O Corpo no Corpo da Poesia de Sylvia Plath: Leituras de “The Detective” e “The Applicant”

July 9, 2017 | Autor: Manuela Moreira | Categoria: The Body, Feminist Literary Theory and Gender Studies, Sylvia Plath
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Manuela Moreira Fevereiro de 2014

O Corpo no Corpo da Poesia de Sylvia Plath: Leituras de “The Detective” e “The Applicant”

Mestrado em Estudos Literários, Culturais e Interartes 2013/2014 Faculdade de Letras da Universidade do Porto

Este ensaio tem por objecto a leitura crítica de dois poemas de Sylvia Plath, inseridos na colectânea Ariel – The Restored Edition, dada à estampa em 2004 e organizada por Frieda Hughes, filha de Sylvia Plath e Ted Hughes, respeitando a preparação e seleccção do manuscrito deixado por sua mãe. Do corpo da obra mencionada, elegi dois poemas “The Detective”, escrito a 1 de Outubro de 1962 e “The Applicant”, com data de 11 de Outubro de 1962. A minha opção prende-se com o facto de os dois poemas terem como topos o corpo e a representação do mesmo. Assim, a análise crítica a que me proponho pretende ir de encontro ao enunciado que dá o título a uma das obras de Judith Butler, Bodies that Matter, e à dupla significação subjacente ao significante “matter” nesta expressão, isto é, à sua importância e materialidade, sendo que a materialidade do corpo, como diz Butler, está sujeita a condições de normatividade que a estruturam e a formam. (Butler, 1993: 17). Digno de nota é o que Butler diz com referência ao título do livro publicado em 1993, ao afirmar que esse mesmo título não se trata de “‘iddle pun’, for to be material means to materialize, where the principle of that materialization is precisely what “matters” about that body, its very intelligiblity” (idem: 32). Também indo de encontro à obra de Plath e àquilo que o corpo da sua obra representa, se poderá dizer tal como Butler que: “(…) the body is a historical situation, as Beauvoir has claimed, and is a manner of doing, dramatizing, and reproducing a historicalsituation.”(Butler,1988:521). Por outro lado, ao escrever o corpo, Plath escreve-o com o corpo. Na linha de uma filosofia pós-estruturalista, que procura em Nietzche as suas genealogias, recusa-se a oposição binária mente/corpo cartesiana, que vigorou no pensamento filosófico ocidental, para dar lugar a uma subjectividade corporal. Assim, como diz Elizabeth Grosz: “It is through the body that the subject can refer to his or her own interiority, and it is through the body that he or she can receive, code or translate the inputs of the “external” world ”. (Grosz,1994:51). Não me parecendo ser este o espaço para discorrer das formas como a obra de Plath tem sido lida, ocorre-me dizer que as leituras biografistas da obra de Plath, quer quando a colocam como poeta confessional ao lado de outros poetas classificados com o mesmo epíteto, quer as leituras feministas que, ao ler Plath à luz da sua vida, a transformam num símbolo de opressão do patriarcado, não fazem jus à sua obra e obliteram-na, uma vez que a ars poetica de Plath é lida de um ângulo enviesado, negligenciando outras leituras possíveis. Assim, pretende ler-se os poemas de Plath, 2

secundando Frederick L. Green, quando este refere que: “We live in history and the position from which we read/ write/ critique always bears witness to our multiple and historical contingent identities. Hence, reading as the phenomenological engagement between a subject and a text, neither of which are static, is always productive of different readings.” (Green, 1996: 331). Sendo “The Detective” and “The Applicant” poemas escritos pelo punho de Plath com dez dias de diferença, parece-me ser digno de aqui realçar que “The Detective” foi um poema que Ted Hughes excluíra da edição de Ariel, por si organizada e editada no Reino Unido em 1965 e nos Estados Unidos em 1966, ao passo que “The Applicant” (Plath: 2004, xiii) não mereceu a censura do “editor” de Ariel and other Poems. A obliteração de “The Detective” parece-me significativa, na medida em que o poema se presta a uma leitura biografista, o que era recorrente à data da publicação, nomeadamente quando os leitores estavam cientes de que o poema fora escrito, após Plath se ter separado de Hughes, por motivos da infidelidade deste. “The Detective” é um poema narrativo que mimetiza o género policial. Nele sãonos apresentadas as personae envolvidas, a vítima como dona casa, hipoteticamente a desempenhar as tarefas dela esperadas, aquando do seu homicídio, a expressão do homicida e a execução do acto de violência contra a vítima. A questão do tipo de arma utilizada para a execução do crime é enunciada em frases interrogativas, suposições para as quais não se encontra resposta. O/a autora da diegese funde-se com a persona do detective, quando se pronuncia sobre a ausência do corpo da vítima, como atestam as expressões: “No-one is dead./ There is no body in the house at all.”(…)/ “This is a case without a body. /The body does not come into it at all.” O corpo enquanto matéria transforma-se em não matéria e daí não ser relevante, isto é, passa a integrar os “Bodies that (don’t) matter” e que pertencem ao domínio da abjeção. Numa entrevista a Judith Butler, intitulada: “ How Bodies Come to Matter: An Interview with Judith Butler” (Meyer and Prins, 1998: 281), a autora de Gender Trouble refere que a definição de abjeção não se encerra nos exemplos que a mesma possa nominar. Diz Butler: “But it would be a terrible mistake if one thought that the definition of the abject could be exhausted by the examples that I give. I want to hold out for a conceptual apparatus that allows for the operation of abjection to have a kind of relative autonomy, even emptiness, contentlessness (itálico meu) precisely so that it is not captured by its examples, so that its examples don't then become normative of what we mean by the abject.” (idem). 3

Voltando ao poema “The Detective” de Plath, a persona do detective conclui estar na presença de um estranho caso, afirmando: “It is a case of vaporization.” A vaporização do corpo assume-se aqui como o desaparecimento do mesmo e remete-nos para os métodos utilizados em Ausschwitz, para o extermínio dos judeus, bem como para os corpos dizimados pelos bombardeamentos de Hiroshima e Nagasaki em 1945. Aliás, a vaporização do corpo da vítima é pré-anunciada pelo verso: “A body into a pipe, and the smoke rising” que inicia a terceira estrofe do poema e que alude à gaseificação da população prisioneira dos campos de concentração nazi. A vaporização do corpo representa a destituição da sua materialidade, da sua existência enquanto sujeito que se conforma com a normatividade imposta sobre o seu corpo, ou seja, o repúdio da construção social e cultural inscrita sobre o corpo de mulher, que lhe atribui a categoria de género e dela espera os papéis de género que lhe são impostos. Ao vaporizar-se, o corpo da mulher assassinada assemelha-se àqueles que têm de ser destruídos, sem deixar rastos, pistas, porque são indesejáveis, isto é, à semelhança dos judeus de Auschwitz, que não gozavam do estatuto de sujeito e que, à época, poderiam servir de exemplos do que Butler designa pelo abjecto, ou seja, :“(…) those who do not enjoy the status of the subject, but whose living under the sign of the ‘unlivable’ is required to circumscribe the domain of the subject”. (Butler, 1993: XIII). Assim, a mulher, no poema em análise, vive no seu corpo uma vida que se poderá qualificar como ‘unlivable’, como comprovam os versos: “This is the smell of years burning, here in the kitchen,/ These are the deceits, tacked up like family photographs”. O corpo que se abate em “The Detective” é também um corpo que não importa, como o corpo que se evapora é um corpo que se torna imaterial. Durante a investigação do homicídio, a persona do detective nada encontra “that matters” no duplo sentido butleriano e remata a narrativa com o verso “We walk on air, Watson.”, o que nos leva a inferir que não só o corpo mas a geografia que esse corpo habita, nomeadamente, a casa no seu espaço interior e exterior, se evapora também. Se, por um lado, a frase “We walk on air, Watson.” pode ser lida como a evaporação do detective, sendo que tudo à volta dele se evapora, por outro,

o significado da expressão idiomática “walk on air”

significa “feel extremely excited or happy”, o que poderá levar-nos a concluir que o sujeito poético parodia a autoridade, enquanto entidade reguladora e repressiva de uma sociedade patriarcal, fazendo-a desaparecer, apesar de fechar o poema com a frase de Sherlock Holmes “Make notes” dirigida a Watson, personagem da literatura policial de

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Arthur Conan Doyle, o que nos remete de novo para o mundo material, ainda que por via da representação na narrativa de ficção. Ao apresentar as suas personae entre matéria e não matéria, entre a categoria de sujeito e não sujeito, o/a narradora alude à fluidez do corpo, de um corpo não fixo e de um espaço não estático, mas fluido. Porém, há que ressalvar que a persona do assassino que perpassa aos nossos olhos, através das palavras: “And the eyes of the killer moving sluglike and sidelong/ Unable to face the fingers, those egotists./The fingers were tamping a woman into a wall,/ A body into a pipe, and the smoke rising.” se apresenta como uma personagem não modelada, evocando os métodos macabros de um serial killer, a desfazer-se de um cadáver, que o poderá identificar como autor do crime. No entanto, há que referir que o assassino em questão se trata de um sexual killer, que mata não porque é misógino, mas que mata o seu objecto de desejo, na busca pela transcendência em que o homicídio representa um acto de auto-afirmação (Cameron and Frazer, 1996: 208-9). Em “The Detective”, apesar de o corpo da mulher se ter vaporizado, o/a leitor/a é informado da forma como este fora violentado, visto que fragmentos do mesmo, como a boca e os seios, foram os primeiros a ser abatidos. No caso da boca, o esquartejamento da mesma é claramente justificado pelo sujeito poético com os versos: “ It had been insatiable/ And in punishment was hung out like brown fruit/To wrinkle and dry.” A boca/ língua dá voz à criação da palavra, do pensamento e da arte poética. Assim, a mulher rompeu com a normatividade imposta sobre o seu corpo, já que não permaneceu em silêncio, qual “Angel in the House” (Cf. Woolf, 1992:39) e talvez por isso a boca/ língua fosse arrancada e condenada a secar a sua fonte de criação. O outro elemento do corpo da mulher a ser amputado foram os seios, seios duros, empedrados, prontos a amamentar, dos quais sai o leite amarelo antes do parto, depois o leite azul, leite rico em água e açúcar, que amamentará a criança, como se lê nos versos: “The breasts next. /These were harder, two white stones./The milk came yellow, then blue and sweet as water.” Com a remoção dos seios da mulher em estado final de gestação e início de amamentação, o assassino comete um duplo homicídio, dado que mata a mulher/mãe e o/a filha. Este assassino para além de se poder identificar com o “sexual killer” é também infanticida, como vêm a comprovar as frases do poema: “there were two children,/ But their bones showed,”. De assassino sexual a infanticida, a representação do marido em “The Detective” é retratada como o pior dos monstros. A forma como o corpo da mulher é estropiado, o facto de esse mesmo corpo ser fonte de vida e de ser 5

assassinado contendo outras vidas, bem como o facto de o detective do caso, construído à imagem de Sherlock Holmes, não conseguir encontrar esse corpo, leva-nos a concluir que a categoria de género, cultural e socialmente construída “homem”, assente na dicotomia homem/mulher, da qual “homem” é o elemento mais forte, é claramente questionada pelo sujeito poético. Como diz Rey Chow (2006): “In the case of binary oppositions (…) usually one of the two terms in a relation of difference is given epistemological precedence and used as the criterion to determine the value of the other in a hierarchical fashion.”(Chow, 2006: 197). Neste poema, o mesmo sujeito poético mostra-nos que o corpo da colectividade, isto é, a sociedade, assente em dicotomias é um corpo desigual. Plath acaba por nos mostrar que o estado desse corpo colectivo é patológico, na medida em que mata a criação física ou artística. Como diz Susan Van Dyne: “In Plath’s poetry, making babies and making poems are persistent metaphors for each other”. (Van Dyne, 1993:6). Esta mesma estudiosa da obra plathiana diz que “Plath recasts marriage as a criminal act” (Van Dyne,1993: 41). Contudo, eu contraponho, que o acto criminoso, perpetrado pelo marido, no poema que estou prestes a acabar de analisar, nos mostra como uma outra instituição adveniente do casamento, isto é, a família não nos é apresentada como “culturally sacred mythologized as haven” (Green, 1996: 334), mas como uma abjecção que tem de ser eliminada. Também numa linha de um feminismo menos teórico, a eliminação da família é cometida paradoxalmente por aquele que tradicionalmente a domina, ou seja, o marido e pai. Assim, a destruição da família pelo pater familias, representa por parte da narradora do poema, um acto de destituição do patriarcado. Cabe agora reflectir sobre a questão do corpo do assassino. Independentemente das razões que determinam a ocorrência do homicídio sexual/ infanticídio e das suas dimensões psicológicas e/ou sócio-culturais, parece-me pertinente colocar a seguinte questão: Será que ao sexual killer/ infanticida se poderá atribuir a categoria de sujeito? Será que ele não oscila entre o sujeito e o objecto? Será que o crime por ele cometido não se poderá classificar como abjecto, e ele próprio também, como propõe Kristeva? Esta filósofa francesa, de origem búlgara, explica e exemplifica a quem e ao que se pode atribuir este significante : “It is thus not lack of cleanliness or health that causes abjection but what disturbs identity, system, order. What does not respect borders, positions, rules. The in-between, the ambiguous, the composite. The traitor, the liar, the criminal with a good conscience, the shameless rapist, the killer who claims he is a savior. (. . .) Any crime, because it draws attention to the fragility of the law, is abject, 6

but premeditated crime, cunning murder, hypocritical revenge are even more so because they heighten the display of such fragility.” (Kristeva, 1982: 4). Da paisagem apocalíptica de “The Detective”, passar-se-á agora para uma paisagem urbana e para a análise do poema “The Applicant”, onde o corpo, como diz Butler, “(…)is not a self-identical or merely factic materiality; it is a materiality that bears meaning, if nothing else, and the manner of this bearing is fundamentally dramatic.” (Butler, 1988: 521) e onde o género atribuído a esse corpo é “an 'act,' (…) which is both intentional and performative, where 'performative' itself carries the double-meaning of 'dramatic' and 'non-referential.' (idem). A performatividade de género encontra-se claramente ilustrada no poema “The Applicant”.Assim, tentar-se-á aqui demonstrar este tipo de performatividade e ler-se-á o(s) corpo(s) como materialidade(s) portadora(s) de sentido(s). No poema em análise, a mulher é tratada como mercadoria, no sentido marxista do termo, ou seja, como valor de uso e de troca. O corpo do poema confronta-nos com o cenário de uma empresa, onde decorre a entrevista a um eventual candidato a um emprego. Assim, poder-se-á dizer que o ledor/a assiste a um acto dramático/ performativo em que lê/vê a direcção de uma empresa entrevistar um candidato a um lugar, dentro da mesma. O poema constrói-se em forma de entrevista, dirigida por um corpo anónimo a um entrevistado, ao qual são colocadas questões, sem deixar que este lhe dê respostas, pois logo lhe é dito, de forma paternalista e condescendente, aquilo que dele é esperado. De facto, o candidato, tal como qualquer assalariado, só serve, como corpo objectificado, para desempenhar os papéis que dele são esperados. A primeira linha do poema “First, are you our sort of person?” indica o aspecto referencial da entrevista, que, com os versos que lhe se seguem: “Do you wear A glass eye, false teeth or a crutch A brace or a hook, Rubber breasts or a rubber crotch Stitches to show something’s missing?”

glosa o propósito da mesma, a partir do questionamento do uso de artefactos, necessariamente requeridos para o preenchimento da vaga a concurso. Em tom sarcástico, o sujeito poético mostra-nos como a obtenção de emprego depende não só da competência para o cargo, mas sobretudo da aparência exigida para o mesmo, segundo 7

os padrões dominantes. Ao pôr em cena um corpo mutilado, amputado, protésico e incompleto, o sujeito poético mostra-nos um corpo mutante, onde a categoria de género é desestabilizada pela redactora do poema . Nos versos acima transcritos, verificamos que estamos perante um corpo, que poderia ser de homem ou de mulher, ou seja, um corpo andrógino. Porém, o sintagma “rubber breasts” evoca um corpo de mulher, na medida em que sugere seios de silicone ou implantes mamários. Ao requerer “rubber breasts”, a empresa vê o corpo como um bem de consumo, característico da sociedade dos anos 50/60 e da actual, que objectifica a mulher, criando nesta a necessidade de mutilação do próprio corpo, com o fim de se tornar mais desejável, perante o olhar masculino. Também, a expressão “rubber crotch”, atribuível, quer a homem quer a mulher, evoca o que Butler refere em Gender Trouble, quando ela aventa a hipótese de o sexo ser, tal como o género, culturalmente construído: “If the immutable character of sex is contested, perhaps this construct called ‘sex’ is as culturally constructed as gender”(Butler, 1990: 9). Mais, sendo que a parte anatómica que identifica a categoria de sexo à nascença do ser humano, não parecia ainda ser objecto de implantação no momento da escrita do poema, o sujeito poético, ao usar a expressão “rubber crotch”, alude ao valor hiperbólico que o corpo social atribui ao significante ‘sexo’, em virtude da sua polissemia. A persona da direcção da empresa, ao perguntar se o candidato usa: “A glass eye, false teeth or a crutch/ A brace or a hook,/… /Stitches to show something’s missing?” pretende um candidato que se coadune com um

modelo de beleza

desarmonioso, desfigurado, horrendo e repulsivo. Deste modo, o sujeito poético confronta-nos com um modelo de beleza dissonante da beleza padrão, isto é, o corpo grotesco. Através da representação do grotesco do corpo individual, pretende o mesmo sujeito poético criticar o corpo social, e instigar o/a leitor/a a colocar em questão o modelo de beleza imposto pelo corpo social, bem como o próprio corpo social. Por outro lado, a significação do que é requerido pode ser vista de outra forma, ou seja, para que o corpo seja aceite pela empresa/ sociedade ele tem de ser um corpo adestrado, senão nada terá em troca. Uma vez que o corpo do entrevistado não parece corresponder àquilo que dele é requerido, o corpo empresarial/ social declara :“No, no? Then/ How can we give you a thing?” e dá a resposta pelo entrevistado: “Stop crying”. Mais uma vez, o sujeito poético questiona a fixidez da categoria de género. A uma primeira leitura, pensar-se-á que se trata de uma mulher, atendendo ao estereótipo de que, quem chora, são as mulheres. Mas, à medida que se vai lendo o poema, descobrimos que o 8

candidato é homem. Então, poder-se-á concluir que o sujeito poético faz uma representação do homem em toda a sua fragilidade, subvertendo a dicotomia razão/ emoção, dada a tradicional associação da razão com o masculino e da emoção com o feminino. Por conseguinte, num poema escrito em tempos de estruturalismo, poder-se-á aventar a hipótese de a poeta se posicionar como pós-estrutralista avant la letre, na medida em que Plath parece antecipar o conceito de performatividade de género, parodiando o género enquanto entidade não fixa, desestabilizadora de identidades e contribuindo para uma definição de significação “(…) as shifting rather than stable and unified and challenging the assumptions of naturalness in signification” (Chow, 1996:198). Continuando a análise do poema, verifica-se que a voz da persona do entrevistador silencia a voz do candidato, ordenando-lhe: “Open your hand Empty? Empty. Here is a hand To fill it and willing To bring teacups and roll away headaches And do whatever you tell it. Will you marry it?”.

O emprego do imperativo atribui à persona do entrevistador uma posição de poder, subjugando o candidato à sua palavra. Vendo que a mão do candidato está vazia, oferece-lhe a mulher, que nos é apresentada de forma fragmentada, através do vocábulo “hand”, sinédoque do corpo da mesma. Esta mulher surge desprovida de voz, de modo objectificado, identificada com o pronome pessoal “it”, que fará tudo o que o homem lhe ordenará. Observa-se que o poema se constrói em forma de hierarquia piramidal, sendo que, no topo, se encontra o empregador, abaixo dele, o candidato homem e abaixo deste, a mulher. Desta forma, se apresenta a sociedade patriarcal em que o opressor oprime o oprimido, sendo que neste binómio não se diferenciam os mais oprimidos entre os oprimidos, ou seja, as mulheres. Uma vez mais, as dicotomias são questionadas pelo sujeito poético, e, consequentemente, a hierarquização do corpo social. No que respeita ao tipo de texto, que serve o corpo do poema, a entrevista, o sujeito poético usa-o como paródia, uma vez que o candidato se nos apresenta como alguém a quem não se vai oferecer emprego, mas como alguém a quem se vai vender algo.

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How about this suit–

Black and stiff, but not a bad fit. Will you marry it? It is waterproof, shatterproof, proof Against fire, and bombs through the roof.

Nestes versos, o sujeito poético emprega o registo da linguagem comercial, por forma a convencer o candidato da qualidade do produto. O vocábulo “suit” surge acompanhado de vários qualificadores, que ilustram a durabilidade e a resistência do produto que se pretende vender. Na verdade, “suit” designa aqui o fato de casamento que o noivo usará no dia em que assinará o contrato do mesmo. A durabilidade e resistência deste produto apontam para o casamento enquanto união duradoura, que será indissolúvel até à morte. A questão “Will you marry it?”, apelando primeiro ao candidato para casar com a mulher e depois à compra do fato para o casamento, parece fundir-se com “Will you buy it?”, resultando numa transacção comercial, onde, quer a mulher, quer a instituição do casamento são tratados como mercadorias. Na sexta estrofe do poema, mantém-se o registo da linguagem comercial, mormente, a linguagem publicitária.

Now your head, excuse me, is empty. I have the ticket for that. Come here, sweetie, out of the closet. Well, what do you think of that?

É interessante verificar como, neste poema, se subverte a dicotomia mente/corpo, dado que o homem, historicamente associado ao intelecto, mente e espírito e a mulher associada ao corpo, representando o corpo a subordinação, imbuída de negatividade, é identificado com o feminino. Uma vez que a cabeça do homem está esvaziada de mente/espírito/ intelecto, a voz poética, através da persona do empregador, oferece-lhe algo para a preencher, que nos é apresentado pela linha “Come here, sweetie, out of the closet.” Assim, verificamos, novamente, a estratificação dos corpos. O corpo do empregador aparece com o dom da palavra, logo de poder, o corpo “queer”1 do candidato não tem voz, mas é corpo que tem matéria e oscila entre o sujeito e o objecto, podendo considerar-se como abjecto. O corpo da mulher é um corpo invisível,

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O termo queer é aqui utilizado, significando estranho, esquisito. A verificação do conceito deste significante foi acedida no (OED), Oxford English Dictionary.

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tal como o corpo de “The Detective”, que esteve encerrado dentro do armário e que só sai dele, quando o corpo social o permitir, o que nos remete, de imediato, para a luta dos homossexuais que assumem apenas a sua orientação sexual quando o corpo colectivo lhes confere os direitos de cidadania. Esta estrofe fecha com a pergunta :“Well, what do you think of that?”, continuando a reificar a mulher, por via do emprego do pronome “that”, sendo o itálico significativo por parte do sujeito poético. Ao mesmo tempo, esta pergunta identifica-se com o momento da transacção em que se nota a persuasão por parte do vendedor, no sentido de fazer com que o cliente, ainda indeciso, seja persuadido, face à aquisição da mercadoria/ mulher. Na estrofe seguinte:

“Naked as paper to start But in twenty-five years she’ll be silver, In fifty gold. A living doll, everywhere you look. It can sew, it can cook”

Vemos como a mercadoria se apresenta, de início, desprovida de valor financeiro, para, ao fim de vinte e cinco anos, se transformar em prata e ao fim de cinquenta, em ouro. Neste passo do poema, verifica-se uma crítica à obscenidade do corpo da sociedade capitalista, em particular no que se refere à especulação financeira, dentro do qual, o corpo da mulher só tem valor enquanto corpo reificado. A mulher é representada como “living doll”, alienada do funcionamento do corpo social, a coser, a cozinhar e a trabalhar “It works, there is nothing wrong with it.” Este é o modelo de mulher que a sociedade patriarcal oferece ao marido e que a “encenadora” do poema sarcasticamente questiona. Ao declarar, “My boy, it’s your last resort.”, a persona do empregador impõe o casamento com as palavras “Will you marry it, marry it, marry it.”, que concluem o poema. Salienta-se que o ponto de interrogação, presente na pergunta “ Will you marry it?”, enunciada duas vezes no poema, não é utilizado na sua finalização. Porém, a expressão “marry it” é agora empregue três vezes. A repetição de “marry it”, ainda que precedida de expressão de modalidade “Will you”, parece querer transmitir a ideia de que ao candidato não se lhe oferece nada mais nada, para além do casamento. A instituição do casamento é questionada neste poema, bem como no poema “The Detective”, pelo sujeito poético. Ainda que se tenha acabado de ler os poemas, sem recorrer à biografia de quem os escreveu, afigura-se-me como premente a inserção

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da escrita dos poemas no contexto espácio-temporal dos anos 50, nos Estados Unidos, isto é, no tempo em que Plath frequentou a universidade. Como refere Ana Luísa Amaral: “A poesia, mesmo atravessando tempos, não deixa nunca de ser do seu tempo.” (Amaral, 2013: 16). Deste modo, a biografia de Plath é importante para a situar a consciência da poeta no espaço e no tempo. Sabe-se hoje que Plath frequentou a universidade, o Smith College, em Northampton, no estado de Massachusetts, tendo-se matriculado em 1950 e concluído o curso em 1955. Andrew Wilson, autor da biografia Mad Girl’s Love Song (2013:127), fala-nos do tipo de estudante que frequentava este estabelecimento de ensino: “The general stereotype of a ‘Smithie’ was a girl who was eminently sensible, highly intelligent, charming and often quite wealthy; a perfect wife for her male counterpart at Yale or Princeton” (itálico meu). Robin Peel (2004:69) num artigo intitulado “The ideological Apprenticeship of Sylvia Path”, fala-nos do tipo de educação ministrado nesta instituição de ensino, dizendo: “At Smith the teaching encouraged openness to ideas but in the years before 1960 the majority of students, many of whom saw Smith as a kind of finishing school in preparation for an appropriate marriage, were not likely to have welcomed serious ideological challenges to the status quo.” (itálico meu). Com estas citações, pretende-se contextualizar historicamente a obra poética de Plath e dizer que, nos dois poemas acima analisados, o casamento se deve ler à luz da sociedade de quem neles viveu e cresceu. Se das estudantes, que frequentavam a universidade, nos Estados Unidos dos anos cinquenta, se esperava que se casassem com um homem licenciado por uma universidade de renome ou abastado, é porque o casamento era algo imposto pelo corpo social, para ambos os sexos. Nos poemas analisados, o casamento representa o encurralamento do ser humano, nomeadamente da mulher, que ou é assassinada, ou é remetida ao silêncio e reificada. O desaparecimento/silenciamento do corpo-mulher pode ler-se como o questionamento da sociedade patriarcal. O tom disfórico dos poemas remete para a subversão da normatividade imposta pelo corpo social sobre o corpo, ao atribuir ao corpo a categoria de género. Por conseguinte,

questionando

as

dicotomias,

enquanto

categorias

geradoras

de

desigualdades, o(s) corpo(s) dos poemas de Plath são corpos portadores de sentido, de um sentido que desestabiliza a dicotomia homem/mulher e a dicotomia natureza/ cultura e de um corpo que refuta o binómio biológico/social. O sujeito poético dos poemas de Plath mostra-nos como o corpo é também uma entidade instável, fluida, construída e 12

determinada pelo tempo e espaço que habita. Para finalizar, Plath questiona, também, a categoria dicotómica mente/ corpo, já que é através do corpo que o sujeito exprime a sua interioridade e que escreve o mundo.

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“Bibliografia”

Amaral, Ana Luisa (2013) “Uma Terra de Ninguém com Gente Dentro: A(s) Impureza(s) da Poesia”, http://www. lyracompoetics.org/pt/poesia-e-resistencia/ (consultado em 4 de Fevereiro de 2014). Butler, Judith (1988), “Performative Acts and Gender Constitution: An Essay in Phenomenology and Feminist Theory” in Theatre Journal, Vol. 40, No. 4. (Dec., 1988), pp. 519-531. Butler, Judith (1993), Bodies that matter: on the discursive limits of ‘sex’, New York, Routledge Butler, Judith (2006), Gender Trouble, New York, Routledge [1990] Cameron, Deborah and Frazer, Elizabeth (1996) , “The murder as Mysoginist?”, in Stevi Jackson and Sue Scott (eds.), Feminism and Sexuality, Edinburgh, Edinburgh University Press, pp. 207-215. Chow, Rey (2006), “Poststructuralism: theory as critical self-consciousness”, in Ellen Rooney (ed.), The Cambridge Companion to Feminist Literary Theory, Cambridge, Cambridge University Press Greene, Frederick L.(1996) “Introducing Queer Theory into the Undergraduate Classroom: Abstractions and Practical Applications”, English Education, Vol. 28, No. 4 (Dec., 1996), pp. 325-339 Grosz, Elisabeth (1994), “Refiguring Bodies”, in Volatile Bodies, Bloomington, Indiana University Press Kristeva, Julia (1982), Powers of Horror: An essay on Abjection, New York, Columbia University Press Meijer, Irene C. and Prins, Baukje (1988), “How Bodies Come to Matter: An Interview with Judith Butler”, Signs, Vol. 23, No. 2. (Winter, 1998), pp. 275-286. Peel, Robin (2004), “The Ideological Apprenticeship of Sylvia Plath”, Journal of Modern Literature, Vol. 27, No. 4 (Summer, 2004), pp. 59-72 Plath, Sylvia (2007), Ariel: The Restored Edition, London, Faber & Faber. Van Dyne, Susan (1993), Revising Life: Sylvia Plath’s Ariel Poems, The University of North Carolina Press Wilson, Andrew (2013), Mad Girl’s Love Song: Sylvia Plath and Life before Ted, London, Simon & Schuster Woolf, Virginia (1992), Virginia Woolf on Women & Writing, London, Papermac[1925]

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