O crime e sua sanção

October 6, 2017 | Autor: Carine Do Vale | Categoria: Direito
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1. O crime e sua sanção
A construção conflituosa da relação entre ciência e responsabilidade será evocada, antes de se abordar o problema agudo do recurso à ideia de culpabilidade arraigada nas instituições mas enfraquecida pelos progressos.
O objeto em causa é um fenômeno em parte duplo: o crime, ou a infração estigmatizada em virtude de interesses sociais que se devem preservar ou promover, só existe como tal mediante a sanção que lhe garante o respeito e lhe atualiza a rejeição.
O poder de punir aqueles que colidem mais severamente com a ordem dos homens compete àqueles dentre os juízes que estão em contato direto com a lei no que ela tem de mais fundamental: é às injúrias supremas que corresponde o ius gladii..
Como afirma Robertson Smith: "Homicídio e incesto são os dois únicos crimes de que a comunidade como tal tem consciência". Não é obrigado a aderir às premissas da demonstração para aceitar suas conclusões. A interdição do homicídio é a "lei das leis" que proporciona à sociedade um encadeamento lógico de instituições.
A formulação do crime como um procedimento fundamentado na execução de uma proibição fundamental, cujo princípio ativo é a presunção de razão, mostra-nos a que ponto cada ato, cada fenômeno isolado, está contido na economia geral das instituições. Dentro da lógica do homicídio, o caso de assassinato de pessoas pode querer expressar, da parte do homicida, a reparação de uma ordem achincalhada (p. 287).
O processo Rivière atesta hesitações, em se tratando de ciência e responsabilidade, da sociedade perante uma monstruosidade executada com o rigor lógico de uma decisão de justiça. A comutação de pena, segundo Robert Castel devia a um aumento da força da corporação. Porém, houve uma mobilização por ocasião de um recurso de indulto, para atestar uma alienação mental desde a primeira infância que persistiu depois dos homicídios "devidos ao delírio", existindo uma retaliação a esse pensamento de Pierre Rivière,
A investigação dos fatores que predispõem à prática das infrações estará na origem da utilização, pela administração judiciária, pelas instituições médicas ou, mais recentemente, por organismos relacionados com o setor social, de uma crescente panóplia de métodos tendentes a conjurar o ato ou sua reincidência (políticas de reinserção).
Uma segunda propriedade exemplar do caso Rivière, apontada por Castel, é pôr em evidência "uma concorrência entre agentes que defendem seu lugar na divisão do trabalho social: a que tipo de especialistas confiar esse homem e qual será sua carreira consoante o veredicto ou o diagnóstico.
Uma terceira virtude do caso Rivière para análise é, enfim, pôr em evidência a questão teórica da constituição dos conhecimentos apropriados para a compreensão dos fenômenos criminais.
O discurso sobre o homem criminoso é acima de tudo um discurso sobre o homem, sob o postulado darwiniano da evolução das espécies, o homem criminoso vai aderir à evolução das ciências do homem.
A ciência parece ser para si mesma seu próprio princípio de subversão. Com Lombroso, a criminalidade geneticamente hereditária parece aceita, mesmo antes das leis de Mendel. Vão surgir a sociologia e a psicanálise, e uma dissociação cada vez mais acentuada entre fatores "naturais" e fatores culturais do comportamento, Até que a evolução das ciências "médicas e comportamentais" não questione os próprios fundamentos dessa distinção.
Os progressos da ciência tendem a fazer o princípio de responsabilidade recuar para um leque cada vez mais amplo de comportamentos que a consciência comum atribuiria, porém, à livre escolha dos indivíduos.
Já discutindo-se pelo prisma da proibição fundamental, se seu objetivo é conseguir, por meio de instituições, atribuir um lugar a cada ser humano na sociedade que obedece a um certo "modo de racionalidade", então deve-se compreender a presunção de razão não só como o cimento abstrato dessa vasta organização mas como um meio muito concreto de ligar o sujeito à estrutura global.
Deve-se, por exemplo, aos canonistas e sua "criação de um direito moderno", a distinção entre elemento objetivo e elemento subjetivo do crime: de um lado, as circunstâncias exteriores, do outro, o estado de espírito do autor. Todavia, há que notar que foi precisamente o cerco ao pecado que converteu os fatores subjetivos em questões jurídicas: a ideia de culpabilidade, relativamente sumária e objetiva em Roma, foi ampliada e tornada mais complexa pela preocupação moral de controlar no menor detalhe o funcionamento das consciências.
O processo integrador do processo, por sua vez, é o teatro institucional encarregado de resolver a equação formulada pela cultura jurídica ocidental entre liberdade e responsabilidade. O ritual judiciário possui seu aspecto mecânico que lhe dá a aparência automática de um modelo testado pelo uso: uma técnica bem aperfeiçoada de instilação do direito nas mentalidades culpadas.






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