O culto à beleza: um ritual secularizado

June 6, 2017 | Autor: Vinícius Moraes | Categoria: Aesthetics, Art History, Classical Antiquity
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Juiz de Fora, 20 de junho de 2015

O culto à beleza: um ritual secularizado Produzido por Vinícius Moraes Tiago [email protected]

Por muito tempo, tem havido um crescente interesse não só em compreender, mas também em tentar definir o legado da Antiguidade Clássica no contexto da produção artística atual. Uma das perspectivas adotadas para tal tarefa avaliam este legado como uma proposta universal à produção artística. Em contrapartida, no fim do século XIX, com movimentos como o expressionismo, nota-se uma crescente produção artística à parte desta proposta universal. A partir de ambas perspectivas, este trabalho busca contrastar os desdobramentos e os discursos que se associaram a estas perspectivas, assim como as modificações em relação à percepção à obra de arte. Certamente, o culto ao belo é um dos mais controversos e importantes conceitos estéticos que o legado da Antiguidade Clássica cede à arte. A título de citação: Platão, Aristóteles, Plotino, Kant, Hegel e muitos outros abordaram a questão estética em suas obras. No entanto, é preciso distinguir os conceitos e os discursos propagados em nome destes.

“Nascita di Venere”, Sandro Botticelli. De 1483 a 1485.

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Na Antiguidade Clássica, o belo era associado ao bom, ao eterno. Platão, em seu livro Fedro, relata essa ideia através de um pequeno diálogo em que Sócrates pergunta a Agatão: “Não achas que o belo é simultaneamente bom?”. Esta associação, entre o belo e o bom, é utilizada como base para o discurso que tenta estabelecer uma estética idealista e universal à arte. Por meio dessa lógica, retratada perfeitamente através da figura dos exilados da República de Platão, só o que causa deleite e é bom deveria existir. Esse mesmo discurso, posteriormente, fora utilizado para justificar uma guerra ao considerado feio na máxima idealista fascista “fiat ars, pereat mundus1” (faça-se a arte, destrua-se o mundo). Durante o regime nazista na Alemanha, obras de arte expressionistas eram exibidas lado a lado com imagens de deficientes físicos e mentais – em uma tentativa de manifestar como aquela arte era “perturbadora” e não possuía valor, por não retratar o belo e o harmonioso. Essas exposições eram intituladas “A Arte Degenerada”, e podem ser observadas no documentário “Arquitetura da Destruição”, do diretor sueco Peter Cohen.

Fragmento de “Arquitetura da Destruição”, por Peter Cohen. 1989. Entretanto, como já foi exposto, é preciso distinguir os conceitos e o discursos propagados em nome destes. Como Aristóteles já tinha notado na Antiguidade Clássica, uma das primeiras problemáticas de se tentar estabelecer esta estética universal é a insustentabilidade do belo como única fonte de deleite e prazer. Kant, em Crítica da Faculdade do Juízo, resume bem essa insustentabilidade. Não pode haver nenhuma regra de gosto objectiva, que determine por meio de conceitos o que seja belo. Pois todo juízo proveniente desta fonte é estético; isto é, 1

BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução. São Paulo: Abril Cultural, 1995; p. 28. Página 2 de 5

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o sentimento do sujeito e não o conceito de um objecto é o seu fundamento determinante. Procurar um princípio de gosto, que fornecesse o critério universal do belo através de conceitos determinados, é um esforço infrutífero, porque o que é procurado é impossível e em si mesmo contraditório.2

Portanto, percebe-se que a problemática não está no belo, mas na tentativa de tornálo um ideal universal a todo fazer artístico, na tentativa de se estabelecer uma regra, o que seja belo. Contudo, a partir das três grandes feridas narcísicas, nas palavras de Freud, sofridas pela humanidade – com o heliocentrismo de Copérnico, a teoria evolucionista de Darwin e a teoria do inconsciente do próprio Freud – altera-se completamente a forma com que o homem se vê diante do mundo. A partir desses grandes abalos, o homem moderno transita do ad aeternum para o hic et nunc. Isto é, do eterno para o aqui e agora. Nossas belas-artes foram instituídas, assim como os seus tipos e práticas foram fixados, num tempo bem diferente do nosso, por homens cujo poder de ação sobre as coisas era insignificante face àquele que possuímos. Mas o admirável incremento de nossos meios, a flexibilidade e precisão que alcançam, as idéias e os hábitos que introduzem, asseguram-nos modificações próximas e muito profundas na velha indústria do belo. Existe, em todas as artes, uma parte física que não pode mais ser encarada nem tratada como antes, que não pode mais ser elidida das iniciativas do conhecimento e das potencialidades modernas. Nem a matéria, nem o espaço, nem o tempo, ainda são, decorridos vinte anos, o que eles sempre foram. É preciso estar ciente de que, se essas tão imensas inovações transformam toda a técnica das artes e, nesse sentido, atuam sobre a própria invenção, devem, possivelmente, ir até ao ponto de modificar a própria noção de arte, de modo admirável.3

A mudança da relação entre o homem e o mundo, consequentemente, também altera a própria noção de arte. Agora, a indústria do belo encontra-se secularizada4, ela perde seu caráter religioso – idealista e universalista. O homem não utiliza mais um tempo bem diferente do nosso para estabelecer seu fazer artístico. A obra passa a fundar sua própria estética.

“The Kiss”, Pablo Picasso. 1969. 2

KANT, Immanuel. Crítica da Faculdade do Juízo. São Paulo: Forense Universitária, 2012; p. 17. VALÉRY, Paul. Pièces sur l'Art. Paris: Conquête de l'Ubiquité, 1934; p. 103-104. 4 BENJAMIN, Walter, op. cit., p. 11. 3

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A partir desse novo contexto, se faz necessário considerar os diversos modos pelos quais uma obra de arte pode ser avaliada e também produzida, agora sem a estabilidade de sempre se recorrer a uma estética universal e anacrônica. O rompimento com a tradição do culto ao belo instaura uma nova perspectiva, não só para a produção artística e para a arte, mas também para o espectador. Apreciar a arte é muito mais do que um mero prazer estético; é aprender a compreender o seu significado. Nenhuma obra de arte pode ser compreendida fora do seu contexto histórico. Todas as 'leis' estéticas até agora propostas se têm mostrado insatisfatórias e, na maior parte dos casos, apenas têm servido para dificultar a nossa compreensão. Mesmo que se viesse a encontrar uma lei válida — e até à data isso não aconteceu — ela seria provavelmente tão elementar que de pouco serviria, ante a complexidade da arte. 5

Ainda que seja por um breve intervalo, é preciso que o espectador esteja disposto a dividir o olhar com o artista, e através desse movimento de alteridade, então, tentar compreender o contexto e o fazer artístico; não como uma forma de validação única e absoluta de compreensão dos significados6, mas como uma dentre as várias possibilidades que são apresentadas ante a complexidade da arte. Não obstante, é essa complexidade que caracteriza a arte no devir, a recusando qualquer forma de idealismo universal. Pois é parte do fazer artístico não só poder instituir e consolidar uma tradição, como também possuir liberdade diante desta.

5

JANSON, Horst Waldemar. História da Arte. São Paulo: Martins Fontes, 1992; p. 18. Na citação, Janson faz uso do singular ao se referir “a aprender o significado da arte”. Mediante à percepção da insustentabilidade de uma estética universal, utilizo o plural (significados) para explicitar o mesmo em relação à significância. Pois, parte-se do pressuposto que não existe um significado absoluto a ser descoberto ou aprendido, e sim que estes são múltiplos – dada a singularidade de cada encontro entre artista e espectador. 6

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A verdadeira filosofia é compreender aquilo que faz com que o sair de si seja entrar em si e inversamente. — M. Merleau-Ponty, O visível e o invisível. São Paulo, Perspectiva, 1992, p. 188.

“Olhares flutuantes”, Marcos Beccari. 2011.

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