O cristo oculto de Giotto di Bondone: uma análise acerca da influência apócrifa nos afrescos da capela de Scrovegni

October 7, 2017 | Autor: Terezinha Oliveira | Categoria: Iconography, Apocrypha/Pseudepigrapha, Iconografia, Apócrifos, Giotto di Bondone
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O CRISTO OCULTO DE GIOTTO DI BONDONE: UMA ANÁLISE ACERCA DA INFLUÊNCIA APÓCRIFA NOS AFRESCOS DA CAPELA DE SCROVEGNI Meire Aparecida Lóde Nunes 1 Terezinha Oliveira 2 O cristianismo primitivo nos deixou um vasto legado de documentos que, durante muito tempo, foram marginalizados perante a autoridade dos textos oficiais. Vermes (1996) explica a crença de que Deus havia ditado a mensagem registrada nos evangélicos, por isso eram entendidos como de inspiração divina. Essa ideia pode ser relacionada a designação desses documentos como ‘canônicos’, que significa norma, medida ou critério para julgar. A partir do século XVIII, a autoridade do cânon cristão começa a ser questionada. Entre os argumentos de contestação estão as controvérsias dos evangelistas sobre a vida de Jesus. Essa questão motivou o retorno à literatura que deveria ser evitada pelos cristãos, os apócrifos. O termo grego apókryphos significa oculto ou secreto. A Igreja adotou essa nomenclatura para denominar os textos que não coadunavam com os critérios que classificavam os canônicos. Miller (2004) explica que essa classificação era definida por meio de quatro critérios: o autor, o conteúdo, a aceitação universal entre as igrejas cristãs e a comprovação da inspiração divina. A submissão dos textos ao crivo dos critérios estabeleceu uma quantidade de literatura apócrifa superior a canônica. Os apócrifos expressam a busca por respostas aos temas sobre os mistérios da vida de Cristo e a diversidade de informações que os compõe representam o modo de viver e pensar da sociedade que os produziu. É nesse sentido que propomos a leitura dos afrescos pintados por Giotto di Bondone (1267-1337) na Capela de Scrovegni, na Itália. O pintor ilustra a capela com cenas da vida de Maria e Jesus. As representações sobre a vida de Maria trazem seus pais, S. Joaquim e Sta. Ana. Todavia, os evangelhos canônicos não os mencionam, eles são conhecidos por meio de fontes apócrifas, o que nos possibilita afirmar que o artista conhecia a literatura não canônica. Assim, será que Giotto, conhecedor dos apócrifos, ao pintar as cenas da vida de Cristo, a qual é narrada nos evangelhos canônicos, expressa inspiração apócrifa? Com o intuito de investigar essa questão nos propomos a analisar os afrescos Ressurreição e Ascensão estabelecendo diálogos com os evangelhos canônicos e apócrifos, em particular os evangelhos de S. Pedro e S. Bartolomeu, os quais se dedicam a esse tema. A leitura será desenvolvida sob o olhar da História Social, a qual nos permite

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Doutoranda pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Docente da Universidade Estadual do Paraná (UNESPAR). E-mail [email protected] 2 Pós-Doutorado em História e Filosofia da Educação, na Faculdade de Educação da USP. Docente do programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Estadual de Maringá (UEM). E-mail: [email protected]

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entender que as imagens, assim como os textos clássicos, estão repletas de questões universais que expressam os conflitos humanos. Ressureição e ascensão de Cristo por Giotto nos evangelhos canônicos e apócrifos. A oração ‘Credo’ sintetiza a profissão de fé cristã. Para Trevisan (2012), sua primeira formulação é atribuída a comunidade cristã romana do século II d. C. e “No final desse mesmo século, o Credo de Roma começou a ampliar-se, constituindo a base do que hoje denominamos ‘Credo Apostólico’” (TREVISAN, 2012, p. 14). Seu conteúdo expressa em 12 artigos as questões centrais da doutrina e expõe a existência terrena de Cristo, do nascimento a ascensão. Nossa atenção nesse texto remonta à dois de seus artigos: 5º desceu à mansão dos mortos; ressuscitou ao terceiro dia; 6º subiu aos Céus; está sentado à direita de Deus Pai Todo-Poderoso. Observamos que a descida de Cristo ao inferno não é tratada nos evangelhos canônicos, mas é contemplada no Evangelho de Bartolomeu. De acordo com o apócrifo, Cristo desce ao inferno para libertar as almas que lá se encontravam: “Quando desapareci da cruz, desci aos Infernos para dali tirar Adão e a todos que com ele se encontravam [...]” (EVANGELHO DE BARTOLOMEU). Giotto, assim como os evangelhos canônicos, não traz na sequencia de afrescos da capela de Scrovregni, esse fato retratando apenas a crucificação, morte, ressurreição e ascensão. A segunda parte do mesmo artigo, a ressurreição, é mencionada nos evangelhos canônicos, mas não se dedicam ao momento especifico. A maioria das informações que possibilitam a reconstrução desse momento pode ser encontrada nos apócrifos, como o de Pedro. Esse texto nos conta que os escribas, fariseus e anciãos pediram a Pilatos que enviasse soldados para guardar o túmulo de Cristo por três dias para que ninguém roubasse o corpo e propagasse a ideia da ressurreição. O pedido foi concedido e na noite para amanhecer domingo, os soldados: [...] viram abrir-se os céus e descer de lá dois homens, com grande esplendor, e aproximar-se do túmulo. A pedra que fora colocada em frente à porta rolou donde estava e se pôs de lado. Abriu-se o sepulcro e nele entraram os dois jovens. À vista disto, os soldados foram acordar o centurião e os anciãos, pois também estes estavam de guarda. (EVANGELHO SEGUNDO PEDRO, 36-45).

Para dialogarmos com as informações do evangelho de Pedro e a pintura de Giotto, recortamos duas cenas do afresco. O primeiro recorte é composto por cinco homens que identificamos como os sodados enviados por Pilatos. Assim como no texto de Pedro, Mateus (28: 2-4) relata o acampamento dos soldados frente ao tumulo de Jesus e descreve: E eis que sobreveio um grande terremoto, pois um anjo do Senhor desceu dos céus e, chegando ao sepulcro, rolou a pedra da entrada e assentou-se

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sobre ela. Sua aparência era como um relâmpago, e suas vestes eram brancas como a neve. Os guardas tremeram de medo e ficaram como mortos.

Figura 1: Ressurreição Fonte: http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Giotto_-_Scrovegni_-_-37-__Resurrection_(Noli_me_tangere).jpg

Comparando a pintura de Giotto com as narrativas de Mateus e Pedro podemos supor que os homens que compõem a cena estão mais próximos do relato de Pedro do que os de Mateus. A posição das mãos do homem que está sentado próximo a borda direita do afresco expressa um gesto tradicional que representa uma pessoa dormindo. Portanto, não nos parece que Giotto pinta a narrativa de Mateus em que os soldados ficaram como mortos. O segundo recorte é constituído pelos anjos. Ao lermos a passagem anterior de Mateus, percebemos que o evangelista se remete apenas a um anjo. Lucas (24:4) descreve a cena contando que as mulheres, ao visitar a tumulo de Cristo, encontraram “[...] dois homens com roupas que brilhavam como a luz do sol [...]”. Assim, como Lucas, Pedro conta que ressurreição ocorreu com a presença de dois homens. Nesse sentido, não podemos identificar qual a fonte que inspirou Giotto, pois a cena composta por dois anjos pode ser proveniente de Lucas e Pedro. O artigo 6º do Credo se remete a ascensão de Cristo. Piñero (2002, p. 143) analisando os apócrifos, explica que: “Passado doze anos, chegou o momento de Jesus partir definitivamente deste mundo para o outro”. O autor descreve que durante esses anos, Jesus ficou instruindo seus discípulos e chegado o décimo segundo ano:

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[...] desabou uma forte tempestade. Raios e trovoes apareciam por todos os lados, o lugar se iluminava intermitentemente com o brilho prateado dos relâmpagos e novamente o chão começou a tremer, abrindo uma vez mais numa enorme rachadura. Uma nuvem suave desceu junto com uma imensa luz que rodeou Jesus e o levou embora, desaparecendo rapidamente dos olhos de seus discípulos. Eles puderam ver uma cruz luminosa seguindo o mestre, elevando-se atrás dele até os céus. Soaram então as vozes de muitos anjos que se regozijavam louvando o Inefável. (PIÑERO, 2002, 143-144)

A descrição de Piñero foi retirado do texto apócrifo Epistula Apostolorum e alguns elementos são próximos da narrativa da ascensão presente no cânon bíblico que se encontra em Atos dos Apóstolos. Tendo dito estas coisas, foi Jesus elevado à vista deles, e uma nuvem o recebeu e ocultou aos seus olhos. Estando eles com os olhos fitos no céu, enquanto ele subia, eis que dois varões com vestiduras brancas se puseram ao lado deles (ATOS DOS APÓSTOLOS, 9-10)

Figura 2: Ascensão de Cristo Fonte: http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Giotto_-_Scrovegni_-_-38-_-_Ascension.jpg

Quando lemos as duas descrições podemos entender que o conteúdo, de forma geral, é muito próximo. Giotto parece transcrever por meio da pintura as narrativas. O pintor coloca na parte inferior da imagem os discípulos, seis do lado direito e cinco do esquerdo. Junto com

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os cinco discípulos Giotto insere uma figura feminina, que mesmo não sendo mencionada em nenhuma das narrativas podemos identificar como Maria, mãe de Jesus, que após a morte de seu filho passou a viver com os apóstolos. No centro e logo acima dos apóstolos estão colocados os dois anjos descritos em Atos dos Apóstolos. Ocupando a posição central vemos Cristo sendo elevado ao céu por uma novem, a qual é mencionada nas duas descrições. Nas laterais de Cristo, Giotto pinta os anjos que, conforme o apócrifo, louvavam o Inefável. Considerações Finais Por meio da literatura canônica e apócrifa, fica-nos evidente que as informações sobre a ressurreição e ascensão de Cristo possuem vários pontos de convergência e de divergências. Giotto constrói representações dos temas de forma que não nos possibilita afirmar sua fidelidade a nenhuma das fontes. Um rápido olhar nos levaria a afirmar uma aproximação maior das fontes canônicas, todavia, alguns detalhes nos indicam a influência dos textos apócrifos. Inferimos, assim, que o pintor era conhecedor do conteúdo presente em ambas literaturas e suas pinturas expressam o intercambio dessas informações, não nos possibilitando identificar a supremacia de uma fonte sobre a outra. Referências BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulinas, 1981. EVANGELHOS APÓCRIFOS (BARTOLOMEU; PEDRO). Disponível em: http://www.autoresespiritasclassicos.com/Evangelhos%20Apocrifos/Apocrifos/Evangelhos% 20Apocrifos.htm MILLER, J. W. As origens da Bíblia: repensando a história canônica. São Paulo: Loyola, 2004. PIÑERO, A. O Outro Jesus. São Paulo: Paulus, 2002. TEREVISAN, A. O Credo. Petrópolis: Vozes, 2012. VERMES, G. Jesus e o Mundo do Judaísmo. São Paulo: Loyola, 1996.

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