O currículo do vestibular e seus efeitos: o olhar do aluno do Universidade Popular.

June 4, 2017 | Autor: Mônica P.Santos | Categoria: Curriculum Design
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O currículo do vestibular e seus efeitos: o olhar do aluno do Universidade
Popular.
PAULINO, Marcos Moreira.
SANTOS, Mônica Pereira dos
Faculdade de Educação – UFRJ – Programa de Pós-graduação em Educação -
LaPEADE
Categoria: Comunicação (Pesquisa em andamento)




Introdução

Em virtude da crescente dificuldade de acesso ao ensino universitário
público podemos observar, nos últimos dez anos, o desenvolvimento de um
novo tipo de educação comunitária, gerida por organizações populares
freqüentemente formadas por educadores, universitários, grupos religiosos,
movimentos sociais, em espaços formais (salas de aula dentro de escolas e
universidades) e não formais (galpões, associações de moradores, igrejas).
Tais organizações tem como principal objetivo o ingresso mais justo das
classes menos favorecidas nas universidades públicas, através de um curso
preparatório para a realização da prova do vestibular, o chamado pré-
vestibular comunitário.
O Universidade Popular é um movimento autônomo que começou a
trabalhar desta forma em 2000. Tem como bandeira principal a luta pela
democratização do ensino dito superior, buscando contribuir para mudanças
estruturais que façam com que o conhecimento gerado e depositado nas
universidades esteja realmente comprometido com as demandas da imensa
maioria da população, historicamente excluída (Universidade Popular, 2002).
Possui duas turmas de pré-vestibular, uma funcionando na UERJ, no 10º
andar, e outra no Morro dos Cabritos, em Copacabana, com 82 alunos
considerados de baixa renda.
O Laboratório de Pesquisa, Estudos e Apoio à Participação e à
Diversidade em Educação – LaPEADE que tem como missão "apoiar e promover a
participação e a diversidade em educação nas dimensões culturais, políticas
e práticas das instituições e sistemas educacionais e contribuir para o
desenvolvimento, disseminação e acompanhamento do conhecimento científico-
acadêmico a respeito de inclusão em educação" (LaPEADE, 2003 – Missão)
pretende investigar com o presente trabalho se as propostas curriculares do
vestibular se enquadram na realidade educacional dos alunos do Universidade
Popular, pretendendo identificar as possíveis exclusões sofridas pelos
mesmos graças a este currículo e os possíveis mecanismos utilizados pelo
pré-vestibular para minimizá-las.
Além disso, o presente trabalho visa discutir o caráter elitista do
vestibular, avaliando a eficácia das possíveis estratégias utilizadas por
movimentos autônomos de militância como este para tentar reverter este
quadro. Consideramos fundamental este tipo de discussão, pois acreditamos
que educação pública de qualidade é direito de todos, em todos os níveis, e
que a experiência de tais movimentos tem muito a contribuir.


Considerações iniciais:
Em documento do Universidade Popular (Projeto do Universidade
Popular, 2002), encontramos a sua proposta de trabalho relacionada ao
currículo e seu objetivo:

O trabalho é guiado pela filosofia educacional de Paulo Freire,
na linha da chamada pedagogia crítica. O curso tem por objetivo
tanto aprovar os alunos em universidades públicas – ou
particulares com bolsa – quanto construir a conscientização
crítica junto com os educandos (pág 2).

Acreditamos de acordo com uma análise marxista (apud Lapassade, 1983,
pág 18) que o exame é o batismo burocrático do saber. Portanto a aprovação
em um exame como o vestibular nos remete à uma iniciação que "passa" alguns
para o lado de quem domina a sociedade através da posse do saber, e por
conta disso, do exercício do poder. A universidade neste contexto apresenta-
se como uma instituição de classe, por manter e reproduzir estas relações.
De acordo com Roberto Machado sobre a idéia de Foucault (1998):

O fundamental da análise é que saber e poder se implicam
mutuamente: não há relação de poder sem constituição de um novo
campo de saber, como também, reciprocamente, todo saber
constitui novas relações de poder. Todo ponto de exercício de
poder é, ao mesmo tempo, um lugar de formação de saber (pág
XXI).

Consideramos que o currículo do vestibular não significa apenas um
conjunto de disciplinas e conteúdos neutros, e muito menos acessíveis a
todos. Acreditamos que ele está, em última análise, a serviço de alguns
sujeitos, sendo sempre o resultado de uma seleção (Silva, 2001, pág 15),
transmitindo uma história, uma ideologia de um grupo dominante. Por isso a
legitimação burocrática destes conhecimentos pelo vestibular privilegia
diretamente alguns grupos enquanto marginaliza outros e esta exclusão está
baseada em algumas políticas curriculares nacionais.
Além de tudo isso, de acordo com a nossa concepção, trabalhos como o
do Universidade Popular tem efeitos que vão além da preparação para uma
prova. O currículo do vestibular, além de conter os pré-requisitos
objetivos considerados necessários para o ingresso em uma universidade,
está diretamente relacionado com as subjetividades dos alunos, atuando na
formação de suas identidades. Portanto não se encerra na aprovação ou
reprovação. Uma contagem de pontos não determina seu sucesso ou fracasso.
De acordo com Silva (2001):

Num cenário pós-crítico o currículo pode ser todas essas coisas,
pois ele também é aquilo que dele se faz, mas nossa imaginação
está livre para pensá-lo de outras formas, para vê-lo de
perspectivas que não se restringem àquelas que nos foram legadas
pelas estreitas categorias da tradição (pág 147).

Compartilhamos desta visão de currículo, que considera sua atuação
vai além do tecnicismo, como diz Giroux (1997):


O discurso curricular, com todas as suas variações, é uma forma
de ideologia que tem íntima relação com questões de poder,
principalmente quando estas estruturam as relações sociais em
torno de considerações de gênero, raça e classe (pág 169).

Desta forma pretendemos investigar a maneira que o Universidade
Popular lida com este currículo que julgamos elitista, tentando observar as
implicações de sua proposta de trabalho.

Metodologia

O enfoque deste estudo foi predominantemente qualitativo porque,
segundo Minayo (2001) a pesquisa qualitativa "... trabalha com o universo
de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes" (p. 22)
correspondendo, num sentido mais amplo, a um espaço "... mais profundo das
relações dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à
operacionalização de variáveis" (Ibidem).
O instrumento de coleta de dados utilizado foi uma entrevista. Os
indivíduos entrevistados foram diferentes atores sociais do Universidade
Popular, procedimento dirigido à luz dos objetivos da pesquisa. São eles
alunos, ex-alunos e orientadores de estudo (como são chamados os
professores das disciplinas), contabilizando um total de sete.
Dentre os sete entrevistados tentamos investigar a priori: dois
orientadores de estudo a fim de perceber como lidam com o currículo do
vestibular em sala e o que pensam dele; dois alunos que estão tentando o
vestibular pela segunda vez a fim de tentar relacionar o currículo à
reprovação na prova; uma ex-aluna que desistiu de tentar o vestibular
visando buscar relação entre a desistência e este currículo; um ex-aluno
que foi aprovado visando buscar relação entre a aprovação e o currículo;
uma aluna que está tentando a primeira vez a fim de perceber as visões
iniciais a cerca deste currículo. Em todos os alunos e ex-alunos também
tínhamos como objetivo de investigar nas entrevistas a forma com o que o
Universidade Popular trabalha com este currículo.
Os entrevistados foram relacionados na tabela abaixo:


"Entrevistado "Idade "Profissão "No Universidade Popular "
"Flávio "25 "Técnico em "Orientador de estudo de "
" " "pesquisa. Formado "Biologia e Química. "
" " "em Ciências " "
" " "Biológicas " "
"Alessandra "21 "Camelô "Aluna. Tenta pela segunda vez"
" " " "o vestibular. Carreira "
" " " "desejada: Fisioterapia "
"Alex "21 "Assistente "Aluno. Tenta pela segunda vez"
" " "administrativo "o vestibular. Carreira "
" " " "desejada: História ou "
" " " "Geografia (por ser menos "
" " " "concorrido) "
"Cláudia "29 "Babá "Ex-aluna. Desistiu de tentar "
" " " "o vestibular. Carreira "
" " " "desejada: Psicologia "
"Vinicius "18 "Não trabalha "Ex-aluno. Passou no "
" " " "vestibular. Cursa Engenharia "
" " " "elétrica na UERJ "
"Patrícia "28 "Formada em "Orientadora de estudo de "
" " "Produção Editorial"Redação e Interpretação. "
" " "e trabalha na área" "
"Ivanir "33 "Professora "Aluna. Tentando pela primeira"
" " "(Educação "vez o vestibular. Carreira "
" " "Infantil) "desejada: Pedagogia. "


Foram realizadas cinco perguntas básicas, na ordem apresentada abaixo,
distribuídas entre os temas centrais que pretendíamos investigar, que por
sua vez refletem os objetivos da pesquisa:
TEMA 1: Concepção de currículo
1. O que você entende pela palavra currículo?


TEMA 2: Utilidade na vida cotidiana
2. Estes conteúdos (este currículo, em geral) são úteis à sua vida
cotidiana (ou de seus alunos)? De que maneira ?
TEMA 3: Aumento de interesse
3. Como este currículo poderia se tornar mais interessante para
você (ou para seus alunos)?
TEMA 4: Importância para o ingresso
4. Até que ponto este currículo é fundamental para o seu ingresso
(ou o de seus alunos) na universidade? Todos estes conteúdos são
fundamentais?
TEMA 5: O Universidade Popular e o currículo
5. Existe alguma diferença entre a maneira que o Universidade
Popular trabalha com este currículo da maneira que você estava
acostumado(a) no Ensino médio?

Procedimentos de Análise
As entrevistas foram transcritas na íntegra e a fim de organizar e
analisar. As respostas foram divididas em torno dos temas centrais, que por
sua vez foram subdivididos em Unidades de análise (Bardin, 1997), conforme
mostra a tabela abaixo:
"TEMAS "UNIDADES DE ANÀLISE "
"Concepção de "Trabalho "
"currículo " "
" "Escolaridade "
" "Prática "
"Utilidade na vida "O currículo por ele mesmo "
"cotidiana " "
" "O Universidade Popular e o "
" "currículo "
"Aumento de interesse "Cotidiano/ Aplicabilidade / "
" "Prática "
" "Uma prova diferente "
" "Uma aula diferente "
"Importância para o "Fazer a prova "
"ingresso " "
" "Depende da carreira "
" "A base para a Universidade? "
"O Universidade "Comprometimento dos "
"popular e o currículo"orientadores "
" "Participação dos alunos "
" "A base do Ensino Médio "
" "Tempo, Quantidade e Qualidade "


Os critérios para a escolha de tais unidades de análise como eixos
centrais foram, em ordem de importância: (1) Coerência com os objetivos e
(2) Freqüência nas entrevistas.
Estudo exploratório em torno das Unidades de Análise
Com base nos temas centrais das perguntas, nas respostas e nas
unidades de análise adotadas procedemos a uma análise exploratória que dará
fundamento para o prosseguimento desta pesquisa além de ajudar a levantar
questões que julgamos importantes, sem termos a pretensão de chegarmos a
conclusões generalizáveis. Nosso foco, por hora, é muito mais perguntar do
que responder.

Concepção de currículo
A relação da palavra currículo com trabalho foi muito freqüente nas
respostas. A idéia do curriculum vitae foi quase um consenso. As
entrevistas apontaram, em sua maioria, para uma idéia de currículo ligada
ao senso comum, como fator determinante do ser apto ou não para
determinado trabalho. Por esta razão, as citações relacionadas à
escolaridade pareceram resumidas ao papel do currículo escolar na
formação profissional do indivíduo.
Esta relação direta entre educação e trabalho nos causa certa
preocupação, na medida em que a educação é encarada unicamente como
ferramenta de capacitação do trabalhador. Nesta visão tecnicista, o
currículo escolar se resume apenas ao desenvolvimento de habilidades
impostas pelas exigências profissionais, um dos fundamentos da teoria
tradicional de currículo, que questionamos no presente trabalho.
Acreditamos que a educação tem papel importante para fornecer as
habilidades que (os alunos) irão necessitar para definir e não
simplesmente servir ao mundo moderno (Giroux, 1997, pág 171).
A idéia de currículo relacionado á prática também teve ocorrência
significativa, como disse Patrícia:

"É o resumo das suas habilidades profissionais, o que você sabe
fazer como trabalhador. Eu não penso em currículo no nível de
pensamento, eu penso no nível de colocar a mão na massa. O que
você sabe fazer, não precisa pensar, só fazer. No sentido da
prática, só".



O que nos permite inferir uma relação bem distinta entre a prática e
a intelectualidade na idéia de currículo, o que é também alicerce da idéia
de educação predominantemente voltada para o trabalho que não corresponde
com o que acreditamos e defendemos. Resumir a educação à capacitação é, no
mínimo, desconsiderar seu papel político na construção de uma sociedade
mais igualitária, é muito mais aceitar e reproduzir do que transformar.

Utilidade na vida cotidiana
Nesta pergunta, assim como em todas as outras daqui por diante, as
respostas estiveram sempre muito ligadas com maneira que o Universidade
Popular trabalha o currículo do vestibular. Ao perguntarmos se o currículo
tinha utilidade na sua vida cotidiana (ou de seus alunos) as respostas
freqüentemente foram relacionadas à forma com o que o Universidade Popular
trabalha neste sentido, mais até do que uma análise da utilidade do
currículo em si, por ele mesmo. Isto fica bem explícito na fala de Alex:

"Sim, o Universidade Popular me dá um currículo um pouco
diferente, em questão até da minha identidade como cidadão (...)
e fora o conteúdo que se exige no vestibular mesmo, questões de
educação mesmo, educação que eu digo curricular mesmo, de
colégio."

Foi percebida, a partir desta pergunta, a preocupação deste pré-
vestibular em contextualizar os assuntos abordados pelos conteúdos para
questões do dia a dia dos alunos, o que ficou bem claro na fala dos mesmos
e principalmente na dos orientadores de estudo, como disse Flávio:

"Eu particularmente acho que vários conteúdos ali poderiam ser
trabalhados de forma diferente, de forma muito mais voltada,
contextualizada no mundo que a gente vive do que a informação
pela informação em si (...), eu não consigo todas as vezes
(trabalhar desta forma). Eu tento, pelo menos."

Consideramos fundamental esta construção de um significado para o
currículo na educação. Como diz Giroux (1997):

Temos que enfrentar as implicações do fato de que a experiência
escolar dos estudantes está entrelaçada com suas vidas em casa e
na rua. Isto não representa um apelo simplista por relevância; é
mais uma afirmação de nossa necessidade de compreender as
tradições de mediações que os estudantes trazem para seu
encontro com o conhecimento institucionalmente legitimado (pág
167).

Porém foi observado que mesmo com todo este esforço para a construção
deste significado para o currículo alguns conteúdos ainda foram
considerados inúteis para a vida cotidiana dos alunos. Isto indica que o
formato do vestibular não permite que todos os conteúdos sejam
trabalhados desta forma, o que é visto por nós com certa preocupação.
Como disse Cláudia:

"Eu não vou dizer pra você que eu sempre me deparo com uma
questão de química ou de matemática ou de física, de vez em
quando acontece alguma coisa que a gente precisa utilizar. Mas é
muito raro".

Esta forma conteudista com que o currículo do vestibular se apresenta
nos parece pouco comprometida com os anseios e necessidades cotidianas
das classes populares, que foram nosso objeto de estudo. Este fato nos
pareceu muito evidente em todas as respostas, e voltaremos a discuti-lo
mais adiante.


Aumento de interesse
Mais uma vez os pontos como cotidiano, aplicabilidade e prática foram
bastante citados como cruciais para tornar o currículo do vestibular mais
interessante. Mais uma vez, inferimos que o Universidade Popular apesar
de ser bastante comprometido com esta contextualização não consegue
realizá-la em todos os momentos. Não podemos culpabilzar apenas o
currículo do vestibular por isso, mas consideramos seu formato como o
principal responsável, o que ficou bem claro na fala de Alex:

"Acho que se torna mais interessante quando tem aplicabilidade
(...) pra você utilizar toda a matéria que dá no vestibular fica
meio difícil, (...) eu que acho que não teria como aumentar este
interesse, só se eu tivesse como aplicar estas coisas e nem tudo
eu vou ter condições de aplicar".

Para solucionar esta questão foi significativa nas respostas a
urgência na reformulação da prova do vestibular. Cláudia foi perguntada
se caso este conteúdo fosse cobrado de forma diferente o currículo
poderia se tornar mais interessante, fazendo com o que ela voltasse a
tentar fazer a prova. Respondeu:

"Acho que sim, acho que eles deveriam pedir outros critérios.
(...) fazer (o exame) mais voltado para aquela área, você não
precisa passar por estas matérias que te deixam apavoradas,
(...) criando um bloqueio, aquela coisa desesperadora".

Nos pareceu bem razoável esta proposta, considerando que, para nós, o
grau de "aprofundamento" das questões do vestibular tem função que vai
além de testar os conhecimentos considerados necessários e fundamentais
para determinado curso. Toda a carga de conteúdos exigida por este
"critério" é uma das principais ferramentas para uma exclusão intencional
de grande parte dos candidatos, principalmente quando cobrados desta
forma, baseados no conteudismo.
Segundo Lopes (apud Lopes 2002):

As disciplinas escolares são diferentes das disciplinas de
referência, na medida em que cumprem finalidades sociais
diversas e na medida em que os conhecimentos escolares são
constituídos especificamente para fins de ensino por processos
de recontextualização (Bernstein,1998) e transposição didática
(Chevallard,s.d.) (pág 148).

Desta forma não nos pareceu que o currículo do vestibular esteja
cumprindo sua função social quanto á este aspecto, por conta da excessiva
aproximação das questões de suas provas com as disciplinas de referência
(acadêmicas). Isto se reflete em dificuldade de aprendizado e desinteresse,
principalmente quando estas disciplinas não fazem parte da área de
conhecimento preferencial do aluno.

Uma prova diferente foi insistentemente proposta nas entrevistas,
com conteúdos mais contextualizados e relacionados com a área escolhida.
Isto, segundo alunos e orientadores, seria fundamental para tornar o
currículo do vestibular mais interessante.

Também foi freqüente a relação direta entre como o currículo pode ser
mais interessante com a forma com o que o Universidade Popular o torna mais
interessante sendo mencionado o quanto esta atuação ainda pode melhorar.
Uma aula diferente para os alunos é de fundamental importância para o
aumento do interesse, como disse Ivanir:


"Você falar é uma coisa mas você pegar é outra (...) passar a
ter, como já teve uma vez, aula no microscópio, você ver a
célula (...) acho que você vendo fica mais prático do que
falando. É como eu faço com as minhas crianças também. Se vocês
aqui (os orientadores) mostrarem mais o que é o concreto fica
muito mais fácil"

Importância para o ingresso

Foi freqüente a atribuição da importância deste currículo para a
realização da prova. Isto nos causa preocupação semelhante à exposta no
TEMA 1: embora o enfoque não esteja mais centrado no trabalho, nos preocupa
o fato do currículo estar relacionado mais uma vez à idéia de capacitação,
ao estar apto ou não para fazer uma prova . Diminuir o papel social do
currículo do vestibular à este ponto nos remete á relação mercadológica que
se instituiu em torno deste concurso atualmente, como disse Flávio:


"... se as escolas de 2º grau valorizam este currículo é pela
relação de mercado, que é a escola se dar bem no vestibular, é o
professor ser bom por aprovar no vestibular, que condiciona aos
seus alunos a passar no vestibular".

Esta prática é freqüentemente reproduzida por escolas e cursos pré-
vestibulares "tradicionais" que, por conseguinte, exibem como troféus suas
altas taxas de aprovação no concurso. O que é visto por nós com
desconfiança é o "preço" que é pago: resumir todos os conteúdos
considerados necessários para o ingresso na universidade a um
"condicionamento" que muito mais aliena do que emancipa é bem similar á
educação voltada para o trabalho dita acima. Esta prática, em muitos
aspectos, é de responsabilidade da universidade na medida que seu critério
de seleção está cada vez mais baseado nesta relação de mercado.

Citando mais uma vez Giroux (1997)


Os estudos curriculares como atualmente instituídos nos
programas acadêmicos foram destituídos de uma visão democrática
– de que, conseqüentemente, eles tem funcionado para educar os
estudantes menos como intelectuais e profissionais reflexivos do
que como funcionários públicos obedientes e técnicos
especializados (pág 172).

Desta forma torna-se claro para nós para que e para quem este
currículo está melhor servindo e qual tipo de educação é priorizada para o
acesso a universidade. Analisando por esta ótica questionamos se estes
conhecimentos julgados imprescindíveis pelo vestibular representam
realmente o "arcabouço" necessário para o ingresso na universidade. Até que
ponto todos estes conteúdos são fundamentais ou são apenas fruto desta
relação de mercado conteudista onde quem sabe mais macetes e fórmulas se
sai melhor ? Qual é o sujeito que a universidade quer "selecionar": o
adestrado, que pouco incomoda politicamente, ou o crítico?
A idéia de que todo este currículo não pode ser considerado
fundamental nos pareceu quase um consenso nas entrevistas. Os entrevistados
deixaram bem claro, em sua maioria, que todos estes conteúdos não podem ser
considerados, definitivamente, a base para a universidade como muitas vezes
são defendidos. Mas dentro desta mesma consideração encontramos algumas
discordâncias:
Como disse Ivanir, relacionado–se aos conteúdos serem imprescindíveis
ou não para sua vida de universitária:

"Muitos deles sim. Muitas coisas que eu vou ver na universidade
vão ter um chão aqui, no que vocês deram (...), eu vou precisar
disto mais tarde, porque depois lá na frente alguém vai me
perguntar em sala de aula e eu vou ter que saber".

Mas Cláudia diz, relacionando-se à mesma pergunta:

"Acho que não. Porque eu não vou usar estas coisas quando eu
entrar, eu não tenho muita noção do que é estar lá dentro mas eu
acho que na área que eu escolhi eu acho que eu não vou estar
lidando com números, muitos números, posso até estar lidando com
números mas não da forma que é cobrado, tipo matemática é a
formula tal, tal e tal."


Esta discordância nos remete a reforçar os efeitos subjetivos que o
currículo do vestibular possui, que não seguem uma regra, nem que seja a de
"deixar as classes populares de fora da universidade". Apesar de
acreditarmos que este currículo é utilizado (ou apropriado) para manter
certas relações sociais de poder mais amplas do jeito que estão, temos que
considerar sua atuação direta na história de vida e na formação da
identidade dos alunos, efeito altamente pessoal que foi muito perceptível
nas respostas. Neste caso, como exemplo, Ivanir tenta o vestibular pela
primeira vez, enquanto Cláudia passou por uma reprovação, talvez as
diferenças na concepção de importância para o ingresso estejam relacionadas
a este fato, mas acreditamos que esta análise não é tão simples. O
currículo, como já dito, está relacionado intimamente a um conjunto de
subjetividades do sujeito, a formação daquilo que ele é.

Por isso acreditamos que este mecanismo de exclusão relacionado ao
acesso à universidade pelo currículo do vestibular vai muito além de uma
questão social (exclusão de pobres), de uma questão institucional (falta de
vagas) ou de uma questão política (políticas curriculares). O "problema" do
currículo do vestibular para nós não se resume somente às dificuldades de
acesso ou às exclusões decorrentes das diferenças de classe, tão marcantes
hoje em dia. Nossa crítica quer ir além, como diz Silva (2001) relacionando-
se às teorias pós-criticas de currículo:

... o multiculturalismo nos faz lembrar que a igualdade não
pode ser obtida simplesmente através da igualdade de acesso ao
currículo hegemônico existente (...). A obtenção da igualdade
depende de uma modificação substancial do currículo existente
(pág 90).

Mais uma vez foi comentado que a importância dada a este currículo
depende da carreira pretendida, como disse Alessandra:

"Nem todos (os conteúdos) serão importantes mas alguns sim,
dependendo da carreira que você for seguir".


E Alex:


"O vestibular deveria ser mais direcionado para a área que se
pretende fazer, apesar de ter aquelas matérias específicas para
a área que você faz ainda assim as que não são específicas estão
num nível muito alto".

Esta insistência torna para nós esta proposta ainda mais
considerável. Além de ser considerada mais interessante pelos alunos, uma
prova mais direcionada para os conteúdos relacionados com a carreira
escolhida é considerada também mais útil para a sua futura vida acadêmica
na universidade.

O Universidade Popular e o currículo
Todos os entrevistados ao serem perguntados sobre a forma do
Universidade Popular trabalhar o currículo perceberam diferenças
significativas ao compará-la com a forma que o Ensino Médio trabalhava.
Foram salientadas em maioria absoluta características avaliadas como
positivas pelos entrevistados.

O que chamamos de comprometimento dos orientadores de estudo nos
pareceu bem marcante, quase consensual, abordado de diferentes maneiras.
Achamos bastante significativo, a fim de facilitar a análise, subdividir
estas considerações em torno de alguns pontos que julgamos centrais nas
respostas:

Consciência política: Achamos bastante interessante o fato desta
valorização de um compromisso político dos orientadores ao abordarem este
currículo ter sido citada essencialmente pelos próprios orientadores. Como
disse Flávio:


"Acho que (a diferença) está na consciência política do trabalho
do professor"

E Patrícia:


"... nossos professores (do Ensino Médio) estavam ali sendo
pagos (...) tinham a obrigação de dar a matéria toda em um
determinado tempo. (...) acho que você tem que estar mais
preocupada de estar aqui em nome de um trabalho social...".

Não pareceu claro ou relevante para os alunos esta importância,
considerando a ausência de comentários a este respeito. Poderíamos,
durante a entrevista, ter perguntado um pouco mais sobre o que os alunos
acham sobre esta consciência, que julgamos fundamental, porque "uma nova
espécie de currículo deve abandonar a pretensão de ser livre de valores"
(Giroux 1997, pág 172). O trabalho do Universidade Popular nos parece ter
objetivo político bem específico, ter valores bem definidos. Isto nos
pareceu claro para os orientadores, mas não para os alunos.




Didática: Alguns fatores importantes relacionados ao que chamamos de
didática foram freqüentes, como uma forma de trabalhar o currículo de
maneira mais lenta, menos preocupada com prazos (graças à dificuldades
gritantes relacionadas ao Ensino Médio e Fundamental, que serão
comentadas a seguir). Como disse Alex:


"... não é como no colégio que chega lá, o professor joga a
matéria em cima de você e quem sabe pega quem não sabe vai ficar
reprovado e se vira de algum jeito".

E Cláudia:


"Era (no Universidade Popular) tudo muito detalhado, a
disposição que se tinha para ensinar era diferente, acho que até
a didática era diferente. No Ensino Médio parecia tudo muito
banal".

Porém gostaríamos de citar que o efeito "negativo" desta postura também
foi colocado: não há, trabalhando desta forma, tempo hábil para abordar
todo o currículo do vestibular. De acordo com estes relatos ficou bem
claro para nós que o objetivo do Universidade Popular não é só a prova,
ficando bem marcada sua diferença dos pré-vestibulares "tradicionais"
citados acima.

A importância da contextualização que o Universidade Popular procura
fazer quando trabalha este currículo foi novamente citada. A atenção dos
orientadores foi característica bastante considerada também.




Participação: A participação dos alunos foi freqüentemente colocada como
diferença fundamental do trabalho do Universidade Popular. Foi muito
valorizada a postura dos orientadores, por cultivarem o diálogo em sala
encarando seus alunos de igual para igual, o que se refletiu visivelmente
para nós na perda do medo de perguntar, de questionar. Como disse Ivanir:


"... (os orientadores) estão mais atualizados. Procuram nos dar
a matéria mais relax (...). Nos dão o direito da dúvida. Na
escola não".

E Vinícius:


"No Universidade Popular os orientadores trabalham muito mais a
participação e na escola não (...) o professor fica lá na
frente, não tem um diálogo legal entre professor e aluno. Foi
muito bom (contribuiu para a aprovação).

A tentativa constante de ruptura da relação professor-aluno
"tradicional", que se aproxima mais da dominação do que do serviço, traz
para os alunos uma confiança maior. A participação torna,
definitivamente, o currículo mais interessante, segundo as entrevistas.
Este fato para nós do LaPEADE é fundamental, pois nossa idéia de inclusão
está baseada em:


Ela (a inclusão) é uma luta, um movimento que tem por essência
estar presente em todas as áreas da vida humana, inclusive a
educacional. Inclusão se refere, portanto, a todos os esforços
no sentido da garantia da participação máxima de qualquer
cidadão em qualquer arena da sociedade em que viva, à qual ele
tem direito, e sobre a qual ele tem deveres. (Santos, 2003,
p.81).

A postura passiva e por vezes repreendida que foi relatada ao se falar do
Ensino Médio parece ser substituída, quando se fala do Universidade
Popular, por um discurso confiante no que diz respeito à poder tirar as
dúvidas sem medo, à poder marcar uma aula extra, a não se sentir inferior
por não ter curso superior, à ter uma conversa mais franca com os
orientadores. Na fala de Vinicius, como pôde se perceber nas citações
acima, ficou bem claro que esta forma participativa de trabalhar que o
Universidade Popular busca foi muito importante para que ele fosse bem
sucedido na prova.




Afetividade: Encaramos as características afetivas relatadas nas
entrevistas com certo receio apesar de as considerarmos importantes no
processo de ensino-aprendizagem e na luta pela inclusão. Não sabemos
dizer até que ponto a significativa presença nas entrevistas de palavras
como carinho e boa vontade podem demonstrar certo distanciamento do aluno
do currículo do vestibular em si ou desvalorização dos objetivos
políticos do pré-vestibular em questão. Como disse Alessandra:


"Acho que acima de tudo é a boa vontade. Ás vezes a pessoa não
gosta da matéria e com o carinho e o apoio deles passa até a
gostar".

Consideramos que esta ruptura da relação professor-aluno "tradicional" já
comentada não pode ser transformada em uma relação em baseada apenas no
viés pessoal, na afetividade. As características de um professor com uma
orientação inclusiva para nós vão muito além do "carinhoso" além de
considerarmos que, segundo a ideologia do Universidade Popular,
características afetivas são importantes mas não são a principal
ferramenta para sua luta política.

Ao analisarem as diferenças entre o Ensino Médio e o Universidade
Popular, levando em consideração a forma de abordagem do currículo, os
entrevistados freqüentemente disseram que muitos conteúdos exigidos pelo
vestibular estavam sendo vistos (ou trabalhados) pela primeira vez no
Universidade Popular. Esta freqüência altamente significativa foi vista com
surpresa por nós, que esperávamos nas respostas comentários
predominantemente relacionados a diferenças na relação ensino-aprendizagem
nesta pergunta. Não esperávamos a freqüência de tantos aspectos
relacionados a diferenças nos conteúdos em si. Chegou a ser mencionado que
era a primeira vez que disciplinas inteiras estavam sendo vistas (como
Física), e isto nos chamou a atenção para uma questão que julgamos
importante: a falta de "embasamento" dos conteúdos do Ensino Médio e
Fundamental para se "encarar" um currículo como o do vestibular. Várias
vezes a educação pública foi citada como de má qualidade nas entrevistas e
vale ressaltar que 95% dos alunos do Universidade Popular são provindos de
escolas públicas, segundo estatística do próprio curso. O que julgamos no
mínimo cruel é o fato do aluno que teve toda sua escolaridade (fundamental
e média) no ensino público não ter muitas vezes a mínima condição de
permanecer no sistema público de educação, como foi relatado nas
entrevistas. O currículo do vestibular, baseado em políticas curriculares
nacionais, exclui alunos provindos do ensino público por não terem nem
visto na escola os conteúdos considerados básicos para a realização desta
prova. Exclui para incluir outros que, certamente, tiveram condições de
escolaridade "melhor". Este fato para nós soa como uma grande incoerência
porque educação pública de qualidade é responsabilidade do Estado e a
formulação de formas de acesso à universidade também.

Esta situação crítica fica bem clara na fala de Alex:


"Não há tempo hábil de você passar toda a matéria do vestibular
em um único ano, por isso chega no final do ano tem muitas
matérias que você deixou de ver e são matérias que caem no
vestibular e muita gente acaba não tendo um desempenho muito bom
apesar de ter adquirido mais conhecimento aqui do que no seu
segundo grau inteiro".

Considerações finais:

Quanto aos seus objetivos, acreditamos que o presente trabalho (visto
como um estudo exploratório) alcançou todos eles. As entrevistas apontaram
de forma clara as exclusões sofridas pelos alunos por conta do currículo do
vestibular e algumas estratégias que marcam a forma do Universidade Popular
trabalhá-lo, considerada satisfatória.

Acreditamos que, apesar destes apontamentos, este estudo ainda tem
muito a avançar. Ainda teríamos muito que discutir, por exemplo, sobre a
própria atuação deste pré-vestibular. Apesar de ter objetivos e práticas
muito semelhantes às previstas nas Teorias de Inclusão defendidas pelo
LaPEADE (BOOTH, 2000) o Universidade Popular se encontra limitado à um
objetivo que, por princípio, já consideramos excludente: o vestibular.
Mesmo buscando artifícios para lutar contra isto a meritiocracia envolvida
neste concurso sem dúvida se reflete na sua prática. Vale deixar claro que
isto não torna seu trabalho diminuído: a contribuição de movimentos como
este é riquíssima para o aumento do debate a cerca de um acesso mais
igualitário á universidade.

As freqüentes propostas de uma forma de ingresso "diferente" nos
parecem ainda arraigadas a uma prova, o que nos faz acreditar que, se
concretizadas, este quadro de exclusão não mudaria. Porém isto não as
invalida de forma alguma para nós: as consideramos evidências claras de que
esta forma de ingresso precisa ser muito discutida.

E é com este objetivo, discutir o vestibular, que aqui deixamos
também a nossa contribuição.

Gostaríamos deixar registrado nosso agradecimento aos integrantes do
Universidade Popular que contribuíram, direta ou indiretamente, para a
realização desta pesquisa.




Bibliografia:

BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1977.

BOOTH, T. et alii. Index for Inclusion – developing learning and
participation in schools. Bristol, CSIE, 2000.

FOUCALT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro, Graal, 1998.

GIROUX, Henry A. Os professores como intelectuais: rumo a uma pedagogia
crítica da aprendizagem. Porto Alegre, Artes Médicas, 1997.

LAPASSADE, Georges. Grupos, organizações e instituições. Rio de Janeiro,
F.Alves, 1983.

LOPES, Alice Casemiro. Parâmetros curriculares para o ensino médio: quando
a integração perde seu potencial crítico. In: LOPES, Alice Casemiro &
MACEDO, Elizabeth. Disciplinas e integração curricular: histórias e
políticas. Rio de Janeiro, DP&A, 2002.

MINAYO, Maria C. S. Ciência, técnica e arte: o desafio da pesquisa social.
In: MINAYO, Maria. C. S (Org.). Pesquisa social: teoria, método e
criatividade. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001, p.09-29.

Projeto do Universidade Popular, 2002.

SANTOS, Mônica Pereira dos. O papel do ensino superior na proposta de uma
educação inclusiva. Revista da Faculdade de Educação da UFF- n. 7, maio
2003.

SILVA, Tomaz Tadeu. Documentos de Identidade: uma introdução as teorias do
currículo. Belo Horizonte, Autêntica, 1999.

Universidade para Quem? Universidade Popular, 2002, in mimeo.
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