O Desenho como Ponto de Vista
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O DESENHO COMO PONTO DE VISTA EMÍLIA FERREIRA1 TEXTO DA CONFERÊNCIA APRESENTADA NO 1º COLÓQUIO DESENHO E IMAGINAÇÃO CHAIA, UNIVERSIDADE DE ÉVORA, 2011 1. ALGUMAS NOTAS PRÉVIAS Imaginar é, literalmente, criar uma imagem. Nesse sentido, o desenho é sempre imaginação porque a sua natureza é a criação de imagens. Por muito livre que esse exercício seja, teve sempre, contudo, condicionantes e constrangimentos, desde os materiais aos sociais, culturais e morais. Cada tempo teve os seus saberes, as suas inquietações e exigências. E, consequentemente também, as suas características. Por tudo isso, podemos dizer que o desenho é, como qualquer actividade humana, um ponto de vista. E é-‐o sempre, desde os registos nas grutas de Lascaux ou Altamira, a criações com outras ambições e significado como a Ognissanti Madonna 2; o Homem de Vitrúvio3 , Les Demoiselles d’Avignon 4 ou a Árvore cinzenta5. Além da perspectiva do autor e de um certo enquadramento histórico, criar, ver e/ou mostrar desenho é exercer uma abordagem personalizada, marcada por uma visão individual (ou colectiva) o que significa, uma vez mais, o facultar de um ponto de vista. Assim, além da criação artística, também uma exposição é o exercício dessa escolha, o laborar sobre um conceito e um programa, tanto na selecção das obras, como no discurso em que sobre elas se reflecte, como ainda no modo de as dar a ver. É, por isso, o reflexo de vários constrangimentos, desde o que se expõe até ao espaço em que é dado a ver, 1
Curadora da Casa da Cerca e membro do seu Serviço Educativo, desde 2000. Giotto, Ognissanti Madonna, c. 1310, têmpera sobre madeira, 325 x 204 cm, Uffizi, Florença. 3 Leonardo da Vinci, Homem de Vitrúvio, 1490, lápis e tinta sobre papel, 34 x 24 cm, Galleria dell’Accademia, 2 Giotto, Ognissanti Madonna, c. 1310, têmpera sobre madeira, 325 x 204 cm, Uffizi, Florença. 3 Leonardo da Vinci, Homem de Vitrúvio, 1490, lápis e tinta sobre papel, 34 x 24 cm, Galleria dell’Accademia, Florença. 4 Pablo Picasso, Les Demoiselles d’Avignon, 1907, óleo sobre tela, 243,9 x 237,7 cm, Museum of Modern Art, Nova Iorque 5 Piet Mondrian, Árvore Cinzenta, 1912, Óleo sobre tela, Gemeentemuseum, Haia. 2
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passando pelo projecto geral do catálogo, pelo tempo da investigação, por questões financeiras ou pela linguagem usada para a sua comunicação. Na Casa da Cerca – Centro de Arte Contemporânea, equipamento cultural da Câmara Municipal de Almada, aberto ao público em 1993, a investigação e o trabalho expositivo decorrente têm sido desenvolvidos em torno da diversidade da expressão do Desenho contemporâneo6. Neste texto, irei debruçar-‐me sobre alguns projectos construídos ao longo destes 19 anos, apontando algumas características que os tornaram relevantes, do meu ponto de vista, e também alguns constrangimentos com que nos deparámos enquanto equipa. Pretendo, assim, estabelecer algumas linhas de partilha de experiências, nomeadamente através da definição de dificuldades e da superação de problemas. 2. UM EDIFÍCIO ANTIGO OU UM CONSTRANGIMENTO A Casa da Cerca – Centro de Arte Contemporânea encontra-‐se instalada num edifício solarengo com construção característica das quintas de recreio setecentistas dos arredores de Lisboa. Depois do seu uso secular como habitação, durante o qual pertenceu a diversos proprietários, foi adquirida em 1988 pela Câmara Municipal de Almada, tendo sofrido obras de adaptação aos novos fins propostos. Aberta ao público a 18 de Novembro de 1993, tem mantido desde então uma oferta regular de exposições temporárias. O facto de este centro de arte se encontrar instalado num edifício adaptado, com uma construção de raiz cujo programa era substancialmente diferente do actual, coloca necessariamente alguns embaraços, desde questões relacionadas com aspectos da conservação preventiva7, até aspectos logísticos, como por exemplo a dimensão (ou outras características do domínio material) dos trabalhos dos artistas. Deste modo, por estar implantada na zona velha de Almada, o acesso à Casa da Cerca encontra-‐se condicionado 6
Entendendo a contemporaneidade dentro de uma divisão historicista, ou seja, a partir de 1789, a actividade da Casa centra-‐se habitualmente na criação artística dos séculos XX e XXI. 7 Erigido em cima da arriba sobranceira ao Tejo, exposto a ventos e a humidade, a construção antiga não está, de raiz, apetrechada para as necessidades de um espaço de acolhimento de obras de arte. Contudo, numa intervenção recente (2005-‐2006) houve alterações no isolamento térmico do telhado, tendo também sido instalados filtros UV nas janelas, para diminuir os efeitos nocivos quer das alterações de temperatura, quer da prolongada exposição à luz em materiais mais sensíveis. Mantém-‐se, no entanto, a necessidade de instalar desumidificadores, sempre que o tempo se torna mais húmido, já que a calefacção das janelas, mesmo recente, não é completamente eficaz.
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pela estreiteza das vias circundantes; além disso, a própria entrada no edifício é limitada ao tamanho das portas (que manteve o risco original) e, em termos expositivos, às dimensões, nomeadamente ao pé direito, das salas de exposição.
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Ainda assim, ao longo destes anos, a Casa da Cerca tem conseguido oferecer uma grande diversidade de propostas, entre mostras individuais, colectivas e temáticas, com abordagens espaciais diferenciadoras. Em termos teóricos, tem sido investigado o desenho dos arquitectos, dos pintores, dos escultores e dos designers. Embora o eixo da programação permaneça centrado no desenho, tem também sido dado espaço à fotografia, instalação e vídeo. Assim, aquele tem sido estudado como projecto e processo de investigação, registo expressivo e materialização final da criação artística, permitindo ainda demonstrar o quanto o conceito de desenho é abrangente e o quanto continua a permitir aos artistas a exploração de media e abordagens diferentes. Na sequência do programa inicial, proposto pelo seu primeiro director, o pintor e professor Rogério Ribeiro, ele próprio um praticante incansável do desenho um artista com grande 8
Vista geral do edifício da Casa da Cerca, com o Tejo e Lisboa ao fundo. Nesta imagem é visível a planta em U, e o enquadramento geográfico, com uma ala para nascente, outra para norte (a que tem Lisboa por trás) e outra para poente. Fotografia de Joaquim Nabais. Arquivo da Casa da Cerca.
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interesse na tradição e, numa política de rara continuidade, garantida pela direcção seguinte e actual, da Drª Ana Isabel Ribeiro, e dada também a formação da equipa que trabalha centralmente no sector expositivo da Casa da Cerca, maioritariamente formada em História da Arte (incluindo a directora), houve sempre uma clara intenção de dar a ver o desenho dentro de um contexto histórico que ilumine a herança plástica e esclareça a identidade de cada artista e de cada proposta curatorial, oferecendo aos visitantes um âmbito mais alargado de leitura. Além disso, o desejo de diversificar o leque de pesquisas autorais e a vontade de manter uma programação de excelência, fez com que sempre se tenha aberto a Casa da Cerca a nomes artísticos de referência. Prestes a terminar a segunda década de actividade, este equipamento conta já com um número significativo de concretizações. Assim, desde 1993 e até ao início de 2012, foram realizadas na Casa da Cerca9 98 exposições individuais e 24 colectivas. Ao todo, já aqui expuseram perto de 360 artistas nacionais e internacionais, ao longo destes anos. Nessas 122 mostras, e mesmo com as condicionantes referidas, os projectos foram variando, propondo-‐se não apenas percursos específicos das obras (compreendendo pressupostos históricos, artísticos e técnicos) ou dos temas, mas igualmente leituras e relações entre a encenação dos objectos artísticos e a reflexão e registo correspondentes nos catálogos; ou, ainda, tentando encenar a Casa da Cerca e tornando cada percurso o mais flexível e diferenciado possível. Um dos exemplos mais paradigmáticos e iniciais desse exercício foi realizado em 1995, com a exposição O Desejo do Desenho, colectiva que, a par de trabalhos de artistas portugueses contemporâneos10, que praticam o desenho de modos muito distintos, fazia a ponte com os estudos de geometria e perspectiva, a tradição dos tratados, a cartografia, o desenho 9
Além da área exterior, dividida em vários jardins, a área interior compreende, na ala nascente, no piso térreo, a Galeria do Pátio, a Capela e o Centro de Documentação e Investigação Mestre Rogério Ribeiro (no piso superior, encontram-‐se os gabinetes de trabalho). Na ala norte, no piso térreo, existe o auditório e o acesso à antiga cisterna, agora também espaço expositivo. Na ala poente, passando a recepção (onde, desde 2009, se organizam exposições dos trabalhos resultantes dos ateliers do Serviço Educativo), chega-‐se à primeira sala da galeria principal. Daí se tem acesso ao piso superior, onde existe uma sala de 25m x 5m (a maior área coberta expositiva da Casa da Cerca) e de onde se procede para duas salas da ala norte, ambas igualmente usadas para fins expositivos. 10 Nessa mostra, além de reproduções de máquinas de desenho e de estudos perspécticos, entre outros, estiveram patentes criações de Álvaro Lapa, Ana Hatherly, Ângelo de Sousa, António Areal, António Sena, Fernando Calhau, Helena Almeida, João Vieira, Jorge Martins, Jorge Pinheiro, José Mouga, José Rodrigues, Júlio Pomar, Manuel Baptista, Pedro Cabrita Reis, Pedro Calapez, Pedro Chorão, Rogério Ribeiro, Rui Chafes, Rui Sanches e Sá Nogueira, da colecção da Fundação Luso-‐Americana para o Desenvolvimento, parceria com que a Casa da Cerca inaugurou uma política de trabalho conjunto.
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científico, a caligrafia e o ensino académico desde o Renascimento, abrindo, na Casa da Cerca, uma via de projectos de investigação histórica em torno da disciplina do desenho11 e evidenciando a relação entre tradição e contemporaneidade. Ao tempo, não havendo significativos estudos teóricos sobre o desenho, em Portugal, a investigação de O Desejo do Desenho revelou-‐se da maior importância para a divulgação e possibilidades científicas e criativas desta disciplina.
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Seguindo essa via, em 2001, e a pretexto de um enriquecimento de que a Casa usufruiu, com a transformação do seu velho horto num jardim botânico com uma colecção de plantas com características muito específicas, uma outra exposição colectiva, de que nos ocuparemos em seguida, permitiu uma nova abordagem e a abertura de um caminho que se continua a investigar até hoje. 3. UM JARDIM ÚNICO OU UMA JANELA DE OPORTUNIDADE 11
Esse trabalho tivera antecedentes na Galeria Municipal de Arte (1988) com exposições e catálogos que divulgavam aspectos do trabalho académico do desenho. 12 Imagem de O Desejo do Desenho (1995), Galeria Principal. De notar como a ampliação de um estudo perspéctico foi usada como trompe l’œil para criar a ilusão de infinitude do espaço expositivo. Arquivo da Casa da Cerca.
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O Chão das Artes – Jardim Botânico foi uma iniciativa pioneira na especificidade da articulação das vertentes científica e artística — concretizado num projecto inspirado no jardim tradicional português de quinta de recreio (origem da Casa da Cerca, como vimos) que, para além da Estufa, Herbário e anfiteatro de ar livre, se organiza em seis áreas estruturantes, nas quais crescem plantas cujos componentes vegetais originam materiais usados nas artes plásticas: a Mata (dedicada às madeiras utilizadas na escultura ou como suporte de retábulos); o Pomar das Gomas (onde árvores de fruto, essencialmente do género Prunus, produzem as gomas utilizadas na pintura); o Jardim dos Óleos (onde se encontra o rosmaninho, o alecrim, a alfazema, além de outras espécies produtoras dos diversos óleos usados na pintura); o Jardim dos Pintores (no qual existem canteiros de flores que citam o imaginário pictórico de alguns artistas e onde todos os anos se homenageia um pintor — Monet e a sua paleta de azuis; van Gogh e as suas searas e girassóis; Gertrude Jekyll ou Sonia Delaunay e as suas cores vibrantes); o Jardim das Telas (aí se encontram plantadas espécies como o linho ou o algodão) e o Jardim dos Pigmentos (no qual crescem, entre outros, maravilhas — que dão um corante cor-‐de-‐laranja — e lírios, de cuja flor se extraem corantes roxos ou amarelos e de cujo rizoma se obtém um pigmento violáceo). A inauguração, em Junho de 2001, deste novo núcleo de recreio e estudo da Casa da Cerca foi pretexto para uma mostra documental e artística, Natura Artis Magister. A natureza mestra das artes. Estabelecendo-‐se uma linha de leitura de cruzamento entre História das Ciências e uma História da Cultura, além de aspectos tecnológicos, abordaram-‐se ainda temas do domínio da alquimia, da simbologia, da ilustração científica, da história dos jardins e da representação da paisagem na arte portuguesa do século XIX. A relação entre a exposição e o catálogo foi, uma vez mais, pensada de modo a que este ilustrasse bem os diversos núcleos de saber e a sua encenação, que englobou, inclusivamente, a imagem geral (o mesmo verde usado nas paredes das salas foi repetido na capa do catálogo, e nos demais materiais impressos; observou-‐se, ainda, coerência nos tipos de letra escolhidos bem como na linguagem iconográfica, de modo a ser bem clara essa relação13). 13
Essa opção, geralmente seguida nos discursos expositivos, tem sido mantida mas com actualizações. Por exemplo, abandonou-‐se a imagem gráfica exterior e o formato sempre igual dos catálogos e passou a adequar-‐ se a publicação ao discurso desenvolvido no espaço, dentro de uma lógica mais particularizada de cada projecto.
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Em 2011, retomámos o fio de relação entre arte e natureza. Desta vez, a colectiva Sobre-‐ Natural – 10 Olhares sobre a Natureza, evento central do Programa de Comemorações do 10.º Aniversário de O Chão das Artes – Jardim Botânico e prosseguindo as questões apontadas em 2001, propunha-‐se voltar a olhar a natureza, não apenas no registo paisagístico da anterior, mas do ponto de vista do desenho contemporâneo, incluindo a ilustração botânica. Tal como em 2001 havíamos contado com o biólogo e ilustrador científico, Pedro Salgado, que apresentara um texto sobre as características do desenho científico e do seu contributo para o conhecimento da natureza, em 2011, reiterámos essa parceria artística e teórica, para uma abordagem aos avanços realizados nos últimos 10 anos, em Portugal, no âmbito da ilustração científica, mais concretamente na botânica. Reflectindo as propostas da investigação, os 10 autores (evocando os dez anos do Chão das Artes) que integraram este projecto (cinco ilustradores científicos e cinco artistas plásticos contemporâneos) concretizaram um diálogo profícuo, patente na colocação das obras no espaço, sem discursos de fragmentação, conferindo amplo pretexto para uma reflexão abrangente da pluralidade das linguagens e dos seus diferentes pressupostos. A exposição revelou-‐se, assim, do ponto de vista conceptual, mais um pretexto para a investigação histórica (desta vez sobre a história da ilustração científica14 e da sua relação com o mimetismo e o conhecimento nas artes) e propôs-‐se também como mais um espaço de discussão sobre a actualidade e a pertinência do desenho, seja no mais imediato registo 14
Como núcleo histórico, esta mostra foi complementada por outra, que funciona até hoje autonomamente. Intitulada As plantas do Chão das Artes. Ilustração botânica do séc. XVI ao séc. XIX é constituída por um conjunto de reproduções de ilustrações botânicas, antigas, pertencentes à colecção do Museu Nacional de História Natural do Jardim Botânico da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. As gravuras em questão foram retiradas de Herbais, Iluminuras, Receituários, Registos de Expedições, Diários de Exploradores, Tratados de Medicina, Herbários, Floras, Manuais de Fitoterapia, Livros de Culinária, Tratados de Pintura, Compêndios de Botânica, Artigos Científicos, sublinhando os inúmeros usos das ilustrações botânicas. As reproduções escolhidas, que actualmente se encontram patentes no muro do Jardim, representam plantas que existem no Chão das Artes, todas elas com utilização nas artes plásticas. Dada a sua secular importância histórica e científica, e na impossibilidade de aqui se expor quer os originais dessas gravuras, quer os livros em que foram publicadas pela primeira vez, foi seleccionada quase uma centena de ilustrações, escolhidas entre inúmeras ilustrações publicadas numa dezena de obras, distribuída por cerca de cinquenta espécies, em trabalhos de diversos autores (nem sempre identificáveis), que cobrem um período do século XVI ao XIX. Na grande diversidade de registos patentes, oferecem-‐se diferentes olhares e técnicas sobre a mesma espécie. As peças reproduzidas foram originalmente realizadas em xilogravura, calcografia, litografia colorida à mão ou cromolitografia, evidenciando as exigências de qualidade e as técnicas disponíveis em cada época. Também por razões expositivas, foram quase todas reproduzidas em dimensões inferiores às originais, apresentadas por ordem alfabética do seu nome científico e – quando existem várias ilustrações da mesma espécie – por ordem cronológica.
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expressivo e estético, como no traçado mais rigoroso do projecto científico da explicação do real. 4. A PROSSECUÇÃO DA INVESTIGAÇÃO Ao longo dos anos, a investigação em torno do desenho tem sido ciclicamente ampliada na Casa da Cerca. Se, por um lado, se tem realizado investigação em torno da actividade experimental e expressiva dos artistas ou dos limites materiais da disciplina, de que são exemplo as exposições Artistas Britânicos. Trabalhos sobre papel, 1956-‐197115, com peças da Colecção do Centro de Arte Moderna, da Fundação Calouste Gulbenkian (2002), ou Desenho 1993-‐2003 (na qual se reflectiu sobre o carácter do desenho na contemporaneidade e se mostraram criações dos 33 artistas que, até então, tinham exposto individualmente na Casa da Cerca), bem como Dramaturgias do Desenho16 (2004), foram também pensados outros projectos em que abordámos a tradição com carácter mais historicista. Assim, temos também produzido exposições como O Desenho Dito (2008), na qual recordámos a história das Academias enquanto centros de tertúlia e aprendizagem das disciplinas artísticas, de que o desenho é fundador. Historiograficamente, passámos em revista um modelo que nasce na Renascença e que seguimos até ao século XIX, contribuindo de modo inequívoco para a criação do estatuto do artista, mostrando ainda como, a partir dos meados de Oitocentos, se opera uma mudança de paradigma, com a crescente valorização da experiência em detrimento de saberes escolares e modos de aprendizagem mais institucionalizados. Chegámos assim à paixão vanguardista/modernista e ao preconceito anti-‐académico que com ela se instaurou entre criadores e críticos/historiadores, com consequente perda de prestígio por parte da Academia e acabámos no final do século XX/início do XXI, com o regresso à relevância dada aos estudos académicos e à importância do conhecimento da tradição. Incluímos, nessa passagem 15
Este projecto resultou de um desafio da curadora do Centro de Arte Moderna da FCG, Ana Vasconcelos, e foi co-‐comissariada por essa investigadora e por mim. 16 A pretexto dos vinte anos do Festival de Teatro de Almada, reunimos obras dos dez artistas que, até então, tinham sido convidados para criar, desde 1993, a imagem gráfica do festival e que, dada a parceria existente com o festival, tinham realizado na Cerca da Cerca uma exposição individual.
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historiográfica, o acesso das mulheres ao ensino artístico, do Renascimento à contemporaneidade. E também a história académica portuguesa. Teoricamente, nessa encruzilhada de tempos, saberes, técnicas e pesquisas, investigámos a relevância do desenho hoje, apurando o papel que desempenha no processo criativo dos artistas convidados. Em termos expositivos, à parte a inclusão de obras de desenho de 4 artistas do século XVIII (para o que contámos com a parceria do Museu Nacional de Arte Antiga), trabalhámos mais onze criadores contemporâneos (num total de 15 nomes que, simbolicamente, remetiam para os 15 anos de actividade da Casa da Cerca, que então comemorávamos). Evidenciando os diversos modos como os artistas contemporâneos aliam disciplina académica com experimentação, criámos um percurso que passou da informação histórica para as duas salas em que se colocaram as obras dos artistas contemporâneos, terminando na evocação da tradição, com os autores do século XVIII17. Em 2009, com 1/150. Gravar e Multiplicar18, dedicámos a exposição a uma das disciplinas devedoras do desenho, a gravura. Recorrendo a uma selecção de gravuras da colecção do Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, e problematizando sobre a pertinência de expor gravura, tomámos também a braços o pretexto para fazer um pouco a história desta disciplina artística, incluindo, como sempre, o contributo português para essa história. Em termos nacionais, e sendo raras as mostras de gravura em Portugal, foi uma boa oportunidade para sublinharmos, além do inestimável papel desta arte na divulgação das outras artes, o seu valor intrínseco, artístico, e a sua qualidade única de objecto plástico, além de um muito significativo número de criadores de indiscutível qualidade. Regressando ao exercício de inspiração académica no desenho, no final de 2012, e integrando o programa mais vasto da I Trienal de Desenho – Desenha ’12, de que a Casa da Cerca é parceira, a exposição em que culminará a investigação deste ano em que 17
Por razões da própria estrutura do edifício, estas obras tiveram de ficar na última sala do percurso. Assim, este não foi cronológico, mas temático. Depois de uma primeira sala didáctica, com ampla informação, também iconográfica, que reflectia uma perspectiva cronológica da história, as grandes salas do primeiro andar acolhiam o núcleo de representação do corpo, da natureza e, finalmente, do século XVIII. 18 Este projecto também resultou de um repto que me foi lançado pela curadora do Centro de Arte Moderna, Ana Vasconcelos. Dadas as dificuldades técnicas que a gravura coloca, à parte a escolha das peças por critérios artísticos de que ambas nos encarregámos, foi convidado o artista plástico e gravador António Canau para comissário científico. Sendo o CAM detentor de uma significativa colecção de gravura, com grande diversidade de autores, técnicas e expressões, que permaneciam pouco divulgadas e estudadas, a oportunidade de trabalhar e expor parte significativa desse acervo revelou-‐se da maior importância para ambas as instituições envolvidas.
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homenageamos Leonardo da Vinci, e que será centrada no cânone, intitular-‐se-‐á A Ciência do Desenho. Tratar-‐se-‐á de uma colectiva que pretende explorar as técnicas do desenho, tal como estas foram utilizadas ao longo dos séculos (desde a Antiguidade até à contemporaneidade) para a obtenção do maior rigor científico e do máximo mimetismo possível na representação, tal como foi praticado a partir do Renascimento. Assim, trataremos não apenas as questões teóricas da perspectiva e demais aspectos da ciência do desenho, como também os materiais com que é elaborado, considerando a invenção da câmara escura e a vulgarização do papel, a grafite, o carvão ou as tintas, com as suas consequências na prática do desenho, bem como aspectos técnicos mais particulares da pintura, como a utilização do óleo, a descoberta de novos pigmentos, o uso de madeiras e telas. Para tanto, iremos socorrer-‐nos de bibliografia histórica e de novas investigações entretanto publicadas. De modo a cobrir um espectro figurativo significativo, e tendo o homem sido, a partir do Renascimento, a medida de todas as coisas, esta será uma exposição centrada na representação da figura humana, nos estudos da proporção, de anatomia e na codificação da figuração. Se em O Desenho Dito explorámos a história dos lugares de ensino do desenho (academias) e a sua relevância como centros de tertúlia e aprendizagem das disciplinas artísticas, estudando-‐o desde o seu surgimento na Europa do Renascimento e acompanhando essas instituições até ao século XIX, evocando também o quanto foram importantes no desenvolvimento e mudança do próprio estatuto do artista, nesta nova proposta pretendemos olhar para dentro das oficinas e das Academias e ver que conselhos se davam para a boa realização das obras dos seus aprendizes. 5. DIFERENTES TEMAS, DIVERSIDADE DE ENCENAÇÕES E LEITURAS A vontade de diversificar a programação, faz com que, necessariamente, nem sempre as exposições patentes se debrucem sobre temas históricos. Assim, além de ser também dado lugar à expressão individual dos artistas que concorrem para que o trabalho do desenho seja o mais abrangente possível, é também dado espaço à realização de mostras temáticas ou de áreas do desenho em geral menos exploradas tradicionalmente pela investigação e política expositiva. Desse modo, tem sido também significativa a investigação em torno da 10
obra de alguns arquitectos, sendo de salientar as exposições sobre os arquitectos Raul Chorão Ramalho (1997), Alvar Aalto (1998 – esta, realizada em parceria com o Museu Alvar Aalto, no centenário do nascimento do arquitecto – com uma importante componente de design que se reflectiu na encenação espacial), Manuel Tainha (2000), Vilanova Artigas (2000), João Correia Rebelo (2003), Francisco Silva Dias (2006)19, Luís Vassalo Rosa (2007)20, José Santa-‐Rita (2009)21, José Forjaz (2010) e Sidónio Pardal (2011)22. Embora menos explorado, o design tem também sido objecto do trabalho da Casa, como aconteceu com a colectiva de designers portugueses O Design como Desígnio (1995)23 ou com a primeira apresentação dedicada a um núcleo significativo da colecção do designer Paulo Parra, Ícones do Design (2003) ou ainda com a mais recente mostra dedicada à colecção de máquinas polaróides do designer Raul Cunca, A Magia da Poloróide (2012)24. Com raras excepções, todas ostentaram sempre percursos e opções cenográficas, pensadas pela equipa da Casa da Cerca, que permitiram alterar, com recurso a um mínimo de custos, a imagem do espaço. Nas exposições de arquitectura, por exemplo, foi sempre tentado um claro equilíbrio entre informação documental e iconográfica, insistindo-‐se na contextualização da obra no seu tempo de criação e na relação do desenho esquisso/projecto com a sua materialização (da maquete ao documento fotográfico). No caso das exposições de design, o espaço foi organizado de modo a que os objectos pudessem ser dispostos de modo claro, cronológica e tematicamente.
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Exposição sobre a obra do arquitecto homenageado no âmbito do Prémio Municipal de Arquitectura Cidade de Almada. Primeira edição. 20 Exposição realizada no âmbito do Prémio Municipal de Arquitectura Cidade de Almada. Arquitecto homenageado. 21 Exposição realizada no âmbito do Prémio Municipal de Arquitectura Cidade de Almada. Arquitecto homenageado. 22 Exposição realizada no âmbito do Prémio Municipal de Arquitectura Cidade de Almada. Arquitecto homenageado. 23 Em parceria com a ESBAL. 24 Esta exposição constitui uma excepção a esta regra já que toda a montagem, incluindo o desenho das vitrines, é da responsabilidade e traço do coleccionador e designer.
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Em 1998, a exposição do arquitecto e designer finlandês Alvar Aalto foi paradigmática pela sua encenação espacial26. Patente na ala nascente da Casa da Cerca, onde se encontra a galeria de maiores dimensões, decorreu ainda numa fase da história do edifício em que era notória a antiga compartimentação de pequenas salas (notar a presença das velhas ombreiras de pedra que pontuam a sala no sentido do comprimento). As paredes foram, contudo, parcialmente cobertas por painéis de madeira clara, sem ângulos vivos (mimando as criações do próprio autor) e os objectos foram expostos em estrados, sugerindo ambientes mais próximos e caseiros do que os tradicionais plintos. Como aqui se percebe, o que poderia constituir uma limitação foi encarado como desafio e, mesmo, como ajuda à cenografia do espaço. 6. O PONTO DE VISTA DOS ARTISTAS E PERSPECTIVAS EXPOSITIVAS As exposições individuais podem constituir momentos de grande experimentalismo tanto do ponto de vista das obras como no que à sua montagem diz respeito. Não se trata apenas de pensar o desígnio de um artista, de expor a diversidade do seu trabalho de desenho — 25
Exposição Alvar Aalto. Arquitecto. 1898 100 [1998], vista da Galeria Principal, onde se encontrava patente o núcleo O Elogio da Madeira. Arquivo da Casa da Cerca. 26 Até 2004, inclusive, a concepção das montagens na Casa da Cerca foi sempre da responsabilidade de Rogério Ribeiro.
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embora isso seja sempre central na actividade da Casa da Cerca — mas também o modo como esse trabalho vai ser dado a ler. Não apenas na sequência das obras, na sua posição face ao visitante, mas também nas diferentes formas de abordagem às mesmas. Dadas as características da programação da Casa da Cerca, as individuais foram quase sempre pensadas como modos de sublinhar a diversidade de experiências plásticas operada em torno do desenho — chegando à gravura ou à instalação. Assim, foram organizadas exposições com programas, materiais e técnicas tão diversas como as de Carlos Botelho (1999, no centenário do seu nascimento), Vespeira (2001), Paula Rego (2001) 27 , José Rodrigues28 (2001), Henry Moore (2001)29, Ofélia Marques (2002)30, Ana Pimentel (2002), Sofia Areal (2002)31, Vera Castro (2002)32, António Quadros (2002)33, Luís Dourdil (2002), Pedro Chorão (2002), André Gomes (2003)34, José David (2003), Rogério Ribeiro (2003)35, Álvaro Siza (2004), Leonor Antunes (2004), Ana Vidigal (2005)36, Manuel Vilarinho (2006), Carlos Nogueira (2006), David Almeida (2006), José de Guimarães (2006), Rui Sanches (2007), Pedro Calapez (2008), Fátima Pinto (2009), Vasco Araújo (2009)37, Maria Pia Oliveira (2009), Cristina Ataíde (2010) ou Alberto Carneiro (2011) — só para citar alguns. Em todos estes casos, o desenho de cada autor foi tomado como pretexto para a reflexão em torno do seu exercício como disciplina mãe, na sua relação com as artes plásticas, com a literatura e a tradição cultural em geral, no diálogo que estabelece com a pintura, a escultura ou a instalação e ainda na investigação das suas técnicas e suportes tradicionais e dos limites (ou liberdade) a que o levam as novas possibilidades, incluindo as tecnológicas — associando-‐o, por exemplo, a projecções vídeo. 27
Parceria com a Fundação Arpad Szènes-‐Vieira da Silva. Parceria com a Cooperativa Árvore. 29 Projecto e investigação de Ana Vasconcelos, com peças de gravura da Colecção do Centro de Arte Moderna, da FCG. 30 No centenário do seu nascimento. Parceria com o CAM, FCG. 31 Exposição integrada no Festival de Teatro de Almada. 32 Exposição integrada no Festival de Teatro de Almada. 33 Parceria com a Cooperativa Árvore. 34 Exposição integrada no Festival de Teatro de Almada. 35 Esta exposição também tinha algumas surpresas no percurso, ao contar, por exemplo, com um núcleo que remetia para o atelier do pintor e com um outro em que, através de uma pequena mostra fotográfica de Rosa Reis, se documentava o trabalho do artista, na sua relação com a pintura, o desenho e o azulejo e ainda na sua cumplicidade pessoal com alguns profissionais de carpintaria da Câmara Municipal de Almada, com que a Casa da Cerca conta invariavelmente, há anos, para a montagem das exposições. 36 A exposição da artista Ana Vidigal, integrada no Festival de Teatro de Almada, foi realizada no Convento dos Capuchos, dado a Casa da Cerca ter estado encerrada ao público ao longo desse ano, para a realização de obras. 37 Exposição integrada no Festival de Teatro de Almada. 28
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Tal como nas exposições colectivas, em que as obras são distribuídas pelos diversos espaços da Casa da Cerca de acordo com as suas características (projecto, dimensões, técnicas), também os desafios lançados aos artistas para as exposições individuais (ou propostos pelos artistas 38 ) correspondem a um discurso de montagem que permita não apenas uma correcta leitura, como uma encenação adequada e sedutora. Ou seja, em termos expositivos, o modo como as obras são apresentadas tenta criar um envolvimento com estas, e facilitar a compreensão dos pressupostos de cada autor. Assim, por exemplo, em 2000, o pintor Domingos Rego expôs na Casa da Cerca um conjunto de sete obras de pintura e de outras tantas de desenho. Os dois núcleos, expostos em diálogo, abordavam dois temas complementares: as sete virtudes (pintura) e os sete vícios (desenho). As pinturas, de dimensões generosas das pinturas foram colocadas, como habitualmente, nas paredes da galeria. Os sete desenhos, de dimensões mais diminutas, ficaram resguardados em vitrinas. A inclinação da superfície destas permitia uma visão confortável; e as vitrinas, colocadas ao lado das pinturas, ofereciam aos desenhos que guardavam um contraponto evidente que, não cortando a linha de visão das telas, criava uma segunda linha de observação, que simultaneamente iluminava a sua leitura e sublinhava o seu carácter intimista, complementar à obra pictórica.
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Ao longo dos anos, a cada projecto expositivo, nos diferentes espaços da Casa da Cerca, correspondeu uma nova aposta na adaptação do espaço. Considerando os diferentes espaços expositivos do edifício e as suas características (acesso, dimensões, iluminação, tipo de chão, paredes ou tecto), a montagem das obras tem sempre de ter em conta todas essas 38
A Casa da Cerca recebe inúmeras propostas de artistas para a realização de exposições. Essas propostas são sempre analisadas, sendo ponderada a sua adequação ao programa geral, anual, elaborado pela equipa da Casa. A maior parte das vezes, porém, as exposições partem de convites lançados aos artistas pela própria instituição. 39 Exposição Sete Virtudes. Sete Vícios. Domingos Rego (2000), Galeria do Pátio. Arquivo da Casa da Cerca.
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variantes. Por exemplo, obras que devam ser expostas na capela, na qual existem vários elementos decorativos (painéis azulejares, o altar), onde o pé direito apresenta dois níveis de grandeza, em que a iluminação coloca alguns obstáculos e cujo acesso é feito directamente a partir da rua (como, aliás, acontece na Galeria do Pátio), têm de considerar todos esses aspectos. Do mesmo modo, na Cisterna, há a considerar o acesso (mais estreito do que qualquer outro na Casa), a humidade intrínseca do espaço, e o desenho da sala, condicionado pela planta de secção circular. As características dos espaços, embora problematizadoras, podem tornar-‐se mais-‐valias num projecto expositivo. No caso da Capela, são de destacar as intervenções realizadas no contexto das individuais de Rui Sanches e de Pedro Calapez. No primeiro caso, as peças de escultura foram colocadas em estratégico diálogo formal com a envolvente, em plintos estreitos que permitiam a circulação e criavam um percurso livre; no segundo, desenhos que remetiam para os exercícios preparatórios das obras criadas por Calapez para o santuário de Fátima foram expostos em altura, estabelecendo linhas paralelas à verticalidade do altar e fazendo uma actualização simbólica e plástica dos temas religiosos abordados. O quase exclusivo uso do branco nestes desenhos criava um excelente diálogo com o cenário pré-‐existente. Na Cisterna, salientam-‐se as intervenções de Fátima Pinto (2009) e de Maria Pia Oliveira (2009). No primeiro caso, a exposição de desenho e pintura de Fátima Pinto foi dividida por dois espaços: o Salão Nobre, onde figurou a pintura, e a Cisterna, onde ficaram patentes cinco cadernos moleskine. Dada a configuração do espaço e também as características dos cadernos, foram concebidas vitrinas desenhadas em linhas curvas que assim acompanhavam o traçado da cisterna e acolhiam, como se fossem leques, os cadernos abertos, revelando os desenhos realizados em sequência panorâmica. O efeito cenográfico, acentuado pela iluminação e pela inserção de um vermelho museu no fundo desses expositores — um tom usado em pormenores de alguns cadernos e que deu também mote a apontamentos de design gráfico do catálogo — ficou assim amplamente servido, permitindo simultaneamente uma boa leitura desses trabalhos de cerca de dois metros de comprido.
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No segundo caso, a escultora Maria Pia Oliveira em relação com a instalação de exterior, em que uma película reflectora “captava” o céu sobre o muro da Cerca, optou por “aprisionar” uma nuvem no interior da cisterna. O moroso labor de um desenho trabalhado pela artista ao longo de várias semanas, na criação, com fios de nylon, de uma nuvem que tombava num espaço improvável, ofereceu também um dos pretextos expositivos para a discussão entre os limites do desenho/escultura/instalação. Cenograficamente, o aspecto simbólico de uma nuvem ‘aprisionada’ numa cisterna tornava-‐se uma experiência de surpresa e encantamento.
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Exposição Margens. Fátima Pinto (2009), Cisterna. Esta exposição teve dois núcleos: um de pintura, no antigo Salão Nobre (piso superior, ala norte) e de desenho, na Cisterna. Aqui, vista parcial da Cisterna. Imagem do período de montagem. Arquivo da Casa da Cerca. Fotografia de Rosa Reis.
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No final de 2004, um sismo que, escassas semanas depois, causaria a derrocada de parte do telhado da área expositiva (a nascente do edifício), propiciaria obras de renovação nas alas nascente e norte, que alterariam significativamente o aspecto e as possibilidades da galeria principal. Em termos de salubridade, a inclusão de isolamento térmico, no telhado das alas nascente e norte, contribuiu para melhorar as condições espaciais. Além disso, no caso da ala nascente, o pé direito da área expositiva aumentou bastante, dada a opção de manter aparente o travejamento42, não o ocultando com um tecto rebaixado como acontecia antes da intervenção. Passou assim a ser possível a exposição de peças de dimensões mais generosas. Desapareceram também por completo os vestígios da antiga compartimentação do espaço, existindo actualmente uma nave única, marcada apenas pela fenestração (que pode ou não ser camuflada, recorrendo-‐se a painéis móveis) e que permite uma plasticidade muito maior do espaço, pela inclusão ou remoção de paredes divisórias. No conjunto, estas alterações permitem hoje mais flexíveis opções de montagem. Mais uma vez, de um embaraço conjuntural, nasceram soluções que melhoraram o equipamento.
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Exposição Clothilde e Celeste. Maria Pia Oliveira (2009), Cisterna. Arquivo da Casa da Cerca. Fotografia de Rosa Reis. 42 Obras com risco da Arquitecta da CMA, Maria José Lopes. 43 A exposição Suspender o Ar. Cristina Ataíde (2010) ocupou toda a Casa (com a excepção da Cisterna) e compreendeu ainda uma instalação no Chão das Artes-‐Jardim Botânico. Aqui, vista da Galeria Principal, onde ficou exposto este desenho de 25 m de comprimento, feito de propósito para o espaço. Arquivo da Casa da Cerca. Fotografia de Rosa Reis.
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7. DISCURSOS DIVERGENTES. ALGUNS EXEMPLOS PEDAGÓGICOS. Uma exposição é sempre um discurso dotado de várias complexidades. Por um lado, lida-‐se com a obra de um ou mais artistas — e, consequentemente, com as expectativas que os próprios autores têm em relação ao modo de comunicar o seu trabalho. Por outro, lida-‐se também com o ponto de vista daquele ou daqueles que a pensaram. Sendo uma exposição o resultado do esforço de um vasto colectivo, a questão da comunicação é também um dos elementos mais sensíveis a gerir. Por um lado, considerando o facultar de informação eficaz para o exterior, para a necessária divulgação, seja sob a forma de cartazes, convites, anúncios ou informação à imprensa. Por outro, no circuito interna da instituição, tanto em termos pedagógicos, na relação com o Serviço Educativo (face da comunicação do estabelecimento com os diferentes públicos), como, ao chegar ao momento em que é preciso encenar esses sentidos no espaço, com a ajuda de vários outros profissionais. Além dos constrangimentos financeiros que é imperativo ter em conta desde o início, há outros aspectos a considerar.
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Vista da Galeria Principal durante a exposição Sobre-‐Natural: 10 olhares sobre a Natureza (2011). Arquivo da Casa da Cerca. Fotografia de Rosa Reis.
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Para tanto, saber ouvir os diferentes especialistas é algo absolutamente necessário. Pensar uma parede de madeira sem o saber específico de carpinteiros, quanto à resistência dos materiais, por exemplo, pode sair caro. Saber que uma determinada tinta precisa de várias demãos e de X tempo para secar para ficar em condições de receber as obras (ou textos de vinil, por exemplo, que não colam sobre superfícies húmidas) é igualmente significativo. Ter uma clara noção da luz a usar (intensidade, temperatura, recorte, modo de incidência, etc.) e das condições existentes para todas as necessidades concernentes à utilização de aparelhos electrónicos (imagem e/ou som) é também determinante e não apenas quando existem núcleos de vídeo. Definir, ainda, se os textos de parede (e demais informação de exposição, como folhas de sala ou tabelas) vão ser traduzidos ou não (e contar, desde logo, com o tempo não apenas da sua redacção, mas também da sua tradução, além do design e impressão); manter uma clara noção da relação entre os vários elementos (cor geral — branco ou encenação cromática mais forte?), decidir em relação à existência de expositores, molduras, plintos (ou ausência de todos estes elementos? 45 ), em suma, definir uma montagem (e tudo o que à exposição diz respeito) é contar com um sem número de pormenores que concorrem para uma clara leitura do projecto artístico e curatorial. Ora, é aí que entram os obstáculos. Em 2008, a mostra colectiva O Desenho Dito revelar-‐se-‐ia um processo bastante complexo. Por um lado, dadas as suas exigências em termos expositivos (a presença de obras de desenho português do século XVIII, oriundas da colecção do MNAA, obrigou a cuidados extra, tanto em termos de montagem como de conservação preventiva e até de segurança), colocou desafios concretos que não se prenderam apenas com o percurso e a cenografia do espaço, incluindo a iluminação. Do ponto de vista gráfico, revelou-‐se, assim, uma das mais 45
Que discurso e que perspectivas se pretende passar? A obra a expor deve sublinhar o seu carácter museal — daí o plinto, a moldura — ou o artista e/ou o curador pretende(m) uma mais evidente dessacralização do objecto, um discurso mais directo, sem acessórios sumptuários que distraiam o espectador? E se a peça ficar completamente à mercê do bom senso do visitante (ou, noutros casos, à mercê dos elementos, quando se trata de criações realizadas com materiais perecíveis ou frágeis e que são expostas no exterior, sem qualquer tipo de protecção) no que diz respeito à sua integridade física, por decisão consciente do artista, como se podem depois medir os eventuais acidentes? Algumas obras de arte contemporânea têm morte eminente. Pela sua natureza efémera, algumas que são pensadas para viver da sua exclusiva e temporal relação com o espaço morrerão ou desvirtuar-‐se-‐ão ao ser desligadas do lugar para que foram pensadas. Algumas poderão voltar a ser expostas noutro lugar; mas, então, adquirirão outra natureza. Outras ainda, sujeitas aos acidentes meteorológicos, determinantes na aceleração de processos degenerativos, estão à partida condenadas a cessar. A responsabilidade do curador — ou da instituição — perante objectos tão óbvia e definitivamente perecíveis deverá ser diversa da que tem sobre outras de assumida perenidade e monumentalidade? A resposta é obviamente negativa. Mas como se avaliam os riscos materiais, patrimoniais e emocionais dessas perdas?
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difíceis mostras a coordenar, mas também uma das mais pedagógicas. Pontos de vista e expectativas muito distintas entre as duas comissárias e os designers envolvidos (quer na realização do catálogo quer no design gráfico de conteúdos expositivos — textos de parede, títulos, escolha de imagens históricas e modos de apresentação) levantaram questões de grande pertinência no que diz respeito à linguagem formal que envolve a partilha e o discurso teórico estabelecido em torno de obras de arte. O resultado final ficou aquém das expectativas de ambas as equipas envolvidas, mas o balanço não pôde deixar de ser positivo. Por um lado, em termos de conteúdos pedagógicos e artísticos, a mostra ganhou o interesse generalizado do público visitante. Por outro, no que diz respeito à comunicação entre os diversos profissionais envolvidos (considerando aqui os elementos da instituição e os exteriores, responsáveis pelo design) foi também um passo importante na aprendizagem, tendo sido confirmado, desde então, o que se deve fazer ou evitar, na apresentação de um programa da equipa curatorial aos designers. 8. EM JEITO DE CONCLUSÃO Com raras excepções, todos os projectos expositivos embatem em obstáculos. Se o desenho, como qualquer expressão criativa, enquanto se mantém no domínio puro da imaginação, é absolutamente livre e possível, ao materializar-‐se sofre, como tudo na vida, as contingências expectáveis, colocadas pelo real. Ainda assim, as ilações e as lições a tirar são positivas. Um dado insucesso num determinado ponto de vista pode, como é desejável, tornar-‐se uma mais-‐valia de conhecimento para experiências e exigências futuras. Como dizia um curador famoso, “fazer a curadoria de uma exposição em que nada pudesse falhar seria uma perda de tempo”46. Alguns poderão interrogar-‐se sobre a natureza desses riscos. A resposta é múltipla. Em geral, há vários possíveis — e mais comuns do que seria desejável: o primeiro de todos, o de não interpretar correctamente a obra que se quer expor, no contexto da produção do autor;
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Curating a show in which nothing could fail was, to Szeemann, a waste of time. In LEVI STRAUSS, David, “The bias of the world: curating after Szeemann & Hopps”, in Cautionary Tales: Critical Curating, Apexart, New York, 2007, p. 24.
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o risco de a colocar numa situação espacial que a desvirtue; o de a dar a ler47 de modo excessivamente obscuro (tornando-‐a inacessível) ou excessivamente claro e literal (apoucando-‐a, destituindo-‐a da sua inerente complexidade). Depois, há também os destinatários do nosso trabalho e os modos de concretização da comunicação: os diversos públicos a que desejamos chegar. Incluindo os pares, outros artistas, críticos. E, não menos importantes, os novos públicos que pretendemos ganhar. Os museus são hoje internacionalmente reconhecidos como espaços geradores e agenciadores de cultura, poderosos dinamizadores económicos. Ainda assim, em Portugal a situação resiste à mudança, havendo poucos espaços museais que apresentem verdadeiros block busters. Não queremos com isto dizer que todos os museus devam ter a preocupação de atrair multidões como se disso dependesse a sua legitimidade patrimonial, cultural e artística, mas apenas que a vocação pública destes espaços tem o dever de ter em conta a existência de múltiplos públicos quando pensa a sua programação. Nesse sentido, e cientes de que, não se pode agradar a gregos e troianos, e cientes ainda da desconfiança que tantos mantêm ainda face aos espaços dedicados à arte, sobretudo à contemporânea, a programação da Casa da Cerca continua a afirmar-‐se como exploratória. Tentando não sucumbir a preconceitos nem cair em maniqueísmos. Assim, acolhemos o académico e o vanguardista, o científico e o expressivo. Sem juízos prévios. Apenas com muita curiosidade e vontade de partilhar o nosso ponto de vista. Mantendo bem vivo o nosso desejo do Desenho.
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Os modos de dar a ler excedem, logicamente, os aspectos mais físicos da montagem, passando pelas propostas mais abrangentes do Serviço Educativo, nas acções pensadas para todos os públicos, dos infantis, aos jovens, adultos e seniores, seja em contexto escolar ou livre.
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