O Desenvolvimento Local e a Educação e Formação ao Longo da Vida Estratégias para a Democracia

June 3, 2017 | Autor: Teresa Cunha | Categoria: Education, Local Development, Democracy
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ASE - Encontros de Inverno I Conferência de Encerramento

ENCONTROS DE INVERNO I O Desenvolvimento Local e a Educação e Formação ao Longo da Vida Estratégias para a Democracia ESEC – 13 e 14 de Janeiro de 2006

Por isso, venho insistindo desde a Pedagogia do Oprimido que não há utopia verdadeira fora da tensão entre a denúncia de um presente tornando-se cada vez mais intolerável e o anúncio de um futuro a ser criado, construído, política, estética e eticamente, por nós, mulheres e homens. A utopia implica essa denúncia e esse anúncio.

Paulo Freire, Pedagogia da Esperança

As Paisagens de um Mundo onde Tod@s temos um Lugar Tal como Paulo Freire nos ensina, não nos é possível olhar e pensar a Educação sem olhar e pensar o Mundo. Esta ideia de que uma – a Educação - e o outro – o Mundo - estão intimamente ligados obrigam-nos a reflectir de outra maneira, ou seja, não nos contentarmos com aquilo que nos é dito nem com aquilo que já sabemos ou julgamos saber sobre a Educação e sobre o Mundo. É a partir desta posição crítica, que não reduz a realidade ao que existe, que quero pensar e reflectir sobre alguns dos temas que nos preocupam e ocupam os nossos dias. 1- Animação Socioeducativa: o adjectivo-substantivo A Animação Socioeducativa é, por natureza, uma intervenção social intencionalizada e enformada por valores. Ela recorre a múltiplos saberes e competências e procura devolver ou fazer emergir uma energia que suscite uma vida mais saudável, mais completa, mais inteligente e mais justa para todas as pessoas e comunidades. Esta primeira ideia assenta na atenção que quero prestar à Teresa Cunha 2006

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etimologia da palavra animação. Anima neste sentido não é uma entidade mística nem um estado mental mas sim uma pulsão de vida, própria a todas as criaturas que procuram preservar e aumentar as possibilidades de viver. Do meu ponto de vista a Animação é, em primeiro lugar, isto mesmo: a Vida levada muito a sério em todas as suas vertentes e qualidades. A Animação, enquanto actividade social e profissional, é o contínuo resgate das múltiplas possibilidades de Vida de cada pessoa ou comunidade; é a necessidade de tornar visíveis todas as potencialidades para tornar a Vida de todas e todos melhor; a Animação é injectar a esperança e a auto-estima, elementos sem os quais a Vida se torna impossível de ser vivida; a Animação é, enfim, um conjunto de actos, de acções que alimentam na profundidade de cada Ser, a vontade de viver e de viver bem, consigo e com todas as demais pessoas e criaturas. Contudo nós não somos apenas Animadoras/es, nós somos Animadoras/es Socioeducativas/os. Este adjectivo que acrescentamos à nossa personalidade pessoal e profissional deve ser também ele um substantivo. Quero convosco perceber porquê e como se pode ser adjectivo e substantivo ao mesmo tempo. Por um lado, ao adjectivar a Animação com a palavra ‘Socioeducativa’ nós estamos a definir o âmbito privilegiado da nossa acção. Esta palavra é uma declaração de intenção que afirma que queremos resgatar a pulsão de Vida nas relações sociais mas de forma educativa, ou seja, promovendo e facilitando novas e outras aprendizagens. Porém todas/os nós sabemos que aprender e ensinar não são coisas neutras, ou seja, todas as aprendizagens e todas as ensinanças estão repletas de valores, intenções, projectos e visões do Mundo. Ensina-se e aprendese a democracia como se ensina e aprende o autoritarismo e a subserviência. Ensina-se e aprende-se a autonomia e a auto-estima como se ensina e se aprende a aquiescência acrítica e a ignorância arrogante. Como nos é fácil perceber, a Educação traz consigo e leva consigo as coisas mais importantes e estruturantes da nossa Vida enquanto

pessoas. É neste sentido que

a palavra-adjectivo

‘Socioeducativa’ se transforma num substantivo porque é nela que está encerrado o segredo da nossa acção libertadora ou subjugadora. É nos conteúdos e nas formas que determinamos se o nosso apelo à Vida é um apelo a mais alegria, mais resistência, mais imaginação, mais inovação, mais criatividade, mais cooperação, mais sentido de pertença ou uma Vida de resignação, competição, repetição, conformismo, uma Vida cinzenta, sem riscos, sem voos, ou seja, a demagogia sobre a Vida a que chamo aqui sobrevivência. Teresa Cunha 2006

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Por todos estes motivos, a mim mesma enquanto Animadora, interessam-me mais os debates que me desafiam a pensar sempre mais e melhor tentando encontrar o outro ângulo, o outro lado da Animação Socioeducativa que pode viabilizar e tornar presente as coisas que contribuirão para o bem de todas e todos. Do meu ponto de vista, a Animação Socioeducativa é a busca permanente daquelas aprendizagens e relações sociais que mais aproximam as pessoas entre si e com o seu Mundo de uma forma positiva e transformadora dos conflitos e dos problemas em possibilidades de maior entendimento e mais justiça. É importante, é bom, é útil conhecermos todos os livros do mundo que falam e nos ensinam coisas sobre a Animação Socioeducativa mas de nada nos servirá tal sabedoria se não a soubermos interpretar, ressignificar em cada acção que promovemos e realizamos a partir da nossa capacidade de pensar e transformar o que precisa de ser mudado, sempre para bem de todas e de todos. É isto que é a literacia socioeducativa e o substantivo que tanta falta faz à palavra Animação. 2- Desenvolvimento Local, as criaturas viventes e as não-viventes Uma das mais importantes funções sociais da Animação Socioeducativa é a de promover de forma cooperativa, vontades e recursos, de maneira a desenhar respostas adequadas aos problemas de cada ‘local’. Importa porém pensar sobre o que quer dizer para nós o ‘local’, pois não basta dizer que ele existe, é necessário dar-lhe sentidos. O ‘local’ é um território físico e material porque se refere sem dúvida a um espaço povoado por uma paisagem construída, feita de edifícios, casas e objectos materiais que transformam cada um destes espaços em algo particular, específico e inconfundível. Além da paisagem construída, cada ‘local’ está imerso numa paisagem natural que é a matriz da sua sustentação, e infelizmente quantas vezes, pela des-razão de quem o governa, a causa da sua insustentabilidade. Não podemos distinguir, verdadeiramente, as duas paisagens porque elas se interpenetram e agem e são coagidas uma pela outra. Deste modo, o ‘local’ é uma malha densa de paisagens e relações entre objectos e criaturas que não se podem entender uns sem as outras. Todas/os sabemos isto porque nos associamos a diversos ‘locais’, entendendo as suas cartografias nas quais nos movimentamos com agilidade pois conhecemos as ruas, as casas, as árvores, os jardins, os rios, as nascentes, as pontes, os espaços queimados, as lixeiras, as avenidas, a poluição. Talvez não pensemos muito nisto no nosso dia-a-dia mas, na verdade, cada ‘local’ em que vivemos é uma personalidade feita de paisagens. Teresa Cunha 2006

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Por outro lado, o ‘local’ é um território imaterial e simbólico pois as coisas, as viventes e as não viventes, não fazem sentido sem as relações que se estabelecem entre elas e as pessoas que nele, no ‘local’, habitam. Aprendi esta lição de forma irreparável quando percorria a Serra do Caldeirão no Algarve. As estevas ainda lá estão, assim como toda a paisagem semi-árida da região. O povoamento sempre foi disperso e por isso, as casas de quando em vez aparecem, muitas vezes junto a uma figueira ou a outra árvore resistente àquele clima. No entanto, muitas pessoas já partiram e com elas os sentidos que davam àquelas paisagens. Aprendi que a Serra do Caldeirão não é a mesma com as pessoas ou sem elas. Com elas, as pessoas, a Serra é um grandioso emaranhado de criatividade que põe em relação todos os elementos que vemos nas paisagens. São elas, as pessoas cooperativamente com a natureza, que transformam as alfarrobas em farinha ou compota e estabelecem as rotas de comércio e com ele as trocas, as sociabilidades, as ideias novas e tudo o que podemos imaginar a partir daí. O mesmo se faz com o mel, com as laranjas, com o que nos resta do reino do grande Al- Andaluz. Dizem-me os antropólogos que isto é cultura, essa intensa troca de almas que faz com que sejamos capazes de saber se pertencemos ou não a uma certa comunidade de relações e onde a maioria dos nossos gestos e atitudes fazem sentido e são compreendidos. É também esta coisa imaterial a que chamamos cultura que nos abre para o Mundo, porque não há culturas puras e fechadas sobre si mesmas, mas sim em permanente relação com outras, tomando e oferecendo novas ideias, trazendo e levando do ‘local’ maneiras diferentes de olhar, de perceber, de realizar, de pensar o futuro. Como podem ver o ‘local’ é uma coisa complexa porque é muito mais do que aquilo que aparece. De novo lembro que a minha reflexão sendo crítica não se contenta em reduzir a realidade ao que existe. Por isso, estou convencida que cada ‘local’ é muito mais do que aquilo que aparece porque nele está a história do que já foi, está aquilo que vemos e que cheiramos, a memória que não vemos mas que sabemos ser fundamental para a nossa existência, está a visão do presente e a busca de soluções para os problemas e está ainda a utopia do futuro colectivo. O ‘local’ é tudo isso, de uma forma particular. Neste sentido podemos considerar que o ‘local’ é um território, um campus de construção de identidades. São as identidades que permitem, alimentam e sustentam o intercâmbio, a troca, as parcerias, o trabalho em rede, a comunicação, sem perder de vista as suas próprias finalidades. Ou seja, não podemos pensar o ‘local’ sem pensar nas relações profundas e dinâmicas que cada Teresa Cunha 2006

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território tem e desenvolve com outros territórios, do ponto de vista económico, cultural, espacial, ambiental, social e até, simbolicamente. Estas relações dinâmicas não estão, contudo, confinadas a uma inter-territorialidade espacial reduzida, uma vez que a globalização dos meios de comunicação e de informação, a globalização dos meios de transporte, a curiosidade humana, o sentido do risco e da aventura permite hoje que estas inter-acções se estabeleçam em quadros mais alargados, seja ao nível inter-regional, nacional, inter-nacional e até mesmo intercontinental. Temos que admitir pelas evidências empíricas de todos os dias, que qualquer ‘local’ hoje pode estar, potencialmente, em contacto com qualquer outro ‘local’ do Mundo e isto significa que as trocas se fazem em banda larga e com mais rapidez. Sem um entendimento do que está em causa na tensão entre local e global e como isto configura uma nova sociedade civil e um outro exercício da cidadania no ‘local’, será impossível, no meu entendimento, pensar, projectar, e viabilizar o Desenvolvimento. Precisamos agudizar a nossa consciência da interdependência crescente entre os ‘locais’ e fazer disso uma potencialidade e não um medo. Precisamos de entender o Mundo para melhor entender o nosso ‘local’ e como ele se pode virar para o futuro com confiança e com a sua identidade própria. Este é o principal desafio que nos é colocado enquanto Animadoras/es e Agentes do Desenvolvimento Local, ou seja, ser capaz de pensar para além do que está visível. O ‘local’ pode assim, transformar-se em territórios organizados por projectos de intervenção trans-sectorial, trans-escalar ou trans-disciplinar que requerem uma visão integrada do seu próprio desenvolvimento. Entre os e as actrizes sociais que mobilizam e aquelas/es que são mobilizadas/os, cria-se uma relação que podemos designar de parceria, se acaso ambas/os convergirem os seus esforços para o mesmo fim: transformar o local numa comunidade, por sua vez ligada em articulações diversas, a outras comunidades. É neste sentido que estudar e investigar O Desenvolvimento Local no âmbito da Animação Socioeducativa, é estabelecer elos com outras disciplinas e orientarse para a intervenção, analisando e promovendo crítica e reflexivamente a qualidade das actividades educativas formais ou não formais, nos seios sociais e organizacionais em que se desenvolvem. Assim, a Animação Socioeducativa ocupada e preocupada com o Desenvolvimento Local pressupõe o uso, não instrumental mas reflexivo, da Investigação-Acção que tem como grande objectivo a intervenção social informada e está fortemente associada ao desejo de promoção de uma sociedade mais democrática. Por outras palavras, pretende incentivar a Teresa Cunha 2006

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conscientização, ou seja, a consciência crítica da realidade social, com o objectivo expresso de uma democracia mais participada que expresse e defina para cada ‘local’, o seu próprio modelo de desenvolvimento em solidariedade com os outros ‘locais’ do Mundo. 3- Educação e Formação ao Longo da Vida – somos aprendentes, somos ensinantes Como

podemos,

no

entanto,

realizar

esta

tarefa

de

Animação,

conscientização e de intervenção social informada que promova modelos de desenvolvimento concretos, realizáveis e solidários sem cedermos à tentação do elogio da pobreza e da exclusão através das visões assistencialistas e caritativas tão na moda? Parece-me que a primeira e mais fundamental condição é a assunção da nossa condição de aprendentes-ensinantes ao longo de toda a nossa vida. Isto quer dizer duas coisas muito importantes. Por um lado, revela que todos os nossos conhecimentos são incompletos e precisam continuadamente de ser reciclados, criticados, amadurecidos e completados. Para além disso, a condição dupla de aprendentes-ensinantes ajuda-nos a re-inventar os significados que damos às coisas porque o Mundo muda e com ele mudam também as coisas. Esta lição vem de muito longe e como todas/os se lembrarão Camões imortalizou-a no verso ... Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades... Ter plena consciência da persistência das mudanças tem que nos fazer desejar perguntar se as nossa palavras e conceitos continuam a interpretar os fenómenos e as realidades com as quais lidamos e nas quais intervimos. Por exemplo, não tenho a certeza se as palavras que usamos têm para todas/os nós os mesmos significados. O que quer dizer democracia, participação, justiça, solidariedade, e assim por diante, para cada uma/um de nós sem que isso seja equívoco, ambivalente, ambíguo e até incerto. Aparentemente, todas/os parecemos estar de acordo e parece também que desejamos as mesmas coisas para a nossa Vida e a Vida da nossa comunidade. No entanto, a minha condição de aprendente-ensinante obriga-me a perguntar pelos conteúdos que ponho dentro das palavras e a perguntar às outras pessoas pelos conteúdos que põem nas suas palavras para viabilizar um diálogo verdadeiro. Só assim poderemos distinguir os diferentes modos e visões do Mundo, estabelecer parcerias e promover sinergias. Teresa Cunha 2006

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Não pensamos todas/os de igual modo e não podemos nem devemos esconder ou disfarçar as nossas diferenças porque assim condenamo-nos ao insucesso. O diálogo serve para aprender a diferenciar e não para discriminar; serve para saber quais as alianças possíveis, e as que são impossíveis. Só deste modo podemos realizar projectos verdadeiramente úteis. Com isto quero dizer que só posso ensinar através do que aprendo com as outras pessoas e, ao mesmo tempo, só posso aprender através do que me ensino a mim mesma. Não distingo as minhas funções de aprendente-ensinante mesmo quando estou diante de uma turma enquanto professora. O que faço ao ensinar é suscitar o diálogo no qual terá que caber um amplo debate e ao fazê-lo estou a aprender tantas e variadas outras coisas. Por outro lado, assumir a condição de ser aprendente-ensinante quer dizer que eu concebo a outra pessoa que está em face de mim, independentemente da sua escolaridade, posição social, experiência de vida, o seu sexo, o seu estilo de vida ou as suas opções religiosas, como um centro de recursos que me é indispensável. Com isto afirmo que todas as pessoas são nossas ‘informantes privilegiadas’, são nossas ‘interlocutoras privilegiadas’ no processo dual de aprender e ensinar. Ninguém pode ficar de fora porque todas as experiências e todas as ideias são, potencialmente, necessárias à descoberta das soluções que poderão tornar a Vida melhor. Esta posição tem várias consequências das quais destaco duas, uma educativa e outra política. Do ponto de vista educativo, eu estou convencida, como muitas/os outras/os pedagogas/os, que a relação pedagógica é uma relação dialógica, ou seja, não há posições estanques em que dum lado se ensina e do outro se aprende. Na Animação Socioeducativa isto é ainda mais importante porque nos leva até ao conceito de Educação Popular que não é Educação para o Povo mas sim a Educação com Todas e Todos; a/o animadora/or não pode nunca substituir a sabedoria de uma comunidade porque tudo o que aprendeu é sempre menos do que aquilo que é necessário para fazer o seu trabalho. Tem que contar e aprender com todas as pessoas. Se quiserem, faço aqui o elogio da humildade epistemológica. Do ponto de vista político, a consequência é simples: não há nenhum projecto social e educativo que sobreviva sem a plena participação e conhecimentos de todas/os. Tudo o que não for feito desta maneira é apenas uma cosmética, um engano do olhar e uma falsa participação. Nunca será aquilo a que muitas/os autoras/es chamam, ter nas mãos o seu próprio destino pois ele está alienado a outrem. Teresa Cunha 2006

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A segunda condição que precisamos de cumprir para não confundir Animação Socioeducativa com assistencialismo é exactamente levar a sério a totalidade da expressão ‘Educação e Formação ao longo da Vida’. Quero dizer com isto que a Educação e Formação ao Longo da Vida é um processo dual, porque somos aprendentes-ensinantes mas também é um processo contínuo e inclusivo porque ao longo de toda a vida somos chamadas/os a disponibilizar e a processar os nossos conhecimentos para a realização do bem comum. Neste conceito não cabem privilégios nem acções de discriminação positiva que muitas vezes apenas mascaram o nosso desconforto perante os pobres, as pessoas idosas, as prostitutas, as pessoas que consomem drogas ou são portadoras de alguma doença ou limitação. O que realmente isto quer dizer é que todas as manifestações de Vida são igualmente importantes e o nosso papel é resgatar e, com discernimento, proporcionar que todas e todos possam servir solidariamente um Mundo em que tod@s temos um lugar. Neste paradigma não existe piedade, nem pena, nem desleixo, nem a trivialização do sofrimento: existe a solidariedade, a justiça, a recusa da indiferença, a indignação e a resiliência a um pensamento único e fatalista. Para além de todas as técnicas e de todos os conceitos que aprendemos, Educação e Formação ao Longo da Vida numa perspectiva de Desenvolvimento Local quer dizer isto que acabei de afirmar. 4- Começar tudo de novo Aproximando-nos do final desta Conferência, queria dizer-vos que afinal o que está em causa é a nossa capacidade de começar de novo. Começar de novo não porque o que está feito não presta. Pelo contrário, é o total respeito pela estória, pela memória e pela experiência que me faz ter o gosto pela descontentamento.

Não

aprecio

de

modo

nenhum

aquela

atitude

de

contentamento pelo que já se tem. Eu prefiro arriscar começar de novo para chegar mais adiante. Contudo, não quero fazer esse caminho sozinha e por isso partilho convosco uma proposta para o nosso futuro. Esta proposta não é minha, é de uma comunidade de pessoas que apreciam como eu arriscar outras ideias e pensar de outra forma. Como se diz naquele anúncio onde todos viam um cesto , alguém viu o basquetebol. Na verdade, a dialogicidade entre o Desenvolvimento Local e a Educação e Formação ao Longo da Vida assenta na imbricação entre a educação e a transformação social e a possibilidade de ‘reconhecer’ a(s) outra(s) pessoa(s) na Teresa Cunha 2006

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sua inalienável dignidade. É a partir desta ideia que apresento as cinco racionalidades com as quais queremos desenvolver competências sem as quais a Vida não será melhor e maior para todas/os. a) Racionalidade cosmopolita. Em primeiro lugar, é necessária uma ‘racionalidade cosmopolita’ (Dussel, 2000; Santos, 2002; Pureza, 2003), ou seja, aquela que reconhece e aprecia a diversidade e que, para além disso, a considera constitutiva de uma visão de Dignidade Humana responsável. Efectivamente, esta ‘racionalidade cosmopolita’ não defende a indiferença perante a diversidade cultural. Pelo contrário, ela intensifica a atenção epistemológica no sentido de reconhecer a presença de pluriversos, ou seja, constelações culturais diferentes, e resgatar de cada um desses pluriversos o que pode ser mobilizado para ampliar e enriquecer a noção de Dignidade Humana. A ‘racionalidade cosmopolita’, é aquela que não desperdiça conhecimentos nem experiências (2002) e, por isso, aumenta e densifica as possibilidades de a Humanidade encontrar respostas concretas e adequadas para os seus problemas. b) Racionalidade democrática. Em segundo lugar, uma ‘racionalidade democrática’ (Freire, 1975; Shirin, 1996; Oruka, 1997), ou seja, aquela que vincula a actividade educativa ao aumento efectivo da emancipação, seja esta individual ou colectiva. A democracia é um sistema de inter-acções políticas , públicas e privadas que visa relações de autoridade partilhada através de uma lógica de reciprocidade, ou seja, usa a igualdade se a diferença discrimina e usa a diferença se a igualdade descaracteriza. Isto obriga a uma ampliação da democracia, isto é, a democratização da própria democracia. Paulo Freire já nos havia alertado desde os anos 70 do século passado para o facto de que a acção educativa e o pensamento educativo devem ser actos de ‘conscientização’, isto é, de uma articulação forte e indispensável entre o pensamento e a acção. Ele acrescenta que esta acção deve ser transformadora porque deve criar as condições para que a dialogicidade entre actores e actrizes sociais aconteça e, com ela, as relações de opressão se tornem visíveis, se transformem e desapareçam. Deste modo, não basta democratizar as relações sociais, precisamos democratizar as nossas mentes e as nossas subjectividades. Teresa Cunha 2006

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c) Racionalidade ecológica. Em terceiro lugar, precisamos de trabalhar com uma ‘racionalidade ecológica’, ou seja, aquela que não separa a comunidade humana da sua matriz de sustentação que é a Terra e as criaturas que a povoam (Boff, 1999; Mies; Shiva, 1993). Como se disse atrás, a Dignidade Humana é um conceito que só adquire sentido situado no espaço e no tempo. Seria impossível entendermo-nos sem o contexto em que radica a nossa história, a nossa compreensão do mundo, os nossos conhecimentos e as nossas tecnologias de convivência. Ao falarmos de contexto não podemos alienar à invisibilidade o conjunto complexo de seres e criaturas nãohumanas que fazem parte dele e que estão em permanente contacto e interacção connosco. Esta racionalidade não procura apenas a preservação ou a conservação da natureza, mas a transformação de um paradigma de exploração ilimitada para um paradigma de cooperação e cuidado (Boff, 1999: 27)1. Ao animar, educar e aprender através de uma ‘racionalidade ecológica’ está-se, com certeza, a aumentar as possibilidades de vida e de reorganização social que abre caminho a um conceito de desenvolvimento que não se baseie na mera apropriação e uso dos recursos da Terra, mas na sua utilização partilhada e sustentada. d) Racionalidade não-sexista. O futuro também não pode prescindir de uma ‘racionalidade não-sexista’, ou seja, aquela que não exclui em ordem do sexo e do género2, mas que reclama para si todas as aprendizagens sociais úteis à vida (Reardon, 1985; Mohanty, 1991; Ruddik, 1995; Mies; Shiva, 1993). Naturalizando profundamente a inferioridade socialmente construída e atribuída às mulheres3, o sexismo conta, contudo, com as

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É interessante notar como Leonardo Boff aborda esta tarefa: ‘Ethos’ em seu sentido originário grego significa a toca do animal ou casa humana, vale dizer, aquela porção do mundo que reservamos para organizar, cuidar e fazer nosso habitat. Temos que reconstruir a casa comum – a Terra – para que nela todos [as] possam caber. (1999: 27). 2 Nem sempre o sexo biológico coincide com a construção social dos atributos que lhe correspondem e é por isso que se fala de relações de género como sendo aquelas resultantes das construções sociais que determinam os papéis, características de um determinado sexo. Simone de Beauvoir foi uma das principais conceptualizadoras do conceito de género por isso se torna interessante registar as suas palavras: Se a função da fêmea não basta para definir a mulher, se nos recusarmos também a explicá-la pelo eterno feminino e se, no entanto admitimos ainda que provisoriamente, que há mulheres na Terra, temos que formular a pergunta: o que é uma mulher? A biologia não basta para fornecer uma resposta à pergunta que nos preocupa: porque é que a mulher é o Outro? Trata-se de saber como a natureza foi nela revista através da história; trata-se de saber o que a humanidade fez da fêmea humana (Beauvoir, 1975: 11; 67). 3 Ou de todos os seres humanos que não cumpram o papel social atribuído ao género masculino. Assim, o sexismo não é apenas ginofóbico, mas também discriminatório de todos os seres vulneráveis, como crianças, pessoas idosas, pessoas com diferentes incapacidades, estilos de vida ou opções sexuais, independentemente de terem nascido mulheres ou homens.

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mulheres para se reproduzir e reproduzir todas as suas discriminações. Nas palavras de Maria de Lourdes Pintasilgo, o sexismo não (...) concede a igualdade entre as pessoas [e] não se institucionaliza sem conceder ao sexo discriminado um certo número de pseudo privilégios tendentes a camuflar a injustiça. (Pintasilgo, 1981: 22) Neste sentido, a ‘racionalidade não-sexista’ está em condições de se tornar num instrumento privilegiado de transformação e emancipação alterando as relações desiguais de poder através da democratização das subjectividades, da desconstrução da naturalização dos géneros e da experimentação de novos espaços e modos de cidadania fundados na ideia de que a Humanidade é, inalienavelmente, constituída por mulheres e por homens. A Cidadania só pode ser compreendida na sua plenitude e socialmente praticada através da recusa dos danos provocados pelo sexismo, seja na esfera privada, seja na esfera pública, tanto na linguagem, na política ou na educação. A igualdade entre mulheres e homens não procura a indiferenciação mas, pelo contrário, a assumpção de que as diferenças não devem descaracterizar ou subalternizar. e) Racionalidade pacífica. Por fim, parece-me que necessitamos profundamente de uma ‘racionalidade pacífica’, ou seja, uma racionalidade que não assenta na polarização, mas na construção de relações mutuamente capacitadoras. A forma como comunicamos (a fenomenologia comunicativa) permite pensar que as pessoas são mais aptas e mais competentes para a paz do que para a violência (Guzmán, 2001: 17) o que leva a afirmar que uma ‘racionalidade pacífica’ é aquela que permite descobrir com maior rigor e eficácia os modos de resolução pacífica dos conflitos existentes em cada cultura e aumentar, deste modo, o nosso acervo cultural e material de relações justas e não-violentas. Por fim, esta ‘racionalidade pacífica’ sublinha a interdependência dos conceitos e das práticas fundando um conhecimento assente na Dignidade Humana. Inspirando-me nas ideias de Mahatma Gandhi4 defendo que só a presença de uma ‘racionalidade

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Neste contexto, há dois conceitos centrais para M. Gandhi: satyagraha e ahmisa. O primeiro tem a sua raiz etimológica na palavra hindi satya, que quer dizer verdade e que deriva de uma mais antiga sat, que quer dizer

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pacífica’ pode fazer emergir um aumento da consciência social sobre o que tem que ser mudado, operacionalizando comportamentos e atitudes de tolerância à ambiguidade, de negociação, honra, verdade e respeito integral por cada pessoa, comunidade e criatura. Tudo isto implica a deslegitimação cultural de qualquer acto de violência em nome de uma qualquer finalidade, por maior ou melhor que ela possa parecer. (SLIDE 9) Tudo isto parece difícil, complexo, cansativo e é mesmo. Mas muito mais difícil, perigoso e desesperador é uma Educação que se separa todos os dias do Mundo e um Mundo que parece querer prescindir todos os dias da Vida. We can re-invent civil disobedience in a million different ways. To deprive it of oxygen. To shame it. To mock it. With our art, our music, our literature, our stubbornness, our joy, our brilliance, our sheer – restlessness – and our ability to tell our own stories.5

Arundhati Roy

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ser. No entanto, o significado que lhe é atribuído por Gandhi é verdade-força e resistência não-violenta (Gandhi; Strohmeier, 1999: 50). O segundo, tem a sua origem em himsa, que quer dizer violência, ao qual se acrescenta a sua negação, a, sendo ahimsa a não-violência (Gandhi; Strohmeier, 1999: 77). A não-violência é vista por Gandhi como um novo nascimento das pessoas e das comunidades, não admitindo qualquer acto de violência, de punição ou coerção. 5 Nós podemos re-inventar a desobediência civil de mil e uma formas. Tirar-lhe o oxigénio. Fazê-lo ter vergonha. Troçar dele. Com a nossa arte, a nossa música, a nossa literatura, a nossa teimosia, a nossa alegria, o nosso brilho, a nossa pureza – sem descanso – e a nossa habilidade para contar as nossas próprias histórias.

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Teresa Cunha 2006

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