O debate teórico sobre o poder de guerra nos Estados Unidos

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INTELLECTOR Ano XI

Volume XI

Nº 22

Janeiro/Junho 2015

Rio de Janeiro

ISSN 1807-1260

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O debate teórico sobre o poder de guerra nos Estados Unidos Cláudio Júnior Damin

Resumo O artigo aborda a questão do chamado poder de guerra contido no desenho constitucional dos Estados Unidos. Investiga-se a controvérsia teórica suscitada pela chamada Cláusula da Guerra que confere ao Legislativo a prerrogativa de declarar guerra e autorizar o uso da força militar. A interpretação do devido significado de tal Cláusula não é pacífica e tem gerado um debate teórico importante. Busca-se mapear os principais argumentos e contra-argumentos em relação ao significado da Cláusula da Guerra na Constituição dos Estados Unidos que se traduzem em duas posições interpretativas distintas, a saber: a pró-Legislativo e a próExecutivo. Palavras-chave: Política internacional, Estados Unidos, poder de guerra, checks and balances. Abstract The article analyzes the concept of so-called war power contained in the constitutional design of the United States. Investigates the theoretical controversy raised by the call of War Clause that gives the Legislature's prerogative to declare war and authorize the use of military force. The interpretation of the meaning of this clause is not peaceful and has generated an important theoretical debate. The aim is to map the main arguments and counter-arguments regarding the significance of the War Clause in the U.S. Constitution that translate into two distinct interpretive positions, namely the pro-Legislative and pro-Executive. Keywords: International politics, United States, War Powers, Checks and balances



Cláudio Júnior Damin é Doutor em Ciência Política pela UFRGS, professor de Ciência Política na Universidade Federal do Pampa. Email: [email protected] Recebido para Publicação em 10/01/2015. Aprovado para Publicação em 23/02/2015. 20

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Introdução

O

artigo aborda a questão do chamado poder de guerra contido no desenho constitucional dos Estados Unidos da América. Investiga-se, mais precisamente, a controvérsia teórica suscitada pela chamada Cláusula da Guerra (War Clause) que confere ao Legislativo a prerrogativa de declarar guerra e autorizar o uso da força militar. A interpretação do devido significado de tal Cláusula não é pacífica e tem gerado um debate teórico dos mais expressivos, especialmente por trata-se os Estados Unidos de um país que necessitou, ao longo de sua história, pegar em armas com os mais distintos propósitos. Este litígio interpretativo tem feito com que a Cláusula tenha sido reiteradas vezes “flexibilizada”, com o presidente assumindo os poderes de guerra que, segundo a Constituição, restariam nas mãos dos representantes do povo. Isso significa dizer, em outras palavras, que o dispositivo tem sido descumprido, ameaçando o sistema de pesos e contrapesos definido como o sustentáculo fundamental da liberdade republicana nos Estados Unidos. A partir dessa questão buscamos, no artigo, mapear os principais argumentos e contraargumentos em relação ao significado da Cláusula da Guerra na Constituição dos Estados Unidos que se traduzem em duas posições interpretativas distintas, a saber: a pró-Legislativo e a pró-Executivo. Tendo em vista esse objetivo o artigo foi estruturado em três partes fundamentais, além desta Introdução. A primeira aborda a Constituição norte-americana e o que ela diz acerca dos poderes de guerra da nação, a segunda parte expõe a controvérsia teórica existente em relação a esses poderes de guerra e, na parte final, tecemos rápidas considerações sobre os assuntos tratados ao longo do texto.

A Constituição norte-americana e os poderes de guerra O processo que levou à independência e posterior instalação de um governo próprio das treze colônias inglesas na América do Norte foi único em sua dimensão institucional. Como saldo, o mundo moderno conheceria sua primeira República totalmente representativa, federalista, presidencialista e pensada basicamente para garantir que o poder exercido pelos governantes, destituídos de títulos e honrarias típicos da realeza, fosse exemplarmente limitado (BAYLIN, 2003). Todos esses princípios foram, em maior ou menor medida, contemplados de forma definitiva com a feitura da Constituição dos Estados Unidos da América. A Constituição norte-americana, assim, merece ser vista a partir de sua singularidade histórica, opositora, em grande medida, aos princípios de governo então vigentes na pátria-mãe inglesa. A palavra-chave dos elaboradores da Constituição (framers) era exatamente “controle”. A natureza dita intrinsecamente má do homem tornava imperativo que uma República baseada no governo limitado criasse condições e dispusesse de ferramentas para controlar os homens 21

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que governariam os negócios públicos. Como assinalou James Madison no Federalist nº 51, “se todos os homens fossem anjos não se tornaria necessário governo algum” (HAMILTON, MADISON, JAY, 1964, p. 61). Dentro desse entendimento de coisas, e da própria noção realista da natureza humana, era preciso em igual importância controlar o uso do poder militar por parte do governante para evitar abusos. Como mostrou Bailyn (2003) em seu estudo clássico sobre as origens ideológicas da Revolução Americana, um dos temores dos colonos era exatamente o do descontrole do poder de mando dos reis diante de seus exércitos permanentes. Exércitos permanentes em mãos erradas poderiam oprimir, como a mando do rei inglês oprimiram os colonos norte-americanos. Federalistas como Madison, arquitetos da Constituição de 1787, acreditavam que os exércitos permanentes poderiam ser controlados por dispositivos legais. A filosofia subjacente era a de que com controle, compartilhamento de poderes e responsabilização as forças armadas poderiam ser dominadas de modo a não se transformarem em arma pessoal nas mãos do presidente. O texto constitucional, nesse sentido, claramente divide os chamados poderes de guerra entre Executivo e Legislativo, algo muito coerente com o sistema de checks and balances. Na Seção VIII do artigo 1º, referente às competências do Congresso, estabelece-se, dentre outras coisas, que cabe ao Legislativo: Declarar guerra, expedir cartas de corso, e estabelecer regras para apresamentos em terra e no mar; Organizar e manter exércitos, vedada, porém, a concessão de crédito para este fim por período de mais de dois anos; (...) (MIRANDA (org.), 1980) Há uma gama significativa de poderes de guerra enumerados e destinados ao Congresso norteamericano. Há dois, contudo, que podemos destacar de forma mais sintomática da importância dada pelos framers aos poderes de guerra do Legislativo nacional. O primeiro deles é o poder de purse, ligado ao financiamento de exércitos. É o Congresso, dessa forma, quem financia as forças armadas e não de forma indefinida, mas sim por um período de até dois anos, justamente o mandato dos membros da Câmara dos Representantes e da renovação parcial do Senado. O outro, objeto desse artigo, é o direito de declarar guerra, do que se depreenderia, em um primeiro momento, que os Estados Unidos apenas iriam marchar para a guerra com o consentimento de seu ramo Legislativo. Em linhas gerais, essas duas funções legislativas seriam os principais checks ao poder de guerra e ímpeto militarista do presidente da República. No que tange aos poderes do Executivo, em primeiro lugar a Constituição determina, em sua Seção I do artigo 2º que “o Poder Executivo será investido em um Presidente dos Estados Unidos da América”, ao passo que a Seção II do mesmo artigo dispõe que: O Presidente será o chefe supremo do Exército e da Marinha dos Estados Unidos, e também da Milícia dos diversos estados, quando convocadas ao serviço ativo dos Estados Unidos. (MIRANDA (org.), 1980)

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A Constituição avaliza, portanto, que cabe ao presidente o comando das forças militares do país. Esse é seu principal e mais expressivo poder de guerra. Saliente-se que o presidente, mesmo que esteja à frente dos contingentes militares, seria, dentre outras coisas, incapaz de financiá-lo, função conferida constitucionalmente ao ramo legislativo de governo. Nota-se, preliminarmente, que não há um departamento do Estado que controle, de forma absoluta e exclusiva o poder de levar o país à guerra. Esta seria a aura geral que congrega os poderes de guerra, segundo a Constituição: quem declara não comanda; quem comanda não declara; quem comanda não financia. O sistema de checks and balances é, portanto, funcional também para o caso da ação governamental diante das ameaças contra a integridade da nação. Ao longo de mais de 150 anos tal visão sobre os poderes de guerra, com o Congresso tendo um papel central e autorizativo na questão não foi seriamente contestada, especialmente de forma prática, pelos sucessivos presidentes (FISCHER, 2004). A regra, portanto, era cumprir o que a Constituição definira no século XVIII e a exceção era o presidente apossar-se das prerrogativas legislativas de guerra (PUSEY, 1969). Especialmente a partir da década de 1950, entretanto, ocorre uma inflexão na prática do cumprimento da Cláusula da Guerra, com o Poder Executivo iniciando um processo de desmoralização do poder do Congresso e, na tentativa de erodir o intento dos elaboradores da Constituição, começa a argumentar que o presidente da República também teria poderes de guerra consoante suas prerrogativas constitucionais de comandanteem-chefe e como a personificação do Executivo. Diante desse contexto, na próxima seção tratamos precisamente dos argumentos prós e contras acerca da efetividade da Cláusula da Guerra como ferramenta de controle do poder presidencial.

O debate teórico sobre o poder de guerra Nos mais de 220 anos de história constitucional norte-americana o Congresso declarou guerra 11 vezes (GRIMMETT, 2009). Contudo, como contabilizou Grimmett (2009), são encontrados mais de 120 casos em que o país utilizou suas forças armadas no exterior. Pergunta-se, então, e com razão, se esse manifesto descompasso entre a norma e o dado empírico não seria revelador da total ineficiência e desuso da Cláusula da Guerra. O que parecia claro na Constituição, com os framers alocando os poderes de guerra no Congresso, se tornou um debate nebuloso em que duas correntes interpretativas estabeleceram uma controvérsia acerca de quem, realmente, exerce os devidos poderes de guerra da nação. O choque inconciliável se dá entre aqueles que consideram que o Congresso tem o exclusivo poder de autorizar o país a ir para a guerra (FISCHER, 2004; ADLER, 1988; PUSEY, 1969; ELY, 1993; KOH, 1990; EAGLETON, 1974) e, em sentido oposto, aqueles que avaliam que o presidente é o legítimo e verdadeiro detentor dos poderes de guerra nos Estados Unidos (YOO, 2005; YOO E DELANHUNTY, 2007; BOYLAN, 2001; SEVI, 2008; LEHMAN, 1992). Trata-se, portanto, de um embate entre a visão pró-Legislativo e a perspectiva pró-Executivo. Com a controvérsia basicamente posta, é preciso avaliar os argumentos mais detalhadamente, descrevendo e analisando as ideias que possibilitam distintos entendimentos acerca dos poderes de guerra alocados da Constituição norte-americana. 23

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Em primeiro lugar há a controvérsia sobre o mecanismo definido pela Constituição para levar o país à guerra. A Constituição, sob esse pensamento, não seria suficientemente clara em relação ao modus operandi da decisão sobre a guerra, sequer de como o Legislativo deve proceder para exercer seus poderes de guerra (TANSILL, 1930). Keynes (1982), mesmo admitindo que o poder de guerra é fundamentalmente congressual, acredita que, em função da relativa vagueza da Constituição, haveria “zonas de penumbra” (twilight zone) em relação ao uso da força militar pelos Estados Unidos em determinados casos, com o texto legal não prevendo se se trataria de uma prerrogativa do Congresso ou do Executivo. Yoo (2003), o principal irradiador contemporâneo da visão pró-Executivo, argumenta, por sua vez, que a Constituição criou um “sistema flexível” dos poderes de guerra em que o presidente, como comandante-em-chefe, exerce a iniciativa de levar o país à guerra, reservando ao Congresso seu controle através do financiamento. A economia de procedimentos constitucionais claros acabaria, desse ponto de vista, destinando ao presidente o exercício dos poderes de guerra. Na dúvida, os poderes seriam do Executivo. Toda a celeuma, contudo, é negada por estudiosos como Adler (1988) e Prakash (2007) que não visualizam qualquer dubiedade em relação à alocação que a Constituição faz dos poderes de guerra. Seriam eminentemente legislativos, com os parlamentares possuindo o poder de autorizar qualquer ação militar por parte do presidente e este, por sua vez, não dispondo de capacidade legal para mobilizar as tropas fora do país sem a anterior autorização legislativa. É bem verdade que a Constituição não diz, com todas as letras, que cabe ao Congresso autorizar qualquer operação militar, tampouco que cabe ao presidente agir unilateralmente, apenas embasado em seus poderes como comandante-em-chefe da nação. Por isso que se estabeleceu, como um segundo aspecto da controvérsia, um litígio semântico e interpretativo sobre o que os elaboradores quiseram dizer com a expressão “declarar guerra” e sobre a própria necessidade de se declarar guerra. Defensores da visão pró-Legislativo sustentam que “declare war” é um check ao poder presidencial de mover a nação para a guerra (FISCHER, 2004; ELY, 1993), ao passo que os defensores da interpretação pró-Executivo tratam tal expressão como se fosse um artigo de perfumaria inserido no seio da Constituição, não se prestando de forma alguma como uma ferramenta de subordinação do presidente a uma decisão legislativa para utilizar as forças armadas (YOO, 2005, 2002; LEHMAN, 1992). Os adeptos da visão pró-Legislativo comumente relembram o debate sobre a Cláusula da Guerra ocorrido na Convenção Federal em 17 de agosto de 1787 (FARRAND, 1911, p. 318-319, tradução nossa). Até aquele então o rascunho da Constituição estabelecia que o Congresso teria o poder de “fazer guerra” (make war). Após debate, James Madison e Elbridge Gerry, delegados dos estados da Virgínia e de Massachusets, apresentaram uma emenda no sentido de substituir “make” por “declare”, “deixando o Executivo com o poder de repelir sudden attacks”. Ao final a mudança foi aprovada com 8 votos a favor e apenas 1 em contrário. Para o delegado Rufus King, representante de Massachusetts, o verbo “make” significaria conduzir a guerra o que, para ele e em sua época, era uma função estritamente executiva, do presidente portanto, sendo que ao Congresso não caberia a função de comandar a guerra. “Declare”, complementamos, teria uma acepção autorizativa para que o presidente iniciasse o uso da força militar.

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Por outro lado, os defensores da visão pró-Executivo questionam o verbo utilizado na Cláusula da Guerra e suas repercussões nas alocações do poder. Conforme destaca Adler (1988), para os adeptos da corrente pró-Executivo, a mudança de “make” para “delcare” induziu a uma interpretação forçada segundo a qual o presidente teria o poder de iniciar uma guerra já que o “make war” teria sido destinado ao presidente e o “declare war” ao Congresso. Yoo (2002, p. 31, tradução nossa) conclui mesmo que “declarações fazem simplesmente o que elas dizem fazer: elas declaram.” Nada mais. Ainda segundo Yoo (2005) o poder de “declarar” seria diferente do de “autorizar” hostilidades, isso porque ao tempo dos Pais Fundadores o costume dos países era iniciar guerras sem uma declaração formal pelo que, conclui ele, uma vez mais, declarar não significa necessariamente começar uma guerra. Este não reconhecimento do poder de check do sentido de “declarar” como autorizar o uso das forças armadas, diz ele, também era devidamente conhecido dos elaboradores da Constituição e, por isso mesmo, estes jamais teriam considerado a Cláusula da Guerra como um meio de controlar o presidente. A válvula constitucional para controlar os poderes de guerra do presidente, argumentam Yoo e Delahunty (2007), seria o do controle dos recursos, do financiamento das tropas, a exemplo do que ocorria na Inglaterra. Aqui adentramos ao terceiro ponto da controvérsia sobre a Cláusula da Guerra, notadamente o debate sobre se os elaboradores importaram o modelo de poderes de guerra inglês para a Constituição norte-americana. As vozes pró-Legislativo dizem que não, sendo contrariadas pelos próceres da visão pró-Executivo que enxergam uma simples importação do modelo monárquico inglês. No Federalist nº 69, Alexander Hamilton, no esforço concentrado de formar a opinião pública para que a novíssima Constituição fosse ratificada pelos Estados e apoiada pelos cidadãos, delimita os poderes de guerra na Inglaterra e nos Estados Unidos, caso a Lei Maior fosse confirmada pelos Estados. Ele posiciona com muita clareza a distinção entre os poderes de guerra do rei inglês e do presidente norte-americano. Há uma diferença importante, que é exatamente o ato de declarar a guerra. Nesse artigo, Hamilton diz que o poder de convocar e regular os efetivos e de declarar guerra são, nos Estados Unidos, prerrogativas eminentemente legislativas, sendo que, na Inglaterra, poderes da Coroa. Nesse ponto é preciso salientar que o sistema institucional inglês padecia de princípios próprios aos pesos e contrapesos estabelecidos nos Estados Unidos e que, portanto, não poderia haver uma mera importação do conceito britânico de poderes de guerra. Sob essa lógica, parece mesmo razoável se pensar que a distribuição dos poderes no Congresso, incluindo o ato de “declarar”, era uma forma de controlar a ambição desmedida do Executivo em termos de guerra. Yoo (2005) argumenta, ao contrário, que os poderes de guerra nas duas nações eram similares, sendo o ponto fulcral o controle, por parte do Congresso/Parlamento, dos fundos para as guerras. Conforme argumentam os adeptos da visão pró-Executivo, assim como na Inglaterra do século XVIII, nos Estados Unidos o poder de purse e o de sword estavam em mãos diferentes, o primeiro com o Legislativo e o segundo com o Executivo (SEVI, 2008), daí se concluindo que a Cláusula da Guerra não seria um meio de controlar o presidente, sequer de se supor que guerras apenas poderiam começar depois de declaradas ou autorizadas pelo corpo legislativo da nação. Como sustenta Yoo (2005), na Inglaterra os poderes de guerra do rei eram limitados unicamente pela autorização financeira do Parlamento, sendo que o monarca poderia iniciar conflitos a qualquer momento, cabendo aos representantes legislativos a decisão de cortar ou 25

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não os fundos para a continuação das batalhas. Isso também, na visão pró-Executivo, deveria ocorrer nos Estados Unidos, trocando-se apenas os atores: em vez do rei, o presidente toma seu lugar. Pode-se mesmo dizer que essa concepção de que o presidente, no trato da guerra, teria os mesmos poderes que o rei inglês (comando, declaração, regulação, convocação) e também as mesmas limitações (controle dos fundos pelo Legislativo) é uma interpretação deformada do intento original dos elaboradores que dá poderes não elencados na Constituição ao presidente. Persistir na reafirmação de tais noções é dizer, em outras palavras, que os colonos e a elite intelectual norte-americana não enxergavam um descontrole dos poderes de guerra nas mãos do rei inglês e, ainda mais, que os elaboradores desejavam reproduzir, na nação constitucionalmente nascente, os mesmos princípios que os oprimiram ao tempo da Revolução. Seria, mais precisamente, chancelar os “vícios” da monarquia inglesa. A questão fundamental que a corrente pró-Executivo não consegue responder e dirimir de forma razoável é saber por quais razões o poder de declaração de guerra saiu das mãos do rei e se transferiu, nos Estados Unidos, para o Congresso. Por que isso teria sido feito? Uma resposta plausível é a de que ela se constituía, sim, em uma ferramenta de controle dos poderes de guerra do presidente. Não se trata aqui de artigo de perfumaria ou uma excrescência institucional, mas sim de uma inovação institucional, muito provavelmente baseada na era clássica, descrita por Hallett (1998), em que as declarações de guerra, como na Grécia e em Roma, eram debatidas nas assembleias de cidadãos e não simplesmente impostas pela cabeça de um único homem. Em síntese, a visão pró-Legislativo defende que o check do Congresso está no fato de que apenas ele tem o poder de declarar e autorizar o uso da força militar e também a posse do poder de financiar os conflitos; já os defensores da interpretação pró-Executivo sustentam que, além das eleições, que poderiam destituir presidentes que erraram ao levar o país à guerra, o principal meio de controlar o uso da força pelo Executivo é a capacidade que o Congresso tem de precipitar o término da guerra a partir do corte de fundos – o poder de declarar guerra, nesse contexto, não teria qualquer efeito prático e não limitaria a decisão presidencial de mudar o status da nação da paz para a guerra, seja ela geral ou limitada. Tal debate é complexificado a partir de um quarto ponto, justamente as interpretações que são oferecidas para a figura do presidente como comandante-em-chefe definido na Constituição, basicamente se seu poder seria subordinado ao ou independente em relação ao Congresso, com ou sem prerrogativas unilaterais de guerra. Para a visão pró-Legislativo a cláusula do comandante-em-chefe é subordinada à Cláusula da Guerra. Conforme assevera Adler (2006), o comandante-em-chefe teria sido um personagem adaptado do sistema inglês de governo, e que estaria sustentado em dois princípios básicos, a saber: a união do comando militar em uma pessoa e a preservação da supremacia civil sobre a militar. Paulsen (2010), em igual sentido, afirma que o comandante-em-chefe tem o poder de conduzir a guerra, ou seja, o presidente enquanto comandante-em-chefe teria o poder de administrar a guerra. Já para a visão pró-executivo a cláusula do comandante-em-chefe não é controlada pela Cláusula da Guerra, e o presidente pode mobilizar as forças armadas sem qualquer interferência e limitação congressual (YOO E DELAHUNTY, 2001; YOO, 2003; LEHMAN, 1992). 26

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O presidente, investido pela Constituição como comandante-em-chefe, estaria despido de quaisquer peias legais em relação à guerra – seu poder, nessa questão, seria inerente. Tais argumentos inevitavelmente levam a uma aproximação tremendamente perigosa entre o presidente norte-americano e o monarca inglês. Seus poderes de iniciar guerras, justas ou não, seriam nominalmente os mesmos. Ou seja, o design dos poderes de guerra seria idêntico nos dois países. Isso, por certo, violenta a história e o espírito da transformação das treze colônias em unidades federativas autônomas interligadas pela lei e pelo governo federal. Complementarmente à interpretação difusa que se dá em relação ao propósito do presidente enquanto comandante-em-chefe da nação, o debate prossegue para um próximo ponto ligado agora à chamada doutrina do presidente como representante do Poder Executivo. Novamente aqui há uma disputa interpretativa. A guerra sempre fora vista como uma função eminentemente executiva, cabendo aos reis, príncipes e tiranos a prerrogativa de travá-la. Mesmo em Roma, quando os fetiales declaravam a guerra após o consentimento do Senado, cabia ao cônsul comandar o conflito (MAUREL, 1907). Em Montesquieu (1996) mesmo há a noção de que cabe ao Poder Executivo fazer a paz ou a guerra, enviar ou receber embaixadores, instaurar a segurança e prevenir as invasões estrangeiras. Locke (2001, p. 171), por sua vez, preceitua que cabe ao chamado “poder federativo” a “administração da segurança e do interesse do público externo”, sendo que seria prudente que este poder estivesse nas mãos das mesmas pessoas que controlassem o Poder Executivo, este tendo a função de executar as “leis internas da sociedade”. Dessa realidade histórica os adeptos da corrente pró-Executivo concluem que o presidente dos Estados Unidos também estaria autorizado a guerrear. A mudança, na Convenção Federal, do verbo utilizado na Cláusula da Guerra de “make” para “declare”, argumentam, reafirmaria a autoridade do presidente que, como a personificação do Executivo do país, teria poderes de guerra e de paz segundo o intento dos elaboradores. Em resumo, se a política externa e, em especial, a guerra era universalmente reconhecida como uma responsabilidade do ramo executivo do governo, a Constituição norte-americana teria acolhido tal costume, dotando o presidente de toda autoridade e poderes inerentes para que pudesse controlar os destinos do país em termos do uso da força militar. Afora a limitação dos fundos pelo Congresso, seu poder seria virtualmente ilimitado. Ora, tal interpretação parece caçoar de todo o projeto republicano dos Estados Unidos, subvertendo seus princípios. Para Adler (1988), o fato de o Executivo ser o presidente não significa, de forma alguma, que ele tenha poderes de guerra, tampouco haveria evidências de que os elaboradores disponibilizaram poderes não enumerados ao presidente, especialmente para o tema das relações exteriores. Pious (2007) também opina no sentido de que a cláusula que investe o presidente nas funções executivas do país não significa poder unilateral de guerra e paz, já que os elaboradores, segundo seus estudos, não adotaram a chamada “prerrogativa real” (crown prerogative) exercida pelo rei inglês e que lhe conferia potentes poderes discricionários para utilizar as forças armadas sob seu comando. Os poderes em relação a esses assuntos estariam, evidentemente, divididos entre Executivo e Legislativo. Conforme sustenta Koh (1990, p. 83, tradução nossa), “os framers projetaram o sistema de freios e contrapesos principalmente para o domínio das relações exteriores”. Nada, portanto, que garantisse poderes inerentes ao presidente enquanto chefe do Executivo.

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Um último aspecto do debate sobre a controvérsia da Cláusula da Guerra assenta-se na questão dos precedentes, tanto práticos quanto judiciários, do uso da força durante a história constitucional dos Estados Unidos. A esse respeito, Clinton Rossiter (apud LEHMAN, 1992, tradução nossa) destaca que “ambos os precedentes históricos e judiciais dizem a cada interlocutor no grande debate exatamente o que ele quer saber”, ou seja, por serem inúmeros e diversos, poderiam fundamentar tanto a visão pró-Legislativo quanto a pró-Executivo. Há, portanto, precedentes para todos as matizes interpretativas. Yoo e Delahunty (2007, p. 101, tradução nossa), ao diagnosticarem que os “presidentes há muito tempo iniciam conflitos sem uma autorização congressual específica” daí concluem que ela simplesmente não seria necessária. Os antecedentes do uso dos poderes de guerra legitimariam a ação unilateral do presidente, argumento complementado pelos poderes conferidos a ele como comandante-em-chefe, chefe executivo e responsável pelas relações exteriores. Por outro lado, como afirma Fischer (1995, p. 38, tradução nossa), “ações ilegais e inconstitucionais, não importa quantas vezes repetidas, não estabelecem um fundamento legal”. Assim, se há registros históricos de episódios em que o presidente levou o país à guerra, seja ela perfeita ou imperfeita, sem qualquer consentimento e autorização legislativa, tais eventos não poderiam ser avaliados como um precedente válido do ponto de vista constitucional, mas sim como uma aberração em relação ao que diz a Lei Fundamental. A medida aqui é separar precedentes constitucionais daqueles inconstitucionais. A corrente pró-Executivo, contudo, interpreta os precedentes inconstitucionais como se estes fossem a regra geral porque representativos da prática corrente. Argumentar isso seria o mesmo que defender que a lei criminal que proíbe e penaliza o roubo pudesse ser reinterpretada e, em função da prática desenfreada de tal ato delituoso, criando, portanto, precedentes, então o roubo, legitimado pela prática, pudesse ser liberado e tratado como normal, a regra comum da sociedade. O fato de presidentes norte-americanos terem utilizado as forças armadas a seu bel prazer, sem a autorização do Congresso, em nada modifica o que a Constituição estabeleceu em relação ao tema. A existência de casos que se afastam do rito constitucional de utilização da força militar pelo presidente mostra de forma irrefutável que algo ocorreu com a Cláusula da Guerra ao longo destes mais de dois séculos de República. Seu texto é o mesmo desde o primeiro governante, mas a deferência por parte dos presidentes, que no passado era a ela feita, parece ter sido transformada radicalmente. Desse estado de coisas decorre a noção de que, no debate teórico sobre o poder de guerra, a corrente pró-Executivo tem conseguido prevalecer, desdobrando-se, ao nível empírico, na ocorrência das chamadas “guerras presidenciais”, decididas pelo presidente, sem declaração de guerra ou consulta prévia ao Congresso.

Considerações finais A rigor, a Cláusula da Guerra, em nenhum período da história americana, foi cem por cento cumprida. As exceções sempre existiram e até a primeira metade do século XX constituíam-se simplesmente em exceções à regra. Os presidentes da época reconheciam que cabia ao 28

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Congresso declarar guerra e autorizar o uso da força armada no exterior. Prevalecia a visão pró-Legislativo. As exceções, contudo, tornaram-se mais frequentes e maiores em escala até culminarem na primeira grande guerra presidencial da Coreia em 1950. A partir daí a erosão dos poderes de guerra do Congresso seria acelerada com os presidentes associando seus poderes como comandante-em-chefe à possibilidade de começar hostilidades e comandar o uso da força armada sem qualquer deferência ao Legislativo. Esvaía-se, assim, o intento original da Constituição e seu sistema de checks and balances. Tal situação parece ter sido propiciada pela manifesta renúncia congressual dos poderes de guerra, notadamente o da Cláusula da Guerra, mas em geral também o do controle de fundos, e também pela consequente expansão dos poderes da presidência, que acabou abocanhando as prerrogativas legislativas da guerra para si. Atualmente, portanto, a visão pró-Executivo dos poderes de guerra é a predominante do ponto de vista prático, muito embora, conforme analisamos ao longo do artigo, suas proposições não detenham coerência quando apresentadas ao contexto histórico e ao chamado intento original dos elaboradores da Constituição no século XVIII.

Referências bibliográficas ADLER, David. George W. Bush as Commander in Chief: Toward the Nether World Constitutionalism. Presidential Studies Quarterly, vol. 36, nº 3, 2006, pp. 525-540. ___________. The Constitution and Presidential Warmaking: The Enduring Debate. Political Science Quarterly, vol. 103, nº 1, 1988, pp. 1-36. BAYLIN, Bernard. As origens ideológicas da Revolução Americana. Bauru: EDUSC, 2003. BOYLAN, Timothy. Constitutional understandings of the war power. Presidential Studies Quarterly, vol. 31, nº 3, 2001, pp. 514-528. EAGLETON, Thomas F.. War and Presidential Power: a Chronicle of Congressional Surrender. New York: Liveright, 1974. ELY, John Hart. War and Responsibility: Constitutional lessons of Vietnam and its Aftermath. New Jersey: Princeton University Press, 1993. FARRAND, Max (ed.). The Records of the Federal Convention of 1787. New Haven: Yale University Press, 1911, vol. 2. FISCHER, Louis. Presidential War Powers. Kansas: University Press of Kansas, 2004. FISCHER, Louis. The Korean War: On What Legal Basis Did Truman Act?. The American Journal of International Law, Vol. 89, nº 1, 1995, pp. 21-39. GRIMMETT, Richard. Instances of Use of United States Armed Forces Abroad, 1798-2009. Washington: Congressional Research Service, 2009.

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