O desenho e os seus duplos

June 6, 2017 | Autor: Emília Ferreira | Categoria: ESCULTURA, Desenho, Arte Contemporânea
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O desenho e os seus duplos1 Emília Ferreira

“Reflexos” é o título desta exposição do escultor Rui Sanches (Lisboa, 1954), integrada no Festival de Teatro de Almada, para o qual o artista foi convidado a criar a imagem gráfica do cartaz (cujo original também aqui se apresenta). Mostrando 12 dípticos de desenho e fotografia, e uma escultura, esta exposição reúne um conjunto de obras que, pelo seu contexto, nos remetem para o mundo teatral, com a sua construção de realidades paralelas, habitadas por personagens misteriosas, cujas vidas se tecem num sábio equilíbrio de luz e sombra. Desde sempre que Rui Sanches mantém uma estreita relação com o desenho. Inicialmente pintor, abandonaria esta arte pela escultura, mas cultivaria uma clara apetência por experiências pictóricas, de que o desenho deu conta durante alguns anos e que, após um interregno, parece ter ressurgido no seu recente reencontro com a fotografia. De facto, depois de uma primeira abordagem à fotografia no início dos anos 90, Rui Sanches retoma-a agora, em estreito diálogo com o desenho. Observando as obras patentes, podemos dizer que o desenho está mais desenho (no sentido de ter abandonado alguma tentação pictórica e de ter regressado a um domínio da linha, da geometria que estrutura o espaço) e que a fotografia opera agora essa função pictórica. Estes dípticos reflectem-se mutuamente e reflectem também a preocupação do artista na não separação das disciplinas artísticas. Sanches sempre gostou do diálogo entre expressões plásticas e é isso que reencontramos nesta nova série. O recurso ao trabalho organizado por séries prende-se com a liberdade que isso lhe dá de ir explorando caminhos; de, sobre um mesmo tema, poder analisar diferentes hipóteses de soluções, como alguém que, a partir de um mote, cria estórias diversas, optando por juntar novas personagens ou por dar às mesmas “personagens” opções diferenciadas. 1

Texto do catálogo da exposição de Rui Sanches, Reflexos. Almada, Casa da Cerca-Centro de Arte Contemporânea, 2015.

A geometria, mais notória nestes trabalhos, mantém um jogo de sedução com a luz, característico do artista e aqui evidente na depuração do traço, na manutenção de espaços abertos da composição, no contido uso da sombra e, ainda, no recurso a vários brancos (mais luminosos ou opacos) que multiplicam os efeitos lumínicos. Esse mesmo gosto lúdico é perceptível na escultura que, aparentemente compacta, oferece vários pormenores espaciais, a descobrir à medida que o visitante a circunda. Como quem visita uma casa ou se adentra num cenário, encontramos faces mais cheias, outras em que o vazio se oferece como possibilidade de passagem. Há um espelho. E há até uma porta. Há também uma forma mais orgânica que relembra uma figura humana. Tudo convoca a imaginação para um labirinto sensorial de experiências que se multiplicam nos dípticos. Observemos agora, então, a relação entre desenho e fotografia. Matriz do desenho, a fotografia (tomada como ponto de partida) escolhe os pormenores a trabalhar, captando breves notas de recantos do atelier. Depois, o desenho recupera as linhas de força da imagem original, revelando-nos a sua estrutura. Simultaneamente, condiciona o nosso olhar para os pormenores que mais interessam ao artista e oferece-nos, assim, um outro modo de perceber a composição fotográfica. Duplo da matéria primordial, a fotografia surge como registo instantâneo e sem encenação, e parece funcionar como captação de um caos inicial, que o artista trabalha em seguida no desenho organizador, dominador, do real. Deste sairão as linhas geométricas que conduzem o nosso olhar e nos revelam os seus pormenores mais significativos. O despojamento do desenho, em franco contraste com a densidade da imagem fotográfica, impressa no mesmo papel que o artista também escolhe para o desenho, cria nestas um certo tom pictórico. Não deixa de ser curiosa esta experiência que estabelece o desenho – a que Vasari chamou a mãe de todas as artes – como composição final. O seu carácter racional, estruturador das linhas do mundo e, por conseguinte, da nossa percepção, é aqui usado num segundo momento, como se a fotografia se oferecesse como um duplo absoluto do mundo e o desenho viesse em seguida torná-lo mais claro. E como é que tudo se faz?

Em termos materiais, sabemos que Rui Sanches sempre recorreu a uma multiplicidade de meios para criar as suas composições, seja no desenho, seja na escultura. No primeiro caso, o recurso a canetas, lápis, grafite, fitas isoladoras, colagem, tintas, conjuga-se para criar os jogos espaciais, geralmente de claro pendor geométrico, de que o seu desenho vive, oferecendo um abrangente leque de sensações espaciais e lumínicas. No segundo, a utilização de madeiras diferentes, com a sua diversidade cromática e de textura, de ferros, espelhos, pequenas peças de bronze ou barro, a conjugação de linhas geométricas com formas orgânicas, tudo convida à descoberta das inúmeras possibilidades de visita e leitura da obra. A escultura aqui presente, composta por vários elementos geométricos, abrese no espaço como um cenário ou um lugar a habitar. Neste caso, reunindo materiais como madeira, ferro, espelho e barro, estabelecendo um diálogo entre os componentes criados pelo escultor e outros, pré-existentes (ready made), como a porta, relembram o gosto do autor por materiais quotidianos, cuja reinvenção os liberta da sua natureza prosaica para os transformar em objecto artístico. A relação com este tipo de sugestão espacial altera o nosso modo de abordar o quotidiano, percebendo como tudo aquilo em que tocamos, ou por que passamos, pode oferecer outros caminhos e vivências. É também isso que, à sua maneira, nos é sugerido pelos elementos reunidos no cartaz. A clareza dos componentes usados, tal como encontramos nas outras expressões, na obra deste artista, garante uma simplicidade de resultados que, contudo, não exclui o mistério nem o fascínio. Dir-se-ia que, tal como a água, a simplicidade resulta de uma natureza clara. No caso de Sanches, de uma vontade de comunicar sem artifícios escusos nem escusados. O que não significa menos. Pelo contrário, adensa o mistério. Emília Ferreira Almada, Maio de 15.

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