O Desencantamento da História e o desejo de Revolução

July 18, 2017 | Autor: Eduardo Pellejero | Categoria: Gilles Deleuze, Michel Foucault, Filosofía
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O Desencantamento da História e o desejo de Revolução (Deleuze e Foucault) Prof. José Caselas Prof. Eduardo Pellejero A condição para poder efectivamente trabalhar a dois é a existência de um fundo comum implícito, inexplicável, que nos faz rir ou preocupar pelas mesmas coisas, ficar enojado ou entusiasmado por coisas análogas. Gilles Deleuze (citado por Robert Maggiori)

Para além da Revolução? Qual é o segredo da revolução? Onde se esconde, para além das condições materiais, que nunca estão dadas onde se produz e nunca conseguem desencadeá-la onde aparecem reunidas? Onde, para além da tomada de consciência decisiva, que o intelectual, quando não o Estado ou o partido, assumem ou confiscam em nome da gente? Onde para além das traições e das recaídas, que as circunstâncias objectivas e as vontades individuais encarnam ou contribuem para precipitar? Onde, para além das suas determinações históricas, que a condenam como ideia, se, como sugere Arendt, o acto revolucionário parte de uma fundação que visa perdurar em si própria, e desse modo, ao trazer em si a sua irrevogabilidade, condena-se à infâmia: “Na medida em que o maior acontecimento em toda a revolução é o acto da fundação, o espírito da revolução contém dois elementos que, para nós, parecem irreconciliáveis e mesmo contraditórios. O acto de fundar o novo corpo político, de planear a nova forma de governo, envolve a difícil preocupação da estabilidade e durabilidade da nova estrutura.” 1 Como ideia, como facto, como promessa ou como instituição, mas sobretudo como problema, a revolução constitui para boa parte da filosofia francesa contemporânea, o horizonte de qualquer tematização efectiva da história, dos seus progressos ou da sua interrupção, da sua 1

Arendt, Hannah, Sobre a Revolução, Lisboa, Relógio D’Água, 2001, p. 274. 36

estrutura ou do seu sentido, por fim, da sua possível realização e da sua eventual subversão. A revolução como conceito, o conceito de revolução, mas também, e sempre, as revoluções concretas de 1789 e de 1917, as barricadas de 1848 e as manifestações de 1968, o Estado soviético ou chinês, e as revoltas que, sob os mais diversos signos, explodem um pouco por todas as partes no terceiro mundo. Isto é certo a respeito de Kojève e de Sartre, de Merleau-Ponty e de Lévi-Strauss, de Althusser e de Lyotard, e não é menos certo a respeito de Foucault e Deleuze. Na possibilidade de pensar esta impossibilidade – a revolução –, joga-se para Deleuze o próprio destino do pensamento, mas ao mesmo tempo joga-se o destino da revolução, “porque este impossível não existe senão pelo nosso pensamento” 2 . Do mesmo modo, para Foucault, a revolução é a possibilidade de outra coisa, tal como a Filosofia é a hipótese de pensarmos de outra maneira; trata-se da abertura do campo dos possíveis. E para Arendt, o conceito moderno de revolução implica a irrupção de um novo começo,

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Deleuze-Parnet, Dialogues, Paris, Flammarion, 1977, p. 173. Para além das alternativas biográficas e bibliográficas que parecem permitir periodizar a sua obra, a polémica em volta da revolução não está nunca ausente na obra deleuziana (ou não se deixa entender completamente sem esta). É mais ou menos clara na crítica da dialéctica e na tipologia da vontade que encontramos em Nietzsche et la philosophie e aparece em primeiro plano na des(cons)trução da psicanálise de L’Anti-Oedipe; nunca deixa de estar presente nas análises dos casos literários, de Kafka a Bartleby (passando, muito especialmente, pela leitura de Lawrence), nem certamente nos estudos sobre cinema, onde a revolução (e a sua crise) determinam essa muito especial taxonomia das imagens; por fim, em Qu’est-ce que la philosophie?, ocupa sem dúvida um lugar fundamental na problematização da conjunção da filosofia com a actualidade. Constatamos também, por exemplo, que a revolução é um dos objectos de preocupação de Logique du sens, onde aparece, de um modo explícito, como «revolução permanente», «acção parcial» ou «grande política», no centro da própria problematização do acontecimento, associada aos principais elementos da sua definição (distância entre séries, casa vazia, elemento supernumerário, ou como possibilidade de conjugação dos pequenos acontecimentos em «um só e mesmo acontecimento» no qual se denunciam todas as violências e todas as opressões ao denunciar a mais próxima ou o último estado da questão). 37

algo inteiramente novo e nunca contado surge, mas também uma nova experiência de liberdade. 3 «Suponhamos que os universais não existem» Foucault situa a filosofia como pensamento da actualidade e, nesse caso, equacionar o nosso presente permite fazer a genealogia da modernidade como questão. Estamos sempre no meio, nunca no fim, nunca o acabamento, a teleologia. Deleuze assinalou, neste sentido, a diferença entre o devir e a história; a sua simpatia pelo texto foucaultiano «A vida dos homens infames» situa-se nesse apego aos corposacontecimento que escapam ao grande protagonismo dos factos, para fluírem de modo oculto na entretela do devir como uma linguagem menor. E inclusive quando um (Deleuze) fala de inactualidade onde o outro (Foucault) fala de actualidade, o diagnóstico proposto tem o mesmo sentido: destacar as «linhas de vulnerabilidade» do presente, fazendo crer que as coisas que são como são podiam não sê-lo, deixando entrever um excesso de possível ao lado das condições de (im)possibilidade de um momento histórico qualquer. Foucault vai colocando minas nos campos da História, acolhendo a contingência e a singularidade. Como escreve num texto de autoapresentação: “Recusar o universal da «loucura», da «delinquência» ou da «sexualidade» não quer dizer que as coisas a que se referem essas noções não são nada ou que se trata de meras quimeras inventadas pela necessidade de uma causa duvidosa; trata-se, no entanto, de muito mais do que a simples constatação que o seu conteúdo varia com o tempo e com as circunstâncias. É questionarmo-nos acerca das condições que permitem, segundo as regras do dizer verdadeiro e falso, reconhecer um sujeito como doente mental ou de fazer com que um sujeito reconheça a parte mais essencial de si mesmo na modalidade do seu desejo sexual.” 4 Recusar o universal é verificar que a subjectivação se deve aos dispositivos de poder e de saber que operam sobre nós e 3

“A ideia de que a liberdade e a experiência de um novo princípio devem coincidir é crucial para a compreensão das revoluções na idade moderna.” Arendt, H. op. cit. , p. 33. 4 Foucault, «Foucault», Dits et écrits vol IV, Paris, Gallimard, 1994 (doravante utilizaremos a abreviatura DE seguido do nº do vol), p. 634. 38

que fazem com que sejamos qualificados desta ou daquela maneira, como sujeitos sexuais determinados assim ou como uma imputação de loucura ou delinquência. Como escapar a essas determinações que, sendo precárias, se pretendem verdadeiras e incontornáveis? Como recusar esse modo de subjectivação opondo-lhe uma insubmissão metódica? Recusar o universal é oferecer resistência a um poder que prescreve e que nos assinala um destino e uma identidade; é mostrar que essas determinações não são apenas ilusões, mas práticas coordenadas segundo um regime de verdade. A política não está isenta desse regime de verdade; ela é algo que se inscreve no real de acordo com esse regime de verdade que lhe permite distinguir o verdadeiro do falso. 5 O devir revolucionário capta essa recusa de um discurso unívoco perante os factos. Os pontos de contacto com a perspectiva deleuziana são mais do que evidentes e passam, antes de mais, pela luta contra os universais. Assim, para Deleuze a primeira consequência de uma Filosofia dos dispositivos “é o repúdio dos universais. O universal, com efeito, não explica nada, é ele que deve ser explicado. Todas as linhas, são linhas de variação, que não têm inclusivamente coordenadas constantes. O Uno, o Todo, o Verdadeiro, o objecto, o sujeito, não são universais, mas processos singulares de unificação, imanentes a tal dispositivo. Desse modo, cada dispositivo é uma multiplicidade na qual operam tais processos em devir, distintos dos que operam noutro. É neste sentido que a filosofia de Foucault é um pragmatismo, um funcionalismo, um positivismo e um pluralismo.” 6 Para além das filosofias da história (reformistas, revolucionárias ou niilistas), a revolução é para Deleuze a cifra por excelência do inactual como irrupção na história (enquanto movimento contra o tempo, sobre o tempo, a favor de um tempo por vir). Trata-se do inactual como acontecimento, o acontecimento como política (ou a partir de uma perspectiva política). Uma ideia muito particular da revolução, então, virá determinar o conceito deleuziano de acontecimento, e na mesma medida será 5

Foucault, Naissance de la Biopolitique, Cours au Collège de France, Paris, Gallimard, 2004, p. 22. 6 Deleuze, Deux régimes de fous: Textes et entretiens 1975-1995, Paris, Minuit, 2003, p. 320. 39

determinada por este, a meio caminho entre a inscrição nos factos e o sentido da história, diferença produtiva ou linha de transformação, que não dota de sentido político a noção de acontecimento sem ter o seu estatuto ontológico tocado pela mesma operação. Uma ideia tão particular, por fim, que poderia chegar a pôr em questão que se continue a tratar rigorosamente da revolução, mas cuja possibilidade Deleuze procura salvar a todo o custo, quer pondo em jogo uma série de distinções subtis, quer elaborando uma concepção verdadeiramente inactual ou intempestiva do acontecimento, para além do seu encadeamento numa dialéctica para o fim da história, da sua redução a epifenómeno das estruturas (ou da praxis), ou da sua assimilação à «estupidez» ou à «cólera» dos factos, segundo se prefira. Numa tentativa de superar os diversos intentos contemporâneos de pensar a realidade, especialmente no que respeita à explicação da mudança na história, Deleuze desloca o problema dos factos, o sujeito e a estrutura, em direcção às singularidades. A história está constituída apenas por transformações que se operam nos estados de coisas, as vivências e as relações entre os elementos que a compõem, mas o agente de tais transformações não pertence à história, ou pelo menos não se reduz à sua efectuação histórica destes objectos, estruturas e sujeitos. 7 O acontecimento, enquanto singularidade, enquanto linha de transformação, de inspiração e redistribuição, escapa à história. Eventualizar (événementialiser) significa, para Foucault, quebrar as evidências, fazer despontar uma singularidade onde outros tentam referir-se a uma constante histórica. Uma história feita de singularidades empíricas, o que significa isto? “Aí onde seríamos tentados a referir-nos a uma constante histórica ou a um traço antropológico imediato, ou ainda a uma evidência que se imponha do mesmo modo a todos, tratase de fazer surgir uma «singularidade»”. 8 O que Nietzsche chamava a História Efectiva (Wirliche Historie) e que passa por essa singularização, um fio de acontecimentos sem um sentido originário, momentos 7

Da mesma forma Foucault escreveu: «As insurreições pertencem à história. Mas de certa forma, escapam-lhe. […] Varsóvia terá sempre o seu gueto sublevado e os seus esgotos povoados de insurrectos.» «Inutile de se soulever?» DEIII, p. 790-791. Na medida em que jogam a sua vida e a sua morte, os insurrectos estão dentro e fora da História, eles escolhem não obedecer; é essa a sua aposta. 8 Foucault, «Table ronde du 20 mai 1978», DEIV, p. 23. 40

descontínuos de um devir sem necessidade de totalização; uma história sem absoluto, uma história crua dos erros e da verdade. Importa reconhecer aí os modelos de dominação: o poder sobre o corpo. Deleuze opera, à conta de todas estas distinções, uma desnaturação similar da história, que se não a desloca para o lado dos efeitos (a história continua a ser o domínio das causas materiais), destitui-a como categoria ontológica fundamental, totalização ideal dos fenómenos ou processo teleológico absoluto (porque o acontecimento, o devir, está para além do seu domínio, como uma reserva de possível sobre o limite do impossível). E, substituindo a compreensão historicista do acontecimento como advento (com a subordinação do acontecimento à história que a mesma implica), pela proposição do acontecimento como evento (no sentido de uma ocasião especial, extraordinária, singular, que faz história), propõe-nos algo semelhante ao que Foucault denominava uma eventualização da história. Para Foucault a história não se faz a partir de temporalidades e passado, mas tendo em conta a mudança e o acontecimento, no que designou história serial. Esse acontecimento inscreve-se por diferentes camadas, segundo uma multiplicidade de durações, umas mais visíveis, e outras imperceptíveis aos olhos dos contemporâneos. “A história surge então não como uma grande continuidade sob uma descontinuidade aparente, mas como um emaranhado de descontinuidades sobrepostas.” 9 Neste sentido, a eventualização tem como «primeira função teórico-política» mostrar que a história não é tão necessária ou não segue um curso tão determinado como se pensava. Contra a concepção da história pensada em termos de totalidade, contra a ideia de que a história é um processo continuo progressivo orientado em direcção a uma finalidade, contra a atitude homogeneizante dos acontecimentos em virtude de uma constante histórica qualquer (domínio da natureza, igualdade dos homens, etc.), apela à ordem do singular, onde se volta a jogar continuamente a relação e o sentido dos acontecimentos entre si, com a proliferação do possível que um processo semelhante implica por si. 9

Foucault, «Revenir à l’histoire», DEII, p. 279. 41

Uma lógica do acontecimento efémero, imprevisível, neutro (événement), substitui, deste modo, a dialéctica totalizante, determinista e teleológica do advento (avènement). O resultado é uma concepção do acontecimento como irrupção intempestiva na história, ou seja, como revolução. Uma revolução de natureza singular, de costas para a consciência, em ruptura com as condições objectivas, mas na qual se reconhece, claramente, a transmutação de um mundo, de uma história, e de uma consciência. Ponto de crise ou linha de transformação, o acontecimento não tem outra existência senão a das séries sobre as quais exerce a sua acção, nas quais aparece, ora como carência, ora como excedente. As metamorfoses ou redistribuições de singularidades formam uma história, mas o acontecimento, sendo o agente de toda a história, não tem lugar em história alguma. O mesmo é dizer que a história não se faz mais senão através destes acontecimentos; quer dizer que na história não contamos senão com a espera gratuita e a memória adulterada dos mesmos. No fundo, nunca contamos senão com os fragmentos e os farrapos da revolução, se não com a soma dos factores que a fazem aparecer como impossível. O acontecimento rompe com a lógica do possível, não depende do possível (nem do possível objectivo, nem do possível subjectivo); ele coloca o possível na dependência (ou como produto) do acontecimento. E isto tem consequências directas no contexto da polémica sobre a revolução, porque, como assinala François Zourabichvili, o acontecimento político por excelência – a revolução – deixa de ser a realização de um possível (projecto revolucionário ou conflito capitalista), para passar a constituir uma abertura imprevisível de possível 10 . Maio de 68 como acontecimento micropolítico aponta para uma linha de fuga molecular, escapando de uma organização macropolítica da sociedade, um movimento que atravessou todas as instituições. Neste nível não conta apenas o molar como centro de poder, mas a infinidade de fluxos que deslizam da centralidade do poder para uma segmentaridade. É o que autoriza Deleuze a dizer: “A análise das «disciplinas» ou micropoderes segundo Foucault (escola, exército, 10

Zourabichvili, François, «Deleuze et le possible (de l’involontarisme en politique)», em Alliez, E. (comp.), Gilles Deleuze: Une vie philosophique, Paris, Ed. Synthébo, 1998, pp. 338-339. 42

fábrica, hospital, etc.) verificam estes «focos de instabilidade» em que se defrontam agrupamentos e acumulações, mas também escapadelas e fugas, e onde se produzem inversões.” 11 Se o poder é omnipresente, não se trata de o eliminar, de fazer desaparecer o Estado, como pensavam ingenuamente os anarquistas. Do que se trata é da possibilidade de resistência e da sublevação, de negar o intolerável; nesse caso a revolução emerge como possibilidade de resistência, para além das ameaças, das violências e das coerções, diante das forcas e das metralhas. 12 Do mesmo modo, para Foucault não existe uma totalização do poder a ponto de impedir qualquer hipótese de liberdade. Mesmo no auge da sua cristalização, nas circunstâncias em que se torna patológico, nenhum estado de dominação resiste à morte, ao definhamento do ditador (Salazar, Franco, Castro) e na sua vigência comprometida é ainda possível o tentame libertário.13 O que é desejável na Revolução é o enfrentamento do poder, visto que ele é sempre perigoso, a singularidade que se subleva confronta-se com o intolerável. O desencantamento da História dá-se com a ruína do corpo, das pequenas vidas destroçadas, o corpo do louco, do delinquente, da criança psiquiatrizável, das vidas infames, a molecularização dos gritos que povoam as constelações do poder (Guattari designa isto «revolução molecular»). Afinal qual o resíduo de uma revolução? Na verdade, não é a gesticulação revolucionária que conduz ao progresso. O que importa é o entusiasmo 14 . Pouco importa que ela seja bem sucedida ou que

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Deleuze-Guattari, Mille plateaux, Paris, Éditions de Minuit, 1980, p. 288. Cf. Foucault, «Inutile de se soulever?», DEIII, p. 791. 13 “Ninguém tem o direito de dizer: «revoltai-vos por mim, resultará daí a libertação final de todos os homens.» Mas não estou de acordo com aquele que diria: «É inútil revoltarmo-nos visto que as coisas ficarão na mesma».” Foucault, «Inutile de se soulever?» DEIII, p. 791. Foucault refere-se aqui ao eclodir da Revolução iraniana que eventualmente teve, também ela, um devir infame. 14 Foucault retoma a perspectiva de Kant quando este diz: “A revolução de um povo espiritual, que vimos ter lugar nos nossos dias, pode ter êxito ou fracassar; pode estar repleta de miséria e de atrocidades […] esta revolução, afirmo, depara todavia, nos ânimos de todos os espectadores (que não se encontram enredados neste jogo), com uma participação segundo o desejo, na fronteira do entusiasmo, e cuja manifestação estava, inclusive, ligada ao perigo, que, por conseguinte, não pode ter 12

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fracasse, desde que nesse momento o possível tenha lugar contra o intolerável. Foi o que sucedeu com Maio de 68. Deleuze escreve: “Maio 68 é sobretudo da ordem do acontecimento puro, livre de toda a causalidade normal ou normativa. A sua história é uma «sucessão de instabilidades e de flutuações amplificadas». Em 68 houve muita agitação, gesticulações, palavras, asneiras, ilusões, mas não é isso que conta. O que conta é que foi um fenómeno de vidência, como se uma sociedade visse de um só golpe o que continha de intolerável e visse também a possibilidade de outra coisa.” 15 Deleuze coloca a sua alternativa deste modo, a saber, a história das revoluções não é o conceito da revolução, em princípio, porque há toda uma dimensão da revolução que a história não alcança, o seu devir (outra linguagem, outro sujeito, outro objecto), pelo que “quando se diz que as revoluções têm um porvir infame, não se disse ainda nada sobre o devir-revolucionário das pessoas” 16 . Quando se diz que a revolução já não avança mais, que não funciona, devemos compreender que o que se está a fazer é tomar uma parte pelo todo, e, liquidando uma parte do problema – a parte histórica –, dá-se por terminada a questão, retirando às pessoas, também, através desse procedimento equívoco, a única saída possível para conjurar a vergonha, ou responder ao intolerável. ¨ Enquanto nos limitarmos a criticar o insucesso histórico das revoluções, não deixaremos de confundir duas coisas, o porvir das revoluções na história e o devir-revolucionário das pessoas, e de tomar o primeiro por termo único, quando nem sequer se trata da mesma gente nos dois casos. O poder e o devir-revolucionário. A tarefa da Filosofia Pensar a (in)actualidade, (a revolução) em termos filosóficos, eis o que inaugurou a modernidade. Pergunta foucaultiana por excelência, que vem redeterminar todo o seu pensamento a partir dos seus últimos textos: De que modo pertencemos à actualidade? É, de novo, a questão nenhuma outra causa a não ser uma disposição moral no género humano.” Kant, O Conflito das Faculdades, Lisboa, Ed. 70, 1993, p. 102 15 Deleuze, «Mai 68 n’a pas eu lieu», in Deux régimes de fous, Paris, Minuit, 2003, p. 215-216. 16 Deleuze, Pourparlers, Paris, Minuit, 1990, pp. 208-209. 44

da possibilidade de pensar o acontecimento como actualidade. Podemos encontrar aí uma contingência histórica ou uma mera continuidade de tempos presentes? Em todo o caso, existirá um devir-revolucionário em Foucault? Se assim for, em que consiste? A tarefa do intelectual neste contexto, responde ele, é desestabilizar o poder, mesmo que isso não conduza a uma pretensão reformista. Foucault não é um reformista mas um céptico17 em vias de construir uma antropologia empírica. O intelectual deve mostrar as coisas como podendo não ser como são, lançar uma incerteza; uma função de anti-prestidigitador. Questionar a actualidade é introduzir uma «fractura virtual», abrir um espaço de liberdade. 18 O mesmo devir-filosófico do político tem lugar no pensamento de Deleuze; a passagem da REVOLUÇÃO como fim da história, à revolução como processo de transformação, traça uma linha de fuga na polémica contemporânea sobre a natureza última da revolução, escapa aos seus lugares comuns: “a questão de uma revolução não foi nunca: ou espontaneidade utópica ou organização do Estado” 19 . O papel do intelectual é o de diagnosticar o presente, não o de dizer verdades proféticas. Escreve Foucault: “Eu caracterizaria este ethos filosófico próprio de uma ontologia crítica de nós mesmos como uma prova histórico-prática dos limites que podemos transpor e, deste modo, como um trabalho de nós mesmos sobre nós mesmos enquanto seres livres.” 20 A tarefa da Filosofia talvez não seja fazer uma revolução que realize uma utopia 21 ; o seu objectivo é fazer do filósofo um anti-déspota, 17

Ele próprio se declara céptico, renegando desde os primeiros escritos como L’Archéologie du savoir, a possibilidade de uma experiência primitiva, surda. Na sua última entrevista Foucault volta ao tema: « – O senhor não seria um pensador céptico? – Absolutamente. A única coisa que não aceitarei no programa céptico é a tentativa dos cépticos de atingir um certo número de resultados numa determinada ordem, pois o cepticismo jamais foi um cepticismo total! […] para os cépticos, o ideal era ser optimista sabendo relativamente pouca coisa, mas sabendo-as de maneira segura e imprescritível, enquanto aquilo que eu quis fazer é um uso da filosofia que permite limitar os domínios de saber», «Le retour de la morale», DEIV, p. 706-707. 18 Foucault, «Structuralisme et poststructuralisme», DE IV, 449. 19 Deleuze-Parnet, Dialogues, p. 174. 20 Foucault, «Qu’est-ce que les Lumières?», DEIV, p. 575 21 No seu livro Legislators and Interpreters (1987), Zygmunt Bauman apresenta uma visão da ascensão e queda dos Intelectuais. A sua visão do poder, tributária de 45

denunciando finalmente os abusos de poder; ele deve fazer um trabalho sobre si mesmo da ordem da autotransformação. Não propriamente um filósofo conselheiro do princípe; uma tarefa lhe assiste: a de desempenhar um papel de contrapoder, visto que pode intensificar as lutas, as resistências, a recusa em participar no velho jogo do poder, seja o que é aplicado à penalidade, à sexualidade ou ao saber médico. A filosofia deve confrontar-se com o poder, com esse poder quotidiano, traçar uma táctica e uma estratégia para o criticar, trazê-lo à visibilidade: “Há muito tempo que sabemos que o papel da filosofia não é descobrir o que está oculto, mas sim tornar visível o que precisamente é visível, ou seja, fazer aparecer o que está tão próximo, tão imediato, o que está tão intimamente ligado a nós mesmos que, devido a isso, não o percebemos.” 22 É precisamente esse facto que leva Deleuze a classificá-lo como um voyant, um filósofo obcecado pelos regimes de visibilidade, preso da visão, com uma paixão de ver. 23 Foucault, demonstra como no séc XVII e sobretudo XVIII, os intelectuais foram chamados a desempenhar o papel de legisladores de uma nova ordem social criando uma république de lettres. Os philosophes saídos do Iluminismo envolveramse numa cruzada prosélita para a gestão racional da sociedade, substituindo o pensamento da Igreja por uma busca secularizada da verdade. Esse esforço civilizador não foi bem-sucedido pelo que as promessas da modernidade ficaram por cumprir. Na pós-modernidade, o papel dos intelectuais foi largamente dispensado pelo mercado. O mercado apenas necessita de publicitários, de gerentes de marketing, de produtores de televisão para seduzir as massas ao consumo. Com o pluralismo de culturas da pós-modernidade os philosophes deixaram de ser legisladores e passaram ao papel de intérpretes, ou seja, depositários da tarefa de traduzir as linguagens de uma comunidades para outras comunidades ou legislar apenas numa comunidade específica subcultural. O papel do intelectual numa racionalidade fragmentada, que já não pode aspirar a um saber/poder universalizante, é dar conta desse estado de coisas, propor uma redenção discursiva, expondo os limites da razão instrumental e restaurando a autonomia da comunicação humana. O proletariado como agente histórico da mudança foi substituído pelo consumidor falhado/defeituoso; mas este é olhado com indiferença pelos intelectuais. Poder-se-á cumprir novamente a modernidade em torno dessa redenção que alargue a democracia a sectores cada vez mais alargados da sociedade? 22 Foucault, «La philosophie analytique de la politique», DEIII, p. 540 – 541; “Pelo pequeno gesto de deslocar o olhar, ele [ o intelectual ] torna visível o que é visível.”«La scène de la philosophie», DEIII, p. 594. 23 “Foucault n’a jamais cessé d’être un voyant”; Deleuze, Foucault, Paris, Minuit, 1986, p. 58. 46

Nesta medida, a descrição genealógica não pretende ser prescritiva; ela revela as redes de contingência e a forma de racionalidade que preside à sua instituição. A actualidade que é a nossa deve ser encarada com modéstia, não que não seja importante, mas não é um momento único e decisivo da História. É preciso evitar o dramatismo que qualifica o momento em que vivemos como a perdição da História, como o mais negativo relativamente a todos os que o antecederam. Foucault não pretendeu apresentar um programa político definido. O que designa como política da verdade é, antes, um critério estético, um modo de fornecer indicadores tácticos, um imperativo condicional que evite dizer: combatam desta ou daquela maneira! O sentido da luta é sobretudo indicar os pontos-chave, as linhas de força e os bloqueios que assumem os mecanismos de poder. 24 Deleuze e Foucault participaram de forma militante em causas de rebeldia aos poderes instituídos, formas de resistência micropolítica organizadas, como, por exemplo, em torno do GIP (Grupo de Informação sobre as Prisões), formado na década de 70, que consistia sobretudo em conferências de imprensa e inquéritos aos reclusos destinados a denunciar a situação das prisões francesas nessa época. 25 Em Maio de 68, Deleuze encontrava-se em Lyon e Foucault em Sidi-Bou-Saïd na Tunísia, mas ambos se entusiasmaram com o evento. Para Foucault particularmente, Maio de 68 representou o declínio do marxismo e o surgimento de novos interesses políticos. Esses acontecimentos de Maio colocaram questões à política que escapavam ao quadro teórico tradicional (questões sobre as mulheres, as relações entre os sexos, a medicina, a doença mental, o ambiente, as minorias, a delinquência) repondo-as num discurso que o marxismo era impotente para explicar. 26 No entanto, o nível de militância dos dois filósofos não ultrapassou os pequenos grupos. Para eles, a tarefa do intelectual na sua luta contra as formas de dominação, não consistia em propor um

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Foucault, Sécurité, Territoire, Population – Cours au Collège de France, 19771978, Gallimard, 2004, p. 5. 25 Cf. cap. 17 “Deleuze et Foucault: une amitié philosophique” in Dosse, François, Gilles Deleuze et Félix Guattari. Biographie croisée, Paris, La Découverte, 2007. 26 Cf. Foucault, «Polémique, politique et problématisations», DEIV, p. 595. 47

modelo de sociedade, mas uma experimentação de novas práticas em grupos restritos e sobretudo uma conceptualização dessas práticas. 27 Há que ler o regresso de Foucault aos gregos nesta linha de pensamento. Considerando a dupla acepção do que chamou modos de subjectivação, primeiro, o modo como o poder constitui os sujeitos (sujeição) e, segundo, o trabalho ou procedimento de si a si, isto é, uma prática de si (auto-estilização); o estilo de existência. 28 A questão da actualidade coloca-se, assim, nessa encruzilhada de sujeição e subjectividade em que nos encontramos e que importa analisar e problematizar; relatar o conteúdo histórico assenta num empreendimento crítico sob a forma de um inquérito ao discurso produzido pelas ciências, desemaranhando a hipótese do poder nesse saber constituído – é isso a singularização, o procedimento de eventualização (mostrar as conexões entre o conhecimento e os mecanismos de coerção). 29 Isto não impediu o céptico Foucault de tomar parte contra ou a favor de determinadas reivindicações políticas seguindo a elaboração de um discurso histórico-crítico e problematizador dessas situações, do que veio a designar uma ontologia do presente (e, assim, era a favor do aborto, contra a pena de morte, contra o encarceramento injustificado, etc.). Foucault situa a emergência das lutas num plano de recusa da subjectivação. Para ele existem três tipos de lutas: contra as formas de dominação, contra as formas de exploração e, finalmente, contra aquilo que constitui uma subjectivação, um modo de identidade, que prende o indivíduo a um sistema de signos que lhe prescrevem o que ele é. As

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Ibid., p. 372. «A moral grega está bem morta e Foucault achava tão pouco desejável quanto impossível ressuscitá-la; mas um detalhe desta moral, a saber a ideia de um trabalho de si sobre si, parecia-lhe susceptível de retomar um sentido actual, à maneira de uma dessas colunas dos templos pagãos que vemos por vezes utilizadas em edifícios mais recentes.» Paul Veyne, «Le dernier Foucault et sa morale», Critique, Ago-Set 1986, p. 939. 29 “[…] o que é isto, então, que eu sou, eu que pertenço a esta humanidade, talvez a esta franja, a este momento, a este instante da humanidade que se encontra sujeitado (assujetti) ao poder da verdade em geral e das verdades em particular?» Foucault, «Qu’est-ce que la Critique? [Critique et Aufklärung]» in Bulletin de la Société Française de Philosophie, 1990, p. 46. 28

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lutas contemporâneas devem assumir uma resistência contra essa individualidade social, a que chamou o «governo da individualização». 30 Foucault declara que as relações de poder são da ordem da estratégia. O que significa isto? Explanando as três acepções de estratégia: 1) meios para atingir um fim ou um objectivo, 2) acção segundo o que percepcionamos da acção dos outros; 3) confronto para levar o adversário a renunciar à luta; ele privilegia claramente esta última. O poder traz consigo uma resistência e esta sonha sempre em tornar-se, ela própria, poder. Encontrar o ponto de inversão possível, eis a estratégia do poder. Por outro lado, o poder em si mesmo desencadeia estratégias de confronto, uma vontade de insubmissão, um desejo de Revolução, dizemos nós. Estamos mais perto que nunca da revolução, mas a revolução mudou de natureza, ou, melhor, conservou da sua natureza apenas aquilo que, independentemente de dar ou não um sentido à história, continua a ter sentido na luta dos homens contra as mais diversas formas de opressão. Certamente, não dispomos, nem de facto nem de direito, de nenhum meio seguro para preservar, e de seguida para liberar as linhas de fuga subjacentes aos dispositivos de saber e de poder nos quais nos encontramos comprometidos: “O que nos condena a uma perpétua «inquietude» (...) não sabemos como pode mudar tal grupo, como pode recair no histórico… Não dispomos da imagem de um proletariado ao qual bastaria tomar consciência” 31 . Contudo, desta incerteza não decorre nenhum imperativo de desmobilização. Desprovida das opções geopolíticas que conhecia há algumas décadas atrás, quando ainda era possível escolher entre primeiro e segundo mundo, logo, exposta a sua inscrição no primeiro mundo ou o seu afundamento no terceiro; desesperada de todas as formas de utopia social, logo, dada à dispersão dos seus objectivos locais, imediatos; destituída inclusive de qualquer projecto progressista, da ideia de que se faz todo o possível, ou se faz o impossível, as coisas caminharão para melhor, logo, na possessão da consciência do seu destino trágico, inconclusivo, aberto; assim e tudo, a luta continua.

30 31

Foucault, «Le sujet et le pouvoir», DEIV, 227. Deleuze, Pourparlers, p. 209. 49

Deleuze e Guattari e mesmo Foucault não são teóricos programáticos da libertação; a possibilidade de transformação das formas de organização material da vida e do desejo, a possibilidade de redistribuições moleculares e molares de poder e do saber não implica para eles a abolição da molarização como tal. A filosofia é, assim, do ponto de vista da praxis, um procedimento de des-sujeição, de recusa do que somos enquanto identidades formadas pelas instituições, pelo campo social dominado por uma rede de poder e de conhecimento. Feitas as contas, diz Deleuze, “o êxito de uma luta só reside na própria luta, nas vibrações, nos abraços, nas aberturas que deu aos homens no momento em que se levou a cabo, e que compõem em si um monumento sempre em devir, como esses túmulos aos que cada novo viajante acrescenta uma pedra. A vitória de uma luta é imanente, e consiste nos novos laços que instaura entre os homens, ainda que estes não durem mais que a sua matéria em fusão e muito rapidamente cedam passo à divisão, à traição” 32 . O pensamento é o monumento dessa luta sempre por recomeçar no labirinto das confusas batalhas nas quais nos vemos comprometidos quotidianamente. Um monumento que não comemora, que não honra algo que aconteceu, senão que sussurra ao ouvido do porvir as sensações persistentes que encarnam o sofrimento eternamente renovado dos homens, e o seu protesto recreado, o seu combate sempre por retomar.

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Deleuze-Guattari, Qu'est-ce que la philosophie?, Paris, Éditions de Minuit, 1991, p. 167. 50

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