O CROQUI: ALGUMAS INTERPRETAÇÕES POSSÍVEIS

June 6, 2017 | Autor: M. Bonadio | Categoria: Brazilian Studies, Graphic Design, Fashion History
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O CROQUI: ALGUMAS INTERPRETAÇÕES POSSÍVEIS MARIA CLAUDIA BONADIO

Resumo: Neste artigo analiso duas séries de croquis elaborados por Alceu Penna provavelmente entre 1936-1945, objetivando compreender como o croqui, pode ser considerado registro que permite apreender, ou pelo menos interpretar “os modos de ver” de seu produtor. Busco ainda mostrar algumas possibilidades interpretativas para a produção do ilustrador e indicar possíveis caminhos metodológicos para a utilização do croqui, como indício para a produção acadêmica sobre o processo de criação em moda e figurino.

Palavras-chave: Alceu Penna, croqui, análise da imagem.

O croqui1: possibilidades interpretativas. Neste artigo, analiso duas séries2 de croquis, provavelmente produzidos por Alceu Penna no período 1936-1945.

* Agradeço à Gabriela Ordones Penna e Bruna Martins Pinto (bolsista de iniciação científica PIBICCNPq/Senac) pela colaboração no trabalho de pesquisa, aos funcionários do DEDOC do jornal Estado de Minas e a Thereza de Paula Penna (in memorian) Aníbal Penna pela cessão do uso das imagens. 1 Utilizo aqui a palavra croqui no sentido que lhe é atribuído pela indústria da moda, ou seja, “representação gráfica representação da idéia do designer a partir do ato de desenhar” e espaço para estudo da combinação de cores e uso de materiais que permite simular coordenações e combinações. (GRAGNATO, 2008, p.60.) Opto por essa definição uma vez que nos principais dicionários da língua portuguesa e francesa (língua da qual a palavra se origina) as definições mais comum para a palavra, esboço, desenho rápido ou esquema, não podem ser aplicadas ao material arquivado por Alceu Penna. 2 Como não são conhecidos trabalhos acadêmicos que discutem o estudo dos croquis, irei transpor para esse tipo de produção imagética a definição cunhada por Ana Maria Mauad para as séries fotográficas. Portanto, por série entende-se um grande número de imagens “capazes de dar conta de um universo significativo de imagens e homogêneas, pois numa mesma série há de se observar um critério de seleção, evitando-se misturar diferentes tipos de fotografia”. Cf: (MAUAD, 2005, p. 144) Sobre a importância de trabalhar a partir de séries de imagens ver também, por exemplo: BURKE, Peter. Testemunha ocular: História e Imagem. Bauru: EDUSC, 2004.

O primeiro grupo, denominado por mim “Fantasias para Carnaval” reúne imagens supostamente elaboradas como fantasias para carnaval e muitas das quais inspiradas em temas tradicionais do carnaval veneziano. Não é possível saber se as imagens foram produzidas com a intenção de formar uma série, mas a recorrência de temas e semelhanças formais3 permitem agregá-las dessa maneira. Além disso, algumas ilustrações idênticas ou semelhantes aos croquis foram publicadas na revista O Cruzeiro, como sugestão de fantasia para o carnaval entre 1941-1944. Já o segundo grupo de imagens, compõe a série “Mulheres Célebres”, assim denominadas por Alceu Penna, que grafou esse nome no alto das folhas de papel que receberam as ilustrações, agrega croquis (muitos com data de 1938) de fantasias (ou figurinos), inspirados entre outros, em personagens bíblicos, literários e históricos. Não é possível determinar com precisão a finalidade para a qual foram elaborados esses croquis, segundo Thereza Penna, irmã do ilustrador e arquivista intuitiva de seu trabalho, tais ilustrações eram croquis criados por Alceu Penna para figurinos usados em shows que aconteciam nos cassinos cariocas. Entretanto, como até agora não foram encontrados outros indícios que confirmem a informação, por hora, é mais prudente não tecer afirmações.4 A falta de informações precisas acerca da finalidade dessas produções, não impede a elaboração de questões sobre as produções de Alceu Penna, uma vez que o objetivo dessa reflexão é menos determinar sua finalidade e mais interpretar o processo criativo do ilustrador, seus métodos, inspirações e aspirações. A maior parte dos croquis analisados nesse artigo (especialmente àqueles pertencentes à série “Fantasias para Carnaval”), não foram datados pelo ilustrador, porém é possível estabelecer uma datação aproximada das imagens a partir da comparação dos croquis com desenhos publicados como sugestão de fantasia para Carnaval na revista O Cruzeiro, e a partir da observação do traço de Alceu Penna – mais geométrico no início da carreira – caracterizado por corpos que parecem ter sido traçados a partir do uso de régua e cujos rostos dos “modelos” possuem traços mais retos e econômicos. A observação da representação dos penteados e a influência das linhas da moda nos figurinos também colaboraram na identificação das imagens. No que se refere às técnicas, em ambas as séries notamos que

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Que podem ser observadas por exemplo, na comparação entre alguns croquis e as fantasias veiculadas nas seções publicadas em 04/02/1939, 18/02/1939, 15/02/1937, 17/01/1942, 20/02/1943 e 12/02/1944. 4 Até o presente foram realizadas pesquisas no acervo Thereza, nas fantasias de carnaval e parcialmente nos vestidos criados para a revista A Cigarra e O Cruzeiro. Não foram encontrados vestidos semelhantes a esses, o que colaboraria por reforçar a hipótese de Thereza. Numa próxima etapa da pesquisa, pretende-se buscar fotografias publicadas em revistas de show de Cassino.

aparentemente, os desenhos são traçados com lápis e posteriormente coloridos com lápis de cor, ou aquarela – dependendo do efeito pretendido pelo ilustrador.

A aparente dificuldade pela ausência de datação na maior parte dos croquis convertese, portanto em importante ferramenta para estudo e caracterização da produção de Alceu Penna, uma vez que partindo do pressuposto que tal como a fotografia (e outras produções imagéticas), o croqui pode ser considerado o resultado de “um processo de construção de sentidos”, cujo estudo de sua produção nos revela “uma pista para se chegar ao que não está aparente ao primeiro olhar, mas que concede sentido social à foto” (MAUAD, 2005, p. 144). Portanto, é preciso notar técnicas utilizadas, repetições, semelhanças e diferenças para: formar a série, compreender seu estilo e determinar possíveis fases em sua produção. O objetivo principal da análise das séries selecionadas é destacar como o croqui, pode ser considerado registro que permite apreender, ou pelo menos interpretar “os modos de ver” de seu produtor. (BERGER, 1972) Os desenhos que formam as séries que serão estudadas, apesar de preservados por Thereza Penna após a morte do ilustrador, registram os primeiros anos da carreira de sua carreira, e foram produzidos anteriormente à mudança de sua irmã para o Rio de Janeiro durante os anos 19505 (período em que começa a arquivar toda a produção do ilustrador), portanto, provavelmente selecionados e arquivados por ele, dentre muitos outros6, e guardados como relíquias até o final de sua vida. É possível concluir, portanto, que os trabalhos em questão, compõem uma espécie de arquivo pessoal de Alceu Penna, ou uma espécie de “autobiografia material”(CALIGARIS, 1988), conceito que definiria os conjuntos de objetos (fotografias, documentos, etc) acumulados por um indivíduo, reunidos ou não com o intuito de constituir um arquivo. Levando em conta que a produção dessa autobiografia, ou memória material, pressupõe uma seleção, uma vez que: “não arquivamos nossas vidas, não pomos nossas vidas em conserva de qualquer maneira; não guardamos todas as maçãs da nossa cesta pessoal; fazemos um acordo com a realidade, manipulamos a existência: omitimos, rasuramos, riscamos, sublinhamos, colocamos em exergo certas passagens.” (ARTIÈRES, 1998, p. 3)

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Segundo informações de Aníbal Penna, sobrinho de Alceu, Thereza e fulana – mãe de Alceu – teriam saído de Curvelo e mudado para o Rio de Janeiro em 1948. Após esse período, Thereza passa a aturar como arquivista intuitiva, armazenando croquis, rascunhos, desenhos publicados na imprensa (os quais destacava das revistas e formava álbuns), reportagens sobre seu irmão, peças de roupas confeccionadas a partir de desenhos elaborados por Alceu, entre outros. 6 Nas pesquisas realizadas no acervo de Thereza Penna não foram encontrados rascunhos por exemplo.

Portanto, o conjunto de documentos acumulados, ou selecionados por um individuo durante a vida, tais como os croquis arquivados por Alceu Penna, e determinariam o sentido que cada um deseja dar à sua própria vida (ARTIÈRES, op. cit.) Diante do pressuposto, cabe então, perguntar: qual imagem de si, para si e para os outros, o ilustrador pretendia preservar através da acumulação desse material ou desse “ato autobiográfico”? (CALIGARIS, op. cit.)

3. Série Fantasias para Carnaval Segundo a biografia “Alceu Penna e as Garotas do Brasil”, ainda menino, Alceu Penna, mostrou talento para o desenho e um de seus passatempos prediletos era desenhar nas calçadas em frente à sua casa com pedaços de giz que ganhava de um vizinho alfaiate. É também através dos ensinamentos de outro vizinho (dentista que dedicava as horas vagas à pintura) que adquire os primeiros ensinamentos sobre pintura e é durante uma dessas aulas de final de semana que o vizinho nota o daltonismo do aluno, pois o aprendiz insistia em dizer que frutas coloridas por ele com verde, eram cor de pêssego. 7 Apesar da dificuldade em reconhecer as cores, Alceu Penna se torna grande apreciador das artes plásticas e, aos 17 anos ao mudar-se para o Rio de Janeiro a fim de cursar faculdade. Atendendo às aspirações de seu pai – que havia falecido há pouco tempo - matricula-se em Arquitetura, entretanto, passa mais tempo cursando as matérias de Artes Plásticas do que do curso no qual estava matriculado. Em 1937 abandona a faculdade sem concluir o curso de Arquitetura, e apesar de não ter um diploma, em pouco tempo os ensinamentos adquiridos nas aulas cursadas passarão a refletir em sua produção. É provável também que Alceu também estudasse por conta própria através da leitura de livros e visitas há museus nas viagens que realizava8. No decorrer de sua carreira tornou-se também colecionador de arte e até hoje, alguns quadros que pertenciam à sua coleção aparecem em leilões.9 7

Seu daltonismo, entretanto não atrapalhou o desenvolvimento de seu trabalho e é possível afirmar que Alceu Penna driblava essa limitação a partir da leitura de livros como The art of using colors de John L. King (illustrated edition company. NY, sd.), encontrado em sua biblioteca particular (preservada por Theresa Penna após a morte do ilustrador em 1980) durante pesquisa realizada em janeiro de 2007. 8 Realizou inúmeras viagens ao longo de sua vida. 9 Em pesquisa recente foram localizados dados de pelo menos duas obras que pertenciam ao seu acervo: Menino Jesus na Manjedoura, de Candido Portinari, nanquim em papel, 13x13, com data de 1959; e Moreninha de Paquetá, de Emiliano Di Cavalcanti, aquarela e nanquim sobre papel, 27x12, c. 1928. Em janeiro de 2009, as obras constavam respectivamente dos catálogos de obras vendidas das seguintes casas de Leilão: Evandro

O gosto pelas artes plásticas o levou a pintar alguns quadros no início da carreira – que hoje se encontram em posse da família. A observação dessas peças permite afirmar que ao menos poucas telas que restaram, não é possível notar a aproximação com algum estilo em especial e que seu traço para a pintura não era dos melhores. Entretanto, se o gosto pelas artes plásticas não rendeu quadros primorosos, já em suas criações gráficas, ou seja, nos desenhos de fantasias (ou figurinos) aqui analisados, o diálogo

Fig. 1: Alceu Penna, sem título, sem data.

com as artes plásticas resulta em alguns de seus trabalhos mais originais e esteticamente admiráveis, como por exemplo em alguns croquis que aparecem na série Fantasias para Carnaval, cuja observação permite aventar influências da arte moderna, especialmente do concretismo e surrealismo. O diálogo com a arte concreta ocorre através da elaboração de figurinos que substituem as “formas-natureza” das roupas por derivações de formas geométricas, como por exemplo, as utilizações e derivações das formas triangulares (losangos) tradicionalmente associados ao traje do Arlequim. Nos figurinos propostos por Alceu Penna, as formas geométricas são a base para a composição geral de algumas indumentárias, e são estilizados em chapéus, saias e outros complementos das fantasias. Em uma fantasia inspirada no Arlequim, por exemplo, dois triângulos pretos e sobrepostos formam respectivamente uma espécie de capa e a saia que cobrem um maiô de gola alta estampado com losangos coloridos. Completa o figurino um chapéu formado por um triângulo invertido. (Fig.1) A elaboração de figurinos a partir de formas geométricas apareceria em diversos desenhos da mesma série, dentre os quais, uma pastorinha que provavelmente serviu de base para a elaboração do figurino usado por Carmen Miranda na cena de abertura do filme The Gang’s all here (Entre a loira e a morena, 1943) - A película não dá crédito ao ilustrador, mas

Carneiro Leilões e Soraya Cals Leilões. Cf: http://www.evandrocarneiroleiloes.com/107326?offset=168&max=21&catalogueId=87990 (acessado em 05/01/2009) e http://www.soraiacals.com.br/87939?offset=189&max=21&catalogueId=87987 (acessado em 05/01/2009)

a hipótese ganha força quando levamos em conta a proximidade e a colaboração prévia entre Carmen e Alceu, e a semelhança entre o croqui e o figurino10. (Fig. 1 e2) No croqui, mais uma vez a elaboração da fantasia é construída a partir de formas geométricas. Na parte superior, o triângulo dá forma à blusa, enquanto a parte inferior é formada por um ousado short em forma de losango, enfeitado com pompons organizados de modo a formar um triangulo nas laterais. No corpo representado, as formas geométricas formam recortes em losangos na

Fig. 2: Alceu Penna, sem título, sem data.

região do abdômen. Na cabeça um chapéu triangular na forma de um amplo bicorne. As formas e também os adornos de pompons usados no croqui, se assemelham bastante ao figurino usado pela cantora. Trata-se de um conjunto de saia e blusa em roxo batata (blusa) e vermelho (saia), com cauda da mesma cor da blusa, enfeitado com pompons coloridos. A utilização de pompons como enfeite, em disposições semelhantes, é recurso freqüentemente encontrado em croquis para fantasias de carnaval elaboradas pelo ilustrador no período – inclusive entre aquelas publicadas nas páginas da revista O Cruzeiro11.

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Fig. 3: Carmen Miranda e coristas na cena do filme Entre a loura e morena (The Gang’s all here, cor, 20th Century Fox, Dir. Busby Berkeley, 1943

Carmen e Alceu se conheceram por volta de 1935, no Cassino da Urca, mas se aproximaram de fato, em 1939, quando ele realizava a cobertura das apresentações da cantora na Feira de Nova York. Segundo Gonçalo Júnior, é nesse período que o ilustrador passa a criar alguns figurinos para a cantora e o Bando da Lua, sendo o responsável pela elaboração do costume de inspiração “cubana”, composto por calça de smoking, sapatos e camisas listradas, usado pelo grupo em algumas apresentações no exterior. Cf: JÚNIOR, Gonçalo. Alceu Penna e as Garotas do Brasil. São Paulo: Cluq, 2004. p.68. Não é possível determinar com precisão quantos e quais figurinos usados pela cantora em seus filmes foram criados por Alceu Penna. Sua colaboração ocorria de maneira informal e nos filmes da cantora, não há créditos para o ilustrador. Destacamos também, que o tema, apesar de apontado por Ruy Castro e Gonçalo Júnior, ainda não mereceu uma investigação mais detalhada. Ver: CASTRO, Rui. Carmen: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. p. 274. E JÚNIOR, Gonçalo. Op, cit, 2004, p. 66-68. 11 Analisando os croquis de fantasia de Carnaval criados por Alceu Penna e publicados na revista O Cruzeiro, é possível observar o uso desse recurso já no final dos anos 1930, como por exemplo, na fantasia Pierrete, veiculada na edição de 08 de fevereiro de 1936, p. 36 e em Bolha de sabão, veiculada em 30 de janeiro de 1937, p. 38.

As aproximações com a arte moderna e notadamente com os surrealistas, também estão presentes na série, em especial nos acessórios e adornos das fantasias para as quais empresta cores e formas usadas nas telas de Juan Miró. Esse uso é observado especialmente no figurino sem título, [vestido preto com decote coração e mangas compridas, sob a qual são costuradas bolinhas coloridas]. Mas é no arranjo para o cabelo em forma de meia lua cravada de esferas coloridas que a visualidade das pinturas do artista catalão é mais evidente (e também da moda de inspiração surrealista criada por Elsa Schiaparelli e que resultavam, em chapéus de formas tão improváveis como aquelas traçadas por Alceu nessa fantasia). Outra característica relevante desse são as bolinhas costuradas à cintura, decote e braço do vestido, bastante semelhantes àquelas utilizadas no figurino usado por Carmen em Entre a loura e morena (The Gang’s all here, cor, 20th Century Fox, Dir. Busby Berkeley, 1943). A presença recorrente desse elemento nos figurinos criados pelo artista gráfico reforça a hipótese de sua possível atuação como figurinista informal da cantora.

Fig.4: Alceu Penna, Sem título, sem data.

Possíveis inspirações trabalhos de Elsa Schiaparelli aparecem diversas vezes nos chapéus em formas inusitadas que compõem os figurinos, como por exemplo, naquele com golas, mangas e fendas em forma de chave, cinto com “buraco de fechadura” e chave como chapéu, denominado La Clef (O Cruzeiro, 08 de fevereiro de 1936, p. 36) e de maneira mais evidente no vestido denominado Pesca Miraculosa (Grandes Bailes, O Cruzeiro 12 de fevereiro de 1938, p. 49) que aparece em primeiro plano: um vestido branco estampado com estrelas do mar, caranguejos e uma lagosta e que sem dúvida é uma releitura do irreverente e polêmico vestido Lagosta criado em 1937 pela costureira

Fig. 5: Alceu Penna, Grandes Bailes, O Cruzeiro 12 de fevereiro de 1938, p. 49.

italiana Elsa Schiaparelli e inspirado no “telefone lagosta” elaborado por Salvador Dali em 1936. O vestido, cuja estampa inusitada – uma metáfora da psicanálise para o órgão genital feminino (BLUM, 2003) – provavelmente despertou a

atenção de Alceu, e se sua estampa demasiadamente ousada demais para a época, não ganharia espaço na seção de moda, caberia perfeitamente como sugestão de fantasia para os elegantes bailes carnavalescos da sociedade carioca. Em outras fantasias carnavalescas criadas pelo ilustrador no mesmo período nota-se a incorporação de forma original em modas em voga, como por exemplo, os ombros em folhos que marcaram a moda dos anos 1930 e início dos 1940, a partir de sua utilização no vestido branco criado por Adrian (figurinista da MGM) para a personagem de Joan Crawaford em Letty Lynton (Redimida, 1932). Na série “Fantasias para Carnaval” as mangas “Letty Linton” são referencia constante em diversas indumentárias, nas quais aparecem, por exemplo, estilizadas e referenciadas por fitas em tons de rosa, amarelo e laranja que dão volume aos ombros e emprestam colorido para um vestido preto de mangas compridas e decote na diagonal que compõem um dos figurinos que compõem a série. Fitas e laços das mesmas cores são usadas também na faixa que ornamenta a cintura e no turbante sob o chapéu do mesmo figurino sem título12. 4. Série mulheres célebres

As influências da moda e do cinema também podem ser notadas na série Mulheres Célebres, através da proposição de diversos figurinos compostos por longos vestidos brancos, muito próximos àqueles cortados em viés e elaborados durante a década de 1930 por Madeleine Vionnet e Coco Chanel. O vestido branco, por sua capacidade de refletir a luz e destacar-se nos filmes preto e branco (SEELING, 2000), logo se torna signo máximo de sexappeal nos filmes hollyodianos. Tais vestidos aparecem em três fantasias da série, denominadas respectivamente: Eva, Pocahontas, e Hipólita (rainha das amazonas). Mas enquanto as peças que envolviam os corpos das atrizes hollywoodianas deixavam apenas braços e costas à mostra, as criações de Alceu Penna eram mais ousadas e em sua maioria desnudavam quase completamente as costas e revelavam total ou parcialmente pernas e abdômen – o que reforça a hipótese de terem sido criadas para servir de figurinos em apresentações, provavelmente de Teatro de Revistas13 nos Cassinos do Rio de Janeiro. 12

O mesmo recurso é empregado num croqui denominado Bahiana e que integra série de mesmo nome – essa série apesar de identificada por mim e Gabriela Ordones Penna, não será analisada nesse artigo. 13 “Gênero de teatro musicado surgido no Rio de Janeiro na segunda metade do século XIX e que inicialmente tinha como característica passar em revista os principais acontecimentos do ano, pondo em cena os fatos revividos com humor e com o recurso da dança e da música”. Entretanto, a partir da década de 1920, “com a vinda da companhia francesa Ba-ta-clan traz novas influências para o gênero: desnuda o corpo feminino, despindo-o das grossas meias. O corpo feminino passa então a ser mais valorizado em danças, quadros musicais e de fantasia, não apenas como elemento coreográfico, mas também cenográfico”. Cf: Teatro de revista in: Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira.

A exploração da sensualidade e do glamour era outra característica muito explorada nos figurinos criados por Alceu – mesmo nos poucos casos em que as mulheres aparecem “excessivamente vestidas”. A observação dos croquis permite afirmar que para atingir esse objetivo, nem sempre foi possível ser totalmente fiel ao período histórico representado, como se observa nas ilustrações que propõem fantasias inspiradas na rainha da escócia Mary Stuart e na Marquesa de Santos representadas com cabelos empoados à moda do Antigo Regime. Como as personagens históricas viveram ao longo do século XVI e XIX, os cabelos

Fig. 6: Alceu Penna, Carmen, sd.

esbranquiçados e a armação exagerada da saia da Marquesa parecem deslocados. O anacronismo provavelmente é um recurso utilizado pelo artista para agregar luxo e erotismo às fantasias que evocam duas mulheres freqüentemente associadas ao poder e a sedução e que são representadas em seus retratos com roupas e penteados adequados aos tempos em que viveram, mas que em razão de sua discrição passariam despercebidos nos salões carnavalescos. Não se trata, portanto de reproduzir fielmente a indumentária

Fig. 7: Giacomo Balla, Dinamismo de um cão na coleira (1911): tela, 0,91 x 1m. Buffalo, coleção George Goodyear.

dessas mulheres, mas possivelmente, propor uma fantasia que dialogasse de forma bem-humorada com o imaginário popular a respeito das personagens. Nessa série a influência da estética proveniente das vanguardas artísticas aparece conectada à sensualidade em três vestidos inspirados em Carmen de Bizet. Em Carmen [vestido na cor vermelha] o preto e o vermelho – cores tradicionalmente associadas à indumentária flamenca – são utilizados num vestido que ganha atualidade através do decote que deixa costas e ombros nus – seguindo a linha da moda dos anos 30. Nesse figurino os babados usados nas barras das saias utilizadas pelas dançarinas de flamenco são transformados em linhas sinuosas que se aproximam do estilo art-nouveau, as quais por sua vez, contrastam com o volumoso forro preto (representado por Alceu em pinceladas rápidas que imprimem à imagem uma impressão de movimento, produzindo efeito semelhante aos http://www.dicionariompb.com.br/verbete.asp?nome=Teatro+de+Revista&tabela=T_FORM_C Teatro de Revista in: Enciclopédia Itaú Cultural de Teatro. (acessado em 28/04/2009); e http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_teatro/index.cfm?fuseaction=conceitos_biografia&cd_ verbete=614 (acessado em 28/04/2009)

trabalhos do futurista Giacomo Balla, como Dinamismo de um cão na coleira, 1911). O figurino é completado com um arranjo nos cabelos composto por renda preta e flores vermelhas, cujo tamanho exagerado colabora para conferir equilíbrio à imagem. Os acessórios também são importantes na composição do visual de Carmen [vestido na cor preta], pois os brincos brancos repetem as formas das castanholas e ambos dialogam com a saia do vestido construído por uma seqüência de círculos pretos representados em escala – revelando novamente a importância da geometria em seu trabalho – que conferem leveza e movimento ao desenho que parece dançar sob o papel. Completa a série o croqui também denominado Carmem [vestido branco com bolinhas coloridas], no qual a dançarina é representada portando um vestido longo prateado de ombros estruturados e estampado com esferas coloridas. Essa ilustração, sem dúvida alguma pode ser considerada uma das mais belas

Fig.8: Alceu Penna, Carmen, sem data.

criações do artista, que consegue através do contraste entre o claro (prata) e escuro (preto do forro do vestido) simular através da representação gráfica os movimentos da cauda que seriam conferidos pela movimentação da bailarina. Também na cauda do vestido, nota-se mais uma vez a provável absorção de preceitos do futurismo – na simulação do movimento – e especialmente nas formas abstratas que prendem a atenção do observador e lembram alguns trabalhos dos artistas surrealistas Juan Miró e Antonio Gaudí. Nessas criações forma, cores e tecidos são pensados e representados graficamente como acessórios de corpos dançantes – cujos movimentos imprimem novas formas e significações às roupas –, conectandose, portanto com as reflexões de Gilda de Mello e Souza sobre moda e arte. No entender da socióloga “para que a vestimenta exista como arte é necessário que entre ela e a pessoa humana se estabeleça aquele elo de identidade e concordância que é a essência da elegância. Recompondo-se a cada movimento, jogando

Fig. 9: Alceu Penna, Carmen, sem data.

com o imprevisto, dependendo do gesto, é a moda a mais viva, a mais humana das artes” (SOUZA, 1987, p. 41).

6. Considerações finais, ou possibilidades interpretativas “As imagens dão acesso não ao mundo social diretamente, mas sim a visões contemporâneas daquele mundo” (Peter Burke, Testemunha Ocular)

Segundo John Berger, “embora as imagens corporizem um modo de ver, a nossa percepção e a nossa apreciação de uma imagem dependem também do nosso próprio modo de ver.” (BERGER, 1972, p. 14) Portanto, mais do que considerações finais, creio que seja o momento de tecer alguns comentários sobre o que eu vejo quando olho (e comparo com outras fontes) os croquis (ou parte da autobiografia material de Alceu Penna) que integram as séries selecionadas.

a) A preocupação por parte de Alceu Penna em armazenar croquis que insinuam a aproximação formal de seu trabalho com as técnicas e linguagens expressivas da arte moderna da moda em voga – antes mesmo de ser responsável pela seção de moda na revista O Cruzeiro em 194114 – permitem aventar sua intenção em firmar-se não apenas como figurinista ou ilustrador, mas também como sujeito que dominava a estética das artes e da moda, tal como os costureiros parisienses15. A hipótese ganha força quando levamos em conta também sua atuação como colecionador de arte, prática, que segundo Diana Crane desde o final do século XIX era comum entre os criadores de moda e visava conquistar a aceitação em círculos sociais de elite, e, portanto, firmar-se como agentes privilegiados de produção do gosto.(CRANE, 2006)

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É possível afirmar que suas primeiras ilustrações de moda começam a aparecer na revista O Cruzeiro ainda no final dos anos 1930. 15 Ainda que não trabalhasse como costureiro, é possível afirmar que em diversos momentos de sua carreira, atua como criador de modas, pois a partir de meados dos anos 1940, passa a receber pedidos para a elaboração de modelos de vestidos de casamentos e bailes da alta sociedade, os quais, segundo sua irmã Thereza Penna, atendia prontamente. Também a partir de meados dos anos 1940, cria modelos originais de peças em tricô e crochê para a revista Tricô Crochê editada pela Santista S.A., a partir do final dos anos 1950, passa a desenhar modelos originais nas seções de moda veiculadas na revista O Cruzeiro e A Cigarra e nos entre 1960-1970 atua como estilista para a Rhodia – trabalho que continuaria a desenvolver para outras empresas até meados da década de 1970 quando sofre um derrame e deixa de trabalhar.

b) Refinar o estudo sobre o trabalho do ilustrador através da análise dos croquis permite também estabelecer novas conexões e clarear zonas nebulosas acerca de sua produção16, como por exemplo, as possíveis colaborações na elaboração dos figurinos utilizados por Carmen Miranda em suas atuações nos Estados Unidos e conseqüentemente, na elaboração de uma imagem de Brasil (e latinidade17), que apesar de estereotipada, transformou-se em representação dominante do país no exterior. . c) A elaboração de croquis cujas formas e colorido conferem movimentos e leveza aos desenhos, somada ao fato dos croquis analisados terem sido arquivados pelo próprio artista gráfico, provavelmente indica sua aspiração, de ser lembrado não apenas como figurinista intuitivo, mas como alguém que dominava as técnicas do figurino para dança.

Por fim, minha intenção ao final desse artigo é mostrar algumas possibilidades interpretativas para o trabalho do ilustrador, mas principalmente observar a possibilidade da utilização dos croquis e desenhos de moda como documentos para o estudo da visualidade de uma época, e também indicar possíveis caminhos metodológicos para a utilização desses artefatos como indícios para a investigação acerca dos processos de criação em moda.

Referências bibliográficas:

Livros, artigos e dissertação: ARTIÈRES, Philippe. Arquivar a própria vida. In: Estudos Históricos, no. 21, 1998, vol. 1. BERGER, John, et alli. Modos de ver. Lisboa: Edições 70, 1972.

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Na biografia “Alceu e As Garotas do Brasil”, Gonçalo Júnior cita (sem mencionar a fonte) trechos de uma entrevista de Alceu Penna na qual ele faria afirmações sobre suas colaborações com Carmen Miranda, porém não há nessa obra e também nos vários livros sobre Carmen Miranda, nenhuma informação mais precisa sobre quais figurinos da atriz teriam sido elaborador por Alceu Penna, daí a importância da comparação entre croquis, ilustrações veiculadas na imprensa e os figurinos de Hollywood. Ressalto ainda que na pesquisa realizada na revista O Cruzeiro, foram encontradas duas menções à colaboração entre Alceu e Carmen. A primeira é uma nota denominada Conchita, publicada em O Cruzeiro, em 28 de junho de 1941, s.p., na qual Accioly Neto, então diretor-chefe da revista e amigo de Alceu, sob o pseudônimo Marius Swenderson informava que Carmen estava filmando um novo filme em Hollywood [Aconteceu em Havana (Week-end in Havana cor, 20th Century Fox, Dir. Walter Lang, 1941)] e que o figurino usado por ela na cena do Cassino Madrilenõ era uma criação de Alceu Penna. A segunda menção aparece apenas em 27 de fevereiro de 1960, na seção Carnaval americanizado, na qual informa ter sido o responsável pela criação de alguns dos figurinos de baiana usados por Carmen e considerados americanizados pelos brasileiros na ocasião de suas apresentações no Cassino da Urca em 1940 e após seu estouro em Hollywood. 17 Sobre a imagem de Carmen Miranda e a latinidade, ver: (GARCIA, Tânia, 2005).

BLUM, Dilys E. Shocking! : the art an fashion of Elsa Schiaparelli. New Haven: Yale University Press/Philadelphia Museum of Art, 2003. BURKE, Peter. Testemunha ocular: História e Imagem. Bauru: EDUSC, 2004. CALIGARIS, Contardo. Verdades de autobiografias e diários íntimos. In: Estudos Históricos, no. 21, 1998, vol. 1. CASTRO, Rui. Carmen: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. CRANE, Diana. A moda e seu papel social: classe, gênero e identidade das roupas. São Paulo: Senac, 2006. GARCIA, Tânia. O “it” verde amarelo de Carmen Miranda. São Paulo: Annablume, 2005. GRAGNATO, Luciana. O desenho no design de moda. Dissertação de mestrado em Design. Universidade Anhembi Morumbi. São Paulo, 2008. JÚNIOR, Gonçalo. Alceu Penna e as Garotas do Brasil. São Paulo: Cluq, 2004. MAUAD, Ana Maria. Na mira do olhar: um exercício de análise da fotografia nas revistas ilustradas cariocas, na primeira metade do século XX. In: Anais do Museu Paulista, v. 13, jan-jun, 2005. NETTO, Accioly. Império de Papel. Os bastidores de O Cruzeiro. Porto Alegre: Sulina, 1998. P.125. SEELING, Charlotte. Moda: O século dos estilistas, 1900-1999. Colónia: Könemann, 2000. SOUZA, Gilda de Mello e. O espírito das roupas: A moda no século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

Webgrafia http://www.dicionariompb.com.br/verbete.asp?nome=Teatro+de+Revista&tabela=T_FORM_ C Teatro de Revista in: Enciclopédia Itaú Cultural de Teatro. (acessado em 28/04/2009) http://www.evandrocarneiroleiloes.com/107326?offset=168&max=21&catalogueId=87990 (acessado em 05/01/2009) http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_teatro/index.cfm?fuseaction=concei tos_biografia&cd_verbete=614 (acessado em 28/04/2009) http://www.soraiacals.com.br/87939?offset=189&max=21&catalogueId=87987 (acessado em 05/01/2009)

Créditos das ilustrações:

Fig. 1-2; 4;6-7;9. Acervo Thereza de Paula Penna. Fig.3:

http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/9/9d/Gangs_all_here_trailer.jpg

(acessado em 27/10/2008). Fig. 5: Acervo: DEDOC do Jornal Estado Minas. Fig. 7: ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 444. inclusão de uma referência ao vestido da costureira italiana no especial de Carnaval, provavelmente, pode ser explicada por dois motivos: o

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