O desenho como sudário

June 9, 2017 | Autor: Emília Ferreira | Categoria: Desenho, Artistas portuguesas
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O desenho como sudário1 Emília Ferreira

Rosário Forjaz já nos habituou a olhar para a natureza através do seu próprio olhar. Analítico e atento, ele materializa-se no seu desenho fluído, em que o gesto modela a linha de modo sinuoso. Em que a cor é aberta em luz, trabalhada em transparências, servindo a estrutura do desenho, revelando o seu corpo. Assim a pintora nos tem aproximado o olhar de objectos do mundo vegetal — flores, tubérculos, ramos de árvores — que, vivendo tão perto de nós, se nos tornaram invisíveis. Assim a pintora nos tem relembrado como o mundo, incluindo o mais próximo, é composto de partículas de maravilhamento. Essas partículas comportam, portanto, a empatia. A identificação. E também o sofrimento. E, desta vez, prosseguindo a sua investigação sobre uma árvore em particular, a artista toma como mote o dragoeiro. Árvore mítica, a Dracaena draco, originária das Canárias, não se tornou famosa apenas pela sua forma estranha, mas sobretudo pela sua seiva especial, que foi, durante séculos, usada na pintura para mimar o sangue, sobretudo o dos mártires, na vasta narrativa sacra. Árvore distante da sua vizinhança, Rosário Forjaz encontrou-se com o dragoeiro em Almada. Vou agora particularizar este texto: posso dizer que conheci Rosário Forjaz na vizinhança de um dragoeiro. Tendo sido uma das artistas convidadas a integrar a exposição “SobreNatural: 10 olhares sobre a Natureza” com a qual a Casa da Cerca celebrou, em 2011, os 10 anos do Chão das Artes (jardim botânico com uma colecção de plantas que dão matérias primas para as artes), ela visitou-nos na véspera da inauguração. Apanhou-nos e acompanhou-nos, no jardim, plantando um dragoeiro de 10 anos, com o qual homenageávamos a vida do jardim e a memória de outra árvore da mesma espécie, que ali vivera e que morrera com cerca de 150 anos.

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Texto para o catálogo da exposição Dracaena Draco, de Rosário Forjaz, Universidade do Minho, Fevereiro de 2012

Assim, e na sequência de um convite para o registar, se moveu o interesse da artista para estas curiosas árvores. O resultado que agora se nos oferece dá a ver um processo que reúne — em fotografia e em desenho — um registo de vários dragoeiros, com diferentes idades e situações biográficas, que habitam jardins de Lisboa: Jardim da Ajuda, Palácio Ribamar, Jardim Botânico da Escola Politécnica e Jardim Tropical. O conceito de árvore como ser vivente, não como mero elemento da paisagem, é aqui patente não apenas pelos registos plásticos, mas até pela estruturação do discurso teórico que os enformam. Se o registo fotográfico (ele próprio reflexo de um pensamento estruturado pelo desenho, como se percebe pela sua qualidade gráfica) já se apresenta como mediador de uma identidade misteriosa e sofrida, de uma árvore que é simultaneamente monumento/património/tempo — metáfora perfeita para os nossos dias, em que o país envelhece em sofrimento —, o registo do desenho torna essa afirmação inequívoca. O discurso teórico afasta quaisquer dúvidas: a escolha de palavras como prótese, sutura, ferida, crescimento atrofiado (para descrever a árvore ou os processos técnicos do desenho), massagem (no acto de aplicar os pigmentos) remetem-nos para o universo íntimo do corpo que somos, dos acidentes e das limitações que sofremos. As notas de observação das direcções do crescimento vertical destas árvores transportam-nos para a relação ancestral, simbólica, da árvore com o divino, eixo entre a terra e o céu, matéria e espírito. Espaço e tempo. O processo de recolha das imagens do desenho, após as tomadas fotográficas, evoca também a recolha do sangue, o cálice que o toma. O corpo que sangra. Estes desenhos de Rosário Forjaz são elementos de arte sacra por tudo isso. É um sagrado que pode não ser metafísico, mas que não é menos sagrado por isso. Realizados a pigmentos de grafite e sanguínea que mimam a cor do sangue de drago, desfeitos os traços sob o trabalho do pincel que os lançou no espaço compositivo em expressivas aguadas, alguns deles são forjados em contacto directo com matérias semelhantes às do corpo da própria árvore. Trabalhados em técnica de frottage ou, mais directamente, em processos de decalque, eles oferecem-nos um assentamento desses corpos como se de sudários se tratasse. A repetição dos gestos, esse inventário das feições e

das feridas das distintas partes do corpo dessas árvores recolhido em diversos desenhos, em repetição de gestos, ritualiza também a sagração desses seres com os quais a artista se relaciona e repensa. É simultaneamente sedutora e fragilizante a nossa relação com as árvores. Amamo-las pelo que elas nos dão em todos os momentos da nossa vida. Pelo que elas nos permitem significar e sonhar. E tememo-las (ou tememos por elas) porque, como nós, elas são finitas. Delas teremos sempre, apenas, visões momentâneas, fragmentadas. Por isso os desenhos as representam aqui por fracções. A inclusão das molduras na reprodução dos desenhos em catálogo oferece também duas chaves hermenêuticas: uma, a do sublinhar do fragmento, do espaço delimitado, do tempo breve; e outra, pela natureza do material de que são feitas (pinho, com aplicação de óleo de linhaça que o escurece), uma encenação mais adequada do desenho, fazendo-nos olhar para ele como se estivéssemos a espreitar para dentro da árvore, a testemunhar o correr da seiva, a cicatrização de uma ferida. Assim, esta árvore que se torna objecto de observação é sempre uma parte do nosso próprio rosto. Olhemo-lo com cuidado. Porque em cada uma das suas pregas, do traçado que o tempo nele inscreve, é a nossa biografia que se conta. É o nosso rosto que passa para o desenho. Como num sudário. Almada, 22 de Janeiro de 2012.

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