O delineamento da Estrada Real desde a serra de Rio Maior a Leiria em 1791

June 19, 2017 | Autor: R. Charters-d'Aze... | Categoria: History, Cartography, History of Cartography, Historical maps, Historia, Cartografia
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Descrição do Produto

Cartógrafos para toda a Terra produção e circulação do saber cartográfico ibero-americano: agentes e contextos

Cartógrafos para toda la Tierra producción y circulación del saber cartográfico iberoamericano: agentes y contextos

Cartógrafos para toda a Terra produção e circulação do saber cartográfico ibero-americano: agentes e contextos

Cartógrafos para toda la Tierra producción y circulación del saber cartográfico iberoamericano: agentes y contextos

Francisco Roque de Oliveira (org.)

Volume 1

Lisboa 2015

Cartógrafos para toda a Terra. Produção e circulação do saber cartográfico ibero-americano: agentes e contextos Cartógrafos para toda la Tierra. Producción y circulación del saber cartográfico iberoamericano: agentes y contextos organizador Francisco Roque de Oliveira comissão editorial Francisco Roque de Oliveira, Guadalupe Pinzón Ríos, Maria Helena Esteves, Maria Joaquina Feijão, Miguel Rodrigues Lourenço, Zoltán Biedermann revisão Daniel Paiva editores Biblioteca Nacional de Portugal (bnp) | Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa (ceg-ul) | Centro de História d’Aquém e d’Além-Mar da Universidade Nova de Lisboa e da Universidade dos Açores (cham, unl/uaç)

Biblioteca Nacional de Portugal – Catalogação na Publicação Cartógrafos para toda a Terra Cartógrafos para toda a Terra : produção e circulação do saber cartográfico ibero-americano : agentes e contextos = Cartógrafos para toda la Tierra : producción y circulación del saber cartográfico iberoamericano : agentes y contextos / org. Francisco Roque de Oliveira. – Lisboa : Biblioteca Nacional de Portugal : Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa : Centro de História d’Aquém e d’Além-Mar da Universidade Nova de Lisboa e da Universidade dos Açores, 2015. – 2 v. : il. Livro eletrónico. ISBN 978-972-565-529-0 cdu

528(46)”15/19”(091)(042)(0.034)

capa Fernão Vaz Dourado – Carta parcial da costa noroeste da América do Norte, [ca 1576], perg., il. color.; 385 × 277 mm bnp, Lisboa: IL 171, fl. 19 (pormenor)

Os trabalhos que integram esta publicação foram submetidos à avaliação por pares (peer review) feita por avaliadores externos à Comissão Editorial em regime de duplo anonimato (double-blind).

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Los trabajos que integran esta publicación fueron sometidos a evaluación por pares (peer review) hecha por evaluadores externos a la Comisión Editorial en régimen de doble anonimato (double-blind).

pré-impressão Área de Gestão Editorial bnp © Autores, Biblioteca Nacional de Portugal, Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa e Centro de História d’Aquém e d’Além-Mar da Universidade Nova de Lisboa e da Universidade dos Açores

apoios

In Memoriam Antonio Carlos Robert Moraes

volume 1 Cinquenta e um ensaios ibero-americanos de História da Cartografia 15 Francisco Roque de Oliveira Rumos da História da Cartografia 23 Francisco Contente Domingues

Parte i Os cartógrafos e as suas fontes Los cartógrafos y sus fuentes Fontes de origem portuguesa utilizadas por Piri Reis no Prefácio do Kitab i-Bahrye, 1526 37 Rui Manuel Loureiro Alonso de Santa Cruz: argumentos para considerarle el autor del Atlas de El Escorial 47 Antonio Crespo Sanz Isabel Vicente Maroto Nacimiento y evolución de la cartografía matemática en España. Las libretas de campo de tres cosmógrafos: Esquivel, Labaña y Santa Ana 81 Antonio Crespo Sanz Los mapas lícitos de publicar en Amberes. Redes, agentes y fuentes cartográficas usadas por Abraham Ortelius para el «Pervviae Avriferæ Regionis Typvs. Didaco Mendezio auctore», 1584 115 Sebastián Díaz Ángel Producción y circulación del saber cartográfico entre Europa e Italia a finales del siglo xvi y principios del xvii. Modelos geográficos y cartográficos para representar a la Tierra 149 Annalisa D’Ascenzo Percursos do engenheiro António Carlos Andréis em Cabo Verde, 1765-1779 171 Maria João Soares ¿Original o copia? La colección de Pedro De Angelis y la circulación de la cartografía en el Río de la Plata, 1827-1853 199 Teresa Zweifel

Parte ii Tecnologia cartográfica e disputas territoriais Tecnología cartográfica y disputas territoriales La línea de frontera brasileña en el mapa de Juan de la Cruz y Olmedilla de 1775 219 José Andrés Jiménez Garcés A outra face das expedições científico-demarcatórias na Amazônia: o coronel Francisco Requena y Herrera e a comitiva castelhana 243 Beatriz Piccolotto Siqueira Bueno Iris Kantor O padre Francisco Xavier Éder e as Missões de Moxos 265 István Rákóczi Mário Clemente Ferreira Trazos a ciegas: los mapas políticos de Sudamérica en tiempos de las revoluciones independentistas latinoamericanas 287 Carla Lois O território contestado entre a França e o Brasil no âmbito das Sociedades Geográficas Nacionais 317 João Paulo Jeannine Andrade Carneiro O delineamento da Estrada Real desde a serra de Rio Maior a Leiria em 1791 339 Ricardo Charters d’A zevedo La evolución de la representación cartográfica de las Islas Pontinas en el virreinato de Nápoles – siglos xvi-xviii 357 Arturo Gallia Proyección inglesa sobre las Islas del Pacífico novohispano a través de sus mapas y diarios de viaje – siglo xviii 371 Guadalupe Pinzón Ríos España y la legitimación de sus colonias decimonónicas en el Pacífico a través de los mapas de Francisco Coello 391 David Manzano Cosano

Parte iii A construção territorial do Brasil La construcción territorial del Brasil Análise semiótica da dimensão imaterial da cartografia histórica brasileira: o sentido territorial do Estado do Paraná no século xviii 413 Estevão Pastori Garbin Fernando Luiz de Paula Santil Cartografia Histórica da Capitania de Minas Gerais nos mapas de José Joaquim da Rocha do século xviii 429 José Flávio Morais Castro Território e História. Caminhos, vilas e cidades em Goiás no século xviii 447 Lenora de Castro Barbo Rômulo José da Costa Ribeiro Cartografia de terras e gentes: a guerra aos povos indígenas nas capitanias de Minas Gerais, Espírito Santo e Bahia no início do século xix 465 Maria Hilda Baqueiro Paraíso Caio Figueiredo Fernandes Adan Colonização e cartografia no sul do Brasil oitocentista: o exemplo de Emil Odebrecht 487 Enali de Biaggi Cartografia e experiência histórica no Império do Brasil 511 Leandro Macedo Janke

volume 2 Parte iv Cartografia e história urbana Cartografía e historia urbana «[O] Melhor Patrimonio do Estado»: representações não-portuguesas das cidades da Província do Norte do Estado da Índia, séculos xvi-xix 551 Joaquim Manuel Rodrigues dos Santos As cidades (in)visíveis: a representação urbana em mapas do Brasil 571 Renata Malcher de Araujo Vera Domingues

Sobre a biografia da Planta da Villa de Maceió e a cartografia do engenheiro inglês Carlos de Mornay em Alagoas 601 Maria de Fátima de Mello Barreto Campello A Porto Alegre Imperial 621 Daniela Marzola Fialho A cartografia da expansão da cidade de São Paulo no período de 1881 a 2001 639 Reinaldo Paul Pérez Machado Iara Sakitani Kako Buenos Aires, mapas y expansión. Cartografía y saberes urbanos en la construcción de la ciudad moderna 657 Graciela Favelukes Reinterpretaciones cartográficas: del origen a la Granada del xviii 675 Ana del Cid Mendoza Da evolução urbana à geografia histórica do Rio de Janeiro: uma análise da produção de Mauricio de Almeida Abreu 691 Pedro de Almeida Vasconcelos

Parte v Horizontes da cartografia náutica ibero-americana Horizontes de la cartografía náutica iberoamericana La Casa de Contratación de Sevilla, el Padrón Real, las cartas de marear y los inicios de la ciencia moderna 709 Mauricio Nieto Olarte La cartografía en los libros españoles de cosmografía, siglo xvi 731 Mariano Cuesta Domingo La cartografía náutica española en el siglo xvii: transición de arte a ciencia 757 Alfredo Surroca Carrascosa La cartografía en los libros españoles de náutica, siglo xviii 779 José María Blanco Núñez A Náutica na Reforma da Universidade de Coimbra, 1772: o fim do cargo de cosmógrafo mor e o nascimento das academias de ensino náutico 799 Nuno Martins Ferreira Troncos particulares de léguas: alternativa à carta de Mercator 821 António Costa Canas

El problema de los mapas náuticos con doble escala de latitud 843 Simonetta Conti A cristalização de um modelo: as Filipinas na cartografia portuguesa, 1554-1580 865 Miguel Rodrigues Lourenço

Parte vi Cartografias híbridas e imagens literárias Cartografías híbridas e imágenes literarias Topónimos/serpiente: sacralización del paisaje en las Relaciones geográficas, crónicas y documentos pictóricos del siglo xvi en México 901 Ángel Julián García Zambrano Imaginar Nuevo México en 1602. La representación de la tierra incógnita: encuentros y desencuentros cartográficos en la América colonial 927 Amaia Cabranes Rubio Cartografías de lo interno. Lo subterráneo en la construcción mítica de la Granada contrarreformista 949 Francisco Antonio García Pérez Os sertões: de realidade geográfica a imagem literária 971 André Heráclio do Rêgo El Sudeste Asiático europeo a través de la cartografía literaria: la literatura de viajeros españoles a Filipinas durante el siglo xix 981 José María Fernández Palacios Angola na cartografia colonial e na escrita de António Lobo Antunes 1003 Fabiana D’Ascenzo

Parte vii História da cartografia e divulgação de fundos cartográficos Historia de la cartografía y divulgación de fondos cartográficos Francisco de Borja Garção Stockler versus António Ribeiro dos Santos: os primeiros estudos de cartografia antiga em Portugal, 1805-1817 Francisco Roque de Oliveira

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A edição de Portugaliae Monumenta Cartographica e o seu significado político Carlos Manuel valentim

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El mapa geológico de México. La presencia de uma nueva disciplina en el México del siglo xix Lucero Morelos Rodríguez José Omar Moncada Maya

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Projeto «Atlas Histórico da Bahia Colonial»: promoção e difusão do saber cartográfico 1105 Erivaldo Fagundes Neves Maria Hilda Baqueiro Paraíso Caio Figueiredo Fernandes Adan André de Almeida Rego Raquel de Matos Cardoso do Vale Elane Fiúza Borges Jocimara Souza Britto Lobão Projeto «Album Chorographico Municipal do Estado de Minas Geraes, 1927: estudos críticos» 1121 Maria Lúcia Prado Costa Maria Aparecida Seabra de Carvalho Maria de Lujan Seabra de Carvalho Costa A importância da cartografia para o estudo da evolução da orla costeira: o exemplo do trecho Buarcos-Cova (Figueira da Foz, Portugal) 1135 Joana Gaspar de Freitas João Alveirinho Dias António Mota Lopes Helena Kol Herramientas tecnológicas para la difusión y el estudio de los fondos cartográficos de la Fundación Luis Giménez Lorente 1155 Jesús Palomar Vázquez Fernando Buchón Moragues

O delineamento da Estrada Real desde a serra de Rio Maior a Leiria em 1791 Ricardo Charters D’A zevedo Introdução

Até ao século xviii, construção e a conservação de estradas e caminhos esteve a cargo dos municípios, que nunca tinham orçamentos que permitissem responder às necessidades de deslocação dos cidadãos, com segurança e comodidade. No tempo de D. João v, o Estado central construiu uma ou outra estrada, foram casos isolados e raros, sem qualquer plano ou continuidade. O próprio Marquês de Pombal deixara por resolver este problema1, o que, para Damião Peres (1934: 6, 414), explicaria em parte o insucesso da sua obra. O primeiro governo que chamou a si a tarefa, foi, efectivamente, o de D. Maria i, publicando legislação inovadora para a época. É verdadeiramente importante o preâmbulo do mais antigo diploma legislativo que nesta matéria se publicou em Portugal – o Alvará de 28 de Março de 1791, bem como os regulamentos de 1 de Março de 1796. Anteriormente já se tinha dado início à construção, ou restauro, de várias estradas, mas as leis que ordenavam essas obras não tinham ainda o carácter genérico e pragmático que aquele Alvará apresenta. No início, a justificação para a reparação de vias, e para a sua manutenção, era a de facilitar os passeios da Corte, quando ela se deslocava no país2. A partir de 1784, parece depreender-se que se começa a apresentar «o bem

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Como não cuidou do exército, levando mesmo a que depois da sua organização pelo Conde de Schaumburg-Lippe, o seu estado fosse lastimável, como se viu quando da guerra das Laranjas. 2 O aviso de 7 de Maio de 1784 mandava reparar a estrada entre Alverca e Vila Franca de Xira, a fim de por ela poder transitar a Rainha quando se deslocava a Salvaterra. Igualmente, a 8 de Outubro de 1789, o conde de Valadares é encarregado de consertar a estrada de Aldeia Galega (actual Montijo) a Évora e Vila Viçosa, por causa da passagem do «Sereníssimo Senhor Infante D. Pedro Carlos».

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público», e não as comodidades da Família Real, como o verdadeiro móbil dos melhoramentos das vias. Assim, encontramos vias reparadas e construídas, ou os seus percursos corrigidos, sem a justificação de que eram obras para facilitar a deslocação da Corte: era, finalmente, para o bem público, e os fundos que permitiram realizar estas obras vinham dos cofres do Estado central. Claro que também se lhes agregou o produto de impostos municipais de algumas povoações que eram directamente beneficiadas. Foram, igualmente, construídas, ou reparadas, muitas pontes e construíram-se grande número de fontanários. Lembremo-nos que a deslocação obrigava a haver disponibilidade de água para pessoas e animais, sendo esse um dos principais critérios de escolha de um percurso. Os outros eram a existência de lugares de pernoita, e a inclinação do percurso (ou os «socalcos» como veremos à frente). A Câmara de Lisboa era, até finais do século xviii, a principal promotora de estradas, pois era a principal beneficiária. Estas permitiam fazer chegar mercadorias à capital do Reino e facilitavam a entrada e a saída dos cidadãos. Para o Norte de Portugal (acima de Coimbra), nomeadamente para o Porto, o transporte usado era o barco. Para o Algarve, o barco era o meio mais conveniente. D. Maria i, talvez para retirar poder e visibilidade política ao filho primogénito do marquês de Pombal, Henrique José de Carvalho e Melo (1748-1812), que era Presidente do Senado da Câmara de Lisboa, determina a construção de estradas nacionais, retirando esse poder aos municípios, publicando o alvará de 28 de Março de 1791: Eu a Rainha. Faço saber aos que este Alvará virem: que tendo entendido o estado de ruína, em que se achão as Estradas Públicas do Reino, ainda a mais principal dellas, que communica esta Capital com a Cidade do Porto […]. Resolvi mandar proceder ás Obras da Construcção das Estradas principaes, dirigidas á cómmoda, e útil communicação interna deste Reino; Ordenando que ellas se fossem gradualmente construindo pelo Methodo, Regulamento, e Plano, que tenho determinado (Alvará de 28 de Março de 1791 regulando as obras da estrada de Lisboa a Coimbra, e Porto, e do encanamento do Mondego). (Ius Lusitanie; azevedo, 2011: 137).

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Era assunto que Pombal, no seu «consulado» tinha descurado, mas era um plano ambicioso. Tratava-se igualmente da primeira tentativa séria que se fazia neste domínio, em Portugal. Por decreto de 1793, D. Maria i determina: […] E assim como os rios tornados navegáveis contribuem para o explendor, e opulência das Provincias, e Cidades, que regão, facilitando assim a comunicação de humas a outras Povoações, e o transporte dos géneros, producções, e mercadorias, da mesma maneira a construção das estradas públicas contribue para o mesmo fim, e dá igualmente a conhecer o estado de Policia, em que se achão os povos, e não he hum dos menores monumentos da grandeza dos Romanos os vestígios, que ainda se encontrão daquelas estradas, que desde as praças da Capital se dirigião a todos os limites do Imperio. Quis S. Magestade também distinguir o seu Reinado com estas demonstrações da grandeza do seu animo Real; nomeou para Inspector desta grande obra a José Diogo Mascarenhas Neto, e se começou logo com actividade, facilitando-se ao presente a estrada, que de Lisboa conduz até Coimbra; abandonou-se a antiga que pela inundação do Campo da Golegã se fazia muitas vezes impraticável, e para maior commodo dos viandantes se instituio hum coche de Posta, que em certos, e determinados dias parte de Lisboa, e de Coimbra; Continúa-se a mesma estrada, que em breve chegará ao Porto (silva, 1928: 4, 111, 112).

D. Maria i toma, ainda, por Alvará com força de Lei de 30 de Junho de 1798, outras medidas de consolidação dos conhecimentos criando uma Sociedade Real Marítima Militar e Geográfica para o Desenho, Gravura e Impressão das Cartas Hidrográficas e Militares, nomeando para esta sociedade uma plêiade de oficiais engenheiros. Este alvará tem, como memória justificativa, preocupações muito interessantes para a época, pelo que a transcrevemos mantendo a sua grafia: […] desejando Eu por todos os modos possiveis ampliar e favorecer aquelles uteis conhecimen­tos, que tem humna connexão mais immediata , seja com a grandeza e augmento da Minha Marinha Real e Mercante, seja com a melhor defenza dos Meus

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Estados, seja com a extensão das luzes, de que depende o mais exacto conhecimen­to de todos os Meus Dominios, para poder elevallos ao melhor estado de cultura, e promover as communicações interiores, assim como favorecer o estabelecimento de Manufacturas, que se naturalizem facilmente, achando huma fituação territorial, que mais lhes convenha: E sendo-me presente de huma parte a falta e penuria, que sente a Minha Marinha Real e Mercante de boas Cartas Hydrograficas, achando-se na necessidade de comprar as das Nações Estrangeiras, e de se servir muitas ve­zes de algumas, que pela fua incorrecção expõem os Navegantes a gravissimos perigos; e da outra parte reconhecendo a necessidade de publicar-se a grande e exacta Carta Geral do Reino, em que Tenho mandado trabalhar Pessoas de gran­de merecimento, e que nada tem que invejar, no que se acha já principiado, aos outros estabelecimentos da mesma natureza, que existem na Europa: E sentindo igualmente a necessidade de fazer gravar para o serviço dos Meus Exercitos Cartas Militares, assim como Cartas em que se delineem as Obras Hydraulicas de Canaes, e outras similhantes: Sou servida crear huma Sociedade Real Mariti­ma, Militar e Geografica para o Desenho, Gravura, e Impressão das Cartas Hydrograficas, e Militares, organizada e composta da fórma e modo, que se contém nos seguintes Artigos […] (Alvará de 30 de Junho de 1798 creando a Real Sociedade Marítima, Militar, e Geografica) (Ius Lusitanie).

Esta sociedade, e a efémera actividade da Tipografia Calcográfica e Literária do Arco do Cego, estabelecida em 1799 e fechada em 1801, enquadram-se nas organizações criadas em finais do século xviii com amplos interesses económicos. Criadas por iniciativa de D. Rodrigo Domingos de Sousa Coutinho (1755-1812), primeiro conde de Linhares e ministro da Marinha e do Ultramar, não só com o objectivo de desenvolver a cartografia, como difundir os trabalhos científicos no Brasil, muitos deles na área da botânica, agricultura e ciências naturais. Rodrigo de Sousa Coutinho deu um grande estímulo à agricultura no Brasil, promovendo uma política de renovação agrícola e de introdução de novas técnicas rurais. A Sociedade Real Marítima, Militar e Geográfica, actuou igualmente como catalisadora de vocações profissionais, como aquelas que foram pro-

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movidas pela Real Academia das Ciências de Lisboa, não só porque encorajava uma atitude escolástica, mas também porque favorecia a difusão de conhecimentos de índole prática, nomeadamente para as colónias portuguesas. Luís Pinto de Sousa Coutinho (1735-1804), futuro 1.o visconde de Balsemão – e mais tarde colega de governo do Dr. José da Silva de Seabra –, estando em Inglaterra como enviado extraordinário à Corte de Londres, tomou conhecimento que o governo inglês, inspirado e incitado pelos trabalhos geodésicos feitos em França, mandara, em 1784, proceder à triangulação de Londres até Dover. Regressando a Portugal, e sendo elevado a ministro dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, resolveu promover em Portugal os trabalhos geodésicos, base para uma correcta representação topográfica do terreno, encarregando o doutor Francisco António Ciera3 (1763-1814) de «formar a triangulação geral do Reino de modo, que se tirasse dela a duplicada vantagem de fornecer não só novas bases à teoria da figura da Terra, mas principalmente para servir de sólido, único, e incontestável fundamento à perfeita construção da Carta Geográfica do Reino» (mendes, 1965: 15). Para a triangulação geral do Reino, foram afectados aos trabalhos do doutor Ciera, dois ajudantes: Carlos Frederico Bernardo de Caula (1766-1835, tenente-general em 1834) e Pedro Sousa Folque (1744-1848, tenente-general em 1845) e encomendados os instrumentos necessários (ribeiro, 1874). Para Inglaterra solicitaram-se os seguintes: um círculo repetidor de Adams, um «paralaico» de Adams, um pêndulo e um cronómetro. Para França, um círculo repetidor de Lenoir4 e outros instrumentos. O doutor José Monteiro Rocha, matemático e astrónomo, encarregou-se de produzir as réguas para a medição das bases. Os trabalhos de triangulação geral do Reino iniciaram-se em 1788, mas em meados do século seguinte ainda continuavam. Ainda em 1860, o enge-

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Doutor em Matemática e lente da cadeira de Astronomia e Navegação da Academia Real de Marinha, natural do Piemonte (Itália), contratado como lente de Astronomia (1773-1782) na Universidade de Coimbra, director da Faculdade de Matemática (1778). 4 Encontra-se hoje no Museu do Observatório Astronómico da Universidade de Coimbra (Inv. n.o i-015).

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nheiro Wattier, encarregado de definir a linha de Leste, escreveu que as indicações que daria sobre o caminho-de-ferro de Badajoz no Alentejo seriam mais completas se tivesse à disposição uma carta mediocremente exacta de Portugal; «mas as cartas existentes em Portugal são de uma inexactidão de que não se pode fazer ideia. Não pude ter conhecimento, mesmo moderado, do país, senão depois de ter percorrido e estudado o terreno à vista» (abragão, 1956: 166). Quem coordenou o levantamento

O mapa topográfico que apresentamos (ca n.º 436) teve vários intervenientes na sua elaboração e que constam na legenda que o encima. Vejamos quem foram. Comecemos por José Diogo Mascarenhas Neto (1752-1826), que é indicado como desembargador superintendente Geral das Estradas. Este cargo foi criado para promover a abertura das estradas do reino, e como escreve Luz Soriano, a nomeação recaiu num desembargador «porque enfim os desembargadores eram naquele tempo tidos em conta de homens sabedores de tudo» (soriano, 1867: 176). Efectivamente, tem o historiador razão naquela maliciosa afirmação, mas não neste caso particular, pois Magalhães Neto, apesar de magistrado, não era leigo, nem inexperiente neste género de trabalhos. Como juiz de fora de Leiria tivera oportunidade de acompanhar as obras de estradas do conde de Valadares naquela região. É ainda da autoria de Mascarenhas Neto um livro de uma centena de páginas com o título Methodo para Construir as Estradas em Portugal, dedicado ao senhor Dom João Principe do Brazil editado no Porto na «oficina» de António Alvarez Ribeiro, em 1790. O livro está ilustrado com gravuras assinadas por Francisco Jo., representando o corte das bermas e dos desaterros das estradas e o seu sistema de construção. A obra aborda também o problema da arborização das estradas e da construção de barreiras [portagens] com custos a ponderar para o utilizador/pagador e reconhecendo neste caso «o público como devedor infalível» (neto, 1790: 69). Mascarenhas Neto revela, nesta obra, vastos conhecimentos, não só nas modernas técnicas usadas nos países europeus mais evoluídos, como a França e a Inglaterra, como da história, legislação e características das estradas nesses países. Embora, sem o citar, parece até que não ignorava as experiencias de

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1775 de Pierre-Marie-Jérome Trésaguet, em Limoges, e as de Thomas Telford, na Escócia. Podemos afirmar que foi um precursor do que John Loudon MacAdam (que deu origem às vias em «macadame») só fez no início do século xix. Na introdução à sua obra refere que «este método, que a natureza ensina, praticado actualmente em Inglaterra e na Escócia, e que os franceses também principiam a aplicar, é que me proponho escrever […] fundando-me não só na reflexão, mas também na experiencia da estrada, que principiei de Guimarães para o Porto» (neto, 1790: vi). Efectivamente, sendo juiz de fora em Guimarães, em 1789 «foi louvado por el-rei por ter iniciado á sua custa a construção da estrada que parte de Guimarães para o Porto» (Revista de Guimarães, 1988: 75); e no número ix do Alvará de 28 de Março de 1791, regulando as obras da estrada de Lisboa a Coimbra e Porto e do encanamento do Mondego, ordena-se «que o Methodo da Construção seja o mesmo, que com notória utilidade se principiou a executar na Estrada de Guimarães para o Porto» (Ius Lusitanie). Naturalmente a construção de estradas, de que o país estava carente, só era possível com levantamentos topográficos que permitissem decidir por onde deveriam passar, e com engenheiros que permitissem projectá-las e construí-las. Assim, enquanto desempenhou as funções de superintendente Geral das Estradas de Portugal, a «assistência técnica» alemã, como veremos a seguir, permitiu-lhe obter os primeiros levantamentos topográficos de forma a poder determinar os melhores percursos por onde deveria passar a estrada real e começar a projectar as pontes necessárias para ultrapassar os cursos de água. O ministro e secretário de Estado dos Negócios do Reino indicado no mapa topogaphico é José de Seabra da Silva, que foi protegido do conde de Oeiras, Sebastião José, segundo conta Jacome Ratton (1813: 159). Quando D. Maria i assumiu a regência do Reino a 15 de Dezembro de 1776, José de Seabra da Silva é nomeado Secretário de Estado dos Negócios do Reino, que abrangia a justiça, os assuntos eclesiásticos e as obras públicas. É nessa qualidade que José de Seabra da Silva dá instruções ao desembargador Superintendente Geral das Estradas, José Diogo Mascarenhas Neto, para elaborar o mapa.

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Figura 1. Gravura do século xix representando dois topógrafos no campo com apetrechos da sua arte (Gravada por Seyfried e desenhada por Land). (Col. Ricardo Charters d’Azevedo)

Os oficiais que fizeram o levantamento do terreno, em 1791

Luís Cândido Cordeiro Pinheiro Furtado Os oficiais que fizeram, em 1791, o levantamento do terreno por onde viria a passar a futura Estrada Real, pertenciam ao Real Corpo de Engenheiros. Do conjunto deles, o mais graduado é o coronel Luís Cândido Cordeiro Pinheiro Furtado (1750-1822). Foi Comandante do Real Corpo de Engenheiros durante 15 anos, Inspector do Real Arquivo Militar e Inspector de defesa da capital. Por Decreto de 19 de Outubro de 1798, D.  Maria i nomeou-o para membro da Sociedade Real Marítima Militar e Geográfica, conjuntamente com outros oficiais do Real Corpo de Engenheiros. Numa breve pesquisa nos arquivos cartográficos descobrimos inúmeras cartas topográficas elaboradas sobre a sua orientação. Conrad Heinrich Von Niemeyer A legenda do mapa indica-nos o sargento-mor Henrique Niemeyer, ou Conrad Heinrich von Niemeyer, como veremos à frente, como um outro

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responsável pelo levantamento. Trata-se de um oficial alemão proposto a Portugal pelo conde de Schaumburg-Lippe na sequência de um pedido do marquês de Pombal. A sua vinda resultou do acordo realizado em Londres, para que viessem 18 oficiais para apoiar e melhorar os aspectos técnicos e logísticos do exército português (sales, 1936). O Conselho de Guerra, por decreto de 5 de Fevereiro de 1775, admitiu ao serviço de Portugal 16 alemães como capitães, tenentes e sargentos, todos fazendo parte do documento negociado em Londres (sales, 1936: anexo 1). Em Maio de 1791, o capitão Henrique Niemeyer, na companhia do tenente-coronel Luís Cândido Cordeiro Pinheiro Furtado, o sargento-mor Joaquim de Oliveira, capitães Inácio José Leão e Manuel de Sousa Ramos e ajudantes João Manuel e Carlos Luís Ferreira da Cruz Amarante, segundo determinação real, farão a «superintendência das estradas da Capital até á cidade do Porto» (mendes, 1978: 20). Niemeyer, a 28 de Março de 1791, tem a responsabilidade do levantamento do mapa topográfico desde a serra de Rio Maior até Coimbra, para servir ao delineamento da Estrada Real (ca n.º 435). Procede igualmente aos cálculos dos três projectos de delineamento da estrada de Rio Maior a Leiria, que propôs a despacho ao Dr. José Diogo Magalhães Neto, como veremos a seguir, e trata dos projectos e cálculos da ponte sobre o rio Lis e da ponte sobre o rio Lena a Porto Moniz, de que existem plantas e cálculos no Instituto Geográfico Português (igp). Este Instituto possui no seu acervo, além da carta ca n.o 436, as cartas ca n.os 435, 437, 438, 439, 440, 441 respeitantes ao trabalho de delineamento da Estrada Real de Rio Maior a Coimbra. Existem também, no mesmo Instituto, as cartas ca n.os 442, 443 e 444 referentes ao atravessamento do rio Lena, e ca n.os 445 e 447, referentes à passagem sobre o rio Lis, bem como ao atravessamento das Olhalvas (ca n.o 446). Durante os trabalhos de levantamento do mapa topográfico entre a serra de Rio Maior e Leiria, a 16 de Junho de 1791, Conrad Heinrich von Niemeyer é promovido a Sargento-Mor. Niemeyer, que já se encontrava em Portugal desde 1778, aproveita a chegada do príncipe von Waldeck5

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O príncipe Christian Augusto von Waldeck (1744-1798) chega a 10 de Março de 1797, quatro anos antes da Guerra das Laranjas. General de cavalaria dos exércitos alemães,

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para expor duas pretensões (mendes, 1978). Encontramos no seu processo no Arquivo Histórico Militar cópia dessa exposição (ahm, cx. 422). Uma das pretensões apresentadas por Niemeyer era que fosse corrigido o seu nome6, pois quando foi integrado no exército português lhe tinham retirado o nome de Conrad; a outra era para que «pudesse cobrar cavalgaduras consignadas na Tesouraria da Corte, desde o tempo que deixou de as receber e continuasse a recebê-las na forma do estilo» (ahm, cx. 422). Enfim, pretendia que lhe fossem pagos os cavalos que utilizava nos levantamentos topográficos. Por Decreto de 19 de Outubro de 1798, D.  Maria i nomeou-o para membro da Sociedade Real Marítima Militar e Geográfica conjuntamente com outros oficiais. A 25 de Julho de 1797, Niemeyer, já tenente-coronel, pede para ser graduado coronel, e não só lista todos os trabalhos efectuados desde 1796, como numa outra exposição refere que é pai de família, com três filhos e quatro filhas, tendo-se encontrado sempre longe de sua casa, devido às comissões de que tinha sido encarregado até aí. Levou uma vida a «trepar montes, procurar serras e vadiar rios e pântanos, exposto a todos os rigores das diversas estações, sem que a meu ver, não se podem adquirir as noções completas e adequadas e indispensáveis para configurar um mapa topográfico, o verdadeiro estudo do país, nem é possível projectar alguma obra com própria e intima convicção» (ahm, cx. 422). Mencionava naquela exposição que tinha sofrido, por diversas vezes, ataques de reumatismo e gota, embora tivesse somente 41 anos. Tinha igualmente escapado de ser assassinado e de morrer afogado.

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serviu a Áustria contra os turcos, depois contra a França, tendo perdido um braço no cerco de Thionville, em 1792, é contratado como marechal do exército português «encarregado do governo das armas de todas as tropas em qualquer parte destes reinos». Pouco pode fazer pois faleceu em Sintra a 24 de Setembro de 1797. Niemeyer acusava o seu capitão de artilharia João Haupe, chefe do destacamento dos oficiais e militares seleccionados pelo conde de Lippe de ser o culpado da adulteração do seu nome, pois procurou sempre aportuguesá-lo e simplifica-lo. Encontramos no Arquivo Histórico Militar, nas capas dos processos a ele referentes, por exemplo, Conrad traduzido por Carlos, e Heinrich por Henrique, ou ainda Niemeyer por Nimaia: o que ele deve ter «sofrido»!

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Conrad Heinrich von Niemeyer, nasceu em Hanôver, a 4 de Maio de 1761 (ahm, cx. 424). Era filho de um oficial general alemão, o tenente-general Jacob Conrad Von Niemeyer (1730-1807), chefe do 8.o Regimento de Cavalaria Hanoveriana e que tinha a alcunha de «casco de prata» por ser com este metal que lhe substituíram uma parte do crânio perdida no ardor de um combate durante a Guerra dos Sete Anos, e que ocultava sob um barrete de veludo verde (azevedo, 2011). Conrad Heinrich von Niemeyer falava francês e inglês – e mais tarde português –, frequentou durante 8 anos a Escola Militar (a Aula Militar, como se chamava) estabelecida no Condado de Lippe de Sternberg pelo conde reinante Wilhelm Graf von Schaumburg-Lippe, estudando artilharia e engenharia. Parece que só no início de 1778 chegou a Portugal, portanto com 17 anos, e a 15 de Maio desse ano é ajudante de infantaria com exercício de engenheiro, com soldo dobrado. Chegou a coronel de artilharia. Casou-se com uma filha de Manuel Dantas Correia, director da Fabrica de Pólvora de Alcântara7 (mendes, 1978), Firmina Angélica, tendo tido 6 filhos (azevedo, 2011), cuja descendência se dispersou pelo Brasil, Alemanha e Portugal, morrendo em Lisboa, a 13 de Fevereiro de 1806, com quase 50 anos tendo sido sepultado na Igreja de S. Domingos8. O mapa

O ca n.o 436 do catálogo de cartas antigas do igp, mede 2378 × 761 mm e pode-se considerar precioso sob todos os aspectos. Tem ao meio, em baixo, a indicação da escala onde se refere que «petipe de meya legoa» é de 1400 braças, o que corresponde no mapa a 155,5 mm. Envolve o levantamento marginal ao longo de toda a extensão da estrada. Povoações, lugares, caminhos, quintas, linhas de água, relevo, terras de cultura, etc., tudo é assinalado e bem desenhado. Está todo dese-

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Não conseguimos confirmar a existência de um director com este nome na Fabrica de Pólvora de Alcântara. 8 Ver a sua descendência em Charters-d’Azevedo (2011), ou em Famílas de Leiria. Disponível em: . Data de consulta: 7 de Outubro de 2013. Era tetravô do arquitecto Óscar Niemeyer, que projectou edifícios públicos para a cidade de Brasília.

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nhado a preto, e à pena, de forma primorosa. As povoações e casas são assinaladas a carmim. Estão igualmente assinalados os termos de Leiria, Batalha, Porto de Mós, e Santarém e os Coutos de Alcobaça, dando-se num quadro, em braças quadradas, as áreas dos respectivos terrenos levantados, bem como as partes cultivadas e incultas. Num outro quadro, desta vez estatístico, e referido ao ano de 1791, informa-se sobre a população por freguesias, descriminando-se os números de fogos, pessoas acima dos sete anos (homens e mulheres), eclesiásticos (clérigos, religiosos e religiosas), nascidos (masculinos e femininos), falecidos e casamentos. De notar que o quadro da população nos permite tirar umas conclusões interessantes. Em 1791, por exemplo, Leiria tinha 722 fogos para uma população de 2867 indivíduos de homens e mulheres, com mais de 7 anos, o que correspondia a cerca de 8% de religiosos na freguesia de Leiria. Assim tinha cerca de 4,3 indivíduos maiores que 7 anos por fogo para a mesma freguesia. A taxa de mortalidade era, em 1791, de 3,9%! Este mapa permite-nos ficar com uma visão da forma como a engenharia portuguesa da época, projectava a construção de estradas, determinando, por exemplo, a população que estava na sua zona de influência directa. Veremos, mais à frente, o cuidado que se teve na determinação do percurso mais vantajoso. Encontramos ainda no acervo do igp outras cartas, ou mapas, onde se mostram parte dos cálculos que levaram à adopção do percurso escolhido. Por exemplo, a carta ca n.o 439 – Dos tres projectos de direcção para a Estrada desde a Serra de Rio-Mayor athe Leiria, calculado, e posto em ordem pelo Sargento Mór Engenheiro Henrique Niemeyer: Nelle se mostrão o numero das linhas, pontes, sucalcos, e suas elevaçoens, e xafarizes a fim de que com brevidade, e exacção se possão combinar sobre o Mappa Topographico os mesmos projectos e adoptar-se o que se conformar com o Alvará de 28 de Março de 1791. Este documento será, mais à frente, abordado em mais detalhe. Existem igualmente documentos (mendes, 1969) mostrando a ponte velha sobre o rio Lena, o projecto da que se iria construir, com a referência ca n.o 442, ou, ainda, sobre a ponte do rio Liz (referências ca n.º 445 e ca n.º 447, todas do igp).

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As variantes estudadas em 1791

A ideia era de se abandonar o traçado da chamada estrada velha que se dirigia a Coimbra, passando por Santarém, Golegã, etc., pois durante o inverno se tornava muitas vezes intransitável pelas inundações do Tejo nos campos da Golegã. Conrad Heinrich von Niemeyer, nessa altura sargento-mor engenheiro, propôs três alternativas «de direcção para a Estrada desde a serra de Rio-mayor athe Leiria» (ca n.o 439). Para cada alternativa indicou o «numero de linhas, pontes, sucalcos, e suas elevações, e chafarizes». As 3 alternativas propostas (ca n.o 439) foram as seguintes: Direcção ao longo da Serra, Poço dos Candeeiros, «Muliano», Pedreiras, Chão de Feira, Calvaria, Canoeira, Oiteiro do Vieiro, Porto-Moniz, Leiria. Este percurso teria 20 989 braças, ou 7 ⅜ léguas e 339 braças, com 21 socalcos, 4 pontes e 3 Chafarizes. Direcção ao longo da serra de Albardos, a S. Sebastião das Pedreiras, Tojal de Cima, Quinta do Sobrado, Batalha, Golpilheira, Venda da Cortiça, Vale Seco, Rego travesso, Leiria, correspondendo a 20 780 braças, ou 7 ⅜ léguas e 130 braças, com 19 socalcos, 8 pontes e 4 chafarizes. Direcção da Serra de Rio-Maior ao Poço dos Candeeiros, Moinho da Zambujeira, Vale de Cavalos, Évora, «Chequeda», Aljubarrota, Chão de Feira, etc. Este percurso teria 21 977 braças, ou 7¾ léguas e 277 braças, com 38 socalcos, 7 pontes e 4 chafarizes. Sobre estas propostas, apresentadas pelo sargento-mor Conrad Heinrich von Niemeyer, o desembargador superintendente Geral das Estradas, José Diogo de Mascarenhas Neto, exarou o seguinte interessante despacho com contornos económicos e sociais, bem como técnicos, datado da Porcalhota (hoje Amadora), a 4 de Junho de 1792: Na direcção da Serra e Calvaria se combinão todas as circunstâncias necessárias pa se construir com economia huma estrada sólida e durável porque o terreno contem quase sempre uma base sólida abunda de pedra de saibro e em alguns sítios tem grande quantidade de talco, com que se pode fazer a mais bela e durável estrada, sendo de notar que a maior parte das suas linhas se produzem horizontais: existe agoa nos Candieiros, no sitio das Pedreiras perto dos Carvalhos, e na Calvaria, e esta ultima além de ser mta e de excelente qualidade já tem hum chafariz feito. Por

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este diliniamto se reduz a estrada a 7 ⅜ legoas e 339 braças aonde a maior distancia, em que se encontra agoa abundte e disposta pa xafaris, he de três legoas desde os Candieiros athe aos Carvalhos, mas quase no meio deste espaço há o poço do Muliano, de q uzão os habitantes daquele districto, e q com despeza se pode melhorar mto. He de notar q a configuração da serra pelo poente, o principio e acabamto dos seus valles e as cavidades q se observão no terreno, tudo indica q as agoas vertentes da mesma serra vão depozitarse em alguns espaços interiores de q se forma o grande nascimto do rio Alcobaça no valle de Xiqueda, e como o nível entre a baze da serra cado nascimto não tem elevação total considerável fica sendo possível q o trabalho, e a arte venha a conseguir agoa abundante entre os Candieiros e os Carvalhos o q não pode esperarse da pobreza e rusticide actual dos poucos habitantes daquele espaço. Não faz argumto contrario não terem os frades Bernardos achado agoa na quinta de Val de Ventos fazendo pa isto diliga e despeza, por qto a mesma quinta se acha situada na maior altura da baze da serra. O  diliniamto refdo seria mais longo q a linha recta total impraticável ¼ legoa mais 134 braças, e mais perto q a estrada de q usão os Povos ¼ legoa mais 111 braças. A direcção da Serra e Batalha sim he mais curta que a antecedente 209 braças, mas exige mto maior despeza tanto pella configuração, como pella qualide do terreno, necessita de mais pontes e grandes socalcos quase em continuação pelo espaço de ½ legoa entre a Batalha e a venda da Cortiça, e nunca se pode considerar huma estrada tão sólida e commuda, como a do pro projecto, no qual athe concorrem situaçens mais alegres, e posto q na Batalha, na venda da Cortiça e no Tilheiro se encontra agoa, isto não iguala as vantagens do chafariz da Calvaria. A  direcção dos Coutos a vista das antecedentes se deve reputar inconcideravel pois q excede a da Calvaria ¼ legoa maid 288 braças, ehe mais longa q a mesma estada actual 177 braças, contem dificuldades, nas quais só com enorme despeza se pode conseguir huma estrada boa, taes são Val de Cavalos e a passage de Xiqueda por distancia de mais de 1 legoa com toda a diferença de socalcos notada neste mappa; sim pode ter mais agoas mas isto não equivale as vantagens ponderadas na direcção da Calvaria, nem ainda as q contem a da Batalha, e nella existe agoa nas distancias convenientes ao

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transporte e a viagem: ambas aquellas poas direcçoens gozão da fertilide dos Coutos, por onde passaria este ultimo diliniamto porq ficão existindo na distancia de huma athe duas legoas emq se podia abrir huma estrada de comunicação e assim mesmo junta com a da Calvaria vem a ser de mto menor despeza q a do deliniamto dos Coutos pois que toda a de passage de Xiqueda, q se evita, he a mais considerável. O  deliniamto pella Calvaria he dos três projectos o que faz menores danos, pois se dirige por terrenos de menos valor pella sua qualidade, e cultura, e huma ponte, que se deve construir no rio Lena perto de Leiria vae juntamte servir de grande interesse aquella cide q d’Inverno chega a estar incomunicável por hum dos lados mais importantes do seu comercio por falta da ponte, porqto a q existe he sobreposta ainda pelas piquenas cheias. O sitio dos Candieiros necessita de huma estalage, e da mesma forma a dos Carvalhos porq além de se combinarem neles abunda de materiaes fertilide e agoa são as poziçoens proporcionadas pa estabelecimto de Postas ficando apra do lugar de Riomaior com a distancia de duas legoas, outra dos Candieiros athe aos Carvalhos com pouco menos de três legoas, e a ultima athe Lra com pouco mais de três legoas. A passage da serra de Riomaior e a ponte do Lena são no deliniamto preponderado os pontos convenientes pa creação de Barreiras. A agricultura do terreno comprendo no mappa conciste em Azeite, Trigo, milho e vinho principalmte na porção que pertence aos Coutos e na de Leiria, tudo isto esta no atrazamto e quantide que se pode esperar sendo a Povoação de todo aquele espaço 9594 pertencendo porisso a cada legoa quadrada menor q 1800 habitantes, q respirão pobreza e rusticide; mas a construção da estrada fará com a facilidade da exportação e a fluência da viagem o aumento da Povoação e progresso da agricultura de q o terreno he susceptível principalmte nos sítios notados pa Postas e estalages, na Calvaria e districto da Batalha, aonde se combinão as circunstâncias convenientes a fertilidade e a saúde. Porcalhota, 4 de Junho de 1792, José Diogo Mascarenhas Neto (ca n.o 439).

Ao ler atentamente este despacho vemos como ele faz a escolha do percurso (do delineamento, como é escrito), não só em termos do número de léguas, mas também tendo em atenção a existência de materiais perto do

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percurso que permitiram baixar o custo da construção, como a existência de pontos de água para os viajantes. A  necessidade de mais ou menos pontes e os «socalcos» que cada uma das soluções apresenta, foram igualmente analisados. O  despacho equaciona igualmente a construção de postos de Posta, bem como verifica que os terrenos da solução adoptada não são dos melhores para a agricultura. No fim, tece algumas considerações sobre o impacto que a construção da estrada, assim como a criação de postos da Posta e de Estalagens, terão no desenvolvimento das povoações onde aquela irá passar. Abreviaturas

ahm – Arquivo Histórico Militar igp – Instituto Geográfico Português Referencias bibliográficas

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IGP ca n.o 435 [1796] – mappa topograhico / Desde Rio mayor tê Coimbra para servir ao deliniamento da Real Estrada na comformidade do Alvará de 28 de Março / de 1731 e das instruçoens dadas pe lo Illmo. Exm.° Snr. Joze de Seabra da Silva Ministro e Secre / tario de Estado dos Negocios do Reyno, ao Dezembargador e Superintendente Geral das Estradas Joze Diogo Mascarenhas Neto, Levantado pelos Offeciaes do Real Corpo de engenheiros o Sargento-mor Joaquim de Oliveira, / Henrique Niemeyer, e o primeiro Tenente João Manoel./ Borrão reduzido pelo Capitão Ignácio Joze Leão, e o segundo Tenente Carlos Luis Ferreira Amarante. / Quartel de Leyria 16 de Abril de / 1796. Ms., color., em papel forrado sobre tela 2222 × 311 mm. Esc. gráf. de 2800 braças = 126,5 mm. ca n.o 436 [1793] – mappa topographico / Levantado / em m.dcc.xci. / Pelos Officiaes de Infanteria com exercicio de Ingenheiros / O Coronel Luiz Candido Cordeiro Pinheiro Furtado, / e o Sargento-Mor Henrique Niemeyer, / Desenhado / Pelo segundo Tenente Carlos Luiz Ferreira da Cruz Amarante, / Para servir de deli-

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neamento da estrada desde / A Serra de Rio-Maior athe Leiria, / Na conformidade do Alvara de xxviii de Março do mesmo /anno e das instruçoens dadas / Pelo Illm.° e Exmo. Sor. Joze de Seabra da Silva / Ministro e Secretario de Estado dos Negocios do Reino / Ao Dezor. Superintendente Geral das Estradas / Joze Diogo Mascarennas Neto. / Quartel de Condexa. / 16 de Agosto de 1793. Ms , color., em papel borrado sobre tela. 2378 × 761 mm. «Petipe de meya legoa» (1400 braças) = 155,5 mm. ca n.o 438 [1792] – mappa topographico / Levantado em 1791 pelos Officiaes de Infantaria com exercicio de Engenheiros / o Sargento-mor Joaquim de Oliveira e o Ajudante João Manoel da Silva de / senhado pelo Capitão Ignacio Joze Leão para servir ao deliniamento da / Estrada desde Leiria athe Coimbra na comformidade do Alvara de 28 de Mar/ ço do mesmo anno e das instrucçoens dadas pelo Illmo. e Exmo. Snr. Joze de Seabra / da Silva Menistro e Secretario de Estado dos Negocios do Reino ao Dezembar / gador e Superintendente Geral das Estradas Joze Diogo Mascaranhas Neto./ Quartel de Condexa 26 de Agosto de 1792. «A nova estrada projectada vai notada com a linha de carmim». Ms., color., em papel. 2668 × 670 mm. Esc. gráf. de 1 400 braças = 127,5 mm. ca n.o 439 [1792] – mappa / Dos tres projectos de direcção para a Estrada desde a Serra de Rio-Mayor athe Leiria, calculado, e posto em ordem pelo Sargento Mór Engenheiro Henrique Niemeyer: Nelle se mostrão o numero das linhas, pontes, sucalcos, e suas elevaçoens, e xafarizes a fim de que com brevidade, e exacção se possão combinar sobre o Mappa Topographico os mesmos projectos e adoptar-se o que se conformar com o Alvara de 28 de Março de 1791. Ms., a preto, em papel. 677 × 472 mm. ca n.o 442 [1794] – Planta do Rio Lena, e suas margens no citio / de Porto Moniz, e onde na direcção da nova / Estrada Real se deve construir a Ponte Lena / com o Projecto da nova direcção do Alveo, e / Leito do dito Rio / Feita pelo Sargento Mór Henrique Niemayer em / Março de 1794 as. / No Quartel de Leyria / Dezenhado pelo Segundo Tenente Carlos Luis Ferra. da Cruz Amarte. Ms., color., em papel. 600 × 440 mm. Esc. gráf. de 100 braças = 129 mm. ca n.o 445 [1794?] – Pertence ao Terreno junto de / Leiria / e projecto da ponte do Rio Liz. Ms., a preto, em papel. 594 × 277 mm. Esc. gráf. de 200 braças = 133,5 mm. No verso está escrito: «Niemeier».

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