O corpo textual de Santa Evita

July 5, 2017 | Autor: Fernanda Ribeiro | Categoria: Tomás Eloy Martinez, Novo Romance Histórico, Evita Perón
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O “CORPO TEXTUAL” DE SANTA EVITA Fernanda Aparecida Ribeiro (Mestre) Eva Perón é um dos maiores mitos da Argentina do século XX e a sua vida e a história de sua morte são motivos recorrentes da literatura de seu país. O escritor Tomás Eloy Martínez, por exemplo, publicou em 1995 o romance Santa Evita, reescrevendo as versões desse mito nacional1. A história de Evita já se parece com uma novela, pois, segundo as referências bibliográficas conhecidas, não se pode afirmar com que nome ela foi registrada e nem afirmar com absoluta certeza a data de seu nascimento2. De qualquer modo, é certo que Eva Perón nascera em um pequeno povoado da província de Buenos Aires, filha caçula entre cinco irmãos. Ainda muito jovem, foi para a capital para tentar a carreira de atriz, onde conseguiu uma insignificante ascensão na sua profissão, e alguns anos depois conheceu o secretário do trabalho, Juan Domingo Perón, que veio a ser seu marido. Poucos meses depois do casamento, Perón foi eleito presidente do país e Evita, nome pelo qual afirmava gostar de ser chamada pelo povo, começou a se reunir com as delegações de sindicatos (que eram anteriormente recebidos por Perón, quando secretário do governo), a participar de inaugurações de fábricas e hospitais e, principalmente, a trabalhar com assistência social, ajudando os menos favorecidos com a sua Fundação Eva Perón. Essa atitude foi louvada por uma parte da população, que a interpretava a sua caridade como santidade, e foi desprezada por outra parte que via nesse assistencialismo uma manipulação das massas. Em 1952, ela faleceu de câncer e sua morte foi chorada por milhões de argentinos e celebrada pela outra parte do país. Perón mandou que o seu corpo fosse embalsamado e depositado no prédio da CGT (Confederação Geral do Trabalho), pois Evita era tida como o símbolo palpável do seu governo populista. Em 1955, Perón foi deposto por um golpe militar e o novo presidente e seus ajudantes não souberam o que fazer com o corpo, pois se ele fosse enterrado em um lugar conhecido, o povo iria desenterrá-lo e iniciar uma ofensiva contra o novo governo. Então, o coronel Moori Koenig foi designado para retirar secretamente o corpo da CGT e ficou perambulando com ele pelas ruas da capital até que, sob o comando de outro militar, o corpo foi levado à Itália, onde permaneceu até a década de 70, quando foi devolvido a Perón que se encontrava exilado em Madrid. A obra de Santa Evita empreende a re-leitura do mito de Eva, demonstrando as versões de seu mito, o de sua santificação e o de sua profanação, resgatando documentos históricos ou não, textos literários, acrescido de relatos de personagens periféricas. Assim, o narrador do romance reúne diversos textos, discursos e documentos sobre a sua protagonista, evidenciando a centralidade do corpo de Evita na história e na literatura argentina, como um tema recorrente e instigante. Alicia Dujovne Ortiz (1997) estudou e identificou três versões do mito de Eva Perón. O primeiro seria o “mito branco”, no qual se associa a imagem de Evita com a Virgem Maria, exaltando a sua pureza e bondade. O segundo é o “mito negro”, em que a imagem de Evita é maculada, associada à de uma prostituta, sedenta de poder. O terceiro é o “mito vermelho”, proclamado pelos jovens montoneros que reivindicaram o lado guerrilheiro de Eva. No romance de Martínez, essas três versões são resgatadas, reescritas através de vários relatos. Nessa comunicação, serão enfocadas principalmente

as re-leituras dos mitos “branco” e “negro”, demonstrando um entrechoque de amor e ódio, de veneração e de profanação. Em Santa Evita, o mito branco é representado por uma parte da população argentina, especialmente os de classe de baixa renda, que proclamaram a santidade de Evita e choraram a sua morte, como se percebe nessa imagem criada literariamente: Detrás de los galpones había un altar de ladrillos con un enorme retrato de Evita entre velas de procesión. Al pie, la gente iba dejando estrellas federales, glicinas y nomeolvides tejidos en guirnaldas mientras repetía: El pueblo ya lo canta / Evita es una santa.3 (MARTÍNEZ, 1998, p. 164) A beatificação de Evita pelo povo ocorrera deu quando ela ainda estava viva, como se pode perceber na seguinte fala de uma das primas do interior do cabeleireiro Julio Alcaraz que viviam no interior do país: Todos se la vimos. Al final, cuando se despidió, también la vimos elevarse del palco un metro, metro y medio, quién sabe cuánto, se fue elevando en el aire y la aureola se le notó clarísima, había que ser ciega para no darse cuenta.4 (MARTÍNEZ, 1998, p. 118) Para o imaginário popular, Evita era uma santa que intercedia pelo seu povo e dava-lhe os presentes dos quais necessitava. O povo humilde erigia altares em suas casas, com fotos de Eva, flores e velas, para rezar e pedir a sua intervenção, como se faz para os santos. Quando Eva Perón já estava enferma, Perón foi reeleito presidente da Argentina. Na ocasião, Evita fez questão de estar presente, porque sabia que o povo fora à capital pro sua causa e não para ver a reeleição de Perón. Ela tinha consciência de que havia en los ojos de la gente una veneración que jamás había conocido actriz alguna, Evita, Evita querida, madrecita de mi corazón. Se iba a morir mañana pero qué importaba. Cien muertes no alcanzaban para pagar una vida como ésa.6 (MARTÍNEZ, 1998, p. 39, grifo nosso). Eva Perón havia se tornado um símbolo palpável e visível do governo peronista e a sua morte significaria a perpetuação dessa veneração que o povo lhe devotava. Evita havia sido uma atriz que lutara pela sobrevivência e passara por muitas humilhações e necessidades; no entanto, anos depois, passeando com o marido reeleito presidente, ela ganhou todas as atenções, e os mais humildes a veneravam, num culto que podia se assemelhar ao dedicado à Virgem Maria: o trecho do romance destacado na citação acima demonstra que Evita era tida como “mãe” e intercessora dos argentinos (pelo menos, dos mais necessitados), assim como Maria pode ser representada como a mãe espiritual dos católicos, uma mãe que intercede junto a Deus pelos seus filhos. Após a morte de Evita, a crença na sua santidade multiplicou-se a ponto de o povo crer no seu regresso messiânico, como se percebe na fala de uma senhora humilde

do povo: “Evita va a venir sola – porfió una vieja llena de verrugas. Varios chicos estaban atados a su falda, como um sistema planetario. – No hace falta que vayamos a buscarla. Ella nos va a buscar a nosotros”7 (MARTÍNEZ, 1998, p. 168). Essas são as vozes do povo em reafirmar o “mito branco” de Eva Perón. No entanto, esse mito convive com a sua profanação, alimentado por adversários políticos, militar e artístico, que dessacralizam a sua imagem de Venerada, retirando-a do pedestal onde fora colocada pelo povo. O narrador do romance retoma escrituras da elite intelectual e artística do país que corrompem a santidade do corpo da protagonista, como fizeram os autores Copi, Néstor Perlongher, entre outros: “En el ‘El cadáver de la nación’ y en los otros dos o tres poemas con que Perlongher la merodea, Ella no habla: las que hablan son las alhajas del cuerpo muerto”8 (MARTÍNEZ, 1998, p. 201). Entre os militares também não havia unanimidade quanto à idolatria do mito instituído, de modo que muitos a odiavam, embora Evita pudesse despertar em alguns até uma paixão necrófila, como ocorre com o Coronel Moori Koenig e o oficial Arancibia. No primeiro capitulo do romance, o Coronel é descrito como um militar preocupado com o seu trabalho, e que a incumbência de sepultar o corpo mumificado de Eva não passava a ser mais do que um dos tantos serviços que ele prestava ao Serviço de Inteligência do seu país. Porém, ao tentar dar-lhe um destino certo, Moori Koenig percebeu que não se tratava apenas de um cadáver: fatos estranhos ocorriam em volta do corpo (a presença inexplicável de velas e flores, por exemplo), como se ele possuísse força para mudar o destino das pessoas, já que todos os que guardavam a múmia tinham a vida transtornada, muitas vezes tomados de desejos de profanar o corpo, corroendo a santidade atribuída a Evita. Nos três anos em que o corpo embalsamado de Eva ficara depositado no prédio da CGT, o Coronel Moori Koenig não se interessou por sua história, tomado de total indiferença. No entanto, ao tirá-lo do prédio e vagar com ele pelas ruas de Buenos Aires, foi sendo envolvido por uma paixão avassaladora e necrófila, esquecendo-se gradualmente de seu trabalho, da incumbência a ele dada, e preocupando-se cada vez mais com o destino do corpo, a ponto de seu mundo ser reduzido ao objeto amado. Essa modificação em sua vida e na vida de outros militares que também eram guardiões do corpo pode ser confirmada na seguinte passagem do livro: “Cada vez más era Persona y menos Difunta: él lo sentía en su sangre, que se enfermaba y cambiaba, y en otros como el mayor Arancibia y el teniente primero Fesquet, que ya no eran los mismos”9 (MARTÍNEZ, 1998, p. 257). Conforme crescia a necessidade de estar junto a Evita, o Coronel deixava de chamá-la “Difunta” (Defunta) e utilizava com mais freqüência “Persona” (Pessoa). Evita deixava de ser um cadáver para se tornar uma pessoa real, a quem o Coronel amava e de quem sentia saudades por estar longe. Concomitantemente a esse amor, crescia também as conseqüências dessa paixão: “Persona le había hecho más daño que nadie, y sin embargo la extrañaba. No dejaba de pensar en ella. De sólo recordarla sentía ahogos, espasmos en el pecho”10 (MARTÍNEZ, 1998, p. 275). Enquanto o corpo estava escondido na casa de Arancibia, o Coronel sentiu saudades de Evita e começou a se embriagar. A paixão que crescia dentro dele era tão intensa, que foi capaz de fazê-lo esquecer-se do seu passado, de sua família e do seu trabalho. O futuro, para ele, não existia; só queria viver o presente ao lado do corpo. O mundo do Coronel estava reduzido àquele cadáver como se nada mais existisse; ele não era capaz de distinguir o “eu” e o “outro”, o “eu” e o “mundo”. Para Moori Koenig o “outro” e o “mundo” eram uma só coisa: o corpo embalsamado de Eva Perón. Ao ser

afastado da presença do corpo de Eva, ele estava sendo desligado do mundo e de seu próprio “eu”. Georges Bataille (2004, p. 33), ao analisar o erotismo, estudou também a paixão e a reação da pessoa que ama e não é correspondida, capaz de produzir uma pulsão de morte, como componente do erotismo, de modo que, Se o amante não pode possuir o ser amado, pensa às vezes em matá-lo: freqüentemente preferiria matá-lo a perdê-lo. Em outros casos, ele deseja a própria morte. (...) A paixão nos leva assim ao sofrimento, uma vez que, no fundo, ela é a busca do impossível e, superficialmente, a busca do acordo que depende de condições aleatórias. O Coronel não conseguiu possuir o objeto de seu amor e, por isso, quando ainda tinha o corpo em seu poder, quis profaná-lo, numa tentativa de dominar o ser amado: - Mírenla – dijo el Coronel -. Yegua de mierda. No se deja domar. Cifuentes me contó años después que nada le había impresionado tanto a Galarza como el áspero olor a orina de borracho.11 (SE, p. 279) A beleza de Eva Perón é, no romance, causa de amor e ódio por parte de vários personagens. Para uns, a beleza era a expressão de sua santidade, de sua bondade, como se percebe na fala das primas do cabeleireiro Julio Alcaraz: “ ‘Vimos su cutis de porcelana’, me dijo la del bocio; ‘le vimos los dedos largos como de pianista, la aureola luminosa alrededor del pelo’ ” 12(MARTÍNEZ, 1998, p. 118). Para outros, a sua beleza levava ao desejo de profaná-la, como sentia o Coronel Moori Koenig: “Quedaba bien, sí, a primera vista nada desentonaba, sólo a ratos se escapaba un hilo del olor químico que él tan bien conocía. Quién iba a darse cuenta. Sentía sede de mirarla, sed de tocarla”13 (MARTÍNEZ, 1998, p. 278-9). Embora contrariando alguns interesses, a verdade é que a múmia de Evita consolidou−se como fetiche, como disse Carlos Fuentes (1996), em um artigo sobre o romance de Martínez: “Evita sigue viviendo, asegura su inmortalidad, porque su cuerpo se convierte en objeto de placer incluso para quienes la odian, incluso para sus guardianes”14, e tornou-se um objeto ao qual se atribuíam poderes sobrenaturais – a presença das velas, das flores e das ameaças escritas do “Comando de la Venganza” junto ao caixão de Evita, quando o Coronel Moori Koenig tentava ocultá-lo; as luzes azuis presenciadas por Margot e pelo Coronel, e o fato de que o corpo aparentemente não sofresse nenhum arranhão com os acidentes automobilísticos, nos quais sempre havia mortos e feridos – e um objeto de adoração dos “descamisados”. Como já se demonstrou anteriormente, a elite intelectual e artística do país, de maneira geral, compartilhava da aversão ao mito de Eva, alimentada pelos militares. Dentre os vários textos escritos por esses autores, o narrador de Santa Evita faz uma referência explícita ao conto “El Simulacro”, do autor argentino Jorge Luis Borges, sobre a suntuosidade do funeral de Evita, afirmando que Borges evidenciou a “falsificação da dor” através de uma representação literária: no conto, um homem enlutado chega a um humilde povoado e faz o velório de uma boneca loira, cuja

“morte” é chorada por todos. Assim, diz o narrador, ao querer denegrir a imagem de Eva Perón, o conto se revelou como uma homenagem: “En ‘El simulacro’, Evita es la imagen de Dios mujer, la Dios de todas las mujeres, la Hombre de todos los dioses” 16 (MARTÍNEZ, 1998, p. 199). Se para alguns Evita não passava apenas de um “simulacro”, para outros ela era a própria imagem de Deus em forma de mulher. No romance Santa Evita, o narrador-escritor, que investigou a história da vida e da morte de Eva Perón e da trajetória de seu corpo embalsamado, descobriu que o Coronel Moori Koenig, após o golpe de setembro de 1955, ficou encarregado de ocultar o cadáver e que, entre novembro de 1955 a janeiro do ano seguinte, deixou-o escondido atrás da tela do cinema, aos cuidados do pai de Yolanda. Nessa época, Yolanda era uma pequena garota, órfã de mãe, humilde e ingênua. Seu pai lhe dissera que o corpo de Evita era uma boneca e ela acreditou. Evita tornou-se, então, um brinquedo nas mãos dessa criança que lhe chamava de “Pupé”; brincava com ela e contava-lhe as histórias dos filmes a que assistia nas sessões de matinê, por detrás da tela. Ao investigar a história da peregrinação do corpo de Evita, o narrador descobriu o paradeiro de Yolanda e foi visitá-la. Ao ser questionada, ela comentou que a sua “Pupé” parecia ter sido feita de pele de verdade, tamanha a perfeição quer era a “boneca”. Ela não havia se dado conta, mesmo depois de adulta, que a sua “boneca” era o corpo de Eva Perón, que a sua Pupé, a quem amara de verdade, era uma múmia. O autor Tomás Eloy Martínez, ao dialogar com o conto “El simulacro”, de Borges, retoma o mito de Eva Perón a partir da imagem do corpo embalsamado. Num episódio intertextual, em que se retoma o conto “El Simulacro”, que envolve uma criança, a Eva Perón transforma-se em uma boneca de cabelos loiros, dentro de uma caixa, figurando como um brinquedo. No conto de Jorge Luis Borges, a mesma personagem era também uma boneca para satisfação lúdica em todos os subúrbios que velavam a sua “santa” Evita. Um outro texto da literatura argentina com o qual o romance dialoga e gera uma produção de texto é o conto “Esa Mujer”, de Rodolf Walsh. As informações do conto são dadas pelo próprio narrador: “El cuento alude a una muerta que jamás se nombra, a un hombre que busca el cadáver – Walsh – y a un coronel que lo ha escondido”17 (MARTÍNEZ, 1998, p. 56). E sobre o coronel do conto de Walsh, o narrador de Santa Evita comenta: “Lo atormentan con maldiciones telefónicas. Voces anónimas le anuncian que su hija enfermará de polio, que a él van a castrarlo. Y todo por haberse apoderado de Evita” (MARTÍNEZ, 1998, p. 57). O conto de Rodolfo Walsh proporciona elementos discursivos para que Tomás Eloy Martínez pudesse recontar a história em seu romance. Em Santa Evita, aparecem as três personagens referidas no conto: o coronel que sepultou o corpo, a morta que nunca é nomeada e o narrador-detetive que investiga a história. O coronel que escondeu o cadáver é atormentado, em Santa Evita, não por telefonemas, mas sim por panfletos e recados escritos do “Comando de la Venganza”; o narrador do conto procura uma morta, assim como o narrador do romance procura a história da peregrinação do cadáver de Evita. É por isso que Plotnik (2003) afirmou que o corpo de Eva Perón é um objeto textual, pois oferece relatos diversos sobre o mito do corpo e, no caso de Walsh e Martínez, proporciona discursos auto-referenciais, já que seus autores se fazem presentes no texto que escrevem através da figura do narrador. Eva Perón, além de ser um mito revisado pelo romance, é também um “corpo textual” que produziu discursos e proporcionou ao narrador elementos para tecer o romance. O narrador resgatou textos literários, documentos históricos, relatos de

personagem e outros tipos de discursos sobre o mito de Eva, evidenciando a centralidade do corpo de Evita na história e na literatura argentina.

Notas: 1. Esse texto é uma parte da minha dissertação: “Os sentidos do corpo de Santa Evita, de Tomás Eloy Martínez”, defendida na UEL (Universidade Estadual de Londrina), em dezembro de 2004. 2. Não se pode precisar exatamente o nome e a data de nascimento de Evita porque ela modificou a sua certidão ao casar-se com o general Juan Domingo Perón. Segundo os historiadores, provavelmente ela teria nascido em 07 de maio de 1919, sendo registrada com o nome de Eva María Ibarguren, ou seja, com o sobrenome de sua mãe porque o seu pai não a reconhecera. Para casar-se, Evita falsificou o documento para o ano de 1922, pois nessa época a mulher legítima de seu pai já havia falecido e ela não seria filha ilegítima, sendo registrada com o nome de María Eva Duarte. 3. Detrás dos galpões havia um altar de tijolos com um enorme retrato de Evita entre velas de procissão. Ao pé, as pessoas iam deixando flores variadas, tecidas em grinaldas enquanto repetiam: O povo já canta/Evita é uma santa. (tradução nossa – Observação: todas as traduções realizadas são de nossa autoria) 4. Todos a vimos. Ao final, quando se despediu, também a vimos elevar-se do palco um metro, um metro e meio, quem sabe quanto, foi-se elevando no ar e se lhe notava a auréola claríssima, tinha que ser cega para não se dar conta. 5. os descamisados afluíam sobre Buenos Aires para vê-la, não a ele. Ela era o espetáculo. 6. nos olhos das pessoas uma veneração que nenhuma atriz jamais havia conhecido, Evita, Evita querida, mãezinha do meu coração. Iria morrer amanhã, mas o que importava. Cem mortes não bastavam para pagar uma vida como essa. 7. Evita virá sozinha – insistiu uma velha cheia de verrugas. Várias crianças estavam grudadas em sua saia, como um sistema planetário – Não carece ir buscá-la. Ela é que vai nos buscar. 8. Em ‘O cadáver da nação’ e em outros dois ou três poemas com que Perlongher rodeia Evita, Ela não fala: as que falam são as jóias do corpo morto. 9. Cada vez mais era Pessoa e menos Defunta: ele a sentia em seu sangue, que se enfermava e se modificava, e em outros como o major Arancibia e o primeiro tenente Fesquet, que já não eram os mesmos. 10. Pessoa havia feito a ele mais dano que ninguém e, no entanto, sentia saudades dela. Não deixava de pensar nela. De somente recordá-la sentia sufocos, espasmos no peito. 11. - Olhem-na – disse o Coronel -. Égua de merda. Não se deixa domar. Cifuentes me contou anos depois que nada havia impressionado tanto a Galarza como o áspero cheiro de urina de bêbado. 12. ‘Vimos sua cútis de porcelana’, disse-me a do bócio; ‘vimos os dedos largos como de um pianista, a auréola luminosa ao redor do cabelo’. 13. Ficava bem, sim, a primeira vista nada saía do tom, só que às vezes escapava um fio de odor químico que ele conhecia muito bem. Quem ia se dar conta? Sentia sede de olhá-la, sede de tocá-la. 14. Evita segue vivendo, assegura sua imortalidade, porque seu corpo se transforma em objeto de prazer inclusive para aqueles que a odeiam, inclusive para os seus guardiões.

15. a barbárie do duelo e da falsificação de dor através de uma representação excessiva. 16. Em “O simulacro”, Evita é a imagem de Deus mulher, a Deus de todas as mulheres, a Homem de todos os deuses. 17. O conto alude a uma morta que jamais se nomeia, a um homem que busca o cadáver – Walsh – e a um coronel que o escondeu.

Referências bibliográficas: BATAILLE, Georges. O erotismo. Trad. Cláudia Fares. São Paulo: Arx, 2004. BAUDRILLARD, Jean. A precessão dos simulacros. In: ______. Simulacros e simulação. Trad. Maria João da C. Pereira. Lisboa: Relógio d’Água, 1991. p. 7-57. BORGES, Jorge Luis. El simulacro. In: ______. Obras completas: 1952-1972. 20. ed. Buenos Aires: Emecé, 1994. p. 167. DUJOVNE ORTIZ, Alicia. Eva Perón: a madona dos descamisados. Trad. Clóvis Márquez. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 1997. EVITA: imagens de uma paixão. Compiladores Fernado Diego García, Alejandro Labado e Enrique Carlos Vásquez; Texto Matilde Sánchez; Trad. Nicole Anne Collet I. – São Paulo: Companhia Melhoramento e DBA Artes Gráficas: 1997. FUENTES, Carlos. Santa Evita. La Nación, Buenos Aires, fev. 1996, Suplemento Cultura. p. 2. MARTÍNEZ, Tomás Eloy. Ficção e história: apostas contra o futuro. O Estado de São Paulo, São Paulo, ano 17, 05 out. 1996, p. 10-11, Caderno de Cultura. ______. Santa Evita. Buenos Aires: Planeta, 1998. PLOTNIK, Viviana Paula. Cuerpo femenino, duelo y nación. Buenos Aires: Corregidor, 2003. RIBEIRO, Fernanda Aparecida. Os sentidos do corpo em Santa Evita, de Tomás Eloy Martínez. 2004. 121p. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2004.

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