O Crescimento da Dívida Pública Portuguesa e a Zona do Euro -1999 a 2011: Crise e seus Desdobramentos

June 8, 2017 | Autor: Eduardo Sumares | Categoria: European Debt Crisis, Portuguese Economy
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O CRESCIMENTO DA DÍVIDA PÚBLICA PORTUGUESA E A ZONA DO EURO - 1999 A 2011: CRISE E SEUS DESDOBRAMENTOS

Eduardo Fernandes Sumares Mestrado em Ciência Política e Relações Internacionais Universidade Católica Portuguesa

Resumo: Portugal vive ainda hoje as consequências económicas da crise de sua dívida pública, nomeadamente, alto nível de desemprego e baixo crescimento do produto. A recuperação da economia do país passa pela compreensão dos mecanismos que levaram ao aumento de sua dívida soberana e culminaram na necessidade de auxílio do Banco Central Europeu, Comissão Europeia e Fundo Monetário Internacional. Por meio de encadeamentos lógicos, o ensaio relaciona a criação da zona do euro à escalada da dívida pública e à perda de competitividade da economia portuguesa. Demonstra a impossibilidade de, no curto prazo, o país lograr, simultaneamente, diminuir o rácio da dívida pública relativamente ao produto interno bruto e volta a crescer economicamente. Na conclusão, o ensaio defende, como única estratégia viável de curto prazo, a estabilização do rácio da divida face o PIB e a condução de processo de desvalorização interna – a fim de recuperar a competitividade da economia portuguesa. Apenas assim, argumenta-se, poderá haver crescimento económico e superávites primários que permitam reduzir o rácio dívida/PIB no médio e longo prazos e, consequentemente, eliminar essa vulnerabilidade das finanças do país.

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1. Introdução Em preparação para a introdução do euro como moeda única, foi necessário que os países signatários do Tratado de Maastricht atingissem um nível elevado de convergência económica. Nesse sentido, aquele tratado estabeleceu uma série de requisitos financeiros. Dentre esses, destacam-se aqui os limites impostos ao défice orçamental e a dívida pública. Nos termos do tratado, poderiam adotar o euro os membros da União Económica e Monetária que cumprissem os seguintes requisitos: (i) défice orçamental relativamente ao seu Produto Interno Bruto (PIB) não superior a 3% e (ii) dívida pública em relação ao seu PIB não superior 60%. Portugal logrou cumprir ambos os requisitos - além de os demais critérios de convergência de Maastricht 1 -, tendo sido admitido à zona do euro quando de sua criação, em 1º de janeiro de 1999. Não obstante esse cumprimento, equivalente a um atestado de convergência econômica aos padrões da zona do euro, treze anos depois Portugal transformava-se em pária financeiro: em maio de 2011, o serviço da dívida pública portuguesa tornara-se insustentável e o governo português solicitou ajuda à União Europeia e ao Fundo Monetário Internacional (FMI). É dizer que, ao longo de pouco mais de uma década de circulação do euro, as finanças públicas de Portugal deterioraram-se ao ponto de motivar um ordálio financeiro de grandes proporções, a crise da dívida portuguesa. Os reflexos económicos daquela crise ainda são sofridos pela população portuguesa na forma de elevado desemprego e baixo crescimento do PIB. Por que a divida pública de Portugal se tornou insustentável aos olhos do mercado? Quais foram os fatores que levaram ao galopante aumento do endividamento público após a adesão de Portugal à zona do euro? Veja-se que em final de 1999, primeiro ano do euro, a dívida pública portuguesa era ainda equivalente a 51,4% do PIB2. Em março de 2011, pouco antes do referido pedido de auxílio, o rácio já atingia os 97.6%3. E, a partir daí, com a crise, aumentou ainda mais. Que consequências esse elevado nível de endividamento apresenta

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Referentes à estabilidade dos preços, estabilidade cambial e carácter duradouro da convergência. Fonte: INE, apud Rosa 3 Fonte: INE, apud Rosa 2

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para a economia portuguesa? Como restabelecer o equilíbrio financeiro e, ao mesmo tempo, promover o crescimento da economia do país? Longe de pretender oferecer respostas definitivas a essas indagações, o presente ensaio enfocará o crescimento da dívida pública de Portugal, desde a criação da zona do euro até o pedido de auxílio à União Europeia e ao FMI, em maio de 2011. Seu intuito é iluminar alguns elementos-chave para a compreensão do processo de levou a dívida a se tornar insustentável, bem como iluminar uma saída. A primeira parte do trabalho apresentará o contexto económico bem como as condutas que ocasionaram o galopante aumento da dívida. Em seguida, o ensaio buscará relacionar e explicar as consequências do aumento descontrolado do endividamento, tanto no campo financeiro como no económico. Por fim, abordar-se-á as diferentes estratégias para resolução do problema da dívida conjuntamente aos que lhe são conexos, tais como o elevado défice orçamental e a baixa competitividade da economia portuguesa.

2. Contexto: o endividamento como padrão Em 28 de fevereiro de 2015, a dívida pública portuguesa atingiu o valor recorde de 234.585 mil milhões de euros4. Ao final do ano anterior, esse montante representava 130.2% do PIB. Esse elevado rácio resulta, primordialmente, dos seguintes fatores: crescimento constante da dívida a partir da adesão de Portugal à zona do euro, em 1999; encampamento de dívidas bancárias privadas; e empréstimos-auxilio tomados ao Banco Central Europeu, Comissão Europeia e FMI após maio de 2011. O presente ensaio ocupar-se-á somente do primeiro fator. Com efeito, um lançar de olhos sobres os parceiros de Portugal na zona do euro sugere que a moeda única desencadeou processo de acentuação do endividamento também naqueles países. De facto, o crescimento da dívida pública de Portugal insere-se no quadro mais amplo do aumento do endividamento público nos países da zona euro como um todo. Conforme acima mencionado, à altura da instituição da moeda única, todos os países aderentes apresentavam dívida pública inferior a 60% do PIB. Ao final de 2011, contudo, a média de endividamento público daqueles países já ultrapassava o equivalente a 85.8% do produto5. Ainda que tal média compute as elevadas dívidas de Portugal, 4 5

Fonte: Banco de Portugal Fonte: Banco de Portugal

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Grécia, Itália e Irlanda, permanece o facto de que, naquela altura (dezembro de 2011), dos 11 países integrantes da zona euro desde 1999, apenas 2, Luxemburgo e Finlândia, conservaram a dívida pública em rácio inferior a 60%6 do PIB. Verifica-se, assim, que, até a data do pedido português de auxílio ao FMI, os países da zona do euro apresentavam uma clara tendência de crescimento nas suas dívidas públicas. Tal qual o crescente endividamento soberano em praticamente toda a zona do euro, a mesma tendência verificou-se em relação à dívida privada dos portugueses. Com efeito, se no plano internacional a dívida pública de Portugal se insere no quadro mais amplo das dívidas soberanas dos países da zona euro, no plano doméstico, ela é espécie de um gênero mais abrangente, qual seja, a dívida portuguesa. Este gênero, além da dívida pública, abrange também a privada das empresas, bancos e famílias portuguesas. E as dívidas desses entes privados não-financeiros também aumentou no período em comento. Se em 2000 ela equivalia a aproximadamente 170% do produto7, em março de 2011 a dívida privada não-financeira havia mais do que dobrado: alcançava então o equivalente a 248%8 do PIB.O mesmo fenômeno de agravamento do endividamento privado ocorreu na zona do euro como um todo.9 Constata-se, portanto, que o aumento da dívida pública de Portugal até o pedido de auxílio ao FMI e à União Europeia não se deu isoladamente. Tanto externamente como no plano doméstico, o período compreendido entre 1999 e 2011 assistiu à acentuação do endividamento. Assim, parece claro que o crescimento da dívida pública de Portugal não configurou fenômeno isolado, mas deu-se no bojo de uma generalizada tendência de acentuação do endividamento público e privado na zona do euro. O aludido aumento do endividamento português apenas só foi possível em razão da abundância de financiamento. E uma adequada caracterização da dívida pública de Portugal não poderia prescindir da indicação da origem dos créditos. Nesse ponto, consigna-se que, à data do pedido de auxílio, a dívida pública portuguesa era preponderantemente externa. Em final de 2011, o endividamento perante o exterior representava 66.4% da dívida pública total10, cabendo aos entes nacionais o

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Fonte: Banco de Portugal Fonte: Banco de Portugal 8 Fonte: Banco de Portugal 9 Ver The Economist 10 Fonte: Fundação Francisco Manuel dos Santos 7

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financiamento de parcela equivalente a apenas 33.6%.11 Contudo, o rácio do financiamento externo já fora mais elevado, tendo atingido seu pico em 2008, quando chegou a constituir 76,6%12 da dívida pública total, ou seja, mais do que o triplo do financiamento interno naquele ano (24.6%). A queda da dívida externa para rácio inferior a 70% da dívida pública total, iniciou-se apenas em 2010. Naquele ano, não apenas decresceu em aproximadamente 15% em relação ao ano anterior como chegou a cair também em valores reais. Como ver-se-á na sequência, essa queda tem raízes na maior aversão dos investidores estrangeiros à dívida pública portuguesa após outubro de 2009, altura em que o governo da Grécia aterrorizou os mercados ao reconhecer que o défice orçamental grego superaria em duas vezes o previsto.

3. O endividamento público: finalidade e riscos Finalizada a breve contextualização da dívida pública de Portugal, antes de passar a sua análise específica, cabe primeiramente discorrer sobre o fenómeno do endividamento público isoladamente considerado. Uma adequada compreensão do processo específico de crescimento da dívida pública portuguesa não prescinde de esclarecimentos sobre a finalidade e os riscos associados à acumulação de dívida soberana em nível geral. Teoricamente considerado, o endividamento público constitui um mecanismo de baixo risco de alocação de capital dos agentes superavitários para os agentes deficitários. Ao canalizar recursos de terceiros para o estado, o endividamento público apresenta consideráveis utilidades aos governos. Ele permite, por exemplo, a manutenção dos níveis de receita estatal face à natural oscilação de sua componente tributária. Em casos mais extremos, a acumulação de dívida possibilita ao governo elevar os gastos públicos na ausência de aumento da carga tributária. Para além dessas utilidades fiscais, a emissão de dívida pública no mercado interno pode servir como arma no combate à inflação, pois, ao emitir dívida, o governo logra retirar dinheiro de circulação, promovendo um enxugamento da liquidez.13

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Idem Ibidem 13 Em termos técnicos, ao transferir o montante do M1 para o M3. 12

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No entanto, levado ao extremo, o endividamento passa a causar maiores problemas do que benefícios: ultrapassado determinado rácio em relação ao PIB, que varia em função das características e indicares económicos do país em questão, a acumulação de dívida passa a comprometer tanto o consumo quanto o investimento. E altos níveis de endividamento público acentuam a vulnerabilidade financeira de um país. Na origem do aumento do endividamento público costuma encontrar-se um desequilíbrio económico estrutural: a impossibilidade de o país financiar todos os seus gastos orçamentais. A persistência desse desequilíbrio alimenta tendência de agravamento do endividamento. O continuado crescimento da dívida, por sua vez, costuma deteriorar a avaliação do risco de default. E em consequência dessas avaliações, os investidores passam a demandar juros maiores, o que, finalmente, acentua a taxa de crescimento da dívida e o risco de default. Tem-se, assim, um círculo vicioso e crescentemente dinâmico, no qual o aumento da dívida motiva juros maiores, que então aceleram o endividamento. Para além desse risco de snowballing, um endividamento crescente pode mascarar desequilíbrios estruturais da economia, inclusive aquele do qual decorre. É comum que motive ilusão de prosperidade, levando agentes económicos bem como governos a subestimarem os riscos associados com o endividamento excessivo. Nesse sentido, o elevado endividamento público costuma estar associado a grande parte das crises financeiras. 14

4. O crescimento da dívida pública de Portugal Após esses breves comentários sobre os benefícios e riscos associados ao aumento da dívida pública genericamente considerada, cabe agora focalizar a atenção sobre o crescente endividamento de Portugal no período em comento, qual seja, da criação da zona do euro, em 1º de janeiro de 1999, até o pedido de auxílio à União Europeia e FMI, em 17 de maio de 2011.

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Ilustrativa dessa dificuldade de obter-se sinais adequados de performance econômica em meio a uma tempestade de crédito é a conhecida boutade de Warren Buffet: “you never know who´s swimming naked until the tide goes out”.

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4.1. Peculiaridades O aumento da dívida pública portuguesa até 2011 apresenta peculiaridades que merecem ser reconhecidas de início. Argumenta-se que ela escapa aos padrões por conjugar duas características cruciais: (i) não estar associada a período de crescimento económico – pelo que se diferencia dos recentes casos gregos e irlandês, os quais experimentaram concomitante crescimento do PIB (REIS, 2013); e (ii) ocorrer no contexto de uma moeda única na ausência de política monetária ou cambial autônoma – pelo que diverge das crises latino americanas e nórdicas dos anos 90. Portanto, conforme elaborar-se-á abaixo, constituem peculiaridades da crise da dívida portuguesa o descasamento entre endividamento e crescimento econômico e a de impossibilidade de política monetária ou cambial autônomas. 4.1.1 Ausência de crescimento económico: duas fases Entre 1995 e 2000, o PIB português cresceu ao notável percentual médio anual de 3,8%. Contudo, ainda em 2001, ou seja, dois anos após a criação da zona do euro, a economia passou a desacelerar. Foi quando principiou período de estagnação acompanhado por moderado aumento da dívida, que perdurou até 2008. No período 20012008, o PIB cresceu ao percentual médio anual de apenas 1%. Durante o mesmo período, o rácio da dívida pública relativamente ao PIB passou de 53,8%15 para 71,7%16. A partir de 2008, ano marcado pela eclosão da crise dos derivativos subprime, a economia portuguesa entrou em recessão 17. Ao mesmo tempo em que o PIB encolhia, o valor da dívida pública de Portugal crescia aos saltos. No período 2009-2011 o PIB encolheu a uma taxa média anual de 1%. Nesse mesmo intervalo, o rácio da dívida pública em relação ao PIB saltou de 83,7%18 para 108,2%19. Curiosamente, portanto, enquanto a estagnação económica deu-se em período de moderado aumento do endividamento, a recessão foi acompanhada por um salto da dívida pública. Frise-se que o crescimento da dívida pública no período em comento claramente apresenta duas principais fases20: (i) 2001 a 2008 - período caracterizado por crescimento

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Fonte: INE, apud ROSA Fonte: INE, apud ROSA 17 Exceto pelo ano de 2010, em que efetivamente cresceu 1.9%. 18 Fonte: INE, apud ROSA 19 Fonte: INE, apud ROSA 20 Descarta-se os anos de 1999 e 2000 por serem anos de transição à nova realidade económica, ainda refletindo o dinamismo económica do final dos anos 90. 16

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moderado da dívida e estagnação económica; e (ii) 2009-2011 - intervalo marcado pela explosão da dívida e recessão. Percebe-se, assim, dois binómios de elementos relacionados

entre

si:

(i)

estagnação/endividamento

moderado;

e

(ii)

recessão/endividamento intenso. Na sequência, este ensaio analisará a relação entre tais binómios, à perda de competitividade e ao euro. Argumentar-se-á que tais fenómenos resultaram, em larga medida, da criação da moeda única. 4.2 Zona do Euro A criação da zona euro, etapa culminante do processo de união económica e monetária, motivou ambiciosas expectativas em relação aos seus países-membros mais pobres e menos produtivos, como Portugal. Por um lado, imaginava-se que a integração monetária facilitasse o processo de modernização da economia portuguesa, por outro, esperava-se que o compartilhamento da moeda comum fomentasse sólida disciplina fiscal. Contudo, tais expectativas foram rapidamente frustradas pela realidade: em vez de modernização, a circulação do euro viu a economia portuguesa estagnar a partir de 2001 e encolher após 2008, quando também explodiu o endividamento público. Na raiz da frustração está o facto de que o ingresso de Portugal na zona euro, antes de importar qualquer consequência reformadora da economia e governança do país, serviu primordialmente à elevação do padrão de vida da população mediante forte endividamento privado. Uma vez cumpridos os critérios de Maastricht, Portugal abandonou os esforços de disciplina fiscal. Mas até que ponto a ausência de modernização económica ou aumento da disciplina fiscal pode ser creditada à Portugal? Uma análise mais detida releva que imputação da integral responsabilidade aos governos portugueses ignora ao menos duas características da zona do euro, ambas profundamente relevantes para a eclosão da crise da dívida pública: a primeira delas guarda relação com o projeto da zona da moeda única; a segunda com a facilidade de financiamento da dívida de Portugal. 4.2.1 Projeto da zona do euro A zona do euro é uma união monetária, porém não uma união fiscal ou bancária. A responsabilidade pela política fiscal cabe aos governos nacionais dos países membros. A ausência de passos no sentido de submeter as políticas fiscais ao nível supranacional é apontada como evidência da ignorância sobre as fragilidades de uma união monetária desvinculada de uma união também fiscal e ao nível bancário. Sob essa ótica, haveria 8

portanto uma falha no projeto da zona do euro21, nomeadamente a excessiva autonomia de política fiscal pelos governos dos países membros. Segundo esses críticos, seria essa a falha que estaria na origem da crise da dívida pública de Portugal.22 Em resposta a essa crítica, poder-se-ia argumentar que o projeto da zona euro não deixou de prever mecanismos de combate ao endividamento excessivo. Seriam exemplos desses mecanismos as próprias condições de admissão, nomeadamente o limite do rácio da dívida pública em 60% do PIB e, mais destacadamente, a cláusula no-bailout, destinada a evitar problemas de free-rider no salvamento de países excessivamente endividados. Entretanto, as crises das dívidas soberanas dos países da periferia da zona do euro evidenciaram a ineficácia desses mecanismos. 4.2.3 Facilidade de acesso a financiamento externo Sem ir tão longe na exploração dessa alegada falha no projeto da zona euro, uma outra dimensão da união monetária apresenta elementos que relacionam causalmente a criação da moeda única e crise da dívida pública portuguesa. Sob essa ótica, a ausência de modernização da economia e de maior disciplina fiscal decorreriam em grande medida da facilitação ao financiamento externo propiciado pela moeda única. Assim, o euro teria facilitado o acesso a financiamento externo ao ponto de incentivar a leniência fiscal de Portugal. Além disso, o grande afluxo de financiamento teria levado o país a abandonar as reformas económicas necessárias à modernização de sua economia e ao crescimento sustentado de longo prazo - tais como flexibilização da legislação trabalhista e racionalização da fiscal. Essa facilitação do acesso por Portugal ao financiamento externo resultou (i) da baixa inflação dos países centrais da zona do euro relativamente a Portugal; e (ii) da expectativas de que a adesão de Portugal ao euro geraria ganhos em modernização e governança. Ambos os fatores são analisados a seguir. 4.2.3.2 Inflação A referida abundância de crédito estrangeiro decorre, em significativa medida, da diferença entre as taxas de inflação dos países. A elaboração da política monetária da zona do euro cabe ao Banco Central Europeu. Tal política é elaborada com base em uma média 21

Ver Lane. Há, contudo, explicações concorrentes, como a falta de disciplina fiscal em níveis condizentes com os compromissos acordados à época da EMU. 22

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das economias dos países que compartilham da moeda única. Assim, é natural que a política monetária responda preponderantemente às condições das maiores economias da zona do euro, quais sejam, Alemanha, França e Itália. Quando esses países passaram a experimentar inflação baixa e fraco crescimento do PIB, o Banco Central Europeu adotou uma politica monetária expansionista, por meio da redução dos juros básicos da economia. A decorrente expansão do dinheiro em circulação pela economia resultou em maior disponibilidade de fundos para compra de títulos da dívida pública de Portugal. Além de estar na raiz do processo de expansão monetária, foi a inflação que levou os títulos da dívida pública a cortejarem o novo dinheiro. A alta carestia portuguesa relativamente à alemã barateou o custo do financiamento da dívida. Desde a introdução do euro, a diferença entras as taxas da Alemanha, a maior economia da zona do euro, e de Portugal sempre foi significativa. Durante os primeiros 12 anos do euro, a média da inflação alemã foi de 1.8%, ao passo que a portuguesa ficou em 2.5%23 (PISSANIFERRY, 2011). E qualquer diferença entre a taxa de inflação entre dois países produz diferenças nos juros reais em empréstimos entre eles. Quanto maior for a inflação em um país, menor será o custo real do seu financiamento.24 Assim, nos países em que uma inflação relativamente alta produz juros reais menores, gera-se naturalmente crescimento na demanda por crédito.25 Portugal beneficiou-se desse barateamento do crédito externo para acentuar o seu endividamento público. 4.2.3.3 Redução do premium de risco Além de a inflação relativamente mais alta em Portugal ter reduzido os juros reais da dívida pública, há um segundo mecanismo pela qual a zona do euro facilitou o acesso de Portugal ao financiamento externo. Ele tem raiz na estabilidade e crescimento económicos que se esperava decorressem da união monetária. Trata-se do facto que a adesão à zona do euro causou uma redução nos premiuns de risco das dívidas dos países

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Essa diferença deve-se ao fato de que, não obstante ambos os países estejam sob política monetária comum, setores consideráveis da economia de ambos produz serviços e bens não-comerciáveis. Logo, o padrão de preços de tais produtos e serviços pode variar entre Alemanha e Portugal. 24 Em país com inflação de 3%, juros nominais de 5% configuram juros reais de 2%. Os mesmos juros nominais de 5% configuram juros reais em um país com inflação de 4% 25 Como os países da zona do euro não possuem política monetária autônoma, pelo que ficam impossibilitados de aumentar a taxa de juros básicos da economia, a abundância de crédito continuará enquanto o financiamento permanecer lucrativo. Trata-se de processo que, uma vez em movimento, passa a se retroalimentar. É verdade que, eventualmente sucumbe em caso de persistência da inflação. A elevação dos preços causa perda de competitividade dos produtos nacionais. Esse recuo na demanda acaba por reduzir os salários, o que, por sua vez, conduz ao fim do ciclo de expansão do crédito.

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de sua periferia. Na origem do processo está o facto de que a união monetária permitiu aos países membros tomar empréstimo no exterior em moeda comum. Isso implicou o fim do risco cambial, permitindo taxas de juros menores na remuneração da dívida pública portuguesa. É curioso verificar que o aumento do endividamento do Tesouro de Portugal não o impediu de continuar a se endividar a juros muito próximos aos da dívida pública alemã. Em realidade, em vez de eliminar o risco da dívida, a criação da zona do euro criou uma ilusão de ausência de risco – que, portanto, deixou de ser reconhecido e adequadamente mensurado. Vale lembrar que a racionalidade dos mercados é limitada. A zona do euro produziu uma euforia de supervalorização do retorno em detrimento da avaliação do risco. Além disso, a avaliação do risco de um país é tarefa complexa. Por possuírem poder de tributar, os estados são, teoricamente, eternamente solventes, inexistindo um limite predeterminado ao endividamento possível. Ao conseguir emitir dívida tão barata, Portugal pode usar e abusar do endividamento externo para cobrir seus crescentes défices orçamentais.

5. Altas expectativas e sua nemesis Mas as expectativas dos financiadores estrangeiros não se limitavam à uma nova estabilidade criada pela zona do euro, imaginava-se que o alto nível de endividamento externo fosse produzir crescimento económico. Esse afluxo permitiu que o governo de Portugal aumentasse as suas despesas, as quais seriam financiados pela emissão de dívida pública externa. Contudo, o esperado crescimento não ocorreu. Conforme acima mencionado, o PIB de Portugal ficou praticamente estagnado até 2008 e, a partir daquele ano, entrou em ciclo recessivo. Curiosamente, as referidas expectativas de disciplina e crescimento económico não apenas estavam equivocadas, elas alimentaram a sua própria nemesis. Ao servirem como justificativa para o endividamento público de Portugal, motivaram a redução do premium de risco da divida portuguesa contribuindo para a sua explosão. O excessivo endividamento, por sua vez, impediu a modernização da economia, levando a sua estagnação e posterior recessão. Essa relação de causalidade entre a aceleração do endividamento público e ausência de crescimento económico será abordada oportunamente. Conforme já assinalado, o descasamento entre os crescimentos da dívida 11

pública e da economia é uma peculiaridade da crise da dívida portuguesa. Além disso, a adequada compreensão do problema do alto endividamento e especialmente das formas de sua resolução requer que seja considerada conjuntamente ao problema da falta de crescimento económico. Para além do endividamento e estagnação/recessão, a história da economia póseuro de Portugal é marcada pelos seguintes desequilíbrios estruturais: (i) sucessivos défices orçamentais; e (ii) perda de competitividade. O défice está na origem no crescente endividamento, pois o recurso à poupança estrangeira decorre da necessidade de custear o rombo no orçamento público. Já a perda de competitividade requer remédio que, quando conjugado com a necessidade de redução da dívida pública, forma quebra-cabeça de difícil e custosa resolução, conforme ver-se-á a seguir. 5.1. Défices orçamentais Em convergência aos critérios de Maastricht, a adesão à zona do euro demandou que Portugal apresentasse défice orçamental não excedente a 3% do PIB. Contudo, as estatísticas revelam a pouca disciplina orçamental dos governos de Portugal no pós-74: desde então, o país jamais apresentou resultado orçamental positivo. E seus melhores resultados ficaram sempre na casa dos 3% de défice. (JAEGER, 2015) 26 No entanto, para os propósitos deste ensaio, o mais notável nessas estatísticas é o aprofundamento do défice a partir de 2008, no contexto da crise económica decorrente dos derivativos subprime. Em resposta àquela crise, o governo português adotou uma política fortemente expansionista. Em 2008 e 2009, Portugal apresentou défices orçamentais superiores a 10% do PIB. Uma vez que largamente financiados pela emissão de dívida pública, esses défices aceleraram diretamente o endividamento de Portugal. Em final de 2009, o percentual da dívida pública relativamente ao PIB chegou a 83.6%27 do PIB, um ano depois, em dezembro de 2010, já chegava aos 96.2%28. Essa política de expansão dos défices orçamentais colocou as finanças públicas em trajetória insustentável. Como consequência, a dívida pública aumentou cerca de 44 mil milhões de euros, o equivalente a 23 pontos percentuais do PIB entre dezembro de 26

O fenômeno sugere que a atual ordem constitucional portuguesa criou um estado cujas obrigações excedem sua natural capacidade financeira, pelo que o pacto-social vigente em Portugal necessitaria de ser revisto de modo a aliviar os encargos à custa do estado Português. 27 INE, apud ROSA 28 INE, apud ROSA

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2009 e junho de 2011. Esse quadro levou o mercado a suspender o financiamento da dívida pública de Portugal, tornando inevitável o pedido de auxílio ao FMI. Verifica-se, assim, que o expansionismo fiscal pelo qual o país combateu os efeitos recessivos da crise dos derivativos subprime gerou uma situação insustentável que conduziu diretamente à crise da dívida pública portuguesa e suas repercussões. 5.2 Falta de crescimento da economia Cabe agora retornar ao tema da falta de crescimento do PIB português após 2000. O fenómeno relaciona-se, em primeiro lugar, com o baixo nível de competitividade da economia portuguesa. Este, por sua vez relaciona-se com aumento do endividamento público, o qual, por fim, está associado à zona do euro. Conforme já assinalado, Portugal deixou de aproveitar sua adesão ao euro para modernizar sua economia de forma a torná-la mais competitiva. Os dados estatísticos demonstram que a produtividade total dos fatores da economia portuguesa decaiu a cada ano entre 1999 e 2011. Na origem desse processo, destaca-se a rigidez do mercado de trabalho português. Em 2000, o mercado de trabalho luso era o segundo mais rígido dentre 28 países (REIS, 2013). Tais fatores, contudo, não esgotam a explicação. O

endividamento

competitividade.

também

Conjugado

pode

ao elevado

desencadear

processo

de

endividamento público, o

perda

de

crescente

endividamento privado deixou de fomentar o aumento da produtividade nos setores chave da economia. Convém assinalar que, tal qual o sucedido com o estado português, a adesão de Portugal à zona do euro possibilitou aos bancos portugueses tomar empréstimos ao exterior sem incorrer em risco cambial. Tal fenômeno expandiu fortemente a oferta de crédito barato ao setor privado de Portugal. Em 1998, o crédito ofertado pelos bancos portugueses a particulares em Portugal equivalia a 92.1% do PIB. Em 2007, esse percentual já havia aumentado para 159.8% (LANE, 2012). Nesse ponto, destaca-se os seguintes esquemas de causalidade económica entre endividamento e perda de competitividade: (1) a abundância de crédito produz um aumento relativo de preços, levando a que recursos financeiros e humanos sejam realocados da produção de bens comerciáveis para setores de serviços (FERNANDEZVILLAVERDE, GARICIANO e SANTOS, 2013) 29; (2) a facilidade da obtenção de 29

Conforme explicado por REIS, a redução da taxa de juros cobrados no financiamento externo pode resultar em uma explosão do consumo e dos recursos para financiá-lo. O aumento do consumo de bens

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financiamento pode levar o crédito a investimentos que pouco acrescentam à produtividade do país, como, por exemplo, a construção de aeroportos em regiões pouco habitadas. Esse gênero de investimento em grandes obras desnecessárias normalmente gera comprometimento de receitas tributárias no médio prazo, acarretando em distorções fiscais que também prejudicam o crescimento (FERNANDEZ-VILLAVERDE, GARICIANO e SANTOS, 2013). O fenómeno guarda relação com o facto de os recursos serem alocados de forma pouco produtiva em razão do baixo desenvolvimento do setor financeiro em Portugal (REIS, 213); (3) os aumentos de salário em resposta a taxas de inflação relativamente alta (REIS 2013) e desvinculados de ganhos em produtividade ou valor agregado em qualidade; e (4) a tentativa de ignorar a baixa competitividade e a perda de demanda externa mediante sua substituição por uma demanda interna financiada por dívida (OVERTVELDT, 2011). Ao fim, como resultado desses processos, passada uma década da criação da zona euro, a economia de Portugal tornara-se pouco competitiva, bem como reduzida em seu setor de bens comerciáveis. Ao fim dessa breve discussão sobre os dois desequilíbrios estruturais analisados – défices orçamentais e perda de competitividade –, sublinhe-se que eles mesmos estão interrelacionados: sucessivos défices orçamentais levaram ao aumento da dívida pública. Consequentemente, alimentou-se a inflação, que não apenas incentivou maior endividamento – ao reduzir os juros reais da dívida -, como também justificou o aumento dos salários, primeiramente nos setores controlados, difundindo-se a partir de então as demais setores da economia, inclusive o dos bens comerciáveis, resultando, enfim, na perda de competitividade. (OVERTVELDT, 2011) Tendo sido expostos os encadeamentos lógicos entre os desequilíbrios que levaram à eclosão da crise da dívida portuguesa em maio de 2011, este ensaio passará a relacioná-los também cronologicamente. Segue, portanto, sucinta narrativa do processo pelo qual Portugal perdeu a capacidade de se financiar no mercado. O relato inicia-se em 2008, com o desdobramento da crise dos derivativos subprime e culmina no pedido de auxílio ao FMI em 17 de maio de 2011.

comerciáveis é satisfeito pela importação, enquanto o aumento do consumo dos bens não-comerciáveis precisa ser satisfeito pela produção interna. Assim, tem-se a realocação de recursos para o setor de bens não-comerciáveis.

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6. Rumo ao abismo Com a deterioração do ambiente económico decorrente da crise global de 2008, os financiadores internacionais passaram a questionar a sustentabilidade do crescimento das dívidas pública e privada portuguesas. Até então, o continuado crescimento da dívida pública não fora acompanhada de aumento do spread em relação à alemã, evidenciando que o mercado ainda não antevia risco de default. Após o colapso do Lehman Brothers, em setembro daquele ano, o temor de contágio bancário levou o capital estrangeiro a congelar o crédito à dívida privada de bancos e empresas portuguesas, o que produziu uma crise bancária em Portugal. Mas, até aquela altura, o alarme relativo à divida pública portuguesa ainda não disparara. A atenção do mercado direcionava-se para as ações do Banco Central Europeu no sentido de prover liquidez ao mercado e bancos europeus. Em outubro de 2009, o recém-empossado governo grego revisou seu orçamento para aquele ano, passando a estimar um défice de 12.7% do PIB – em vez de 6% originalmente. A revelação impactou fortemente o já combalido mercado da dívida pública portuguesa e motivou um claro movimento de aversão ao risco. Amedrontados, os investidores estrangeiros passaram a questionar a sustentabilidade das finanças portuguesas e a exigir maior retorno para seu financiamento. Seguiu-se, então, processo de elevação do spread da dívida pública portuguesa relativamente à alemã: em janeiro de 2010, os juros nos títulos de longo prazo da dívida pública de Portugal começaram a aumentar. Se entre 2003 e 2009 os juros nos títulos de 10 anos haviam oscilado entre 3.2 e 5%, em 2010 passaram a variar entre 3.9 e 6.5%. Era o círculo vicioso de acentuação da dívida em ação. Aproximadamente um ano depois, no fim de março de 2011, os juros nos títulos de 10 anos já atingiram os 7,8%. A explosão dos juros não demorou a levar Portugal à lona: um mês depois, em abril de 2011, o governo português deixou de conseguir vender sua dívida no mercado privado. A crise estava consumada. Em 17 de maio, Portugal apresentou ao FMI o pedido de ajuda financeira. A história da crise da dívida pública de Portugal ilustra como, em contexto de fragilidades económicas e fiscais, um desastre fiscal pode se materializar com extrema rapidez. Contas públicas insustentáveis, alto endividamento privado e baixa produtividade levaram os mercados a suspeitar da capacidade de Portugal cumprir o

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serviço da dívida. Endividado e fragilizado, só restou ao governo português solicitar auxílio ao FMI. O pacote de salvamento oferecido pela União Europeia e FMI, no valor de 78 mil milhões de euros, estabeleceu uma série de obrigações a serem cumpridas por Portugal, nomeadamente medidas de austeridade fiscal e reformas estruturais na economia tendentes ao aumento da competitividade e crescimento económico. Do referido montante, 12 mil milhões de euros seriam usados para fortalecer os balanços dos bancos portugueses, devido à alta exposição desses bancos à dívida pública de Portugal. 30 O empréstimo, pelo prazo de 3 anos, foi a uma taxa de juros de 4.5%, aproximadamente a metade daquela que seria cobrada pelo mercado. Em contrapartida, Portugal comprometeu-se a reduzir o défice fiscal de 9.1% do PIB para 3% em 2013, via medidas de austeridade tais como congelamento de salários do setor público e aumento da carga tributária.

7. Dificuldades O plano de ajuste económico apresentava, contudo, uma série de dificuldades. O uso dos recursos disponibilizados para capitalização de bancos certamente aliviava a crise bancária, mas ao custo de aumentar a dívida pública e o risco de seu pagamento. Por outro lado, na medida em que os bancos portugueses também eram credores de Portugal, o aumento da dívida pública fragilizava seus balanços (LANE). Portanto, o salvamento não remediou completamente as fragilidades nem do Tesouro de Portugal nem dos bancos portugueses. Medidas de austeridade fiscal podem congelar o crescimento do rácio da dívida em relação ao PIB, de forma a estabilizá-lo. E, nesta altura, a dívida pública portuguesa aparenta estar estabilizada em rácio de aproximadamente 130% do PIB. No médio prazo, contudo, no sentido de diminuir sua vulnerabilidade financeira, Portugal precisará de reduzir o elevado rácio a níveis mais confortáveis. Tal redução configurará verdadeiro

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Os bancos portugueses também tomaram elevados financiamentos ao exterior. Em 2010, suas dívidas representava aproximadamente metade da dívida externa líquida portuguesa. Com o congelamento do financiamento externo, três dos quatro maiores bancos tiveram de ser capitalizados com recursos públicos. Houve um círculo vicioso entre as dívidas dos bancos e de Portugal. Os temores quanto à solvência de Portugal teve por consequência temores quanto à solvência dos bancos portugueses, uma vez que detinham parte considerável da dívida do estado Português (REIS, 2013).

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desafio 31 em razão de as dificuldades enfrentadas pelo estado português na obtenção de superávites orçamentais primários. Não obstante as antevistas dificuldades na produção de superávites que permitam reduzir a dívida pública, trata-se de solução preferível à sua restruturação. Diferentemente do caso grego, o pagamento das obrigações de Portugal não requer haircut do montante devido. Além disso, propostas heterodoxas poderiam ter potencialmente agravado o temor de contágio na zona do euro. Por fim, não há como se escapar do facto de que restruturações de dívidas soberanas são fenómenos associados a países em desenvolvimento. Um pedido nesse sentido por Portugal equivaleria a cruzar a divisa que separa os países confiáveis daqueles que não gozam de credibilidade. A maior dificuldade, contudo, é que o problema económico de Portugal não se restringe à obtenção de superávites primários. Conforme já mencionado, o endividamento de Portugal foi acompanhado de estagnação/recessão resultantes da perda de sua competitividade. Portanto, o desafio económico do país é mais amplo: consiste em (i) reduzir o rácio da dívida pública relativamente ao PIB e (ii) recuperar a competitividade de sua economia de forma a possibilitá-la crescer. Tragicamente, no entanto, tais objetivos são irreconciliáveis no curto prazo. A redução do rácio da dívida requer um aumento do PIB. E o fortalecimento da competitividade, por paradoxal que seja, passa, em um primeiro momento, pela redução do produto. Em razão desse paradoxo, Portugal encontra-se impossibilitado de crescer vigorosamente no curto prazo. A seguir, as táticas de enfrentamento de ambos os desafios são analisadas em maior detalhe.

7.1. Redução do rácio da dívida Para além da obtenção de superávites primários, há duas táticas usuais de se reduzir o rácio da dívida pública relativamente ao PIB. Ambas funcionam pela expansão da economia. A primeira delas consiste em promover um aumento meramente nominal do PIB por meio da inflação: é a tática inflate the debt away. Por força da inflação, o valor

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O cálculo para estabilização é o seguinte: supondo-se que o rácio da dívida em relação ao PIB seja de 120%, a um juro anual médio de 3%, o custo anual dos juros da dívida será portanto de 3.6% do PIB (120 . 0.03). Assim, de forma poder custear a dívida existente sem aumentá-la ainda mais, o país necessitaria realizar superavites primários anuais equivalente a 3.6% do PIB. Verifica-se que, caso a taxa de juros médios da dívida fosse de 7%, o superávites primários necessário seria de 8.4% do PIB, nível que nenhum país democrático poderia suportar (PISSANI-FERRY, 2011).

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do PIB cresceria - ainda que apenas em termos nominais. Na medida em que o nível de endividamento resulta de uma divisão que tem por denominador o valor do PIB, qualquer aumento do PIB - mesmo que meramente nominal -, reduziria o rácio da dívida pública. Na origem do fenómeno está, obviamente, o facto de que a expansão inflacionária aumenta apenas o valor do PIB mas não o valor da dívida pública. Já a segunda tática consiste em aumentar o PIB não em termos nominais mas reais, pelo acréscimo na produção de bens e serviços. Ora, por estar a política monetária da zona do euro sob responsabilidade do Banco Central Europeu32, o governo Português não dispõe de instrumentos de política monetária33 capazes de inflacionar a economia e, consequentemente, aumentar o PIB em valores nominais. E descarte-se, de logo, o uso de instrumentos fiscais para produzir inflação, uma vez que o estado Português, já excessivamente endividado, não dispõe de meios de aumentar substancialmente os seus gastos. Assim, políticas de aumento deliberado da inflação, tanto monetárias quanto fiscais fogem ao alcance do governo de Portugal. E ainda que assim não fosse, por Portugal destinar suas exportações primordialmente a seus os vizinhos europeus utilizadores da moeda única, qualquer aumento da inflação, na medida em que poderia ocasionar o aumento dos salários domésticos, enfraqueceria ainda mais a já combalida competitividade da economia portuguesa. Ante a impossibilidade de crescer seu PIB nominalmente via inflação, resta a Portugal promover o efetivo crescimento de sua economia de forma a reduzir o rácio entre a dívida pública relativamente ao PIB. Na impossibilidade de crescer via aumento dos gastos públicos ou consumo doméstico, o crescimento, passaria, necessariamente, pela modernização e ganho de competitividade da economia portuguesa que lhe permitissem conquistar novos mercados externos. Ocorre que, no atual caso português, ainda que relacionados no médio e longo prazo, aumento do PIB e ganhos de competitividade são irreconciliáveis no curto prazo. Na melhor das hipóteses, um vigoroso crescimento da economia chegará apenas após o fim de um ciclo de ganho de competitividade que, por paradoxal que seja, seria recessivo.

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O facto implica a impossibilidade de o governo de Portugal utilizar o Banco Central para substituir-se aos credores privados mediante compra dos títulos da dívida do Tesouro Português no mercado secundário. 33 Tais como a estipulação da taxa de juros básica da economia ou o nível de compulsórios que devem ser mantidos junto ao Banco Central.

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7.2. Aumento de competitividade Pará além de ganhos em eficiência, há duas formas usuais de se aumentar a competitividade da economia de um país, e ambas funcionam pelo barateamento dos fatores de produção. A primeira delas consiste em promover um barateamento pela via cambial, qual seja, uma desvalorização da moeda do país. Como a moeda local passa a valer menos relativamente às estrangeiras, os bens locais tornar-se mais baratos em moeda estrangeira, levando ao aumento da demanda externa por eles. Trata-se, por óbvio, de uma opção impossível a Portugal, em razão de a política cambial do euro ficar sob a responsabilidade do Banco Central Europeu. A segunda via de barateamento dos fatores de produção não depende do câmbio. É a chamada desvalorização interna. Trata-se da redução gradual e equitativa dos preços e salários na economia, de forma a não prejudicar em demasia o poder aquisitivo da população. É processo demorado, de complexa coordenação e socialmente custoso, dado que recessivo. Além disso, pode causar desequilíbrios sociais pois, na medida em que a redução dos salários dos diferentes setores da economia ocorre de forma gradual e descoordenada, os primeiros trabalhadores a terem seus salários reduzidos seriam mais prejudicados relativamente àqueles cujo corte salarial ocorresse apenas ao final do processo.34 Esses desequilíbrios seriam reforçados pela realocação de capital e recursos humano nos setor de bens-comerciáveis, passíveis de exportação, processo necessário à retomada da competitividade.

Tudo isso considerado, o quadro em que se encontra a economia portuguesa, ao menos no curto prazo, não é animador.35 Dada a dificuldade de obtenção de superávites 34

A despeito dessas dificuldades, a desvalorização interna não configura impossibilidade. Recentemente, a Letônia passou por processo que reduziu em 10% os preços e salários em sua economia. É verdade que esse país apresenta características que favorecem a exequibilidade do processo, tais como um tamanho econômico reduzido conjugado com um forte perfil exportador e onde a importância da competitividade para o país é bem percebida pela população. Infelizmente, tais características não são partilhadas por Portugal (PISSANI-FERRY, 2011) 35 A frustração ante a ausência de soluções de curto prazo para a economia portuguesa tem levado vozes à esquerda do espectro partidário a defender a saída de Portugal da zona do euro. No entanto, longe de configurar uma solução, essa proposta apenas agravaria a crise económica e, potencialmente, teria consequências devastadoras tanto para as finanças públicas como para o bem-estar da população. Um eventual retorno ao escudo implicaria uma fortíssima desvalorização resultante do esperado efeito de overshooting. Esse derretimento do valor da moeda, traria consequências devastadoras para todos os atores da economia portuguesa, estado inclusive. No campo económico, a perda do valor da moeda empobreceria

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primários e a impossibilidade de se reduzir o rácio da dívida relativamente ao PIB via inflacionamento ou crescimento económico no curto prazo, talvez Portugal tenha de contentar-se, neste primeiro momento, com a mera estabilização da dívida. É o possível enquanto o país constrói bases para crescimento no futuro, via ganhos de competitividade após processo de desvalorização interna. Como visto, trata-se de um processo difícil e custoso socialmente, mas que, ante a impossibilidade de uma solução de curto prazo, ao menos sinaliza uma saída, caso se consiga caminhar até lá.

8. Conclusão Em 1999, a adesão de Portugal à zona do euro fortaleceu o otimismo acerca do potencial da economia portuguesa, a qual vinha crescendo robustamente naquela segunda metade dos anos 1990. Esperava-se do euro uma função dinamizadora da economia e disciplinadora das finanças públicas de Portugal. No entanto, a realidade foi de todo diversa: a economia desacelerou enquanto o endividamento público e privado passou a crescer continuamente. O fenómeno tem origem na expansão monetária determinada pelo Banco Central Europeu, na alta inflação portuguesa relativamente à alemã e na redução do premium de risco da dívida portuguesa. Esses fatores permitiram ao Tesouro Português emitir dívida a custo muito reduzido. Essa circunstância encorajou o governo português, sempre pressionado fiscalmente, a abdicar dos esforços de disciplina fiscal e custear seu excesso de despesa mediante a emissão de dívida. O aumento da dívida pública foi acompanhado pelo aumento do endividamento privado. Mas esse influxo de euros na economia não melhorou a produtividade da economia portuguesa, contribuindo, apenas para impulsionar a inflação. Em vez de transformar-se em investimento produtivo, o crédito serviu para financiar o consumo, o população e empresas a ponto de se tornarem incapazes de arcar com o preço das importações básicas de commodities e insumos industriais, daí resultando inflação que apenas empobreceria ainda mais as famílias e o setor privado de Portugal. Na esfera financeira, o valor das obrigações em euro titularizadas pelo estado Português e pelo setor privado multiplicariam de valor, gerando uma série de defaults e falências na economia. Não bastassem essas consequências económicas e financeiras devastadoras, a saída do euro possivelmente deflagraria também uma crise política. A mera perspectiva concreta de uma saída da zona do euro desencadearia uma corrida bancária para troca de euros por moeda forte, - como proteção à vindoura desvalorização. O governo então seria obrigado a impor limites o valor das retiradas, medida politicamente nociva - como atestado pela Argentina e seu corralito em 2001. Para além das trágicas consequências domésticas, a saída da zona euro representaria a quebra de um tabu que poderia desacreditar a moeda única e no limite, ocasionar o colapso da zona euro (PISSANI-FERRY, 2011).

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qual foi satisfeito, em grande parte, pela importação - causando significativos défices em conta-corrente. O desenrolar desse processo, ao motivar a realocação de recursos dos setores comerciáveis para os não-comerciáveis em uma economia de alta inflação relativamente a seus parceiros comerciais, resultou na gradual perda de competitividade da economia portuguesa. Assim, paralelamente à acentuação do seu endividamento, Portugal foi se tornando cada vez menos competitivo. Em 2008, a eclosão da crise dos derivativos subprime, gerou um aperto do crédito que expôs a elevada alavancagem dos bancos ao mesmo tempo em que produziu aversão ao risco. O governo Português reagiu ao aperto privado por meio de medidas expansionistas financiadas pela emissão de dívida. Um ano depois, a relevação da catástrofe fiscal da Grécia motivou suspeitas acerca da sustentabilidade da dívida pública de Portugal. E, à altura, o quadro fiscal do país era calamitoso: o défice de 2008 ultrapassara os 10% do PIB e o de 2009 não seria diferente. Consequentemente, os juros da dívida portuguesa dispararam criando um círculo vicioso de crescimento da dívida. Em 2011, os juros já superavam os 7%. Alguns meses depois, os mercados privados deixaram de financiar o Tesouro Português e não restou alternativa à Portugal senão buscar auxílio junto ao FMI. Após um duro ajuste via medidas de austeridade fiscal, Portugal conseguiu reverter o quadro de sua conta-corrente e reduzir bastante os seus défices orçamentais. Contudo, o país continua a experimentar alto desemprego e baixo crescimento. Convive, ainda, com uma dívida pública estabilizada em torno dos 130% do PIB. A recuperação de Portugal passa pela redução de sua vulnerabilidade fiscal, mediante redução do rácio da dívida pública relativamente ao PIB. Paralelamente, o país necessita elevar a competitividade de sua economia de forma a voltar a crescer em níveis razoáveis. Na impossibilidade de valer-se da inflação para reduzir a dívida ou de uma desvalorização cambial para aumentar sua competitividade, e ante a dificuldade de obtenção de superávites primários, resta ao país prosseguir no processo de desvalorização interna de forma a recuperar a competitividade perdida. A via é dolorosa, mais muito já se caminhou. A persistir-se no caminho, o médio prazo poderá trazer crescimento económico e um alívio no nível de endividamento público. É o que se espera.

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