O desafio dos direitos humanos na América Latina

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Thiago Machado Bittencourt1 O desafio dos direitos humanos na América Latina contemporânea 2

Em um dos capítulos de Democracy in Latin America: Political Change in Comparative Perspective, Peter Smith traça uma análise relativa à evolução histórica da democracia na América Latina. O autor considera que a região, durante o século XX, foi primordialmente caracterizada por três ciclos políticos, o último dos quais corresponderia à preponderância da democracia eleitoral, a partir da década de 1970. Sem dúvida, a especificação que Smith faz é mister para compreender os desafios que persistem a assolar o continente. A democracia constitui-se de inúmeras vertentes, dentre as quais a eleitoral. Na América Latina, embora se possa notar grande avanço nesse aspecto específico da democracia, ele ainda não foi completamente resolvido. Além disso, ainda há uma série de outras questões que precisam ser solucionadas para que se consolide um verdadeiro e pleno ambiente democrático e condizente com os direitos humanos. --A democracia eleitoral fundamenta-se na lógica de o povo “governar e ser governado”. Para que ela seja conquistada, basta que determinado país tenha um sistema político apropriadamente estruturado, baseado em eleições. A América Latina, a partir das redemocratizações, vivenciou grande progresso nessa questão: o fim de ditaduras possibilitou maior acesso do povo à política. Contudo, deve-se notar que a efetiva participação popular na definição dos rumos nacionais ainda está aquém do ideal. Uma das principais razões para tal é o fato de que muitos partidos políticos, apesar de apelarem a uma audiência que é simultaneamente vasta e heterogênea, ostentam estruturas elitistas. Isso se deve principalmente ao histórico de tais partidos, os quais emergiram predominantemente como veículos para facilitar a ascensão de indivíduos específicos ao poder. No Brasil, por exemplo, esse caráter exclusivista das entidades políticas contribuiu

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Thiago Bittencourt é graduando em Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e pesquisador entusiasta sobre Globalização, Desenvolvimento e Direitos Humanos. Pode ser contatado por meio do e-mail [email protected]. 2 Esta dissertação foi utilizada como resposta a uma avaliação para a disciplina Democracia e Segurança na América Latina, lecionada pela professora Claudia Fuentes Julio em 2015.

para a eclosão dos protestos de 2013, os quais, em regra, se caracterizaram pelo imenso repúdio do povo aos partidos que o deveriam representar. Ainda assim, o viés eleitoral da democracia nos países latino-americanos também sofre de outros contratempos: um relacionado primordialmente à sociedade, e o outro, ao aparato militar. Em alguns Estados, o ambiente político continua a ser carregado por imensa polarização, o que dificulta o processo de coesão social. Uma ilustração desse fenômeno pode ser observada no passado recente (última meia dúzia de anos) da Nicarágua. Nesse país, as disputas entre os Sandinistas e os grupos opositores mantiveram-se mesmo depois de 2006, com a eleição de Daniel Ortega, e a subsequente vitória sandinista nas eleições municipais. A questão, porém, torna-se mais complexa ao considerarmos que o desenvolvimento de sociedades menos polarizadas não garante, necessariamente, o triunfo das práticas eleitorais, em especial na América Latina. A região apresenta democracias que evoluíram de regimes, muitas vezes, militares. Mesmo após os períodos de transição, a influência política das Forças Armadas não foi completamente minada. No Chile pós-Pinochet, por exemplo, a hierarquia militar herdara tanta força estatal que se assemelhava a um “quarto poder” do governo. A maior problemática enfrentada pela América Latina atualmente é que o conceito de democracia passou a abarcar muito mais do que seu mero aspecto eleitoral. Cada vez mais, a democracia associa-se a noções como de “justiça”, “liberdade”, “progresso” e “direitos humanos”, como um todo. Essa expansão do conjunto de expectativas que os indivíduos têm com relação a um ambiente democrático resulta em transformações globais, as quais se apresentam de forma bastante intensa na América Latina, em particular. Essa perspectiva encara a democracia como uma “busca constante” por mais realizações, algo que não apresenta fim aparente, como explicitado por este seguinte trecho de Pierre Rosanvallon, citado pelo relatório Democracy in Latin America: Towards a Citizen’s Democracy, do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento: We must consider what has not been achieved, the ruptures, tensions, limits and denials, which indirectly form part of the experience of democracy. Thus democracy poses a question that remains permanently open: it seems that it has never been possible to provide a completely satisfactory answer. Democracy presents itself as a system of government that is always characterized by the lack of fulfillment and completion. (ROSANVALLON, 2002, apud PNUD, 2004).

Nesse sentido, um importante dilema latino-americano refere-se ao fato de como conquistar esse estágio “mais avançado” da democracia, composto pela incessante procura por inúmeros (e diversos) direitos, considerando que nem mesmo há democracias eleitorais firmemente consolidadas na região, tendo em vista a quantidade de eleições que são contestadas nela, por exemplo. Se, em termos eleitorais, ainda há margem de progresso, é crucial compreender que, independentemente dos sucessos que tenham sido efetivados em questões humanitárias, há muito mais que possa ser feito com relação a isso regionalmente. A retomada do ímpeto democrático na América Latina, sem dúvida, trouxe melhores níveis de direitos humanos. Apesar disso, importa reconhecer que a região continua a ser assolada por problemas. Os processos de redemocratização ocorreram em um contexto geral de colapso financeiro e cambial de regimes ditatoriais. Há duas implicações principais que podemos derivar desse fato, uma essencialmente política, enquanto a outra, econômica. Por um lado, enquanto as ditaduras ficaram marcadas por regimes burocrático-autoritários que institucionalizaram uma série de atrocidades contra a sociedade civil, o fim delas significou considerável redução das transgressões aos direitos humanos por parte dos Estados. Entretanto, deve-se ressaltar que um dos princípios básicos de tais direitos é a necessidade de “remediação efetiva” àqueles que os tiveram violados. Uma das mais fundamentais formas de realizar isso reside na realização de julgamentos contra os perpetradores de barbaridades. Essa prática, que costuma apresentar bons resultados inclusive quando realizada muito após a redemocratização, tem como intuito reforçar o componente de “justiça” da democracia, em seu sentido mais amplo. Na América Latina, porém, percebe-se que as experiências com esse viés não têm sido muito eficazes. Para ilustrar esse argumento, recorrer-se-á a três países com históricos semelhantes, porém relativamente diferentes: El Salvador, Argentina e Guatemala. Em El Salvador, uma sangrenta guerra civil estendeu-se durante uma década, com intensa repressão estatal, até que as partes envolvidas chegaram a um acordo (negociado internacionalmente), em 1990. Com o fim do conflito, o país emergiu sob a liderança de Mauricio Funes, candidato da (outrora oposição) FMLN. O presidente pediu perdão pelos crimes cometidos anteriormente pelo Estado, e buscou aumentar a transparência da gestão pública, mas não se realizou a condenação dos perpetradores da violência que, até então, era institucionalizada. Na Argentina, de fato, houve a condenação de oficiais envolvidos na repressão desumana da “Guerra Suja” empreendida pelos militares; no entanto, o

poderio das Forças Armadas nacionais foi suficiente para que nunca se fizesse um registro apropriado de seus crimes. Por fim, na Guatemala, o presidente-general Ríos Montt, condenado por contribuir para um genocídio nos anos 1980, teve sua sentença anulada pela Suprema Corte guatemalense, a qual cedeu, em grande parte, a pressões do alto empresariado. A união de condenações a reformas para maior transparência estatal com relação ao passado parece, na América Latina, ser difícil de conquistar. Por outro lado, porém, não podem ser negligenciados os efeitos econômicos na obtenção de plenos direitos humanos na América Latina. A derrocada macroeconômica da imensa maioria dos países da região ao final de seus respectivos períodos ditatoriais acabou por facilitar a perpetuação de um quadro crônico, o qual, até hoje, tem influência: o “triângulo latino-americano”, como abordado pelo PNUD, composto pela coexistência de democracias eleitorais, pobreza e desigualdade. Essa conjunção de fatores, assim como o fato de ela ser bastante difícil de ser revertida, faz com que muitos cidadãos latinoamericanos não usufruam da plenitude de seus direitos enquanto pessoas. Além disso, muitas vezes, forma-se um grave problema: confrontados com um cenário de baixo desenvolvimento econômico, diversas pessoas tendem a considerar como benéfica a consolidação de um governo que enfatize o bem-estar social, ainda que o regime seja autoritário. Com isso, indica-se que o “triângulo latino-americano” tem o potencial de ser altamente prejudicial à democracia. O caso do Haiti, por exemplo, ilustra bem esses problemas – um país instável, incapaz de efetivar significativos avanços democráticos, graças a elevados níveis de pobreza, desemprego e inquietação social e política. A pobreza endêmica característica de grande parcela da América Latina favorece, também, a emergência de uma série de outros problemas – Estados assolados pelo tráfico de armas e de entorpecentes, por guerrilhas, ou por crimes, em geral. Por si só, essas questões já representam desvios significativos com relação a um padrão de vida adequado para os latino-americanos. Algumas delas podem ser solucionadas por meio de atos exclusivamente domésticos – como aqueles que visam à redução de crimes “comuns”, como assaltos de rua –, enquanto outras demandam a união de esforços domésticos e internacionais, por meio de uma política interméstica, embora esses tenham sido pontuais e de caráter “ad hoc”. O grande problema, contudo, advém do fato de que esses malefícios contribuem imensamente para, em geral, dois incrementos nas violações de direitos humanos: aquelas cometidas tanto pelos membros da sociedade civil quanto aquelas

cometidas pelo próprio aparato repressivo dos Estados. Para explicar e demonstrar a lógica desse argumento, aludir-se-á, respectivamente, aos casos da Colômbia e do Brasil. Até o presente, a Colômbia batalha contra a instabilidade nacional (e, de certo modo, regional) provocada pelo crescente aumento no poderio das FARC, a organização de guerrilha que possui objetivos sociais e que foi relacionada, dentre outras atividades, ao tráfico de drogas. O esforço do governo colombiano, em conjunto com os Estados Unidos, tem o intuito de coibir as ações criminosas (e desrespeitadoras dos direitos humanos) por parte dos guerrilheiros. Contudo, o método empregado para tal, o uso de efetivos das Forças Armadas, acaba por engendrar um problema – em algumas circunstâncias, os próprios militares são acusados de cometerem excessos. No caso do Brasil, observa-se um dilema similar, porém com relação ao combate ao crime organizado urbano, em favelas: há uma linha tênue entre a necessidade de policiamento ostensivo por parte de militares, e as práticas desumanas que talvez sejam realizadas nesse trabalho, como atos de tortura, por exemplo. Em ambos os países, existe uma possível evidência de que, na presença de sociedades mais “amedrontadas” pela criminalidade, os direitos humanos precisam de considerável estímulo até alcançarem um patamar adequado. --Percebe-se, portanto, que, embora geralmente haja relação direta entre a democracia e a proliferação dos direitos humanos, o nível dessas variáveis não cresce sempre proporcionalmente. Na América Latina pós-redemocratização, a melhora nos índices de direitos humanos não implica necessariamente afirmar que inexiste progresso ainda a ser auferido nessa questão. Em muitas situações, aliás, o exato oposto pode ser observado – houve melhora, porém incompleta e insuficiente para atender aos prérequisitos de uma sociedade guiada pela interpretação contemporânea da noção de “democracia”. Na tentativa de contribuir para o debate, retomar-se-ão algumas das principais conclusões relacionadas com as problemáticas supracitadas, com o intuito de favorecer ao máximo a transição dos países latino-americanos, a partir de uma democracia “de eleitores”, em direção a uma que seja “de cidadãos”. Essas conclusões não possuem qualquer pretensão normativa, pois apenas constituem possíveis inferências a respeito dos dilemas enfrentados na América Latina. 

A elitização dos partidos políticos não tem espaço em uma democracia plena.



A polarização social em espectros políticos, quando assume níveis extremados, desfavorece a coesão social e, portanto, a democracia.



Por si só, o desenvolvimento de sociedades latino-americanas coesas é insuficiente para levar à plena democracia eleitoral. As Forças Armadas ainda detêm considerável influência sobre a política de muitos Estados, o que talvez dificulte a participação popular no jogo político dentro deles.



Mesmo em um cenário de perfeita democracia eleitoral, a América Latina é confrontada pelos problemas inerentes às outras facetas contemporâneas da ideia de “democracia”.



Muitas das problemáticas atuais de direitos humanos da América Latina – como o “triângulo latino-americano” e a emergência de sociedades amedrontadas pela criminalidade – têm raízes no passado ditatorial e no colapso dos regimes burocrático-autoritários dos Estados. Até então, este trabalho buscou explicitar e desenvolver os motivos pelos quais há

inúmeras ressalvas à eficácia dos direitos humanos nas democracias contemporâneas da América Latina. Apesar do diagnóstico sombrio, porém, não se deve considerar que a maior conquista de direitos humanos é impossível ou impraticável. Os empecilhos à plena democracia na região podem ser removidos, conquanto que muitos deles não sejam simples. Para que isso ocorra, é fundamental que se adote uma postura multifacetada, visando à resolução simultânea de problemas que, quando operam em conjunto, têm seus efeitos ampliados. O exemplo mais imediato diz respeito ao “triângulo latino-americano”: uma política que apenas atue contra a desigualdade, por exemplo, provavelmente não repercutirá muito em um país com níveis de pobreza e restrições à democracia crescentes. Ao enfatizar todo e cada aspecto da concepção ampla de “democracia”, talvez exista uma base para fazer com que as transições democráticas que têm ocorrido desde a segunda metade do século XX cheguem a seu apogeu e, de fato, ao seu fim.

Referência UNDP. Democracy in Latin America: Towards a citizen’s democracy. Buenos Aires: Aguilar, Altea, Taurus, Alfaguara, 2004.

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