O Cristianismo antigo: a idade patrística pré-nicena

May 18, 2017 | Autor: Yuri Leveratto | Categoria: Cristianismo, História, História Do Cristianismo, Cristianismo Primitivo, Patrística
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O Cristianismo antigo: a idade patrística pré-nicena O cristianismo antigo começou com a Ressurreição de Jesus e difundiu-se de Jerusalém por todo o mundo antigo através da ação infatigável dos Apóstolos e dos demais seguidores de Cristo. Os documentos mais significativos que se descreve a idade apostólica, ou melhor, o período da Ressurreição até a morte de João, são os Atos dos Apóstolos, as Cartas de Paulo e as outras obras que formam o Novo Testamento. No entanto, existem outros documentos, como a primeira carta de Clemente de Roma, onde se descrevem alguns fatos da idade apostólica, por exemplo, o martírio de Pedro e a infatigável obra de evangelização de Paulo (1). Durante o primeiro século d.C., os cristãos foram perseguidos duramente, já que não reconheciam a “divindade” do imperador e predicavam o Evangelho de Cristo, afirmando que somente a fé nele e o arrependimento dos próprios pecados levariam à salvação e, portanto, à vida eterna. Tudo isso estava em forte contradição com a religião e com a cultura romana, que via o ser humano como um simples animal desenvolvido e não como um ser sagrado, situado no centro do projeto divino. As perseguições contra os cristãos começaram sob o mando do imperador Nero. O imperador Vespasiano, depois das guerras judaicas, ordenou buscar a todos os descendentes da estirpe de Davi. Logo, Domiciano voltou a perseguir os cristãos com inaudita ferocidade. Depois da morte de João, o apóstolo de Jesus Cristo que viveu mais tempo, passado aproximadamente o ano 100 d.C. em Éfeso, não havia ninguém que tivesse conhecido o Salvador do mundo. O Cristianismo, no entanto, a pesar das terríveis perseguições romanas, sobreviveu, inclusive difundiu-se “como fogo em bosque seco”. Como foi possível? Quem foram os sucessores dos Apóstolos e qual era seu estilo de vida? Por que conseguiram aceitar a nova fé em Deus as massas de pessoas que até poucos anos reconheciam como divino o imperador ou adoravam ídolos? Primeiro que tudo, temos que considerar que as igrejas cristãs que surgiram no século I e que logo se desenvolveram no século seguinte, não estavam organizadas em um modo hierárquico; na prática, não havia um “Papa” ou chefe da cristandade. Contrariamente ao que se possa pensar, o sucessor de Pedro, que se chamava Lino, não era o chefe da Igreja cristã, já que era somente o chefe da Igreja cristã de Roma. Cada cidade tinha seu bispo: Alexandria do Egito, Éfeso, Antioquia, Jerusalem, Olimpo, Filipos, Corinto, Cartago etc. A independência de cada congregação das demais tornava, então, impossível que qualquer ensinamento errôneo, ou seja, diferente da palavra do Senhor, e que

qualquer novo dogma se estendesse a outras comunidades. Além disso, os bispos não tinham sido educados fora das comunidades onde professavam, pois tinham crescido dentro delas, eram conhecidos por todos e a todos deviam responder por suas ações. Como a crença cristã exige mudanças radicais não somente em palavras, mas também em atos, os bispos que predicavam essa mudança de paradigma deviam demostrar com os atos que eles estavam dispostos antes que ninguém a deixar tudo por Jesus Cristo. Não somente deviam demostrar que viviam de forma irrepreensível e aprazível, como deviam abandonar suas propriedades materiais para doá-las à comunidade, compartindo os bens, tendo que estar dispostos a antepor a Cristo inclusive a suas vidas. E foi isso que fizeram: de fato, a maioria dos bispos e dos sábios cristãos que viveram depois da morte de João, na chamada “idade patrística”, morreram martirizados, dando um testemunho extremo (mártir significa testemunho em grego) de Jesus Cristo. Refiro-me, por exemplo, a Clemente de Roma (morto no ano 100 d.C.), Inácio de Antioquía (35-107 d.C.), Policarpo de Esmirna (69-155 d.C.), Justino Mártir (100-168 d.C.), Ireneo de Lyon (130-202 d.C.), Hipólito de Roma (170-235 d.C.), Orígenes (185-254 d.C.), Cipriano (210-258 d.C.), Metódio de Olimpia (250-311 d.C.). Sua principal força, então, foi a fé inquebrantável em Cristo e a demonstração com o martírio. Sobre o processo de nominação de um novo bispo, analisemos um escrito de Cipriano (2): Deve ser escolhido em presença da gente e deve demostrar que é digno e apropriado mediante juízo e testemunho público (…). Para uma ordenação apropriada, todos os supervisores vizinhos da mesma província devem reunir-se com a congregação. O supervisor deve ser escolhido em presença da congregação, já que eles conhecem sua vida e costumes. E sobre a integridade e moralidade dos cristãos, leiamos una parte de um escrito de Inácio (3): É necessário, portanto, não só ser chamado “cristão”, mas ser na realidade cristão (…). Se não estamos preparados para morrer da mesma maneira que Ele sofreu, sua vida não está em nós. Outra característica dos primeiros cristãos era a chamada separação do mundo. Vejamos a tal propósito as célebres passagens do Evangelho de João (15, 18-19): Se o mundo os odeia, saibam que odiaram a mim antes que vocês. Se vocês fossem do mundo, o mundo amaria o que é seu; mas como não são do mundo, já que Eu os escolhi entre o mundo, o mundo os odeia.

De fato, os primeiros cristãos demostraram não estar interessados nas tentações do mundo. Não estavam interessados no dinheiro, nem no poder. Viviam no mundo e, no entanto, não faziam parte dele. Foi somente a partir do chamado híbrido constantiniano que as coisas mudaram. Nos 280 anos que vão justamente da Ressurreição ao edito de Milão, os cristãos viveram em contextos nem frívolos, nem mundanos, senão mais bem austeros. Não é que não foram felizes, que fique claro, já que sua alegria provinha da fé e não certamente das posses materiais ou do poder terreno. Vejamos a tal propósito, dois escritos de Hermas, irmão de Pio, bispo de Roma: (4): De fato, estes são os que têm fé, mas também têm as riquezas deste mundo. Quando vem a prova, negam ao Senhor devido a suas riquezas e negócios… Por conseguinte, aqueles que são ricos neste mundo não podem ser úteis ao Senhor a menos que se reduzam primeiro suas riquezas. Em seu caso, aprendam primeiro isto. Quando vocês eram ricos eram inúteis. Mas, agora, são úteis e aptos para a vida. (5): Abstenham-se de tanto negócio e evitem o pecado. Aqueles que estão ocupados com tantos negócios cometem também muitos pecados e seus assuntos de negócios fazem que se distraiam, em vez de servir ao Senhor. Precisamente a separação dos prazeres mundanos, ou seja, do aparentar, do mostrar-se, do culto da posse, não fizeram mais que reforçar sua atitude em ajudar e amar ao seu próximo, fosse cristão ou não cristão. Vejamos a tal propósito uma citação de Justino Mártir (6): Nós, que dávamos valor a adquirir riqueza e posses mais que a qualquer outra coisa; agora levamos o que temos a um fundo comum e o compartilhamos com qualquer que o necessite. Odiávamos e nos destruíamos entre nós mesmos e nos negávamos a associar-nos com povos de outras raças ou países. Agora por Cristo, vivemos junto a essas pessoas e oramos por nossos inimigos. Eis aqui como Clemente de Alexandria descrevia o bom cristão (7): Empobrece-se a si mesmo por causa do amor de modo que está seguro que nunca passará por cima de um irmão necessitado, em especial se sabe que pode suportar a pobreza melhor que ele. Da mesma maneira considera a dor de outro como sua própria dor. E se sofre alguma dificuldade, não se queixe.

Dessas e outras citações dos textos patrióticos resulta, portanto, que os cristãos do segundo e do terceiro século dedicavam-se realmente ao próximo, não somente ao próximo cristão, que fique claro. Outra de suas características era o fato de que não costumavam levar a juízo um “irmão” seu, senão que tentavam dirimir as controvérsias de modo tranquilo, com diálogo e compreensão. Seu espirito ultraconservador levava-os, além disso, a considerar que não devia ter nenhuma nova revelação depois dos textos do Novo Testamento. Qualquer possível mudança ou acréscimo aos textos sagrados era, portanto, vista como um grave erro. Como podiam viver os primeiros cristãos dentro de sociedades, a romana e a grega, profundamente corruptas, tanto desde um ponto de vista moral como dos costumes sexuais? Os cristãos encontravam-se, literalmente, nadando contra a corrente. Primeiro que tudo, o fato mesmo de não fazer os sacrifícios rituais aos deuses pagãos ou de não queimar incenso em honra ao “gênio” do imperador, que era reconhecido como o “deus” protetor dos romanos, era já por si só uma situação que os expunha à morte. De fato, muitas perseguições contra os cristãos tiveram origem justamente no obstinado repúdio dos cristãos a submeter-se a rituais que, para eles, não tinham sentido. Os primeiros cristãos estavam, no entanto, também em contraste com a cultura da época e não somente com a religião grega ou romana. Tomemos por exemplo o caso do aborto: na Roma imperial, era una prática comum e tolerada. A vida humana, de fato, não era considerada sagrada, não se via como o projeto de Deus que devia ser preservado a qualquer preço. O ser humano era considerado somente um animal que tinha desenvolvido qualidades intelectuais particulares, mas não era visto num plano superior ao dos outros seres vivos. Portanto, o feto podia ser destruído sem problemas, exatamente como alguns escravos que eram arremessados na areia à mercê de bestas ferozes, somente por diversão das massas. Os primeiros cristãos opunham-se tenazmente a tudo isso. A tal propósito, vejamos um escrito de Tertuliano (8): No nosso caso, já que o assassinato está absolutamente proibido em qualquer de suas formas, nem sequer poderíamos destruir o feto no útero (…) deter um nascimento é simplesmente uma forma mais rápida de matar. Não importa se quitamos uma vida que nasce ou se destruímos uma vida que ainda não nasceu. Os primeiros cristãos estavam, obviamente, contra a instituição da escravidão, já que no ensinamento de Cristo, todos os homens são livres e nenhum deve prevalecer ou dominar o outro.

Eis aqui uma citação de Lactâncio, que sanciona este conceito (9): Ante os olhos de Deus, ninguém é escravo, ninguém é amo. Já que todos têm o mesmo Pai, somos por igual seus filhos. Ninguém é pobre ante os olhos de Deus exceto o que carece de justiça. Ninguém é rico exceto o que está cheio de virtudes. Vejamos agora quais eram as crenças dos primeiros cristãos em relação ao batismo. Pensavam que o batismo purificaria os pecados de uma pessoa? Pensavam, quem sabe, que sem batismo uma criança seria condenada? Absolutamente. Para os primeiros cristãos, o batismo não era considerado um ritual mágico que podia salvar uma pessoa, a menos que estivesse acompanhado da fé em Jesus Cristo e do verdadeiro arrependimento dos próprios pecados. Em prática, o batismo atuado sem fé, não tinha nenhum valor. Portanto, sustentavam que as crianças não batizadas que morriam na infância podiam salvar-se, diferente do dogmático Agostinho de Hipona (354-430 d.C.). Vejamos, com esse propósito, uma passagem de Justino Mártir, em sua obra “Diálogo com Trifão” (10): Não há outra forma (de obter as promessas de Deus) que esta: conhecer a Cristo, ser banhado na fonte da que falava Isaías para a remissão dos pecados e, por último, viver uma vida sem pecado. Que sustentavam os primeiros cristãos a propósito da salvação? Segundo a maioria dos historiadores, entre os quais o estadunidense David Bercot, durante o cristianismo antigo, o bem, tanto na era apostólica como na era patrística, acreditava-se que a fé em Deus era absolutamente essencial para a salvação e que sem a graça de Deus, nenhum podia salvar-se. No entanto, no curso dos séculos seguintes desenvolveram-se abundantes diatribes entre os que sustentavam a salvação pela fé e os que apoiavam a salvação através das obras. Segundo estas duas tendências, então, ou a salvação é um presente de Deus ou se consegue através de boas obras. Estas polêmicas, no entanto, foram introduzidas pelo dogmático Agostinho de Hipona e logo por Martim Lutero, e não existiam nos tempos do cristianismo antigo. Os cristãos dos primeiros três séculos tinham claro que somente através da fé absoluta pode-se obter a salvação. Seu raciocínio considerava, naturalmente, que uma fé sem obras não é verdadeira fé. Mas, vejamos algumas citações dos primeiros cristãos da idade patrística para tal propósito, Clemente de Roma por exemplo (11):

E nós, portanto, que por Sua vontade fomos chamados em Jesus Cristo, não somos justificados por nós mesmos. Nem por nossa própria sabedoria, nem entendimento, nem piedade, nem obras feitas em santidade de coração. Senão por essa fé, através da qual Deus todo poderoso tem justificado a todos os homens desde o princípio. O mesmo Clemente, no entanto, exorta a cumprir boas obras (12): Que faremos, ó irmãos? ¿Cessaremos de fazer o bem e descuidaremos a caridade? Nunca permita o senhor que isso suceda entre nós, pois com zelo e ardor nos esforcemos em cumprir qualquer boa obra. Da mesma maneira, consideremos duas citações de Policarpo, o discípulo de João. Na primeira, transmite uma célebre passagem da Carta aos Efésios de Paulo: Muitos desejam entrar na sua glória, sabendo que: “Pela graça vocês foram salvos, mediante a fé; isso não procede de vocês, pois é presente de Deus, não por obras, para que ninguém se gabe” (Efésios 2, 8-9). Na segunda citação, no entanto, o mesmo Policarpo exorta a fazer obras de bem (14): Aquele que se levantou entre os mortos também nos levantará, se fazemos sua vontade e seguimos seus mandamentos e amamos o que ele ama mantendo-nos longe de toda corrupção. Agora vejamos o pensamento de Clemente de Alexandria, a respeito da salvação através da fé (15): Abraão não foi justificado por suas obras, senão pela fé (Romanos 4, 3). Portanto, mesmo se realizam boas obras agora, não lhes aproveita depois da morte, se não têm fé. O mesmo Clemente, no entanto, afirma (16): Quem obtenha a Verdade e se distinga por suas boas obras ganhará o prêmio da vida eterna (…). Algumas pessoas entendem de forma aceitável como (Deus provê o poder necessário), mas ao dar-lhe pouca importância às obras que levam à salvação, não se preparam o suficiente para conseguir os objetos da sua esperança. Nesta última passagem, Clemente confirma que “depois de ter reconhecido a Verdade”, ou seja, depois de ter afirmado a Verdade em Cristo, aquele que crê deve fazer boas obras para obter a vida eterna.

Dessas citações deduz-se, portanto, que os primeiros cristãos davam prioridade à fé em Cristo para alcançar a salvação. Para eles, não havia nenhuma diatribe entre fé e obras, justamente porque se a fé é verdadeira, deve necessariamente incluir boas obras. De tudo isso, portanto, chegamos à conclusão de que o mundo grecorromano e a cultura dos primeiros cristãos, derivada obviamente de sua fé em Cristo, eram dois planetas opostos que irremediavelmente tinham que enfrentar-se. Um dos dois englobaria o outro. E assim foi de fato: o mundo antigo grecorromano desapareceu e foi transformado na civilização cristã, mesmo que, no período do híbrido constantiniano, tenha sido parcialmente diluída e corrompida. YURI LEVERATTO Copyright 2015 Bibliografia: Bercot, David: Que falem os primeiros cristãos. Notas: 1-Há, além disso, outros testemunhos que descrevem o martírio de Paulo, quando estava baixo domínio do imperador Nero, como a Carta aos Romanos de Dionísio, bispo de Corinto. Eis aqui seu testemunho: “Portanto, você, mediante sua urgente exortação, tem estabelecido muito estreitamente a semeadura de Pedro e Paulo em Roma e em Corinto, pois ambos plantaram a semente do Evangelho também em Corinto e juntos instruíram-nos, tal como em forma similar ensinaram no mesmo lugar da Itália e sofreram o martírio ao mesmo tempo.” Ou como o testemunho de Gaio, que viveu em Roma nos tempos do bispo Ceferino. Ele, em um escrito contra Proclo, chefe da seita do montanismo, diz a propósito dos lugares onde foram postos os sagrados despojos dos apóstolos: “Mas eu posso mostrar os troféus dos Apóstolos. Se pensam por bem ir ao Vaticano ou ao caminho de Óstia, acharão os troféus daqueles que fundaram esta Igreja". Estes dois testemunhos foram extraídos da História Eclesiástica de Eusébio. (2) Cipriano, Lettera alla congregazione della Spagna (epístola 67, cap. 4, 5) (3) Ignazio, Lettera ai Magnesi, cap. 5 (4) Erma, Il pastore di Erma, tomo 1, vis.3, cap.6 (5) Erma, Il pastore di Erma, tomo 3, sim.4 (6) Giustino, prima apologia, cap.14 (7) Clemente di Alessandria, Miscellanea, tomo 7, cap. 12

(8) Tertulliano, Apologia, cap.9 (9) Lattanzio, Istituzioni divine, tomo 5, cap.15/16 (10) Giustino, Dialogo con Trifone, capitolo 44 (11) Prima Lettera di Clemente, cap. 32, 4 (12) Prima Lettera di Clemente, cap. 33, 1 (13) Policarpo, Lettera ai Filippesi, cap. 1 (14) Policarpo, Lettera ai Filippesi, cap. 2 (15) Clemente, Miscellanea, tomo 1, cap. 7 (16) Clemente, uomo ricco, cap. 1, 2

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