O CORPO POLÍTICO DA DANÇA

May 23, 2017 | Autor: Ana Chacel | Categoria: Artes, Psicología Social
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O CORPO POLÍTICO DA DANÇA
Ana Chacel de Castro e João Batista Ferreira
Programa de Pós-Graduação em Psicologia/PPGP-UFRJ
[email protected], [email protected]
Comunicação Oral – Eixo Temático 6 – Desafios a Psicologia política: produção de conhecimento e práticas de intervenção

RESUMO: O presente trabalho visa aprofundar a discussão entre a prática artística da dança e o campo da psicologia política. Quando no exercício de uma biopolítica engendrada por e através do corpos, é possível notar no contemporâneo cada vez mais uma dessensibilização tátil e afetiva dos sujeitos. Elementos que colaboram para esse processo provém principalmente da forma de organização e funcionamento social do Capitalismo Mundial Integrado (CMI), regime designado por Guattari (2010) que incide não somente na economia e na organização social, mas na própria produção de subjetividade. Segundo o autor, o CMI tem provocado uma subjetivação individualizante, segregada, culpabilizante e infantilizada; ou seja, tal regime que se instaura a partir de um capitalismo global incita produções subjetivas que valorizam a meritocracia e a mais-valia econômica, gerando assim corpos altamente qualificados para a produção de conhecimento e crescimento no mercado de trabalho. Desta forma, é possível analisar que a subjetividade contemporânea se vê (en)formada pelo vetor da alta performance no trabalho individual, o que vai se caracterizando, aos poucos, como corpos dóceis e disciplinados (FOUCAULT, 1983), que não desviam, não coletivizam, não se sensibilizam. O corpo e a subjetividade tornam-se assim os principais alvos de uma produção serializante de modos de ser. Pode-se, portanto, perceber que o corpo é marginalizado, massacrado, aniquilado, aprisionado. Corpos dos loucos, amontoados em hospitais; Corpos de "crackudos", amontoados em espaços públicos criminalizados; Corpos dos estudantes, amontados em salas de aulas sem infra-estrutura e sem espaço de voz; Corpos de trabalhadores, amontoados em transportes públicos que competem e se batem por um lugar sentado. É, portanto, uma produção de corpos mortificados e amontoados em espaços específicos, sem lugar para voz, para o gesto e para a criação. A partir deste contexto, a prática da dança emerge como uma intervenção possível no campo da psicologia política. Dançando, produzimos sentidos e linguagens que extrapolam o cotidiano. Dançando, abrimos nossos corpos para a experiência de nós mesmos (GIL, 2003). Dançando, nos singularizamos. Assim, a partir de uma pesquisa-intervenção em aulas de dança, embasada no método cartográfico (KASTRUP e ESCÓSSIA, 2010) nos debruçamos sobre alguns questionamentos: qual a busca do sujeito que dança? O que ele encontra? Que efeitos éticos-estéticos-políticos ocorrem na sua vida ao praticar a dança? Apostando na transformação subjetiva e singular que a prática artística opera, em especifico a dança – que incide na expressão máxima do corpo pelo corpo – é possível dizer que a dança é resistência. Se estamos diante de um tipo de existência em que a própria vida e o corpo se encontram travados, a dança pode vir a operar como potência de diferenciação e criação. Ou, a partir da discussão sobre a vida proposta por Agamben (2007), sair da zoé (vida nua, em sua forma mais biológica de organização), para uma bíos (vida como potência de variação, digna e politicamente qualificada).

Palavras-chave: arte; corpo; processos de subjetivação; dança; pesquisa-intervenção


O Corpo Político da Dança
Ana Chacel de Castro e João Batista Ferreira

Um casarão abandonado na subida do bairro de Santa Teresa. A única luz acesa é a do 3º andar da casa. Bato palmas, aviso que estou na porta. Uma pessoa joga a chave pela janela. Entro na casa. Subo os dois lances de escada e dou de cara com pessoas organizando o espaço: uns varrem, outros acendem velas no banheiro, enquanto a lona de linóleo é estendida sob o chão de madeira. A casa, que do lado de fora se mostra abandonada, ganha alguns suspiros de vida nesta movimentação.
Todos os presentes estão preparando o espaço – e a si mesmo – para a aula a seguir: uma aula de Contato-Improvisação. Num primeiro momento da aula, apenas caminhamos pelo espaço. Nos espreguiçamos, ativamos nosso olhar e nosso passo. Aos poucos, nos dividimos em duplas e me vejo sentada ao lado de um senhor que está deitado de olhos fechados. O convite é para tocar o corpo do outro. Este toque vem com uma intenção: sustentar o peso de um membro. Pego seu braço direito. É bastante pesado. Percebo que minha respiração se modifica e que me sinto desconfortável em sustentar tal braço. Mudo de posição, tento ajeitar meu corpo de outro modo – será que ele percebe que eu estou desconfortável? Preciso mover seu braço, sustentando-o no ar. A tez da pele, o peso que a gravidade confere, o tamanho daquele braço... Forças que exigem de mim uma outra presença no espaço, uma outra presença na relação. Enquanto me esforço para manter-me num lugar fora (e ao mesmo tempo muito dentro) de mim, a professora indica que soltemos o braço do outro numa altura em que ele próprio sustente seu peso no ar. Algo então se modifica por inteiro em mim: neste singelo toque – em que minhas mãos sustentam aquele braço – estabelecemos uma relação de confiança: é preciso transformar nosso tônus, para que mantenhamos tato, contato, e ao mesmo tempo, sustentação. Nesta mudança tonal do corpo, conversamos silenciosamente sobre este contrato: solto seu braço e o mesmo está flutuando no ar. Olho admirada a pequena dança que emerge sob esta experiência: é um braço pesado-leve, que dança no ar, em movimentos de experimentação de sustentação e leveza de si. São gestos singulares daquele braço, que, por seu peso, tamanho, flexibilidade, produz uma dança única em meio a tantos braços flutuantes-dançantes.
Me pergunto então se tal dança (singela, de um corpo deitado, aonde apenas um braço se movimenta pelo ar) existiria sem a nossa relação, o meu toque em seu braço, o meu contrapeso exigindo uma resposta de ação. Se a minha presença naquele corpo produz outro corpo também... um lugar fora (que também é dentro dele) e que dança com um braço só. Diário de campo, 12 de setembro de 2016

A experiência da dança é uma experiência de processos, pesos e forças. É uma experiência de contato com o corpo que nos fala, não apenas de uma fisicalidade, mas também de uma subjetividade.
Quando pensamos em subjetividade, ou melhor, em processo de subjetivação, estamos considerando um modo de ser sujeito diferente da modernidade - que implica a noção usual da separação corpo-mente. A noção moderna de sujeito apreende uma natureza ou essência definida a partir de determinantes universais dados a priori. É uma consciência individual que permite a existência de um sujeito. De encontro a esta noção, Guattari (2005) propõe que a subjetividade é um processo e uma produção "industrializada". Trata-se de entender que a subjetividade se produz enquanto um entrecruzamento de múltiplas forças, de atravessamentos que compõem e configuram a cada encontro, uma nova multiplicidade. A partir desta noção, a identidade dá lugar ao heterogêneo, ao movimento e ao processual. Entendemos, portanto, que a subjetividade não apenas é produzida por diversos agenciamentos (que a compõe no movimento histórico-social), mas também se constitui a partir de seus territórios e movimentos. Assim, a produção de subjetividade, enquanto efeito desta relação de forças, afirma-se num um caráter processual, histórico e mutável das formas de viver o mundo.
A partir desta compreensão, Guattari (2010) traz a concepção de subjetividade atrelada ao o conceito de Economia Subjetiva Capitalística. O autor, analisando a sociedade capitalista atual, entende que as forças que produzem sujeitos não incidem de maneira centralizada no indivíduo, mas operam em uma espécie de economia coletiva, como um maquinário de expressão que produz vetores subjetivos em 'larga escala': são forças hegemônicas que atravessam a produção de subjetividade de maneira também hegemônica. Incidindo em todos os níveis de produção e de consumo, essa economia se traduz na tendência em igualar tudo e todos a uma imagem de referência. Daí entende-se que, além dos objetos produzidos no capitalismo, a subjetividade também é uma produção serializada, industrializada e nivelada em escala mundial. A ordem capitalística, portanto, advém nas nossas condutas, nos nossos gestos, pensamentos, ações e sentidos...
E é através de certas práticas histórico sociais que a produção de subjetividade vai se constituindo enquanto uma normatização do individuo, restringindo a liberdade de pensamento, gestos, etc. Esta restrição se dá pela coerção visível da experiência corporal: através da segregação, culpabilização e infantilização, os corpos se experimentam enquanto individuais, culpados de qualquer desvio frente ao regime sensorial dominante, e tutelados (em seus gestos e ações) por uma heteronomia. Guattari nos fala: "o fato de falar e viver, o fato de ter que envelhecer, de ter que morrer; não deve perturbar nossa harmonia no local de trabalho e nos postos de controle social que ocupamos". (Id., 2010, p. 50)
Portanto, o controle social nos fala também de um controle que incinde diretamente sobre o corpo. O Capitalismo Mundial Integrado (CMI), opera, através do corpo, a regência de produção de subjetividades, serializando e universalizando normas e condutas nos modos de ser.
Podemos perceber que já a partir da Revolução Industrial no século XVIII (que configura o crescimento do capitalismo enquanto lógica social), o corpo é convocado como lugar central das tecnologias de controle e cuidado. Na lógica industrial, o trabalho passa a modular a vida e então solicita-se um "corpo-trabalhador" como peça fundamental para movimentar a indústria (COELHO e SEVERIANO, 2007). Aos operários que vão se aglomerando nas fábricas, o corpo é compelido a moldar-se e adaptar-se a cada maquinaria de produção de mercadorias, bem como à urbanização crescente e às novas condições de vida que aí se engendram.
Para além disso, a fim de que potência trabalhadora do corpo não se dissipa ou corrompa, torna-se imprescindível administrar e vigiar tais corpos de produção, para que os mesmos ponham em cheque a extensa rede de poder que os captura. Assim, novas práticas e discursos vão se acoplando aos moldes sociais e se estabelece todo um sistema de vigilância contínua e minuciosa, um olhar panóptico, que vigia e recompensa, pune e disciplina (FOUCAULT apud COELHO e SEVERIANO, 2007).
Foucault (1983) vai, portanto, nos apontar o momento histórico da consolidação das sociedades disciplinares (séculos XVIII a XIX na Europa), quando ocorre o desenvolvimento de uma nova "anatomo-política" do corpo, na qual já não interessa somente aumentar suas habilidades e aptidões ou aprofundar sua sujeição, mas compor com os corpos relações em que a utilidade dos mesmos cresça tanto mais quanto sua docilidade e obediência sejam acentuadas. A sociedade disciplinar funciona, neste sentido, a fim de operar um controle social a partir do exercício da disciplina e da docilização dos corpos, de modo que modos-de-ser-sujeitos sejam normatizados. Os padrões aceitáveis de conduta social são redefinidos e aqueles que fogem a esta normatividade, por conseguinte, são excluídos e disciplinados. A disciplina será então a tecnologia que terá um caráter econômico-político sobre o corpo, no controle do aumento de sua capacidade de produção e na diminuição de suas forças para a desobediência.
Assim sendo, o funcionamento corporal passa a ser equivalente a uma norma – a do padrão de alta produtividade – sem que haja espaço para desvios ou escapes. O corpo torna-se estratégico enquanto engrenagem social, criando-se um corpo-máquina, voltado para a produção e crescimento do mercado. A este corpo-máquina se junta também a solidificação do corpo-individuo, que se identifica e subjetiva nos moldes da produção capitalista. Portanto, é possível perceber que a emergência da sociedade disciplinar garante a produção corporal de indivíduos, identidades e modelização da subjetividade. E àqueles que, por algum "infortúnio" não se lhes cabe a norma (os chamados desviantes, a-normais), acode uma série extensa de rótulos, estigmas e diagnósticos – um processo brutal de exclusão e marginalização de corpos e subjetividades (COELHO e SEVERIANO, 2007). Toda uma tecnologia social de controle emerge a partir deste contexto disciplinar (podemos citar o nascimento da clínica, dos hospícios e das prisões como tais tecnologias de controle e correção dos corpos) - e cada gesto, postura ou movimento fica enquadrado nesta rígida economia de produção, lógica e funcionalidade.
Portanto, todo um regime sensorial que vigora na atualidade pode ser considerado enquanto uma tecnologia de controle e normatização dos corpos. Os chamados "códigos de civilidade" – que impedem certas ocupâncias nas ruas, posturas da mulher, tom de vozes dissonantes – operam nesta lógica que aprisiona os corpos em sua expressão possível de singularidade. Contudo, novas políticas e regimes sensoriais aparecem quando habitamos o campo da arte e, principalmente, da dança. Habitamos o regime estético (RANCIÈRE, 2008) que, ao não propor nem uma ética ou uma moral, experimenta o corpo em sua potência.
Ao apresentar seu olhar sobre o movimento da dança, o filósofo português José Gil (2001) nos traz uma diferença qualitativa e operacional do gesto do bailarino para os movimentos pragmáticos comuns: o bailarino escolhe deliberadamente sair da postura do homem comum para se colocar no ponto inicial da dificuldade – desequilibra-se, procura situações instáveis, reproduz e inventa o movimento de evolução da criança entre o engatinhar e o estar de pé. Aprende de novo os movimentos que fazem dele em pé, sentado, andando... e, pelo aprender de novo, o movimento emerge enquanto novo e muda tudo: "Procurando desestabilizar a atitude natural, o bailarino quer criar as condições que lhe permitirão tratar o corpo como um material artístico" (Idem, ibidem, p. 24). Como arte, o movimento passa a ser também de invenção e criação:

"O movimento, tomado em sua dimensão nascente, microscópica, virtual, não é mais dominado pela significação, mas produz sentido e gera espaço. (...) Eis como procede um coreógrafo, ou aquele que se disponibiliza para dançar: uma vez retiradas do corpo as motivações emocionais, representacionais e expressivas, e enfatizada a gramática do movimento coreográfico, cria-se um plano de movimento em que todos os movimentos do corpo, dos objetos, da música, adquirem consistência, ou seja, uma lógica de coexistência que se distingue de modo radical do meramente aleatório". (FERRAZ, 2005, p. 6)
Portanto, ao pensar um gesto como movimento primeiro, básico, percebemos que este mesmo gesto no contexto da dança se insere numa continuidade mais intensiva do movimento: uma continuidade virtual e, por isso, potente. Na dança, o movimento terá justamente o caráter de ser sustentado no plano da virtualidade, permitindo a ação dos corpos e a circulação infinita de energias. Para Gil, diferentemente de gestos triviais, a dança é o surgimento de uma presença, pois a mesma se encontra na potência de virtualização, ou na ampliação do intervalo de ação. Ao buscar ativamente e explorar o corpo, abandonando imitações narrativas e significa ões, o movimento dançado é potencializado por sua propagação infinitesimal, atualizando no real sua potência de agir (GIL, 2001).
Quando dançamos, nos atiramos a um outro regime sensorial, um outro regime de resposta, um outro regime de gestualidade. Para isso, suspendemos todo o movimento padrão concreto, sensorial, responsivo, para criar o máximo de intensidade possível de um outro movimento. Neste sentido, podemos qualificar que o movimento da dança começa num intervalo entre a suspensão e a ação. A qualidade expressiva do braço que se move no ar é efeito deste outro regime sensorial e responsivo: o regime estético – que suspende toda representação e de ordenamento social, para habitar corporalmente esta ausência de preocupação, finalidade e vontade. É habitar um intervalo que nos fala da potência virtual, em qualquer movimento do corpo. Abrindo-se para a experiência do movimento dançado, o sujeito que ali experiencia promove em si mesmo uma nova processualidade. Processualidade dos afetos e da singularidade. Processualidade política – que reconfigura os âmbitos sensíveis dos objetos e relações comuns na nossa sociedade.






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