O \"dedo de Deus\": narrativas chocantes nas páginas dos jornais Oitocentistas

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“O dedo de Deus”: narrativas chocantes nas páginas dos jornais Oitocentistas.1

Estevão de Melo Marcondes Luz Doutorando em História, UNESP/Franca, São Paulo

Resumo: O presente texto se propõe a identificar e analisar, nas páginas da imprensa periódica Oitocentista, narrativas nas quais são descritos acontecimentos violentos ocorridos, como assassinatos, crimes cometidos por escravos, por senhores, mulheres, assim como outros tipos de crime que causaram mortes. São acontecimentos trágicos que acabam por revelar alguns aspectos lamentáveis da vida cotidiana daquela sociedade Oitocentista, compondo um panorama de situações extremas que evidenciam as suas mazelas e possibilitam indícios sobre as suas relações sociais, culturais e políticas. As fontes analisadas são compostas por alguns periódicos que circularam no período e que foram digitalizados pela Hemeroteca Digital Brasileira/Fundação Biblioteca Nacional no Rio de Janeiro (RJ) e pelo Arquivo Público Mineiro em Belo Horizonte (MG).

O objetivo do presente texto é trabalhar com aquilo que denominei de “tragédias impressas”, histórias tristes e chocantes que foram anunciadas pela imprensa periódica no Oitocentos. Busco mapear e analisar estas passagens tendo como foco a forma como a imprensa retravava estes acontecimentos causados por situações extremas e por sentimentos diversos. Muitas

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Este texto teve sua versão inicial apresentada no XIX Encontro Regional da ANPUH/MG em 2014 e publicada em livro organizado pelo Museu Histórico Municipal “José Chiachiri”, em Franca (SP), tendo sido reformulado para esta apresentação na XX Semana de História da UNESP com novos fatos levantados e analisados em função dos avanços da pesquisa. * Doutorando em História pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP/Franca) onde desenvolve o projeto intitulado “Incendiarias Folhas: ação política e produção intelectual do padre Antonio José Ribeiro Bhering (1829-1856)”. É bolsista CAPES/DS.

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destas ocorrências tratavam de histórias de escravos assassinados por seus senhores, assim como relatos de senhores assassinados por seus escravos. As relações de tensão, agressividade e conflito no período da escravidão são sintomas tristes de um momento ainda mais triste da nossa história. Tal violência era, portanto, inevitável. Os escravos estavam lançados à própria sorte e a violência que sofriam constantemente por parte de seus senhores, por parte das forças públicas, assim como pela população em geral, em função da situação medíocre em que se encontravam, era vez ou outra extravasada na forma de violência. A crueldade sem limites era em certos momentos combatida por eles com a mesma fúria. Nas proximidades da cidade de Ouro Preto, em 1835, foram encontrados os restos mortais de um escravo que havia fugido acorrentado. O fato era comunicado por um correspondente do jornal O Universal indignado com a situação desumana dos escravos. “É necessário prezar mais a vida destes infelizes, que não tem alguma proteção, contra bárbaros senhores, que tratam melhor suas bestas, que aos míseros escravos”. Ele pedia ainda que as autoridades responsabilizassem o senhor e que a prática de acorrentar os escravos fosse proibida, pois assim exigiam a “filantropia, a humanidade, os direitos do homem”. Lamentando a sorte daquele escravo, que provavelmente cometeu suicídio devido à situação desprezível e desesperadora em que se encontrava, o autor pressionava as autoridades e comunicava que estaria vigilante quanto à investigação do fato. (O UNIVERSAL, 1835: N.2037) Outra cena lamentável ocorreu em 24 de julho de 1875 em uma fazenda na província de Minas Gerais. A mulher e a filha do proprietário de apenas 10 anos de idade haviam saído para um passeio “por um caminho que margeia o ribeirão do Angú” e tinham como única companhia uma cadelinha preta. No caminho tiveram um encontro fatal com “um crioulo de 18 anos, de nome Sabino, escravo da fazenda que de caso pensado achava-se de emboscada”. (CEARENSE, 1875: N.58)

Com uma cacetada dada na fronte da inocente menina deita-a por terra e depois com mão certeira fere-a no coração! Em balde de joelhos a coitadinha lhe diz súplice: Por que me queres matar, Sabino, nunca te fiz mal? Em seguida fere de morte a cadelinha, que com seus latidos tentava defender as vitimas de tão desumano algoz. Morta a menina o bárbaro dirige sua sanha para a outra senhora que lhe implora que a poupe e que em todo caso preferia morrer afogada no rio que a algumas braças caia em cachoeira com fragor medonho, a morrer ferida, pelo mesmo instrumento ainda gotejando do sangue de sua infeliz cunhadinha. A esta suplica cheia de angustia, um frouxo lampejo de compaixão brilha na alma empedernida do assassino,

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e depois de uma luta desigual, durante a qual a faca é arrebatada e arremessada para longe, a infeliz é arrastada pelos cabelos e lançada ao rio. (CEARENSE, 1875: N.58)

A mulher não veio a falecer. Foi levada pelo rio para longe daquela cena horrível que presenciara. Ironicamente a correnteza do rio, que ela desejou que a matasse afogada, a levou tão rapidamente que não teve tempo de se afogar. Foi encontrada quando já era noite desacordada sobre uma pedra. “É indescritível a cena de consternação e dor da família ao receber em seu teto o cadáver da pobre menina e o corpo lacerado de sua denodada companheira”. A suspeita já recaia sobre o desafortunado escravo Sabino que havia desaparecido. O delegado de polícia foi avisado e se deslocou até a fazenda para realizar os exames e colher as provas. Ele permaneceu na fazenda esta noite e foi quando o astuto Sabino, “por uma ginástica das mais hábeis conseguiu penetrar de noite na casa de engenho de socar café, onde dormiam o delegado, e sem ser pressentido apodera-se de uma pistola”. Os próprios familiares das vítimas não sabiam dizer o motivo de ele não ter praticado outro crime naquela noite. Ele foi preso no dia seguinte, não sem muito resistir, e “com o maior cinismo tudo confessou sem mostrar-se arrependido”. (CEARENSE, 1875: N.58) O destino do escravo Sabino estava selado. Pego pela policia o escravo não tinha chance alguma de sair ileso. A elite de toucinheiros2 à qual ele estava submetido certamente não pouparia sua vida, especialmente pensando que a punição deveria servir de exemplo aos demais escravos. A pena capital seria certamente imposta não fosse o destino, que guardava um final ainda mais triste e violento para o desafortunado escravo.

Quando o delegado no terreiro da fazenda interrogava-o para descobrir se havia alguns cúmplices entre seus parceiros, começa a acudir de longe e de diversas localidades uma multidão de pessoas de todas as classes e nacionalidades, atraídas pelo clamor de um crime revestido de tanta atrocidade. Aos gritos, ameaças, impropérios, vias de fato, em uma palavra, a indignação levada ao seu auge, de uma multidão que infrene queria com suas próprias mãos vingar o sangue inocente derramado, a autoridade não pode, apesar de todos os esforços, já persuasivos, já coercitivos, manter a ordem e fazer respeitar a lei. Foi baldado o esforço. O povo indignado arrancou o algoz da égide da justiça e pouco tempo depois fê-lo cadáver informe. (CEARENSE, 1875: N.58) 2

Assim se refere Wlamir Silva a esta elite “representante da sociedade de abastecimento mineira”. O termo seria fruto de um insulto proferido por um deputado da província do Rio de Janeiro aos colegas mineiros em 1831. Ver sobre o tema o texto do referido autor intitulado: “A imprensa e a pedagogia liberal na província de Minas Gerais (1825-1842)”. In. NEVES, Lúcia Maria Bastos P. das; MOREL, Marco; FERREIRA, Tania Maria Bessone da C. (orgs.). História e imprensa: representações culturais e práticas de poder. Rio de Janeiro: DP&A, Faperj, 2006, p.40.

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Casos como estes deixam transparecer o uso de uma violência extrema. Quais seriam as causas de atos extremos como estes? Levado por este questionamento fui buscar algumas explicações iniciais para tais acontecimentos. Os escravos, em especial, tinham uma condição social única e estavam constantemente submetidos às mais variadas formas de humilhação e violência. O ressentimento é bastante compreensível em situações traumáticas como estas. Embora a noção de ressentimento seja difícil de precisar, David Konstan analisa as relações entre os três tipos de ressentimentos em seus estudos, o psicológico, o social e o existencial. O ressentimento seria “um sentimento duradouro, não fugaz: cultivado e acalentado”. A ideia é que seria algo alimentado ao longo do tempo com base em humilhações – e aqui podemos pensar em situações humilhantes como inferioridade, ofensa, preconceito, discriminação, constrangimento, submissão – e não poderia ser descrito como “uma breve explosão de raiva”. (KONSTAN, 2004: 61) O ressentimento seria então,

uma atitude mental duradoura, causada pela repressão sistemática de certas emoções e afetos que são componentes normais da natureza humana. A repressão dessas emoções leva a uma tendência constante de se permitir atribuir valores incorretos e juízos de valor correspondentes. As emoções e afetos primordialmente referidos são vingança, ódio, malicia, inveja, o impulso a diminuir e desprezar. (KONSTAN, 2004: 62)

Tal definição parece esclarecer, até certo ponto, as motivações que levaram o escravo Sabino a cometer tamanha barbárie contra a criança e a mulher. As condições de vida humilhantes e a repressão sistemática de sentimentos e situações degradantes teriam se cristalizado e naquele momento Sabino acabou por extravazar toda sua condição, projetando naquelas mulheres todo seu ressentimento contra tal situação, e que é significativamente diferente da reação que tiveram as pessoas que o espancaram até a morte. O ressentimento, como ressalta Claudine Haroche, surgiria ainda como “uma resposta inconsciente, efeito longínquo de uma angústia ignorada, recalcada, ligada ao sentimento ameaçador de uma negação da existência”. (HAROCHE, 2004: 340) Outro episódio triste publicado pelo jornal O Universal ocorreu no Rio de Janeiro em 1839. Na Fortaleza da Lage estavam presos quatro “réus condenados a pena última pelos 4

crimes de assassinato e roubo”. Eles aguardavam o fatídico dia, mas quando os soldados foram buscá-los para a execução os mesmos estavam “livres dos machos dos pés por meio de uma lima que conseguiram introduzir na funda de um deles; e com esta lima e os pedaços de ferro fizeram a mais porfiada resistência instigando os soldados a que os matassem com tiros”. Ordenou o chefe de polícia que os mesmos fossem isolados em uma cela “para reduzilos pela fome e sede a entregarem-se”. Mas eles pareciam preferir por fim às suas próprias vidas do que se entregar. No dia da execução, quando abriram a cela, “um dos condenados procurou arrojar-se fora da porta e caiu quase desfalecido pela perda de sangue de uma ferida que acabava de fazer no pescoço tentando suicidar-se”. Em seguida os soldados puderam ver que “os outros três estavam mortos e degolados; uns aos outros se tinham tirado a vida com uma navalha”. Momentos de completo desespero viveram estes homens isolados dentro da cela tendo como certa a morte próxima. Aquele que havia caído desmaiado fora da cela não morreu na hora, mas foi executado cumprindo-se a pena a que tinha sido condenado. (O UNIVERSAL, 1839: N.24) Em 1840 outra história chocante foi publicada pelo jornal O Universal, de Ouro Preto, com o sugestivo título de “Assassinato horroroso”. Trata-se de um crime premeditado e com detalhes assustadores. Os envolvidos, uma mulher casada, seu marido e o amante. A tal mulher convida o amante para jantar em sua casa dizendo que o marido não estaria. Mas antes do amante chegar ela friamente mata o marido com um golpe de machado, abre seu peito e arranca o seu coração. O pior ainda estava por vir. Ela cozinha o coração do marido e deixa o jantar pronto para receber o amante. O jornal detalha com mais intensidade a chocante cena a seguir.

Chega o amante, ela lhe apresenta o coração de seu marido guisado, mas não quis cear! Logo que o amante acaba de devorar o coração do infeliz ela lhe pergunta – que tal esta o guisado? – Ele respondeu que bem feito; ela então o conduz ao sitio onde tinha seu marido com o peito aberto e lhe diz: – Olha, vê-lo ai esta meu marido, e o que tu comeste foi o seu coração!!! – O amante se horroriza, corre, da parte à justiça e este monstro com figura de mulher é capturado!!! (O UNIVERSAL, 1840: N.125)

O jornal O Bom Senso, de São João Del Rei, noticiava outro fato dramático. A matéria trazia o título de “O dedo de Deus” e relatava o impressionante desfecho de um surto de uma mulher que havia sido recolhida para o hospital daquela cidade e teria dito aos médicos que “o diabo 5

exigia que ela tirasse naquele dia ambos os olhos e a língua”. O doutor orientou que “por cautela fosse ela posta em uma camisola (aparelho de conter os loucos)”, mas ela conseguiu soltar-se e com os braços livres “lançou as mãos aos olhos e tirou-os”. Em seguida ela mordeu a própria língua, arrancando metade da mesma, e bateu com na “cabeça nas paredes, quebrando os dentes”.3 Passado o auge da loucura e recobrada a sua consciência a mulher revelou a motivação para tamanha insanidade. Disse que seus olhos “presenciaram tantas maldades, que tanto espreitaram a vida do próximo”, e que sua língua “tanto difamou [...] e blasfemou contra o Criador, que com malícia, e não se temendo a excomunhão da Igreja, impediu um casamento, ou fê-lo dissolver com calunias, e muitas outras coisas”.4 Estas motivações foram ironicamente analisadas pelo redator que buscava impressionar ainda mais os leitores, não bastasse a própria história horrorosa narrada. Estes relatos, portanto, além da obviedade dos acontecimentos, eram fruto do julgamento realizado pelos escritores e seus interesses na divulgação do fato. Neste sentido, é preciso estar atento às diferentes intenções dos escritores quando anunciavam tais ocorrências. O uso da linguagem figurativa e metafórica adotada pelos jornalistas do século XIX, assim como o emprego de narrativas carregadas de sentimento, de juízo de valor, preconceitos e de intenções moralizadoras, eram utilizados como forma de impactar e causar emoção nos leitores, assim como de combater ou defender alguém numa determinada situação, ou também de desqualificar, difamar e comover o público. O desenvolvimento da imprensa, portanto, foi central neste processo e possibilitou a formação daquela que alguns autores consideram uma “cultura dos impressos”, fazendo com que aquela sociedade, marcada por uma forte oralidade, fosse lenta e gradualmente se transformando com o desenvolvimento da imprensa.

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O Bom Senso, edição 377 de 24 de janeiro de 1856. O Bom Senso, edição 377 de 24 de janeiro de 1856.

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Referências

ARAUJO, Valdei Lopes de & SILVA, Weder Ferreira da. “Fragmentos de um periódico perdido: a Sentinela do Serro e o sentido da „republicanização‟ (1830-1832)”. Varia História, Belo Horizonte, v.27, n.45, p.75-95, jan./jun. 2011. BRESCIANI, Stela & NAXARA, Márcia (orgs.). Memória e (res)sentimento: indagações sobre uma questão sensível. Campinas: Editora da Unicamp, 2004. CAMISASCA, Marina & VENÂNCIO, Renato Pinto. “Jornais mineiros do século XIX: um projeto de digitalização”. Cadernos de História, Ouro Preto, ano II, n.01, p.1-8, 2007. CARVALHO, Marcus J. M. de. “A imprensa na formação do mercado de trabalho feminino no século XIX”. In. NEVES, Lúcia Maria Bastos P.; MOREL, Marco & FERREIRA, Tania Maria Bessone da C. História e imprensa: representações culturais e práticas de poder. Rio de Janeiro: DP&A; Faperj, 2006. HAROCHE, Claudine. “Elementos para uma antropologia política do ressentimento: laços emocionais e processos políticos”. In. BRESCIANI, Stela & NAXARA, Márcia (orgs.). Memória e (res)sentimento: indagações sobre uma questão sensível. Campinas: Editora da Unicamp, 2004.

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KONSTAN, David. “Ressentimento – História de uma emoção”. In. BRESCIANI, Stela & NAXARA, Márcia (orgs.). Memória e (res)sentimento: indagações sobre uma questão sensível. Campinas: Editora da Unicamp, 2004. KOUBI, Geneviève. “Entre sentimentos e ressentimento: as incertezas de um direito das minorias”. In. BRESCIANI, Stela & NAXARA, Márcia (orgs.). Memória e (res)sentimento: indagações sobre uma questão sensível. Campinas: Editora da Unicamp, 2004. MACHADO, Humberto Fernandes. “Imprensa e identidade do ex-escravo no contexto do pós-abolição”. In: NEVES, Lúcia Maria Bastos P.; MOREL, Marco & FERREIRA, Tania Maria Bessone da C. História e imprensa: representações culturais e práticas de poder. Rio de Janeiro: DP&A; Faperj, 2006. MOREL, Marco. “Independência no papel: a imprensa periódica”. In. JANCSÓ, István (org.). Independência: história e historiografia. São Paulo: Hucitec, 2005. NAXARA, Márcia Regina Capelari. “Pensando origens para o Brasil no século XIX: história e literatura”. História: Questões & Debates, Curitiba, n.32, p.47-64, 2000. NEVES, Lúcia Maria Bastos P.; MOREL, Marco & FERREIRA, Tania Maria Bessone da C. História e imprensa: representações culturais e práticas de poder. Rio de Janeiro: DP&A; Faperj, 2006. SILVA, Wlamir. “A imprensa e a pedagogia liberal na província de Minas Gerais (18251842). In: NEVES, Lúcia Maria Bastos P.; MOREL, Marco & FERREIRA, Tania Maria Bessone da C. História e imprensa: representações culturais e práticas de poder. Rio de Janeiro: DP&A; Faperj, 2006.

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