O design de jornais: do texto ao hipertexto

June 4, 2017 | Autor: Ana Gruszynski | Categoria: Design, Editorial Design, Newspaper, Hipertextualidad
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O design de jornais: do texto ao hipertexto Ana Gruszynski O jornal passa por debaixo do vão da porta. Faz companhia no café da manhã em um ritual que inaugura o dia. Dos resquícios da memória de quem viveu a infância no século passado, permanece a impressão de que ser um dia adulto seria de fato incorporar à rotina o desfiar de todas aquelas palavras e fotos que enunciavam o mundo. Disputar o espaço sobre a mesa entre a xícara e a geleia, percorrer as manchetes principais, compartilhar os cadernos com a família, dar uma olhada geral no que vai render a conversa no elevador, ir direto àquele colunista imperdível – o domínio de tão complexo conjunto de fatores deveria ser mesmo sinal de ingresso em outra fase da vida. Ler o jornal ainda hoje também. Mas as práticas de leitura desdobram-se em uma variada rede que se estabelece com e em torno dos objetos portadores de textos. Do jornal impresso para o online, o mundo dos textos continua confrontando-se com o dos leitores, onde objetos, formas e rituais – ligados à materialidade – são apropriados por comunidades de interpretação constituindo, assim, diferentes práticas (CHARTIER; CAVALLO, 1998). O mosaico de notícias que se compõe no papel ou na tela ganha sua forma final por meio do trabalho de design, que opera na junção entre um nível abstrato (conceber/projetar) e outro concreto (registrar/configurar), atribuindo forma material a conceitos intelectuais (CARDOSO, 2000). A forma física de um texto e o modo de disposição dos elementos na página são fatores que determinam a relação histórica entre autores, textos e leitores. O campo físico e visual que se define com base nos recursos tecnológicos de escrita constitui um espaço condicionante com base no qual alternativas de articulação da retórica tipográfica são responsáveis por conformar um texto. Nesse sentido, diferentes edições de um mesmo conteúdo permitem a proposição de novas significações, podendo atender a expectativas de públicos diferenciados, evidenciando, assim, o papel do design na produção de peças comunicacionais.

Café na sala Nos cursos de jornalismo, os termos planejamento gráfico e diagramação ainda preponderam sobre design, indicando uma parte dos conteúdos previstos na formação profissional que visam dar conta da organização dos elementos componentes das notícias no espaço. Esboçando um plano de ensino nessa área, o primeiro desafio a empreender com os alunos seria o de gerar um estranhamento em relação ao formato do jornal, colocando em evidência que configurações que hoje nos parecem naturais baseiam-se na apropriação de técnicas datadas e transitórias (GRUSZYNSKI, 2010). A perspectiva histórica – com ênfase na cultura gráfica – seria um ponto de partida. Da mesa do café para a sala de aula, a moldura diferenciada reenquadraria o objeto gráfico, incorporando à conversa experiências cotidianas, referências exemplares do passado e do presente, sites de instituições reconhecidas na área, autores com seus livros e blogs, enfim, um repertório variado que permitiria tensionar noções familiares e ampliar pontos de vista. O entendimento do jornal impresso como um dispositivo (MOUILLAUD, 2002) – forma que estrutura o espaço e o tempo, constituindo, assim, uma matriz que articula os conteúdos – é fundamental para que entre no cardápio a relação entre os projetos editorial e gráfico como um segundo eixo a ser trabalhado. O jornal tem uma cara: sua personalidade gráfica compreende uma continuidade de estilo em que um diagrama de base assegura uma variabilidade de layouts com base em um esquema comum. Nas negociações entre forma e conteúdo, o projeto editorial baliza decisões tomadas ao longo dos processos de edição. Entre os valores do campo que condicionam a prática profissional, está o fator temporal, no qual o imediatismo e a velocidade – brevidade entre o acontecimento e sua transmissão – são soberanos (WOLF, 2005; TRAQUINA, 2006). Contudo, se a composição visual tem papel importante na orientação dos leitores pelas páginas e sedimenta uma série de opções tomadas ao longo das etapas editoriais, o foco dos

leitores costuma estar na história, ou seja, naquilo que é narrado, no fato noticiado. A mediação efetuada pelo design parece ter um sentido de transparência. Uma vez que acontecimento e acontecimento jornalístico não são equivalentes, vemos que o planejamento gráfico colabora de modo fundamental para a inserção dos fatos em um quadro contextual. O relato elaborado visa construir um sentido, desvendando causas, envolvidos, consequências etc., tornando-o, assim, um acontecimento jornalístico. Entra-se, então, em um terceiro eixo formativo, que compreende a relação do design com os valores-notícia, com o newsmaking. A sistemática de efetuar o design dos jornais foi gradualmente se consolidando justamente em torno de uma noção de previsibilidade dos acontecimentos, e muito menos na ideia de ruptura que habitualmente associamos à produção jornalística periódica. Sua divisão em seções e cadernos, a presença de suplementos especiais são eixos fundamentais que enquadram a variedade temática que compõe o mosaico de informações presentes nas publicações. Distribuir fotos e textos, ampliar, cortar, inserir... não se trata apenas de embelezar a composição, mas de estabelecer hierarquias e contrastes que visam sobretudo informar. Assim, no âmbito das práticas de ensino e aprendizagem, a consciência da dinâmica entre os três eixos (cultura gráfica; projeto gráfico versus projeto editorial; design, valores-notícia, newsmaking) que perpassam a atividade de design de notícias seria a base a partir da qual se articulariam os princípios que orientam a sintaxe visual, tanto no que se refere aos elementos básicos como aos critérios compositivos (DONDIS, 1995; LUPTON, 2006). Por meio da definição de formato, mancha, colunas, tipografia, cores e elementos iconográficos, desenvolve-se um conceito de publicação que passa pelo domínio das tecnologias digitais de edição e de produção gráfica, envolvendo hardwares e softwares. Esse quarto eixo compreende os aspectos mais aplicados, que demandariam exercícios de produção e análise, tanto do que é realizado em laboratório no espaço acadêmico como do que é publicado na mídia. Desse modo, ao proporcionar a troca sistemática de posições entre produtor e leitor, espera-se despertar e amadurecer o olhar dos profissionais em formação para essa atividade que faz parte do menu do café matinal diário – em outra fase da vida adulta, não somente ler o jornal, mas desvendar a trama que reúne as pastilhas desse mosaico.

Mosaico multidimensional Os primeiros jornais online levaram para a tela sobretudo reproduções do impresso. Diferentes pesquisadores evidenciaram o gradual desenvolvimento de produtos característicos do ciberespaço, que se autonomizaram em relação aos parâmetros do jornal impresso (Cf. MACHADO et al., 2010). Das experiências pioneiras ocorridas no fim da década de 1960, passando pelo estabelecimento de estratégias próprias de apuração, produção e circulação de conteúdos, é possível encontrarmos hoje sistemas informáticos que agregam diferentes funções, que integram bancos de dados e que permitem o envolvimento de usuários por meio do que se vem denominando de jornalismo colaborativo. Do ponto de vista da composição visual, contudo, Moherdaui (2009) entende que as diferentes fases do jornalismo digital se misturam, uma vez que as convenções estabelecidas na mídia tradicional preponderam segundo o princípio da remediação (BOLTER; GRUSIN, 2000), ou seja, a inter-relação entre os meios. Os eixos, portanto, que orientaram a proposição de tópicos de estudo no âmbito do ensino de design de jornais impressos podem estar presentes na formação voltada à web. Contudo, o espaço aqui é outro e propõe novos desafios, exigindo a ampliação do repertório formativo em função das características específicas do jornalismo digital: hipertextualidade, interatividade, multimidialidade, personalização, memória e instantaneidade (PALACIOS, 2003). Textos, imagens e elementos gráficos em simultaneidade na página de papel de um veículo impresso proporcionam experiências próprias em função de seu espaço de escrita singular (BOLTER, 1991). Na medida em que sua reprodução online se dá por meio de um arquivo que simula o folhear de páginas que são visualizadas em tela, temos já outra forma de lidar com o jornal. Mesmo com base em uma metáfora do impresso, precisamos ampliar parte de páginas para aproximar um texto e viabilizar sua leitura e usar links para chegar a cadernos específicos, por exemplo.

Uma interface planejada para o jornalismo digital, por sua vez, compreende características multimidiáticas, em que a experiência dos usuários depende de projetos de design que contemplem desde os planos mais concretos aos mais abstratos que envolvem o design informacional. Nesse sentido, Garret (1992) sistematiza os níveis de superfície, de esqueleto, de estrutura, de escopo e de estratégia, em que as atividades ligadas a cada nível são apresentadas segundo a dualidade básica da web: como interface de software (ferramentas) e sistema de hipertexto (informações). Cabe ressaltar que campo jornalístico são os valoresnotícia que determinam a forma de articulação entre os elementos presentes estabelecendo hierarquias que configuram as narrativas, nesse caso, específicas para o ciberespaço. Quanto a isso, cabe destacar que hoje vemos duas linhas principais de trabalho: a integração de conteúdos por justaposição – texto, áudio, vídeo etc., acessíveis de maneira independente (SALAVERRÍA, 2005) – e a multimídia por integração. Os desafios nesse sentido são complexos e supõem um largo avanço em relação ao que temos atualmente. Se, por um lado, são raros os alunos de jornalismo que efetivamente se voltam para a atuação direta em design de jornais, de outro, vemos a demanda pelo envolvimento cada vez maior dos profissionais junto aos instrumentos digitais variados que abrangem os processos de seleção, produção e edição de material informativo. O design do jornal não tem mais como ser visto apenas como etapa final de um processo, na medida em que está diretamente vinculado ao perfil da organização que o edita, bem como ao conjunto de profissionais e suas rotinas produtivas, que são mediadas por recursos tecnológicos gerenciados cada vez mais pelos membros das redações e integrados em redes midiáticas. Da memória de quem vive a maturidade no século XXI, escapam as impressões de que um dia desfiarei os links que compõem e recompõem o mosaico multidimensional das bookmarks em minha conta no site Delicious. O domínio de tão complexo gerenciamento do tempo diante de tantas coisas para ler, ver, aprender e ensinar só pode ser sinal de cansaço típico dessa fase da vida. Ou da vida nessa fase.

Referências bibliográficas BOLTER, J. D. Writing space: the computer, hypertext, and the history of writing. Hillsdale: Lawrence Erlbaum, 1991. BOLTER, J. D.; GUSIN, R. Remediation: understanding new media. Cambridge: MIT Press, 2000. CARDOSO, Rafael. Uma introdução à história do design. São Paulo: Edgard Blücher, 2000. CHARTIER, R.; CAVALLO, G. (Org.). História da leitura no mundo ocidental. São Paulo: Ática, 1998. v .1. DONDIS, A. Sintaxe da Linguagem Visual. São Paulo: Martins Fontes, 1997. GARRETT, J. R. The elements of user experience: user centered design for the web. New York: Aiga/New Riders, 2002. GRUSZYNSKI, A. Jornal impresso: produto editorial gráfico em transformação. Anais do XXXIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação (Intercom). Caxias, set. 2010. LUPTON, Ellen. Pensar com tipos: guia para designers, escritores, editores e estudantes. São Paulo: Cosac Naify, 2006. MACHADO, E.; KERBER, D. B.; ESPINOLA, R.; CAMINHA, K. Plataformas de produção de conteúdos jornalísticos (resultados preliminares do projeto PACJOR). Anais do XIX Encontro da Compós. Rio de Janeiro, jun. 2010. MOUILLAUD, M. Da forma ao sentido. In: MOUILLAUD, M.; PORTO, S. (Org.) O jornal. Da forma ao sentido. Brasília: Editora UnB, 2002. p. 29-35. MOHERDAUI, L. A composição da página noticiosa nos jornais digitais – O estado da questão. VI SBPjor – Encontro Nacional de Pesquisadores em Jornalismo, São Paulo, 2008. PALACIOS, M. Ruptura, continuidade e potencialização no jornalismo on-line: o lugar da memória. In: MACHADO, E.; PALACIOS, M. Modelos de jornalismo digital. Salvador: Edições GJOL/Calandra, 2003. p. 13-36. SALAVERRÍA, R. Redacción periodistica en internet. Navarra: Eunsa, 2005. TRAQUINA, N. Teorias do jornalismo. A tribo jornalística: uma comunidade interpretativa transnacional. Florianópolis: Insular, 2005. v. 2. WOLF, M. Teorias da comunicação. Portugal: Presença, 2006.

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