O destino problemático de nossa modernidade estética

June 4, 2017 | Autor: Vinicius Figueiredo | Categoria: Aesthetics, Critical Visual Literacy, Brazilian Visual Arts
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O destino problemático de nossa modernidade estética Experiência crítica, de Ronaldo Brito (organização: Sueli de Lima). São Paulo: Cosacnaify, 2005, 383 páginas. Acaba de sair uma referência obrigatória para todos que se interessam por arte e, sem especialização nomeada, se vêem concernidos pelas desventuras da inteligência brasileira. Experiência crítica, livro que reúne textos que Ronaldo Brito fez ao longo de mais de trinta anos no varejo da reflexão sobre artes plásticas aqui e lá fora, representa, por muitas razões, um marco em nossa tradição ensaística. A surpresa começa pela prosa. Alternando aproximação e distância, deslocando sempre o enfoque a fim de cercar o objeto, Ronaldo Brito promove uma articulação invejável entre a crítica e seus motivos. São textos curtos, pequenas coreografias, por trás das quais não se sente o peso de esquemas analíticos prévios que pudessem decidir de fora o juízo suscitado pelo assunto. Nenhum moralismo preside as análises, voltadas menos para decompor o analisandum em suas “verdades” que para exprimir em uma linguagem outra que plástica a complexidade que a forma artística comporta. A escritura visa reaver, nas incursões pontuais aos artistas, a experiência da obra, aquilo que sua forma suscita, sem recurso às causalidades biográfica, sociológica ou psicanalítica. Para contornar a hierarquia usual entre palavra e imagem, que reduziria a visualidade ao âmbito da fala confusa a ser esclarecida pela escrita, o comentário entremescla referências teóricas e linguagem poética, sem que isso acarrete perda de foco. Alguém dirá ser essa

a exigência de todo ensaísta, cujo método jamais deve impor-se de partida e em bloco ao tema examinado. Mas entre a exigência e a prática, há todos os percalços que tornam o texto de Ronaldo Brito exemplo raro de perspicácia e resultados. Esse desprendimento frente a recortes teleológicos não quer dizer, por certo, que o autor faça crítica como quem pratica vôo cego. Se toda interpretação, queira ou não, repõe seus pressupostos, e a de Brito não foge à regra, o ponto de partida fez aqui toda diferença – um ponto de partida por si mesmo instrutivo. Veja-se os textos dos anos 70. O que se poderia esperar de um jovem articulista do Opinião nos anos de chumbo pós AI-5, quando, para falar como Montaigne, era preciso imitar os viciados ou odiá-los, senão a associação imediatista entre arte e política? O que se vê, porém, é o inverso, cada página deparando o leitor com um exercício de recuo e reflexão fora do comum, alheio às reduções de idade ou de época. O que, longe de despolitizar as análises, dispõe os significados que acompanham as obras e que elas engendram para o balanço de sua posição no conjunto da cultura brasileira. A medida desse juízo evita porém qualquer abstração, pois Brito cuida de extraíla do acontecimento instaurado pelo artista, sempre cotejado com as possibilidades formais abertas pela arte moderna. Daí que o particular se reporte ao universal sem precisar apresentar credenciais prévias, já que, em vez de subsumir a obra aos esquemas lineares da história da arte, a atenção se dirige à experiência estética, ao movimento rumo ao conceito que ela desperta e que a crítica reparte. Não há novidade em recuperar a orientação fenomenológica que preside tal atitude, aliás enunciada pelo autor em mais de uma ocasião. Merleau-Ponty falava da estrutura como “sentido encarnado”, “organização latente” que o modelo só faz explicitar, ensejando leituras avessas a totalizações prévias ou

oposições fixas. Em arte, isso representou constatar que a percepção exige reconfigurações sucessivas, em uma variação que auxilia a cifrar o enigma constituído pelas poéticas plásticas de Cézanne em diante, quando o abandono do compromisso da arte com a representação, abrindo possibilidades inéditas, trouxe para o centro da cena o processo de produção da obra como matriz primeira de sua normatividade. A reflexão sobre as poéticas construtivas que Mario Pedrosa e em seguida Ferreira Gullar efetuaram, apropriando-se de Merleau-Ponty a partir da década de 50 em diante (e que deu no “Manifesto neoconcreto”, de 1959), adensou momentaneamente o campo crítico sobre arte no Brasil. Isso ajuda a compreender a precocidade dos textos que Brito redigiu para o Opinião e, logo em seguida, para Malasartes, revista central no debate daquela época e da qual foi ele um dos editores: o início de seu percurso beneficiou-se de uma acumulação teórica e prática significativas. Mas, se a trajetória de Brito toma daí seu ponto de partida, seu interesse vai bem além disso. Recém-aberto o campo, a agenda era extensa. Não bastava assegurar, contra a tradição “acadêmica” ou a variante folclórica, as conquistas advindas com a chegada da arte construtiva no Brasil; nem, tampouco, pesar a ruptura aí representada pelo neoconcretismo – o que já não era pouco. Era preciso alguém que acompanhasse os seus desdobramentos na nossa produção contemporânea. Os ensaios aqui reunidos mostram a desenvoltura com que Brito se incumbiu da tarefa. No corpo-a-corpo que travou com as obras de Amilcar de Castro, Antonio Dias, Cildo Meireles, Eduardo Sued, Iberê Camargo, Mira Schendel, Sergio Camargo, Tunga e Waltercio Caldas, dentre outros, o autor criou instrumentos indispensáveis para uma interpretação substancial da nossa produção e para as aporias que passaram a pesar sobre ela com as modificações trazidas pelos últimos trinta anos no circuito artístico nacional.

Destaco aqui apenas um dentre os inúmeros ganhos analíticos que sobressaem daí e tento qualificar o eventual incômodo que desperta a leitura do conjunto. Em texto redigido para a revista Gávea, em 1982, Brito assinala com primor a ambivalente modernidade de Guignard. Embora familiarizado com as inovações plásticas do velho continente, esse artista, anota Brito, criou uma linguagem que, a rigor, não era moderna. Ou antes: ele teria empregado a liberdade moderna à antiga, reafirmando compromissos (a estruturação pelo desenho, a atmosfera cromática, a permanência dos temas) fora de voga na Europa desde o impressionismo. Tal acomodação, conclui Brito, seria motivada pelo intuito de formular, recorrendo à sintaxe plástica das vanguardas, o mito de um mundo que ficou para trás, representado por um Brasil idealizado que admitisse, por força de seu arcaísmo, uma levada mais solidária do que a do cotidiano impessoal e administrado das sociedades complexas. Eis que assim a recusa da brutalidade social do presente na poética de Guinard ilumina, pelo crivo de Brito, um partido importante em face da modernidade nacional. Na contracorrente da visão celebrativa da Semana de 22, que se fixou na exaltação a Portinari, descobrimos a presença de um elemento reflexivo característico atuante em nossa cultura, que, transmitindose de Guignard a Volpi, reaparecerá em algumas telas de Eduardo Sued ou em desenhos de Elisabeth Jobim. O lastro do passado, desse modo, vai individualizando melhor a produção atual, e os ganhos se acumulam: a pintura de Iberê Camargo, por exemplo, revela sua radicalidade, quando cotejada ao expressionismo de Goeldi, em um movimento que também percorre o sentido contrário, já que a história, como assinalava Merleau-Ponty, é uma construção da consciência contemporânea. Esse vaivém, que, desnecessário dizer, dispõe esquemas abertos e lança os parâmetros para o debate em curso, se apóia na premissa de que a obra de

arte traz consigo a virtualidade de transformar o real. Desse ponto de vista, o percurso de Brito leva adiante a premissa iluminista alojada na convicção moderna de que o livre exercício da imaginação formal estimula o processo de construção da realidade como tarefa coletiva. Levar adiante, porém, implica submeter tal premissa à ação do tempo. E um problema surge com

a

constatação do autor de que, dos anos 70 para cá, manter-se moderno se tornou uma decisão quase solitária, sugerindo ser preciso rever eficácia e função da crítica. Seria equivocado imaginar tal revisão tendo sido motivada pela constatação da aporia que cerca a institucionalização da arte moderna. Mas não seria de todo desinteressante: fosse assim, a guinada de Brito poderia ajudar-nos a compreender por que a fenomenologia tem cedido lugar a Adorno no âmbito das análises da cultura. O interesse de nosso caso, porém, é diverso. A leitura que fez de Duchamp vacinou Brito desde cedo contra qualquer ilusão de que seria fácil transpor os obstáculos que a estrutura do mercado e da institucionalização da arte impôs e impõe à força transformadora da negatividade moderna. O motivo que explica a mudança de tom dos ensaios passa ao largo das opções especulativas do autor, que, a propósito, não são indiferentes à prática de seu ofício. Se vejo bem, foram justamente os anos de trabalho que o conduziram à progressiva constatação de que, entre nós, o desajuste é mais profundo: é que não há sequer estrutura. Para usar os termos de Brito, aqui, contrariamente ao que almejou o neoconcretismo, as artes plásticas sempre careceram de densidade pública. Eis, definitivamente, a razão que explica por que um Goeldi ou um Segall permaneceram cercados de incompreensão por tanto tempo. E apenas supor que cabe ao crítico nos tirar da completa ignorância dos mestres é esquecer que o preço disso é situá-lo em um universo

acadêmico, ameaçando solapar ainda mais a dimensão democrática do debate. Em suma, eis-nos reconduzidos a essa estranha verdade, no fundo muito familiar: a vocação antidemocrática da sociedade brasileira sobreviveu ao fim da ditadura e do Opinião... Brito bem o sabe, e é a contragosto que vê a vitalidade da nossa arte contemporânea confinada ao solilóquio de um ou outro grande artista em seu trabalho solitário de Sísifo. Até aí, porém, o prejuízo é de todos. Ocorre que, se o jogo da forma se abre, quando muito, ao olhar perito do crítico sem ilusões, como imaginar que ele possa desviar o olho do fascínio exercido pelos grandes artistas? Para além de todos os méritos inegáveis que a presente reunião de ensaios contém, parece-me ser esse quase depoimento que mais convém ruminar.

Vinicius de Figueiredo – Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Paraná

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