiste em retirar as vísceras de animais sacrificados, vestilas e banhar-se com elas:

Esta operação ritual que consiste em arrancar os órgãos do organismo e em esvaziar o espaço interno tem vários objetivos: extraindo os órgãos e dispersando-os no exterior destrói-se a organização do organismo; e desse modo, libertam-se os afetos investidos e fixados nos órgãos dispostos segundo estruturas e estratos precisos e estáveis. (...) Cria-se um espaço interior “paradoxal”, que está e não está no espaço. Sendo vazio, e sendo da ordem do corporal não corporado, o espaço interior torna-se superfície (pele), uma vez que o interior já não separa em espessura (vísceras) os diferentes planos do corpo que se opõem (as costas e a frente, a parte traseira e a dianteira) (GIL, 2002, p. 16.) [Grifo do autor].

E nas palavras de Deleuze: O corpo sem órgãos é um corpo afetivo, intensivo, anarquista, que só comporta polos, zonas, limiares e gradientes. Uma poderosa vitalidade nãoorgânica o atravessa (DELEUZE, 1997, p.148).

Podemos pensar que Hijikata e seu butô buscam esse entre-lugar entre corpo e pensamento, destruindo as hierarquias entre mente e corpo, recriando configurações físicas, ao estimular exercícios onde é necessário um novo olhar para o próprio corpo e o que o constitui6. Falar sobre os trabalhos de Hijikata é um desafio. Com pouco material em português e em inglês, a análise partirá do vídeo e dos artigos sobre a sua trajetória, relacionando-as com o tema proposto. A Menina é a primeira performance de Hijikata que aparece no espetáculo Temporal de Verão, último espetáculo do artista, em 1973, que ocorreu no Seibu Kodo Hall, da Universidade de Quioto. Esse trabalho, bem como o segundo solo do espetáculo, é inspirado na obra Bonecas, do artista plástico alemão Hans Bellmer, “em que ironizava o padrão de beleza feminino proclamado pela cultura nazista” (PERETTA, 2015, p. 62). Descritivamente, podemos ver Hijikata em um quimono, explorando as vertentes de seus músculos e torções, ao som de uma música de clima sombrio. Nenhuma palavra é dita, e o interesse em abordar diretamente essa performance entre todas as outras, é que essa figura feminina me gerou questões que também podem ser encontradas na personagem Boca de Eu não, de Samuel Beckett, tais 5

Grupo étnico localizado no Senegal, Gâmbia, Mauritânia e República Dominicana. Pude acompanhar uma demonstração de trabalho na Caixa Cultural do Rio de Janeiro em 2011, de Tadashi Endo, bailarino japonês de butô que foi aluno e parceiro de trabalho de Kazuo Ohno. Durante a demonstração, Tadashi enfatizava para os alunos a importância de sentir seus órgãos internos se iluminarem a partir dos buracos do corpo, perceber as sombras que o corpo faz em si mesmo, sentir-se “uma flor feia querendo nascer”, entre outros, evidenciando um trabalho a partir de um “corposinestésico”, menos técnico e racional. 6

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como: crise na identidade do sujeito, indefinição do espaço cênico, relações com a morte, exploração de diferentes sonoridades, entre outros, conforme veremos no desenvolver desse trabalho.

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2. A ESCRITA-CORPO DE SAMUEL BECKETT Samuel Beckett nasceu em 1906, em Dublin, na Irlanda. Ao contrário de Tatsumi Hijikata, Samuel Beckett é um nome bastante conhecido e difundido nos estudos de arte no Brasil e no mundo pelas suas numerosas experiências que perpassam o teatro, o rádio, a televisão, o cinema, a literatura, sempre investigando os limites desses gêneros. Muitos são os estudos sobre a sua obra. Um exemplo brasileiro é o da atriz e pesquisadora Isabel Cavalcanti, em sua dissertação de mestrado sobre a peça Eu não. Segue um trecho em que analisa a escrita de Beckett:

A incessante fragmentação ou desconstrução da palavra escrita de Beckett (...) problematiza a linguagem em sua suposta capacidade de produzir e transmitir sentidos. A formulação dos significados é instabilizada no momento mesmo do seu estabelecimento. Nesta condução da linguagem ao descrédito operada por Beckett, parece haver um jogo onde se experimentam as possibilidades de se criar as impossibilidades de prosseguimento da própria escrita (...) (CAVALCANTI, 2006, p.19).

Em seus trabalhos, Beckett tensiona a dramaturgia convencional de sua época ao estabelecer peças onde as relações de causalidade não se aplicam e onde os desfechos são muitas vezes cíclicos, intermináveis, repentinos. Também investiga as relações de ritmo, imagem e discurso, exigindo uma precisão do ator ao trabalhar com esses aspectos, muitas vezes criando paradoxos entre elas, como no texto de Esperando Godot onde os personagens constantemente falam em ir para algum lugar e nunca se movem, ou a personagem Winnie de Dias Felizes, com o corpo soterrado e um discurso corriqueiro, aparentando não ter consciência do seu estado físico. A dramaturgia de Beckett também apresenta indeterminação espacial e ficcional, pois não se consegue definir quem é o personagem, onde ele está, em qual período. Mostra-se presente nas encenações um jogo de contrastes de iluminação, como na rubrica de A última gravação de Krapp, onde o personagem oscila entre a claridade e a escuridão, atravessando constantemente o fundo do palco escuro e a mesa iluminada para ouvir sua voz narrando diferentes momentos temporais da sua vida. Os personagens de Beckett afirmam e negam a si mesmos e às suas ações, gerando assim uma provocação no horizonte de expectativas do público, ao desconfigurar os sentidos de nó-desenlace presentes nas estruturas dramáticas convencionais. Beckett investiga minuciosamente os efeitos da linguagem em construção e desconstrução. Isabel Cavalcanti observa que no teatro de Beckett existe “uma tendência à representação da personagem pela redução, fragmentação, divisão e 12

pelo encobrimento e desvanecer da figura” (Ibidem, p. 54). O Professor Doutor em Teoria Literária, Fabio de Souza Andrade, escreve sobre as características presentes no “exílio linguístico” de Beckett, em seu livro Samuel Beckett: O Silêncio Possível: Na origem de Molloy, Malone Morre e O Inominável, está ainda um fato que não pode ser negligenciado: o estilo linguístico de Beckett. As dificuldades estilísticas destes textos beckettianos decorrem não da sua exuberância verbal, como era o caso de seus primeiros romances, mas de um despojamento intencionalmente produzido, conquistado. O empobrecimento voluntário do vocabulário, o uso e abuso das repetições e paralelismos da oralidade, a apropriação de lugares comuns e da sintaxe particular da fala cotidiana são em parte consequências linguísticas do assunto predileto do autor – a miséria humana (ANDRADE, 2001, p. 31).

A dramaturga Cláudia Maria de Vasconcellos, em seu estudo sobre o estranhamento na dramaturgia de Samuel Beckett7 destaca a experiência que se estabelece entre o palco e a plateia: Na época da crise do drama ou de sua superação, a função da plateia no jogo cênico entra em crise ou se transforma. A irracionalidade neste caso deve ser compreendida como o exercício habitual (inquestionado) de um certo comportamento dramático – postar-se no escuro confortavelmente com a proteção da quarta-parede – e de uma certa expectativa dramática – que os personagens se exponham totalmente, permitindo que a peça encerre um significado. Beckett problematiza o hábito ao drama, característico de um público paradoxalmente situado na época de sua superação. A crueldade manifesta-se como consequência da irracionalidade (ou modo habituado de fruir a experiência cênica). O público dos tempos do drama, pela fisicalidade que compartilha com os personagens sobre o palco, é meio voyeur: mantém com aqueles que observa uma relação de mão única, pois estes não se sabem observados em ações de natureza privada. A plateia beckettiana, entretanto, é provocada e revelada em sua crueldade (VASCONCELLOS, 2014).

Outra característica de Beckett é o estabelecimento do lugar do teatro como lugar onde se escuta mais do que se vê, gerando uma expansão do espaço sonoro. Beckett, em seu trabalho preciso com o ritmo da fala, faz com que os atores trabalhem em zonas obscuras da linguagem, testando os limites da emissão vocal e sua materialidade. As trocas de palavras não movem a ação e nem contam uma história. A sensação é de uma inércia vagueante, onde algo parece acontecer e se multiplicar na imobilidade. Relacionado ao estudo das experimentações vocais de Beckett e a essa nova escuta cênica, não posso deixar de citar o artigo Beckett e o Coro, escrito pela professora e crítica literária Flora Süssekind do qual destaco o trecho abaixo: 7

Disponível em: http://www.questaodecritica.com.br/2014/03/relacao-entre-palco-e-plateia-no-teatro-desamuel-beckett/ em 2014. Último acesso: 12 de janeiro de 2016.

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(...) Porque o monólogo beckettiano parece de fato conviver o tempo todo com a possibilidade de sua desintegração iminente, com um movimento interno de auto-anulação, reforçado por uma recusa sistemática ou pelo desaparecimento da primeira pessoa narrativa, por um conflito entre a voz e outros ruídos diversos, pelas muitas vozes, ecos, variações e diversificações rítmicas que se desdobram da voz inicial. A forma teatral beckettiana parecendo resultar, na verdade, dessas cisões e interferências que a constituem e conflituam, da sua vinculação dupla a uma instância monológica e a um modo coral, a uma espacialidade simultaneamente restritiva, estática, a rigor extra-narratológica e, no entanto, expansiva, em fluxo, multitemporalizada e narrativamente fragmentária (SÜSSEKIND, 2002, p. 114).

Em Eu Não (1972), por exemplo, uma boca feminina, nomeada Boca, como um espectro sombrio na escuridão, pronuncia em um ritmo feroz frases confusas sobre sua possível existência, em uma espécie de limbo, à deriva. Não parece ter a consciência de estar viva ou morta. Ao longo do texto, em um fluxo feroz, conseguimos captar algumas pistas de sua vida, como sua idade, sua existência sem amor, sua mudez (ao que parece, opcional), em uma época que parece distante e não definida. As rubricas indicam que apenas a boca da atriz é iluminada. A voz ocupa todo o espaço cênico, amplificada por um microfone, que não deve ser visto pela plateia. O texto é manipulado como uma compulsão, como se essa boca não pudesse controlar-se. Há também uma personagem sem sexo definido chamado “Ouvinte”, um vulto todo coberto de tecido preto que ao longo do espetáculo esboça quatro movimentos breves, que vão se esvaindo e ficando cada vez mais imperceptíveis enquanto a Boca “se recupera da recusa veemente de abandonar a terceira pessoa”, conforme indicado no texto. A Boca fala ininteligivelmente e parece não se ater a nenhum ponto de vista específico ou linear, pois intercala seu texto com exclamações, pequenas pausas e a negação da primeira pessoa. Antes de a cortina se abrir já é possível ouvir Boca murmurando, e ela continua falando incessantemente até depois de as cortinas fecharem, dando a ideia de que, de onde ela vem e onde ela está, a noção de “começo” e “fim” não pode ser delimitada. Pensando nas configurações rítmicas da cena e da escrita de Beckett, a intenção deste estudo é refletir sobre o apagamento do corpo em detrimento de uma potência vocal como forma em Eu não, e o apagamento da palavra na cena em detrimento de um corpo manifesto em A Menina de Hijikata, em interlocução com diversos autores que pensam linguagem e corpo.

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3. A PALAVRA ANTERIOR ÀS PALAVRAS Eu não tenho mais a minha língua. Antonin Artaud, Linguagem e Vida.

De acordo com Antonin Artaud, em seu texto A Encenação e a Metafísica, presente no livro O Teatro e seu Duplo, as palavras para além do seu significado, possuem sonoridades, entonações que devem ser exploradas. A musicalidade contida na voz é uma concretude, podendo inclusive subverter o sentido do que se fala. É possível adicionar camadas de escuta ao espectador, não apenas relacionadas ao que as palavras querem dizer racionalmente, mas também como elas ocupam o espaço, suas texturas, estados vibracionais, entre outros:

Fazer a metafísica da linguagem articulada é fazer com que a linguagem sirva para expressar aquilo que habitualmente ela não expressa: é usá-la de um modo novo, excepcional e incomum, é devolver-lhe suas possibilidades de comoção física [grifo meu] e distribuí-la ativamente no espaço, é tomar as entonações de uma maneira concreta absoluta e devolver-lhes o poder que teriam de dilacerar e manifestar realmente alguma coisa, é voltar-se contra a linguagem e suas fontes rasteiramente utilitárias, poder-se-ia dizer alimentares, contra suas origens de animal acuado, é, enfim, considerar a linguagem como forma de Encantamento [grifo do autor] (ARTAUD, 2006, p. 46-47).

Esse encantamento, do qual fala Artaud, pode ser comparado com alguns rituais religiosos, onde mantras, orações em estado de transe, canções e vozes vibracionais levam o indivíduo para outro estado, não apenas psíquico, mas principalmente físico. É através da fala que o corpo de Boca se materializa no imaginário do público. O escritor Roland Barthes, em seu texto A Escuta, afirma que “a escuta, de um ponto de vista antropológico, é o sentido por excelência do espaço e do tempo, através da captação dos graus de distanciamento e de aproximação regulares da estimulação sonora.” (BARTHES, 1990, p. 218). Se a voz é uma matéria que ocupa o espaço, se com uma determinada afinação de uma nota alta é possível rachar um vidro, uma voz potente em estado vibratório também é capaz de atingir o espectador: “Ambiência luz ruídos muda disposições nervosas. Uma palavra soprada no minuto oportuno pode endoidar homem, quero dizer, tornar louco”. (ARTAUD, 2006, p. 116). Sobre essa materialidade da emissão vocal da palavra, cito novamente Barthes: “Corporalidade do falar, a voz situa-se na articulação entre o corpo e o discurso, e é 15

nesse intervalo que o movimento de vaivém da escuta pode realizar-se”. (BARTHES, 1990, p. 225) Para Artaud, uma participação reduzida do entendimento do discurso de um texto leva a uma compressão enérgica deste:

(...) As palavras pouco falam ao espírito; a extensão e os objetos falam: as imagens novas falam, mesmo que feita com palavras. Mas o espaço atroador de imagens, repleto de sons, também fala, se soubermos de vez em quando arrumar extensões suficientes de espaço mobiliadas de silêncio e imobilidade. (ARTAUD, 2006, p. 98).

Em Eu Não a sensação de caos e transe provocada por Boca não é somente pelo que está sendo dito, mas também pela forma em que está sendo dita e em que ambiente isso se dá. O corpo é a mediação entre o pensamento e o mundo, mas em Eu Não essa presença física é reduzida a uma boca falante que se propaga no espaço. Enquanto sua voz é ampliada através de um microfone, a baixa iluminação faz com que o espectador foque naquele órgão, que pode ser visto isoladamente. A Boca falante, com a língua que golpeia incessantemente os dentes, os lábios, o céu da boca, assim como sua voz, não nos remete a ninguém, mas, inquietantemente, começa a adquirir outra presença, um estranhamento, quase como uma entidade, a entidade “Boca”. A artista plástica Lígia Clark em seu texto “Breviário sobre o Corpo8” também nos apresenta uma “Bocaentidade”:

(...) Boca que é fornalha, boca do forno onde o combustível varia desde o ar até o aprendizado da palavra, verbo, início da expressão da comunicação. Boca onde brota o grito, som que foi modulado, cultivado até à formulação do alfabeto, som que ao sair dela, penetra o ouvido e impulsiona a resposta, o impropério, ou o suspiro do fim, válvula que vacila no seu ritmo, num desvario de pêndulo desregulado fora do seu compasso, até o aquietar do ante-ser que foi expelido na última parcela do ar que habitava, encerrando o ciclo do começo ao fim. Cratera, buraco onde entra a bola de golfe que aí se aquieta onde dorme a larva, toca do bicho que espreita, vagina proprietária do pênis, cárie que açoita a dor, ouvido-túnel condutor do som, umbigo-cicatriz marca registrada do passado uterino da dependência da guerra do ato do separar-se, fossas nasais que tomaram para si a rédea da cavalgada do ar que agora penetra no compasso do ritmo vital. Boca, antro da língua, peça sobressalente que impulsiona desde o ar até a palavra comprimida, cobra no ato do amor, que procura o avesso no parceiro, perdigueiro do faro preso por forte corrente de tensões que não a deixam submergir no outro. A boca que devora para o estômago, para o cérebro, para o amor. A boca que vomita o alimento, a palavra no impropério, o escarro no arroto, o canto que é som e toda escala musical derivada da descoberta. Boca, fronteira onde se esconde a palavra, o desejo, a fome, que se fecha, nesta defesa, arapuca onde o pássaro 8

Retirado de: Revista do Instituto de Artes da Uerj. Concinnitas. V. 1 n26, julho de 2015. Disponível em: http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/concinnitas/article/view/20119/14421 Último acesso em: 12 de janeiro de 2016.

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é capturado, rede onde o peixe é cercado, curral emparedado pela cerca, roda de gente que completa um círculo, anel de compromisso que cerca o dedo. Boca que é o abraço da realidade, que come o espaço do mundo, que expele o tédio no bocejar, que é modulado e nela expresso, que passa do certificado do bem-estar ao processo da dor aliviada (...) (CLARK, 2015, p. 169).

A Boca beckttiana emite ressonâncias textuais que criam dissonâncias. É possível que ao assistir Eu Não, as reações do público sejam as mais diversas, mas existe um impacto físico comum devido a uma irradiação vocal. O filósofo Maurice Merleau-Ponty em seu texto A linguagem indireta e as vozes do silêncio afirma que a linguagem exprime tanto o que está entre as palavras quanto as próprias, que existe uma linguagem empírica, como uma segunda potência: (...) Enfim, temos de considerar a palavra antes de ser pronunciada, o fundo de silêncio que não cessa de rodeá-la, sem o qual ela nada diria, ou ainda por a nu os fios do silêncio que nela se entremeiam (MERLEAU-PONTY, 2013, p. 45) .

Beckett, em carta para o amigo Axel Kaun, fala da sua dificuldade de encontrar essa palavra potência, capaz de ir além da própria palavra emitida: Está se tornando mais e mais difícil, até sem sentido, para mim, escrever num inglês oficial. E, mais e mais, minha própria língua me parece como um véu que precisa ser rasgado para chegar às coisas (ou ao Nada) por trás dele. (...) Tomara que chegue o tempo, graças a Deus que em certas rodas já chegou, em que a linguagem é mais eficientemente empregada quando mal empregada. Como não podemos eliminar a linguagem de uma vez por todas, devemos pelo menos não deixar por fazer nada que possa contribuir para a sua desgraça. Cavar nela um buraco atrás do outro, até que aquilo que está a sua espreita por trás – seja isso alguma coisa ou nada – comece a atravessar; não consigo imaginar um objetivo mais elevado para um escritor hoje (Apud: ANDRADE, 2001, p. 169) [grifo meu].

Em Eu Não, apesar da personagem Boca falar o tempo inteiro, seu discurso apresenta esfacelamentos, uma enunciação problemática, interrupções, e como não é possível apreender o que Boca fala completamente, também há um desprendimento do fluxo discursivo, provocando uma “escuta flutuante” do espectador. Sobre esse termo, Roland Barthes relaciona-o ao procedimento da escuta psicanalítica, que é uma escuta focada menos em reter o que se é dito, e mais em criar uma nova ponte entre a neutralidade e o engajamento: A originalidade da escuta psicanalítica consiste nesse movimento de vaivém que faz a ponte entre a neutralidade e o engajamento, a supressão de orientação e a teoria (...). Desse deslocamento (que não deixa de recordar o movimento de onde provém o som) nasce, para o psicanalista, algo como

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uma ressonância que lhe permite “prestar ouvido” ao essencial: o essencial sendo não deixar passar desapercebido (e fazer com que o paciente faça o mesmo) “o acesso à insistência singular e muito sensível de um elemento maior de seu inconsciente” (BARTHES, 1990, p. 224).

Apesar de Beckett provocar essa instância de escuta no espectador, à medida que essa torrente verbal se intensifica, a personagem Boca demite-se do seu lugar de sujeito, existe um abismo entre a sua identidade anunciada e as palavras emitidas: A enunciação de BOCA é um jorro verbal, uma voz sem início ou finais apreensíveis (...). Para o espectador, esta voz parece soar a esmo, sem rumo, sem por que e sem destinatário definidos, o que contraria a individualização e o direcionamento típicos de uma voz dramática convencional, que fala para alguém. (...) A personagem insiste em retirar-se da sua própria cena, em demitir-se do lugar de sujeito de sua própria história. Observa-se, assim, o apagamento da figura da personagem, sua consequente imobilidade acompanhada por uma intensificação da sua fala e a proposição nesta própria fala, do apagamento do sujeito que a profere. (CAVALCANTI, 2006, p. 31-32)

A escrita de Eu Não é permeada por reticências, o que gera um ritmo, configurando o movimento da voz. Mesmo que não se possa ouvir o som, pela configuração da escrita é possível enxergar essa atmosfera de indefinição, uma presença que permeia a fala e a palavra escrita, como uma energia pulsional, que desconfigura a unicidade do sujeito da escrita: Nada disso?... Não é isso?... Nada que ela pudesse contar?... Está bem... nada que ela pudesse contar... tentar outra coisa... pensar noutra coisa... oh, bem depois... de repente um lampejo... também não?.. Está bem... outra coisa então... continuou assim... aguentar até o fim... pensar que tudo já foi longe demais... absolvida depois... voltar à... o quê?... Também não?... Não é isso também?... Nada que ela pudesse pensar... está bem... nada que ela pudesse contar... nada que ela pudesse pensar... nada que ela... o quê?... Quem?... Não!... Ela!...9

A percepção do tempo para o espectador também se modifica, devido ao efeito cíclico das palavras, com pequenas variações e pausas, dando a impressão de relações simultâneas e múltiplas. Em Da conferência sobre o nada, John Cage estabelece uma relação entre palavras e silêncio, afirmando que “as palavras nos ajudam a fazer silêncio”, e que o silêncio “requer que se continue falando”10 (apud: HELLER, 2008, p. 10). Pensando nesse sentido e comparando a alguns personagens beckttianos e 9

Beckett, Samuel. Banco de Textos da Unirio, 2007. Pág.5.

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principalmente à Boca, podemos perceber que existe um “silêncio verborrágico”, que em conjunto com a encenação gera o impacto do esvaziamento. Beckett também trabalha na materialidade do seu texto um espaçamento entre as palavras, no caso de Eu Não através das já citadas reticências. As possibilidades deste texto com os elementos de cena geram uma escrita no espaço. Abaixo seguem as observações do professor de estética e filosofia da arte, Robert Kudielka, que assistiu presencialmente a montagem: Quando, em janeiro de 1973, no Royal Court Theatre de Londres, as luzes se apagaram, teve início um dos acontecimentos teatrais mais “puros” que os palcos já viram. O diretor Anthony Page e o próprio Beckett ensaiaram durante semanas com a protagonista uma performance que totalizava cerca de 16 minutos. Depois de o espectador logo de cara fixado pelo feixe de luz e hipnotizado um bom tempo pelo palavrório que se desmente a si mesmo da boca sem corpo no canto superior direito do palco, o olho começava a vagar. O escuro iluminava-se aos poucos num cinza opaco, e tão logo no canto esquerdo do palco tornava-se reconhecível uma estrutura esquisita, monstruosa – talvez um confessionário, mas com suaves adejos –, o monólogo chegava ao fim. Descia a cortina, acendiam-se as luzes, fim (Apud: CAVALCANTI, 2006, p.38).

A tensão se dá por Beckett colocar no teatro (que etimologicamente vem do latim theatron, que significa lugar para olhar) um lugar de penumbra, onde não se vê. Beckett, através de um jogo de ausência de luz, torna matéria o que é além do visível. Dessa maneira, Beckett é capaz de reformular a experiência do espaço cênico sem que para isso precise sair da caixa cênica convencional, mas sim explorando seus próprios recursos. A escolha de abandonar a estrutura fabular, que acontece em espaço-tempo definido faz com que o espectador se sinta desorientado, por não saber quem é o sujeito que age, qual sua motivação, onde ele está e para onde vai, apresentando uma ação diluída, quase inexistente. Além disso, a voz e a escuta são uma ligação de contato quase físico, de acordo com Barthes: A injunção de escutar é a interpelação total de um indivíduo a outro: coloca acima de tudo o contato quase físico desses dois indivíduos (pela voz e pelo ouvido): cria a transferência: “escute-me” quer dizer: toque-me, saiba que existo. (...) (BARTHES, 1990, p. 222) [grifo do autor].

Pensando em Boca, tendo como único recurso a sua voz, a partir do órgão que insiste em falar, sua materialidade, sua existência está pautada nessa conexão entre o emitir e o receber, e suas palavras tornam-se seu corpo propagado no espaço, já que obriga o observador a deslocar sua atenção em direção à voz. É possível então pensarmos em uma escritura de vozes, onde cada palavra pode ser direcionada de 19

muitas maneiras, volumes, texturas e ritmos, o falar baixo, sussurrar, gritar... são formas de expansão do espaço de atuação e de confronto com o espectador.

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4. UM CORPO-PALAVRA TRANSCENDENTE Trinta raios convergem para o meio de uma roda Mas é o buraco em que vai entrar o eixo que a torna útil. Molda-se o barro para fazer um vaso; É o espaço dentro dele que o torna útil. Fazem-se portas e janelas para um quarto; São os buracos que o tornam útil. Por isso, a vantagem do que está lá Assenta exclusivamente na utilidade do que lá não está. LAO-TZU, Tao-Te King, O Livro do Sentido e da Vida.

Muitos autores e pensadores teatrais defendem a ideia do choque, do súbito, do assalto, do susto necessário para se configurar uma nova relação com um objeto estético. Uma das ferramentas para se atingir esse estado de violência e quebra das convenções vigentes é abandonar uma linguagem lógica discursiva, provocando um impacto no espectador através da desconstrução do que este já está acostumado a receber. Heiner Müller e o já citado Antonin Artaud são exemplos de encenadores que acreditam na capacidade do teatro de reintroduzir o medo e o espanto em seu público, tendo como referência os rituais presentes nas tragédias gregas e o diálogo com os mortos, aproximando o teatro das esferas metafísicas e míticas:

Não dá para se discutir com os mortos. O que não se pode mover é eterno. Os mortos são o ponto arquimédico. Só com os mortos dá para tirar o mundo dos eixos porque eles mesmos não se mexem. Ao mesmo tempo existe esperança contida de que o limite entre os mortos e os vivos se torne poroso. Quando cresce a dúvida da possibilidade de mudar o mundo, reforça-se o desejo de estabelecer contato com os mortos (MÜLLER, 2004)

Hijikata enfatiza sua relação com a morte, como uma constante que habita sua dança: Eu posso não conhecer a morte, mas ela me conhece. Frequentemente digo que tenho uma irmã vivendo dentro do meu corpo. Quando estou absorvido pela criação de um trabalho de Butô, ela arranca a escuridão de meu corpo e come mais do que é necessário. Quando ela se levanta dentro do meu corpo, eu, inconscientemente, me sento. Cair para mim é também cair para ela. Mas existe muito mais que isso em nossa relação. (...) Ela é minha professora; uma pessoa morta é minha professora de Butô (apud: PERETTA, 2015, p. 62).

O corpo de A Menina nos apresenta, assim como a obra de Hans Bellmer, no qual Hijikata se inspirou, imagens perturbadoras. Já pude testemunhar em apresentações 21

de espetáculos influenciados pelo butô como o silêncio e a presença de um corpo não normativo despertam um desconforto em algumas pessoas na plateia, que começam a emitir ruídos inquietos ou a se incomodar por não “entender” o sentido do espetáculo proposto. Éden Perreta explica sobre essas diferentes configurações de entendimento lógico no butô:

A dança butô, por sua vez, tem como princípio técnico renunciar a qualquer possibilidade de simulação, imitação ou mascaramento, colocando em cena a crueza das transformações profundas de seu nikutai – o corpo de carne -, assumindo uma concepção de processo metamórfico que se afasta decisivamente da ficção ou da ilusão. Assim sendo, na perspectiva da dança butô, o dançarino não deve representar mimando os gestos cotidianos ou outros estímulos sobre a cena, mas desdobrar sensivelmente a sua própria consciência física diante do público, transformando-se realmente em qualquer elemento de tipo orgânico ou inorgânico, seja ele concreto ou abstrato (PERETTA, 2015, p. 28).

José Gil enfatiza essa característica presente tanto no butô quanto na técnica do dançarino norte-americano Merce Cunningham:

Ora, neste movimento de sobrefragmentação gestual (ostensivo na técnica de Cunningham; ou nos movimentos do butô), a tendência orienta-se para a abolição do gesto como signo: o gesto tende a encarnar o sentido. É o movimento do sentido que agora vemos no corpo do bailarino. O seu gesto é único e saturado de sentido. Não resulta da aplicação de uma regra sintática quase-articulando zonas gestuais que indicam zonas de sentido, mas da própria emergência do sentido. O movimento destas micro-unidades diz imediatamente o sentido, como se este obedecesse a uma gramática semântica própria, não verbal (GIL, 2002, p. 73).

A filosofia zen, de origem chinesa, influenciou muito o Japão. Essa filosofia integra uma apreciação da escuta de um silêncio interno, uma busca de percepção do mundo a partir do vazio que ele se constitui. Enxergam-no como a exploração de uma nova forma de atenção, uma nova experiência de sabedoria. Essa característica pode ser observada também nas formas mais tradicionais de teatro japonês, como no teatro nô, como explica o crítico Shuichi Kato no livro Tempo e Espaço na Cultura Japonesa: Mais do que dizer que é um movimento dentro do silêncio, é o silêncio dentro do movimento (...). Com certeza o balé e a dança no nô representam os extremos opostos da dança artisticamente refinada. De um lado, há o movimento do corpo e a sensação de beleza impactante, e, de outro, a postura da pessoa envolvida pela máscara e pelo vestuário que muda silenciosamente, e a expressão psicológica com minúcias sem fim. Um volta-se para um movimento permanente; a outra, fragmenta o movimento aproximando-o do estático. O que convida os dançarinos para o palco, de um lado, é a melodia e o ritmo pulsante que fluem da música orquestrada, e, de outro, o timbre da flauta, que vem ressoando do mais profundo silêncio (KATO, 2012, p.112).

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No butô o refinamento estético é quebrado e ocorre a criação de uma nova linguagem espacial, gestual e sonora na cena, onde as palavras são substituídas por uma significação mais sensorial, um corpo dançante que atinge mais aos nervos do que à razão. Não é uma dança que estabelece contorno ou que desenha figuras no espaço. Não se trata da ilustração de um sentimento, mas a transfiguração do próprio sentimento para cada parte do seu corpo, como a energia da sensação a partir de diferentes estímulos atinge o corpo microscopicamente, da cabeça até o dedão do pé, gerando uma dança multifacetada e fragmentada. Nas palavras de Éden Perreta: O gesto executado por um corpo de carne apresenta-se, portanto, não como uma inferência racional ou tradução de um signo exterior, mas como uma experiência profunda da fricção, entre a velocidade e a direção, entre o espaço e o tempo internos. A sua expressividade, por sua vez, não provém de uma vontade pessoal e subjetiva, mas de uma secreção, que resulta da fricção ou do colapso dessas categorias no interior do corpo. Dentro desse contexto, para Hijikata, os movimentos mais verdadeiros são aqueles que “vêm das juntas sendo deslocadas, e então do ato de caminhar desarticuladamente por alguns passos, com uma perna esforçando-se para alcançar a outra” (PERETTA, 2015, p. 98).

Merleau-Ponty afirma em seu livro Fenomenologia da Percepção que os sentidos envolvem um todo conectado, caso contrário não poderíamos dizer que uma cor é áspera, ou quente, ou que uma voz é fria ou forte, por exemplo. Merleau-Ponty quer acessar esse corpo que compreende o mundo “entrando nele”, surgindo com ele. Uma vez que o mundo é constantemente descoberto em comunhão com nossos sentidos, ele nos atravessa e nós o atravessamos, ele emerge (não está fixo para ser observado), tudo está se construindo constantemente, em relação com as partes que configuram um todo. Em alguns exercícios de butô é possível perceber essa busca de sentidos unificados, trabalhando com elementos sinestésicos. Um dos exercícios propostos por Hijikata para seus alunos se chamava mushikui (picadas de inseto) e consiste em imaginar insetos rastejando entre os dedos, passando pelas palmas da mão e braços enquanto um tambor é tocado pelo ministrante do exercício. Esses estímulos sonoros também afetam de forma física e psicológica os atores. Ao final, eles deveriam sentir esses insetos dentro dos seus corpos, comendo seus órgãos, de modo que o corpo ficasse oco, como um bicho de pelúcia. Para Hijikata, era sempre necessário vivenciar essa sensação, não apenas imaginar. Outro exercício consistia em transformar o corpo em

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“tapetes molhados”11. Esses exercícios exigem que o corpo se conecte internamente com aquilo que antes seria considerado externo e distanciado, como objetos ou insetos. Citando José Gil, podemos pensar neste corpo no espaço paradoxal: Espaço paradoxal: diferente do espaço, objetivo, não está separado dele. Pelo contrário, imbrica-se nele totalmente, a ponto de já não ser possível distinguilo desse espaço: a cena transfigurada do ator não é espaço objetivo? E todavia, é investida de afetos e de forças novas, os objetos que a ocupam ganham valores emocionais diferentes seguindo os corpos dos atores, etc. Embora invisíveis, o espaço, o ar adquirem texturas diversas. Tornam-se densos ou tênues, tonificantes ou irrespiráveis. Como se redescobrissem as coisas com um invólucro semelhante à pele: o espaço do corpo é a pele que se prolonga no espaço, a pele tornada espaço. Daí a extrema proximidade das coisas e do corpo (GIL, 2002, p. 45).

E no corpo paradoxal:

(...) um corpo habitado por, e habitando outros corpos e outros espíritos, e existindo ao mesmo tempo na abertura permanente ao mundo por intermédio da linguagem e do contato sensível, e no recolhimento da sua singularidade, através do silêncio e da não-inscrição. Um corpo que se abre e se fecha, que se conecta sem cessar com outros corpos e outros elementos, um corpo que pode ser desertado, esvaziado, roubado da sua alma e pode ser atravessado pelos fluxos mais exuberantes da vida. Um corpo humano porque pode deviranimal, devir mineral, devir vegetal, devir atmosfera, buraco, oceano, devir puro movimento. Em suma, um corpo paradoxal. [grifo do autor] (Ibidem, p. 53).

A busca então seria por uma emancipação desse sujeito-corpo-consciência em cena que é afetado e afeta. O corpo cotidiano está atribuído a funções maquinais e utilitárias, preso a dispositivos. Hijikata defende o corpo como fluxo, vibração e intensidade. Um trecho do livro Artaud e o Teatro, de Alain Virmaux, nos serve como inspiração para pensar também as relações do butô com o corpo do bailarino e seu espaço de atuação:

Existe no mundo hoje, uma corrente que é uma reivindicação de cultura, (...) baseada no espírito em relação com os órgãos, o espírito mergulhado em todos os órgãos e se respondendo ao mesmo tempo. (...) Há nessa cultura uma ideia de espaço (...) cultura do espaço quer dizer cultura de um espírito que não para de respirar e de sentir-se vivo no espaço, que chama a si os corpos do espaço como os próprios objetos de seu pensamento, mas que, enquanto espírito, se situa no meio do espaço, quer dizer, no seu ponto morto. Talvez seja uma ideia metafísica, essa ideia do ponto morto do espaço pelo qual o espírito deve passar. Mas sem metafísica não há cultura. (...) Quando há concordância no pensamento dos homens, onde se pode dizer que essa concordância se efetua, a não ser no vazio morto do espaço? A cultura é um 11

Retirado do artigo de NANAKO, Kurihara. Hijikata Tatsumi: The Words of Butoh. The MIT Press, Vl 44 No1, 2000. 24

movimento do espírito que vai do vazio para as formas, e das formas volta a entrar no vazio, tanto no vazio quanto na morte. Ser cultivado é queimar formas, queimar formas para ganhar a vida. É aprender a manter-se em pé no movimento incessante das formas que destruímos sucessivamente (VIRMAUX, 1978, p. 317).

O espaço como forma também é um importante pensamento de composição em Beckett. São as palavras que ocupam o espaço em Eu Não, em contraste com o corpo de A Menina. Essas palavras e esse silêncio, bem como a língua viva de Boca e o corpo de Hijikata corporificam uma atmosfera perturbadora, como enfatiza Artaud: Eu quero dizer que o corpo detém sopros, e que o sopro detém corpos cuja palpitante pressão, a espantosa compressão atmosférica tornam vãos, quando aparecem, todos os estados passionais ou psíquicos que a consciência pode evocar (Apud: VIRMAUX, 1978, p. 324).

O filósofo Peter Pál Pelbart, em seu artigo A vida desnudada, nos apresenta em tópicos uma reflexão sobre a vida, a vida qualificada, as potências do corpo e suas relações com o biopoder, termo consolidado pelo filósofo Michel Foucault. Pelbart afirma que as instituições disciplinares têm docilizado o corpo cotidiano, gerando corpos-máquinas, como o corpo do funcionário da fábrica, o corpo da escola, o corpo do exército. Além disso, inspirado em Foucault e no que Deleuze vai chamar de “gorda saúde dominante”, Pelbart analisa as constantes publicidades envolvendo um corpo formatado, belo, saudável, um corpo fascista: (...) O que é que o corpo não aguenta mais? Ele não aguenta mais tudo aquilo que o coage, por fora e por dentro. Primeiramente o adestramento civilizatório que por milênios abateu-se sobre ele, como Nietzsche o mostrou exemplarmente em Para a Genealogia da Moral, ou mais recentemente Norbert Elias, ao descrever de que modo o que chamamos de civilização é resultado de um progressivo silenciamento do corpo, de seus ruídos, impulsos, movimentos, arrotos, peidos, etc. (PELBART, 2007, p. 29).

O filósofo apresenta um olhar sobre um corpo que aparentemente pode parecer opaco, bestificado, sem vontade, indiferente, com uma respiração lenta... Esse seria um corpo anti-saúde, o oposto do que é vendido como “vida”, mas talvez a potência de vida esteja exatamente na subversão desse corpo perfeito, como se a vitalidade migrasse “para o lado daqueles que, numa volúpia de morte, souberam desafiar nosso sobrevivencialismo exsangue” (Ibidem, p. 28). Corpo que encontramos no butô e em Beckett:

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Naqueles que povoam o universo beckettiano, um corpo decrépito, máquina gasta e desconjuntada, alia-se a um espírito analítico extremamente aguçado, herdeiro dos despojos de séculos de racionalismo ocidental, portador de farrapos de erudição e cultura letrada acumulados num baú de quinquilharias, recorrentemente revolvido e espanado como única forma possível de passatempo (...). Neles, o mais abstrato (a capacidade de reflexão) aparece na concretude do mais simples (a fisiologia) (ANDRADE, 2001, p. 33).

Esse corpo que não aguenta mais, definhando, rebela-se contra um adestramento civilizatório, ainda é um corpo capaz de ser afetado. Pelbart cita Gombrowicz, que se refere a um estado mais embrionário, “onde a forma ainda não pegou inteiramente”, um estado de imaturidade, seres ainda por nascer. Corpos/personagens em cena que apresentam um estado de imobilidade, esvaziamento, semi-mortos “para dar passagem a outras forças que um corpo excessivamente blindado não permitiria” (PELBART, 2007, p. 30). O corpo da dança, para José Gil, trabalha potencialmente isso: Todo o movimento dançado vive disso. Todo movimento dançado luta de fato contra a não-inscrição, procurando mostrar as figuras do vazio, fazendo sair os em-redor (os contornos externos) dos brancos não inscritos. A defasagem entre duas velocidades, a do movimento visível, que caracteriza o gesto dançado define o espaço dos possíveis que não foram atualizados e que a dança faz emergir: abre o campo dos possíveis no espaço e no tempo, dilata o corpo e a sua presença, anuncia que o corpo pode e que ele não pôde agir. O campo dos possíveis é o espaço da não inscrição, doravante explorável, delimitável, aberto; em suma, o espaço do inconsciente do corpo, ou do corpo virtual (nós identificamos aqui “virtual”, “inconsciente do corpo”, “espaço dos possíveis”, “lugar da não-inscrição”) (GIL, 2002, p. 90).

Como se a busca por esse corpo “impotente” seja exatamente uma busca por uma potência superior, uma centelha de vida que aparece no momento da morte (ou do nascimento). Uma busca pelo estranho, pelo espanto. Deixando com que os movimentos do corpo abram movimento para novas formas de se pensar e estar no mundo.

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5. PRESENTIFICAÇÕES DA AUSÊNCIA: O CORPO DA PALAVRA E A PALAVRA DO CORPO E quando você está participando de alguma coisa excitante que está acontecendo de verdade, como é. O ver ou o ouvir causam efeito em você e causam efeito em você ao mesmo tempo ou no mesmo grau ou não. Você fica ansioso para ouvir ou você fica ansioso para ver e qual dos dois mais excita você. E o que cada um dos dois tem a ver com a conclusão da excitação quando a excitação é uma excitação é uma excitação verdadeira que é estimulada por algo que está realmente acontecendo. E depois pouco a pouco o ouvir substitui o ver ou o ver substitui o ouvir. Eles caminham juntos ou não. E quando a coisa excitante da qual você participou chega a sua conclusão o ouvir substitui o ver ou não. O ver substitui o ouvir ou não. Ou os dois caminham juntos. Gertrude Stein em Peças.

Em Eu Não e em A Menina existe um transitar entre mundos. O corpo de Hijikata e a voz de Boca são fantasmagóricas. Existe uma carne que definha e desaparece em ambos, a morte pairando e se tornando presente. Kazuo Ohno em entrevista fala um pouco dessa relação entre o butô, o corpo, morte e ausência:

Minha alma guiará o caminho. Com cada passo que dou, a minha carne está lentamente definhando. Em breve irei deixar esse mundo para trás. Como se dança sem corpo? Não tenha medo, no além poderemos continuar a dançar como um espírito, um fantasma. Uma dança fantasma é tão verdadeiramente linda, tão linda de fato, que ignoramos completamente que falta uma forma material. Mesmo despedindo-me de minha carne e ossos, quero continuar dançando como um fantasma (Apud: PERETTA, 2015, p. 131).

Como se pode dançar sem corpo? Como se pode ainda dizer? Para Beckett e Hijikata se aprofundarem nessas questões, foi preciso se libertarem dos automatismos da escrita e da dança, e dos ditames de uma mente racional. Ou, no caso de Beckett, explorar esses automatismos e hermetismos e dissecá-los, tornando-os uma nova experiência. Configurar a ausência e explorar o potencial do esvaziamento e do fracasso, pensando o corpo e a fala a partir do que falta. Em Três Diálogos com Georges Duthuit, publicado originalmente em 1949 e traduzido por Fábio de Souza Andrade, Beckett ao falar de artistas plásticos fala de si, e coloca em evidência essa tentativa:

Meu argumento, já que estou na chuva, é que van Velde é o primeiro a desistir deste automatismo estetizado, o primeiro a admitir que ser artista é falhar, como ninguém mais ousou falhar, que o fracasso é seu mundo e que recuar diante dele é deserção, artesanato e habilidade, prendas domésticas, vida. Não, não, permita que eu expire. Sei que tudo que é preciso agora, para conduzir este assunto horrível a uma conclusão aceitável, é fazer desta submissão, desta admissão, desta fidelidade ao fracasso, uma nova ocasião,

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um novo termo da relação, de cujo ato, incapaz de agir, obrigado a agir, ele gera, um ato expressivo, mesmo que apenas de si mesmo, de sua impossibilidade e de sua obrigatoriedade (Apud: ANDRADE, 2001:181).

Para Pelbart, a linguagem racional dos personagens de Beckett desaparece porque elas ainda representam o “domínio do possível” (PELBART, 2009, p. 34) e é através dessa nova configuração que é possível armazenar uma “energia potencial” (idem):

É a intensidade pura que se dissipa no ar. A obra de Beckett seria então uma “exploração das intensidades puras”, ali onde é preciso fazer buracos na linguagem, já que as palavras carecem dessa “pontuação da deiscência”, desse “desligamento”. Retenhamos isto: há no esgotamento o componente de desvinculação, de desligamento, que já encontramos no desastre em Blanchot, e que é condição de possibilidade de uma nova vidência, mesmo fugaz, ainda quando se dá sob o modo da dissipação (Ibidem, p. 35).

Outra característica em comum tanto em Eu Não quanto em A Menina, é uma atmosfera etérea, onde o público não reconhece a presença de um horizonte firme para onde se direcionar. Não há uma sequência lógica de fatos, mas sim uma ideia oculta e divagante. O eco das sonoridades (tanto a fala cíclica de Boca, quanto a trilha sonora de A Menina) potencializam as presenças no palco, como espectros. O que gera esse efeito, é a quebra de uma linearidade da emissão do discurso, e também da quebra de signos convencionados na dança. Nesse sentido, é como se a Boca de Beckett e a menina no corpo travestido de Hijikata atravessassem um estado de sonambulismo, ou até mesmo de insônia. Uma presentificação da ausência. Um “sonho de insônia”, citando Deleuze em Para dar um fim ao juízo12. De acordo com Antonin Artaud, nesses estados semisonhados é onde ocorrem os gestos falhos e os lapsos de linguagem (ARTAUD, 2006, p. 79), gerando um “corpo-outro” ou uma “palavra-outra”: Não se trata de suprimir o discurso articulado, mas de dar às palavras mais ou menos a importância que elas têm nos sonhos. (Ibidem, p. 107) Ainda sobre essa “palavra-sonho”, Jacques Derrida em Escritura e Diferença, cita Freud ao compará-la à escritura fonética:

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“Esse sono sem sonhos não é daqueles em que dormimos, mas ele percorre a noite e a habita com uma claridade assustadora (...) esse sono sem sonho, em que não se dorme, é Insônia, pois só a insônia é adequada à noite e pode preenchê-la e povoá-la. Por isso reencontra-se o sonho, já não como um sonho de sono ou um sonho desperto, mas como sonho de insônia. (...) o insone pode permanecer imóvel, enquanto o sonho tomou para si o movimento real. Esse sono sem sonho onde no entanto não se dorme, essa insônia todavia arrasta o sonho até os confins da insônia, tal é o estado de embriaguez dionisíaca, sua maneira de escapar ao juízo”. DELEUZE, G. 1997, p. 107.

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A escritura geral do sonho supera a escrita fonética e volta a por a palavra no seu lugar. Como nos hieróglifos ou nas charadas, a voz é cercada. Logo no princípio do capítulo sobre O trabalho do sonho nenhuma dúvida nos resta a tal respeito, embora Freud ainda aí se sirva desse conceito de tradução contra o qual mais adiante nos põe de sobreaviso. "Os pensamentos do sonho e o conteúdo do sonho [o latente e o manifesto] surgem diante de nós como duas encenações do mesmo conteúdo em duas línguas diferentes; ou melhor, o conteúdo do sonho aparece-nos como uma transferência (Übertragung) do pensamento do sonho para um outro modo de expressão cujos signos e gramática só poderemos aprender a conhecer comparando o original com a tradução. Os pensamentos do sonho são-nos imediatamente inteligíveis logo que deles temos experiência. O conteúdo do sonho é dado como uma escrita figurativa (Bilderschrift) cujos signos devem ser transferidos um por um na língua dos pensamentos do sonho". Bilderschrift. não imagem inscrita mas escrita figurada, imagem dada não a uma percepção simples, consciente e presente, da própria coisa — supondo que isso exista — mas a uma leitura (DERRIDA, 2002, p. 209-210).

José Gil, ao tratar da forma do corpo dançado o compara ao formato das nuvens, onde podemos enxergar sentidos que se esvaem, desaparecem e se formam novamente. Percebo que essa pode ser uma característica encontrada tanto na forma com que Beckett trabalha a palavra em Eu Não quanto na dança de Hijikata: É a forma da nuvem que impõe esta associação. Observemos que a nuvem não tem contornos, mas que seus limites se desvanecem numa espécie de sfumato, do mesmo modo que o sentido dos movimentos de transição desliza de uma sequência para outra sem que seja possível recortar neles elementos inseparáveis. Por outro lado, a nuvem, como sentido, pode assumir contornos precisos de figuras, de signos; ou transformar-se num magma informe, acumulando protuberâncias sem sair do mesmo lugar. Por fim, tal como o sentido, a nuvem compõe-se de múltiplas camadas que se sobrepõem, se imbricam, se confundem parcialmente (GIL, 2002, p.94).

Tanto a dança de Hijikata quanto a escrita de Beckett trabalham a partir de um recolhimento labiríntico. Para dar ênfase a essa configuração de multicamadas e confusões, ambos utilizam de contrastes de iluminação, trabalhando jogos de sombras. Não há uma intenção de clareza, seja no sentido de “esclarecimento do que é mostrado”, seja nas escolhas estéticas. Afirma Hijikata:

Escuridão é o melhor símbolo para a luz. Não existe possibilidade para se entender a natureza da luz se nunca observarmos profundamente a escuridão. (Apud: PERETTA, 2015, p.68).

Podemos perceber essa ideia em Beckett na fala do personagem Krapp, em A última Gravação de Krapp:

A nova iluminação da minha mesa constitui um grande melhoramento. Com toda essa obscuridade à minha volta me sinto menos só. (Pausa) em certo

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sentido. (Pausa) Adoro levantar-me para dar uma volta e depois voltar aqui a ... (hesita) ...mim. (Apud: CAVALCANTI, 2006, p. 66).

Isabel Cavalcanti cita os múltiplos “apagamentos” nas escolhas estéticas de Beckett em Eu Não:

(...) abolição do espaço cênico por meio da escuridão que reveste o palco, redução do corpo de BOCA, encobrimento do corpo do OUVINTE, obscurecimento do sentido da narração e, por fim, apagamento do pronome da primeira pessoa como expressão do sujeito da enunciação. (...) (CAVALCANTI, 2006, p.38)

De acordo com Fábio de Souza Andrade, o interesse pelo soterramento do corpo tem a ver com um interesse em cortar “a cabeça bem pensante do narrador protagonista”:

A cabeça que ganha autonomia em relação ao corpo é uma imagem cara a Beckett, que, progressivamente, passou a ocupar mais espaço em sua obra. No teatro, é fácil elencar uma série de personagens que aparecem aos espectadores unicamente através da cabeça, origem e veículo das palavras (Nagg e Nell, em Fin de Partie, cujo cenário despojado, encimado por sua janelas já foi interpretado como alegoria do crânio; Winnie, no segundo ato de Happy Day, enterrada na colina; as mulheres e o homem de Play, dentro de grandes vasos; até mesmo, a boca desgarrada de Not I, cabeça reduzida metonimicamente à parte rebelde, órgão da fala compulsiva). (...) (ANDRADE, 2001, p.22)

Esse apagamento em Eu Não também é encontrado em A Menina, na medida em que este busca um renascimento e evoca um corpo puro, apagado do que poderia ser considerado superficial ou supérfluo. Os recursos de iluminação procuram explorar contrastes e penumbras, em diálogo com essas ideias, onde a escuridão abole as fronteiras entre corpo e lugar, entre visibilidade e desaparecimento. Importante frisar que o butô também era conhecido como “dança das trevas”. A estética do feio, do “mau-gosto”, potencializando o irracional, as ruínas, a pobreza, inspiraram o teatro de vanguarda dos anos 1960. Tanto Hijikata como Beckett optam em seus trabalhos por cenários que parecem restos de uma civilização morta, onde não há um lugar identificável dos acontecimentos, subvertendo as formas tradicionais teatrais da época. Em seus trabalhos, eles “apresentam” mais do que “representam”, e geram uma antítese do que poderia ser considerada uma “arte harmônica”. A relação com essas obras não se estabelece através de uma contemplação passiva e sim através de certa provocação, certo desequilíbrio sensorial. 30

O butô propõe uma nova pedagogia do corpo, propondo um “anticorpo” de resistência. É como se Hijikata voltasse para a questão “O que pode o corpo?” ou talvez, “até onde pode o corpo?” ou ainda “o que o corpo é capaz de aguentar?”, enquanto Beckett explora a linguagem-impossível, a palavra interrompida, a impossibilidade de calar, a respiração ofegante, a palavra-necessidade que quase se extingue, mas resiste. Existe uma recusa a ela, mas ao mesmo tempo uma necessidade de evocá-la, incessantemente. Essa palavra também se configura como palavra-corpo, de acordo com José Gil: Uma palavra vem sempre rodeada de emoções não-definidas, de tecidos esfiapados de afetos, de esboços, de movimentos corporais, de vibrações mudas de espaço. Forma-se uma atmosfera não-verbal que rodeia toda a linguagem. (GIL, 2002, p.164)

Em A Menina e Eu Não existe uma contraposição entre movimento e fala: na medida em que o corpo de Hijikata expressa uma omissão da palavra, enquanto em Beckett, onde há a escassez ou impossibilidade de deslocamento no espaço, existe uma profusão verbal. Boca, que é apenas uma boca, isenta de corpo, possui a força de sua presença apenas nesse órgão, que enlouquecidamente não consegue deter. Na personagem de maior apagamento figural do autor, apresenta-se a maior pulsão verbal e falta de controle narrativo. Nesse sentido, a palavra gera um corpo. Nas palavras de Isabel Cavalcanti: “enquanto o cérebro insistentemente suplica que a boca pare, a elocução das palavras não responde ao seu comando, sendo independente dele”. (CAVALCANTI, 2006:78). Cavalcanti afirma que a narração de Boca refere-se, sobretudo, à “manifestação de uma voz” (idem, p. 83). Hijikatta sublinha a importância de um corpo-manifesto: Todas as forças morais civilizadas em colaboração com o sistema de economia capitalista e aquele da política excluem firmemente a carne como objetivo, meio ou instrumento de alegria. Sem dizer que o uso da carne sem objetivo, que eu chamo de dança, será o inimigo mais execrável e um tabu para a sociedade produtiva. Isso porque minha dança é uma operação para exibir a esterilidade absoluta contra a sociedade produtiva (Apud: Kuniichi, 2012, p. 46)

Fábio de Souza Andrade também destaca o impacto da escrita beckettiana:

Marcado na sua predileção por solilóquios e pelo enquadrinhamento detalhista do processo interior de personagens que tentam atribuir ou reconhecer sentido no mundo (menos) e em si próprias por criaturas cuja incapacidade para ação está muitas vezes representada na deficiência física (paralíticos, cegos, mutilados em geral são protagonistas frequentes de seus

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romances), a ficção de Beckett institui uma nova ordem de realismo que constrói na linguagem a falência do sujeito burguês, a dissolução dos indivíduos como sedes da reflexão, perdidos num mundo coisificado. (ANDRADE, 2001, p.30)

Eu Não e A Menina apresentam a realidade do acontecimento cênico como a realidade vivenciada. Boca é um ponto no escuro, é um órgão que fala, e que descreve seu próprio falar, sua tentativa de entender o que está acontecendo, sua perda da identidade. O que acontece com Boca é a realidade visível também para o espectador, assim como em A Menina, cujo corpo de Hijikata em todo o seu estranhamento, apresenta-se exatamente como se vê, ambos quebrando com a lógica de continuidade e conflito dramático do teatro de seu período: (...) chama nossa atenção a desconfiança tão prematura em Beckett em relação à arte que parte de hipóstases do sujeito para situa-lo, imutável, num confronto com um mundo objetivo igualmente reificado. À contínua substituição das cascas sucessivas a que damos o nome de “eu” corresponde um mundo igualmente cambiante e a arte deve fazer justiça à natureza movediça do terreno em que pretende promover o encontro (ou denunciar o desencontro) entre o sujeito e o universo (ANDRADE, 2001, p.21).

José Gil afirma que em um espetáculo de dança “as paredes do palco não constituem um obstáculo, tudo se passa no espaço do corpo do bailarino” (GIL, 2002, p. 12) enquanto em um espetáculo teatral, “no ator gestos e palavras reconstroem o espaço e o mundo” enquanto o bailarino “esburaca o espaço comum abrindo-o até o infinito” (idem). Em Beckett, entretanto, as palavras ditas por Boca ampliam o espaço apreensível pela indeterminação narrativa. A palavra agonizante gera também o espaço indeterminado, ampliando-o, como já citado, bem como o espaço do corpo de Hijikata dilata o espaço, de forma deslocável. José Gil afirma que os corpos exalam um espaço, que por sua vez constroem uma atmosfera:

A atmosfera resulta da invasão da consciência pelo inconsciente; no mesmo ato, é o espaço do corpo – esse prolongamento do corpo no espaço – que se impregna de forças inconscientes. A atmosfera não se limita à consciência, habita o exterior dos corpos, condicionando a sua ação: é por isso que se fala da atmosfera de um grupo, da “atmosfera que reinava na sala”, etc., como se se tratasse de um dado objetivo. Os corpos exalam um espaço (o espaço do corpo) e todo o contexto dos objetos se acha assim modificado, carregando-se o espaço objetivo de forças, de lugares magnéticos, de territórios proibidos, de atração ou de ameaça. Então a atmosfera surge desligada dos corpos, existindo de modo autônomo e envolvente; dizemos: “está no ar”. A atmosfera é etérea (GIL, 2002, p. 110).

Como Gil afirma, essa atmosfera pode ser manipulada através desse corpoespaço presente no butô, e ampliando essa ideia, pensando em Eu Não, enxergamos 32

uma boca que se transfigura entre o visível-invísivel e uma palavra ampliada pela reverberação do microfone que se torna também um corpo, este, invisível, capaz de dançar no espaço. Apesar da gramática não verbal ser o ponto principal do butô, em seu processo de criação não se subestima a palavra escrita. Muitos textos estão presentes no processo de criação, como estímulo, gerando o que Christine Greiner irá chamar de “palavras encarnadas”13. Além disso, Hijikata escrevia poemas e tanto ele quando Kazuo Ohno eram muito influenciados por pinturas, em um misto de texto e imagem: (...) Além de ter escrito e falado muito sobre o seu butô, em um plano formal, utilizava também as palavras como um meio de tradução entre mundos. Colhendo a essência de quadros surrealistas, de figuras e imagens abstratas, transmutava-a em sensações que tentava transmitir aos seus discípulos valendo-se do recurso de palavras muitas vezes estranhas, abertas ou incompreensíveis mesmo para aqueles mais próximos dele. Possuía uma escrita cheia de neologismos, com sentenças muitas vezes pontuadas por incorreções gramaticais. Hijikata procurava capturar todos os tipos de emoções, sons evocativos e onomatopeias que, para ele, possuíam realmente uma fisicidade. Nesse sentido, para ele o corpo era uma metáfora das palavras e as palavras eram uma metáfora do corpo (PERETTA, 2015, p. 7071).

Hijikata relia os quadros de artistas como Gustav Klimt, Francis Bacon, Gustave Moreau, Johannes Vermeer, Salvador Dali, Pablo Picasso, Francisco Goya, Edvard Munch, entre outros

penetrando nas pinturas e seguindo o movimento interno de cada figura representada, para depois defini-las em palavras – tentando assim “congelar” aquela forma – e compartilhá-las com o grupo como um modo de estimular a recriação das sensações. Assim sendo, realizava um processo metodológico baseado na contradição, pois ao mesmo tempo que encarnava um procedimento para a criação de formas, buscava destruí-las com a implosão dos gestos e a dissolução do corpo (PERETTA, 2015, p.75).

Assim como Kazuo Ohno

observava incansavelmente pinturas e retratos, lia poemas e haikais, registrando todos os seus movimentos internos com canetas coloridas, repetidamente apagando e reescrevendo em grandes folhas de papel. Ele sonhava muito durante esse período, instaurando um rico processo no qual as

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“Assim como aponta a tradutora de Hijikata para o inglês, Kurihara Nanako, Hijikata e seu butô-fu nada mais fazem além de reafirmar a hipótese desses novos filósofos-cientistas, trabalhando as chamadas “palavras encarnadas”. Esta é a chave para entender o corpo em crise. Um corpo recheado por palavras, provando que há uma conexão entre estruturas da atividade corporal e o que pensamos como operações cognitivas superiores (raciocínio, atenção, etc.). Ou seja, o modo como nos movimentamos e o modo como conceituamos o mundo não podem ser entendidos separadamente”. GREINER, C. Revista Sala Preta, V. 2, 2002, p. 114.

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palavras entravam de alguma forma em seu inconsciente (PERETTA, 2015, p.128).

Isabel Cavalcanti afirma que Beckett também se inspirou no estudo da pintura Decapitação de São João Batista de Caravaggio para criar a personagem Boca em Eu Não. A autora cita o comentário do amigo e biógrafo de Beckett, James Knowlson, em seu livro Dammed To Fame: The Life of Samuel Beckett:

A atenção que Beckett devotava a todo elemento dos detalhes visuais de suas peças era tão precisa e esmerada quanto a dos mestres holandeses do século XVII que ele tanto admirava. Mas se algumas de suas imagens podem ser inspiradas por pinturas de Rembrandt, Caravaggio, Giorgine, Antonello da Messina, ou Blake, elas ainda parecem surpreendentemente modernas e pósexpressionistas. Isto ocorre em função de sua ousadia, sua estranheza, assombrosa qualidade e aquilo que alguém pode chamar sua crueza. É também porque Beckett contorce-as radicalmente isolando a cabeça ou a boca do resto do corpo (como em Eu Não ou Aquela Vez) ou reduzindo a substancialidade da figura (como em Passos ou Trio Fantasma). (Apud: CAVALCANTI, 2006, p.54)

O corpo de A Menina é predominantemente silencioso, onde não há emissão de som vocal, mas que possui um “estofo” que parte de palavras e imagens. Beckett, ao contrário, em Eu Não explora outras formas de escuta a partir da exploração de sonoridades da linguagem, partindo de uma imagem que o marcou. Essa conexão a partir da imagem e da palavra não se dá através da tradução desses significados, mas sim como sobrearticulações dessas influências, de uma entrega a essa palavra, seja através silêncio ou da verborragia. Neste sentido, interessa tanto para Beckett quanto para Hijikata um corpo e um texto potencialmente “outro”, onde o corpo em crise “não busca um novo vocabulário para contrapor o antigo, mas deliberadamente abandona o conceito de vocabulário” (GREINER, 2002, p.114). Em A Menina, os gestos não ilustram nada, se configuram como impulsos de uma experiência física. Esse lugar almejado não se encontra no domínio do pensamento, por isso, essa autodescoberta do butô não pode ser explicada em palavras. Não se “fala” pelo corpo, mas deixa-se o corpo falar por ele mesmo, gerando um “corpo-pensamento”. O butô abandona qualquer tipo de narrativa psicológica; não existem personagens, situações ou consequências. O que existe é o estímulo que gera uma nova forma de ver e ouvir aquele corpo presente. Peretta considera o corpo do butô como “um reservatório da memória do inconsciente coletivo” (PERETTA, 2015, p.100). Já Beckett “está intimamente ligado a uma alteração de ordem técnica da narrativa, à opção pela instabilidade e inconfiabilidade da enunciação 34

em primeira pessoa” (ANDRADE, 2001, p.20), gerando assim essa escuta flutuante, onde o texto é fruído na desatenção, a presença da cena é no corpo-palavra, capaz de se expandir, estender-se e penetrar no espaço da cena, ressoando, dilatando-se e reverberando. Assim, o corpo e a palavra não são mais pontes de algo ou para algo na cena, mas são libertos para a possibilidade de novas formas de articulação.

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CONCLUSÃO: TENTANDO TOCAR O HORIZONTE O fim está no começo e no entanto continua-se. Samuel Beckett, Fim de Partida.

A língua, o falar, o gesto, o significado, amarram e prendem. São filtros dos pensamentos, dos impulsos, do inconsciente. A única maneira de nos comunicarmos é tentando esgarçar os limites que a linguagem nos apresenta, capturando rupturas, vazamentos. Não conseguimos demolir essa ordem que nos move, mas é na tentativa e no erro que construímos novos caminhos. Sem juízo de valores, estamos constantemente submetidos ao constrangimento de nunca nos comunicarmos por completo. Sinto-me, ao escrever este trabalho como A Boca que apresenta uma proliferação da tentativa, um esgotamento, uma repetição que estabelece pequenas diferenças, minúsculas modificações, um ciclo hipnótico, onde não saber o que é ou onde se está faz com que seja necessário reescrever, redefinir, sempre corrigir e acrescentar algo nas incontáveis revisões, até surgir a necessidade de finalizar, e aprender a lidar com a sensação de que a cada parágrafo eu poderia recomeçar novamente. O que me interessa no teatro é a sua possibilidade de resistência. Assim como A Menina com seu corpo massacrado, corpo limite, exaustivo e grotesco, sujo, indefinido, um corpo aberto, um corpo que está para além do meramente imitável, reproduzível. A tentativa deste estudo foi pensar o teatro e a dança de forma expandida, para além das fronteiras geográficas, propondo um estudo transnacional, não somente para destacar e expor objetos diferentes, mas buscando entrelaçá-los e colocá-los em diálogo, evitando os clichês culturais que tendem a rotular as experiências estéticas do Leste Asiático. Beckett e Hijikata, mesmo tão distantes geograficamente, apresentam nesses dois trabalhos de curta duração, essa tentativa de tocar o horizonte de uma linguagem, um caminho tão interessante justamente por assumir essas impossibilidades, interessados mais em explorar a dificuldade do que em dominá-la, esgarçando os pontos de resistência da palavra e do corpo e ressignificando suas funções. Como busquei mostrar ao longo desse estudo, ambos tem tanto as palavras como as imagens como ponto de partida para seus trabalhos, não as enxergam de forma separada, mas 36

subvertem-nas e criam algo novo a partir dessas relações. Interessante pensar também em como as famosas estampas Ukyo-e influenciaram os artistas impressionistas franceses no final do século XIX, que por sua vez influenciaram a estética encontrada na arte de vanguarda dos anos 1960 no Japão, existindo assim uma rede de conexões por vezes ignorada ou não tida como significativa, mas que ao ser estudada amplia a leitura de movimentos artísticos de diferentes localidades que por vezes são analisados isoladamente. A partir destas primeiras tentativas de aproximação de autores de continentes diferentes, sinto que concluo sem fechar, porque não pretendo determinar um começo. Minha citação introdutória deste estudo afirma que sempre teve alguém que começou antes. Meu recorte temático parte das muitas palavras das tantas pessoas que vieram antes e me acompanharam até aqui. Ao terminar esses estudos, sinto que esse foi o primeiro passo para um longo caminho que pretendo percorrer relacionado aos estudos das artes do Leste Asiático e sua aproximação com manifestações artísticas de outras localidades. Ao final de seu texto Imagens do (nosso) tempo, Pelbart reflete sobre o projeto Poéticas do inacabado de Alejandra Riera:

Talvez seja o fim do projeto, da obra, das imagens, para que alguma vidência venha à tona, em meio a um tempo outro, a uma outra imagem do tempo, talvez um tempo sem uma imagem de tempo a lhe ditar a forma, e por conseguinte, em meio a um outro tempo das imagens, ou a um tempo de outras imagens. (PELBART, 2009, p. 42)

Dito isso, minha conclusão só pode ser um novo começo para quem se interessa por pensar as possibilidades de jogo do corpo e da voz na cena, de maneira que não se oponham, mas se interpenetrem, em instâncias diversas. Concluo (e ao mesmo tempo não) para que possam vir os próximos a “cavucar” o que nunca se esgota, esgarçando limites e assumindo a incompletude de qualquer definição (e conclusão).

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