O DEVER DE FUNDAMENTAÇÃO DAS DECISÕES JUDICIAIS E O ART. 489, § 1º DO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: (IN) APLICAÇÃO AOS JUIZADOS ESPECIAIS?

June 6, 2017 | Autor: Clarice Santos | Categoria: Processo Civil, Juizados Especiais, Novo CPC, Dever de Fundamentação
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O DEVER DE FUNDAMENTAÇÃO DAS DECISÕES JUDICIAIS E O ART. 489, § 1º DO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: (IN) APLICAÇÃO AOS JUIZADOS ESPECIAIS? THE DUTY TO GROUNDS THE JUDICIAL DECISIONS AND THE ART. 489, § 1 OF THE NEW CIVIL PROCEDURE CODE: (IN) APPLICATION TO SPECIAL COURTS? Clarice Santos da Silva 1 João Felipe Freire Barbosa2 RESUMO O presente trabalho visa analisar os principais aspectos que permeiam o dever de fundamentação das decisões judiciais e a importância do art. 489, 1º, do Novo Código Processual Civil, a fim de responder se tal dispositivo legal comporta aplicação ao âmbito dos Juizados Especiais. Para tanto, utilizou-se referenciais teóricos que forneceram elementos para a compreensão do alcance do princípio da motivação, além de ter se examinado os traços que circunscrevem os Juizados Especiais e os enunciados interpretativos construídos recentemente acerca dessa temática. Neste sentido, realizou-se um breve exame do regime democrático em que é lançado o NCPC, devido à influência de tal circunstância para o tema em questão, culminando com a análise da fundamentação e do teor do mencionado artigo do novo código, para que fosse possível construir uma resposta legítima à indagação proposta neste ensaio. PALAVRAS-CHAVE: Fundamentação. Novo CPC. Juizados Especiais.

ABSTRACT This essay aims to address the main aspects that permeate the duty to grounds the judicial decisions and the importance of art. 489, § 1, of the New Civil Procedure Code, in order to answer if this legal instrument supports the application to the scope of the special courts. Therefore, theoretical references were used to provide elements for the understanding of the principle of motivation, besides to analyze the strokes that circumscribe the special courts, as well as the interpretative statements constructed recently about this subject. In this respect, a brief examination of the democratic regime in that NCPC is launched, due to the influence of such circumstance to the theme in question, culminating with the analysis of the grounding and the mentioned article of the new code, so it would be possible to build a legitimate response to the question proposed in this abstract.

KEYWORDS: Grounding. New CPC. Special Courts.

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Graduanda do 9º semestre do Curso de Bacharelado em Direito da Universidade da Amazônia (UNAMA). Monitora de Direito Constitucional I. Diretora de Pesquisa da Liga Acadêmica Jurídica do Pará (LAJUPA). Endereço: Tv. Vileta, 2080. Marco. Belém – Pará. Telefone: (91) 98161-0114. E-mail: [email protected]. 2 Graduando do 8º semestre do Curso de Bacharelado em Direito do Centro Universitário do Estado do Pará (CESUPA). Diretor de Pesquisa da Liga Acadêmica Jurídica do Pará (LAJUPA). Endereço: Av. Almirante Wandenkolk, 135. Umarizal. Belém – Pará. Telefone: (91) 99115-5707. E-mail: [email protected].

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INTRODUÇÃO O Novo Código de Processo Civil brasileiro é uma realidade. A proximidade do término de seu período de vacância deixa isso cada vez mais evidente. Como já apontado na exposição de motivos de seu anteprojeto, o Novo Código não realiza um simples rearranjo de dispositivos, mas institui um novo modelo processual, com institutos, regras e feições novas, sem romper, contudo, com os avanços consolidados no diploma de 1973. Diante disso, é necessário voltar-se à análise das normas previstas pelo novo diploma adjetivo civil, dentre as quais se destaca o dever de fundamentação das decisões judiciais; não por ser uma novidade, mas por ter recebido importantes contornos no estatuto legal em comento, fortalecendo-se o caráter imprescindível do princípio da motivação aplicado ao processo civil. Em seu art. 489, mais precisamente no § 1º, o novo diploma estabelece o dever de fundamentação analítica, prevendo hipóteses em que a decisão judicial considerar-se-á não fundamentada. Ocorre que, recentemente, foram editados enunciados interpretativos, por processualistas civis e magistrados, divergindo quanto à aplicação de tal determinação aos Juizados Especiais, o que motivou a construção deste trabalho. Nesta senda, o presente artigo parte da análise da relação íntima entre a democracia e os valores trazidos no Novo Código, em virtude de apenas poder se compreender com exatidão o novo diploma ao se realizar um exame constitucional e democrático da sua matéria e institutos. Em seguida, examina-se o princípio constitucional da motivação das decisões judiciais, insculpido no art. 93, IX, CF, e o dever de fundamentação, sendo este derivado de tal previsão constitucional e que, na redação conferida ao art. 489, § 1º, NCPC, ganhou extrema evidência. Por fim, é realizada uma análise do sistema dos Juizados Especiais e suas principais características, bem como dos enunciados interpretativos editados recentemente sobre essa temática, os quais divergem quanto à aplicação do mencionado art. 489, § 1º, como já dito, circunstância que se enfrentou de modo detido ao longo da última seção deste trabalho. Assim, o presente artigo visa, à luz do ambiente democrático em que nasce o Novo Código, analisar o princípio da motivação e o dever de fundamentação das decisões judiciais, explicando sua dimensão e relevância, levando em consideração o art. 489, § 1º do referido diploma, para que, então, responda-se se tal dispositivo pode ser aplicado ao âmbito dos Juizados Especiais, ou se é incompatível com esse sistema. 1 O NOVO CPC E O SEU COMPROMISSO DEMOCRÁTICO Após cerca de cinco anos de tramitação no poder legislativo federal, no dia 24 de fevereiro de 2015, o texto final do projeto de lei do novel código foi remetido à sanção presidencial, quando, então, em 16 de março de 2015, houve a sanção da Lei 13.105/2015, inaugurando o Novo Código de Processo Civil brasileiro (NCPC) 3. Dentre as inúmeras características que o NCPC traz consigo, destaca-se a de ser o primeiro diploma processual brasileiro promulgado sob a égide de um regime democrático 3

O Novo Código passará a ser identificado neste ensaio pela sigla “NCPC”, da mesma forma em que a doutrina especializada costuma se referir ao mesmo.

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(pós Constituição de 1988); e este fato não é – e nem pode ser – considerado de pouca relevância. Por consolidar a democracia na processualística civil codificada, o NCPC se preocupa, ao longo de vários dispositivos de seu texto, em apontar caminhos para a obtenção de uma prestação jurisdicional comprometida com o julgamento do mérito, de forma efetiva e ágil, estabelecendo o diálogo entre os sujeitos processuais e priorizando uma atuação coerente, íntegra e harmônica do julgador, com o objetivo de fortalecer os precedentes judiciais e de conferir “organicidade às regras do processo civil brasileiro, dando maior coesão ao sistema” 4. Há o compromisso, sobretudo, de utilizar o processo como meio legítimo de respeito e concretização de direitos e valores constitucionais5, máxime os atinentes ao devido processo legal, à ampla defesa e ao contraditório, ao dever de cooperação e à estabilidade/integridade das decisões. Isto é, no panorama atual, não há como conceber o processo senão como veículo de concretude das regras e princípios insculpidos na Carta da República 6, em sintonia com a realidade social e voltado para a adequada resolução do litígio. Dentre outros fatores, o reconhecimento, ao longo do século XX, da força normativa da constituição, impactou sobremaneira o modo de compreender e utilizar o processo, o que, por certo, está refletido na estruturação do NCPC. Conceber a constituição como norma jurídica fundamental, dotada de máxima hierarquia e eficácia no ordenamento que compõe 7, gera a necessidade intrínseca de irradiação do sentido e efeitos das normas constitucionais para todos os âmbitos de aplicação do direito, a fim de conferir-lhes legitimidade e permanência no sistema; e o processo civil não ficou imune a esse fenômeno – nem poderia. Nesse sentido, o estágio processual hodierno materializa a relação íntima entre a constituição, o processo e a democracia, cujo laço é insuscetível de quebra ou distanciamento. Assim, em um Estado Democrático, o poder deve ser exercido voltado à ampla afirmação de direitos e garantias ao povo. Por essa razão é que a democracia é entendida como “o regime de garantia geral para a realização dos direitos fundamentais do homem” 8, devendo o processo, nesse contexto, estar plenamente comprometido com a proteção e materialização de tais direitos.

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Fragmento extraído da exposição de motivos do anteprojeto do NCPC, disponível em: www.senado.gov.br/senado/novocpc/pdf/Anteprojeto.pdf. Acesso em: 15 de jan. de 2016. 5 DALLARI, em introdução de emblemática obra, assevera que o respeito à Constituição e seus valores é “muito mais do que apegar-se a um legalismo formal, satisfazendo-se com a existência de uma Constituição escrita e com o reconhecimento de sua superioridade na hierarquia das leis. O verdadeiro respeito implica a exigência de legitimidade do poder constituinte e do poder reformador, um compromisso permanente com os princípios expressos e implícitos na Constituição e a preocupação permanente com sua efetividade em todas as relações sociais [...] Esse respeito é indispensável para a proteção da dignidade humana e a consecução de uma ordem social justa, na qual as relações políticas e sociais sejam pautadas pelo Direito, estando garantido o efetivo respeito aos direitos fundamentais de todos os seres humanos”. DALLARI, Dalmo de Abreu. A Constituição na vida dos povos: da idade média ao século XXI. – 2. ed. – São Paulo: Saraiva, 2013, p. 13. 6 “O processo não pode mais ser visto como uma relação jurídica processual. Alias, não importa nem mesmo saber se realmente existe uma relação jurídica processual. [...] O processo é o instrumento através do qual a jurisdição tutela os direitos na dimensão da Constituição. É o módulo legal que legitima a atividade jurisdicional e, atrelado à participação, colabora para a legitimidade da decisão. É a via que garante o acesso de todos ao Poder Judiciário e, além disto, é o conduto para a participação popular no poder e na reivindicação da concretização e da proteção dos direitos fundamentais”. MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria geral do processo. – 4. ed. rev. e atual. – v. 1. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 459 e 474 – 475, grifos do autor. 7 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. – 37ª. ed. rev. e atual. Malheiros: São Paulo, 2014. 8 Ibidem, p. 134.

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Sendo assim, o princípio da motivação e a exigência de fundamentação das decisões judiciais possuem extremo relevo, ocupando posição de destaque no NCPC, sobretudo em seu art. 489, § 1º, o qual será detidamente analisado a seguir. 2 O PRINCÍPIO DA MOTIVAÇÃO, O DEVER DE FUNDAMENTAÇÃO E O ART. 489, § 1º, NCPC O art. 93, IX9, CF consagra o princípio da motivação das decisões judiciais. Este expressa a necessidade de toda e qualquer decisão emanada do Poder Judiciário ser fundamentada10, devendo o magistrado explicar as razões, de fato e de direito, que formaram a sua convicção para proferir determinada decisão. Trata-se de uma garantia fundamental do jurisdicionado, integrando o conteúdo mínimo do devido processo legal 11. Todas as matérias que forem relevantes para a resolução da causa, sejam referentes à admissibilidade ou ao mérito, devem ser apreciadas e resolvidas pelo juiz na fundamentação. É uma exigência de ordem pública 12, que não se dirige apenas às sentenças, mas a todos os pronunciamentos judiciais dotados de conteúdo decisório. Assim, o juiz possui o dever constitucional de fundamentar, justificar, adequada e satisfatoriamente, a sua decisão, na qual devem constar os motivos suficientes de acerto da norma jurídica que regulará o caso concreto13. Deste modo, o dever de fundamentação não encontra assento apenas para as partes terem ciência dos motivos da decisão, a fim de demonstrarem seu inconformismo e manejarem os recursos cabíveis, tampouco é baseada no exclusivo objetivo de informar às instâncias recursais as razões que formaram o teor decisório; o alcance desse preceito constitucional passa por tais pontos, naturalmente, mas vai além deles: contempla uma função política da fundamentação14. Esta função, por sua vez, possibilita não apenas às partes e aos juízes hierarquicamente superiores, mas a qualquer membro da sociedade, controlar a atividade jurisdicional, verificando a imparcialidade do juiz e a justiça de suas decisões 15. Sendo assim, é possível constatar que o dever de fundamentação encontra diversos fundamentos16, todos, porém, voltados à transparência e à legitimidade da atividade judicial. Sob esse viés, o CPC/73, em seu art. 458, II, prevê que um dos requisitos essenciais da sentença é os seus fundamentos, devendo o juiz, na decisão, analisar as questões de fato e de direito. Tal comando é repetido pelo art. 489, NCPC, mas em forma de “elemento” 9

Art. 93, IX: todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade [...]. 10 BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil: teoria geral do direito processual civil, 1. – 3ª ed. - São Paulo: Saraiva, 2009, p. 135. 11 BRAGA, Paula Sarno; DIDIER, Fredie J e OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de direito processual civil. – 10. ed. v. 2 – Salvador: Ed. Jus Podivm, 2015, p. 314. 12 “Assim mesmo que, em tese, não houvesse a previsão expressa da motivação de qualquer decisão jurisdicional no art. 93, IX e X, não se admitiria, entre nós, sem atrito ao modelo constitucional do processo civil, decisões não fundamentadas”. BUENO, op. cit., p. 137. 13 Ibidem, p. 136. 14 CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; DINAMARCO, Cândido Rangel; GRINOVER, Ada Pellegrini. Teoria Geral do Processo. – 30ª ed. rev. atual. e ampl. - São Paulo: Malheiros, 2014, p. 87. 15 Idem. 16 “que vão desde a necessidade de comunicação judicial, exercício de lógica e atividade intelectual do juiz, até sua submissão, como ato processual, ao estado de direito e às garantias constitucionais estampadas na CF 5º [...]”. NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo na Constituição Federal: processo civil, penal e administrativo. – 10. ed. rev. ampl. e atual. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 290.

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essencial, não mais “requisito”, alteração que representou um acerto por parte do legislador, mas que não constitui a mais significativa previsão do artigo. Neste passo, uma das inserções substanciais está no § 1º do art. 489, o qual estabelece que “não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que [...]” e passa a elencar, de modo exemplificativo 17, seis hipóteses18 que caracterizam a não fundamentação da decisão e, em consequência, a sua nulidade. Dentre esses casos, está a decisão que apenas indica dispositivo de lei na fundamentação, sem explicar sua relação com o caso; decisão que apenas reproduz enunciado de súmula ou precedente, ou que não enfrenta todos os pontos capazes de, em tese, reverter a conclusão do magistrado; assim como a decisão que faz alusão a justificativas genéricas, que poderiam constar em qualquer outra19. Logo, pronunciamentos judiciais proferidos desta forma possuem apenas aparência de estarem motivados, pois possuem, em verdade, mero “arremedo de fundamentação” 20, fruto de uma atividade judicial eivada de vício, vez que insuficiente e precária. A nulidade, é importante frisar, não se impõe apenas às decisões não fundamentadas, mas também às que possuem fundamentação deficiente ou aparente21, pois todas estas violam a exigência constitucional de motivação, a qual exige decisões judiciais coerentes, claras e suficientemente fundamentadas. Dessa forma, o art. 489, § 1º, NCPC surge com extrema importância prática 22, no intuito de fortalecer e realizar o princípio da motivação, além de coibir a possibilidade de arbítrios praticados por magistrados, descomprometidos, muitas vezes, com a devida fundamentação de suas decisões. Portanto, os juízes devem enfrentar, nos fundamentos dos atos decisórios que proferem, todos os pontos controversos, fáticos e jurídicos, postos pelas partes, pois isto decorre do próprio princípio da motivação e há, no NCPC, um comando normativo expresso que elucida tal obrigação. Tendo isso em conta, resta responder se tal dever possui guarida no âmbito dos Juizados Especiais.

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Assim é o entendimento da doutrina, reproduzido no Enunciado n. 303 do Fórum Permanente de Processualistas Civis: “As hipóteses descritas nos incisos do §1º do art. 489 são exemplificativas”. 18 Quais sejam: “I - se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida; II - empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso; III - invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão; IV - não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador; V - se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos; VI - deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento”. 19 A exemplo do juiz indeferir medida liminar tão somente por declarar a “ausência de requisitos” ou julgar improcedente os pedidos devido à “falta de amparo legal”, frases tidas como padrão, utilizadas de modo mecânico e genérico, sem a devida individualização das circunstâncias postas à análise do magistrado. 20 CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de direito processual civil, volume 1. – 21. ed. – Rio de Janeiro: Lumes Juris, 2011, p. 59. 21 Idem. 22 Vale ressaltar que: “Embora o seu conteúdo já pudesse ser extraído do dever de fundamentar que decorre da Constituição Federal, é bastante salutar que agora algumas hipóteses em que se considera não-fundamentada a decisão judicial estejam previstas no texto legal. Isso permite um controle mais efetivo dos pronunciamentos judiciais, reduzindo a margem de subjetividade quanto à percepção do que é e do que não é uma decisão fundamentada”. BRAGA, Paula Sarno; DIDIER, Fredie J e OLIVEIRA, Rafael Alexandria de., op. cit., p. 326.

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3 O SISTEMA DE JUIZADOS ESPECIAIS E INTERPRETATIVOS ACERCA DO ART. 489, § 1º, NCPC

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ENUNCIADOS

O Poder Judiciário deve manter-se sempre a par do clamor da sociedade, atuando com o fim de atender suas necessidades e participar do processo evolutivo da mesma, uma vez que tem como responsabilidade a prestação jurisdicional voltada para o bem comum. Desta forma, é evidente que a partir do momento em que surge a carência de técnicas eficientes para resolução de determinados conflitos, resultando na deficiência da referida prestação à sociedade e, consequentemente, inobservância da garantia ao acesso à Justiça, torna-se imprescindível a chamada “democratização do Judiciário" 23, no sentido de adequá-lo às demandas sociais. É neste cenário que surge a Lei nº 7.244/84, criadora dos Juizados de Pequenas Causas, que por uma imposição nacional trouxe ao ordenamento jurídico brasileiro uma modalidade de procedimento pautado nos princípios da simplicidade, celeridade, informalidade e gratuidade, dando ênfase especial à busca de uma solução conciliatória ou arbitral. O Juizado de Pequenas Causas representou um grande avanço para a desburocratização da justiça brasileira, de modo que deu fim ao conceito prévio de Justiça morosa e com altos custos, que acabavam por desestimular o ingresso em juízo daqueles que tinham seus direitos atingidos. Com o advento da Constituição Federal de 1988, mais precisamente em seu artigo 98, I 24, houve a determinação da criação dos Juizados Especiais, mantendo as ideias iniciais do rito antecessor. Em decorrência desta previsão constitucional, foi aprovada a Lei no 9.099/95, a qual revogou expressamente a Lei dos Juizados de Pequenas Causas. Neste sentido, os Juizados Especiais obedecem a um rito sumaríssimo, possuindo três legislações básicas que os regulamentam: a Lei 9.099/1995 (Juizados Especiais Estaduais); Lei 10.259/2001 (Juizados Especiais Federais) e Lei 12.153/2009 (Juizados Especiais da Fazenda Pública). Apesar das três tratarem de matérias específicas, todas possuem aplicação subsidiária do Código de Processo Civil, no que com elas este for compatível, e as duas últimas são regidas supletivamente pela primeira (Lei 9.099/95), a qual é mais ampla e possui normas gerais que informam os três sistemas. Logo no art. 2º da Lei 9.099/95 há a expressa previsão de que os Juizados Especiais serão regidos pelos critérios da “oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade”, buscando, sempre que possível for, a conciliação ou a transação.

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PINTO, Oriana Piske de Azevedo Magalhães. Abordagem Histórica e Jurídica dos Juizados de Pequenas Causas aos Atuais Juizados Especiais Cíveis e Criminais Brasileiros. Disponível em: www.amb.com.br. Acesso em: 20 de jan. 2016. 24 Art. 98, CF. A União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados criarão: I - juizados especiais, providos por juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumaríssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau; .

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Portanto, o processo, nos Juizados, deve prezar pela prevalência da oralidade e pela simplicidade das formas, a fim da prestação jurisdicional ser mais célere e econômica, por abrigar causas de menor complexidade jurídica e, em regra, de valores módicos, comparados aos do procedimento ordinário. Neste passo, com a promulgação do NCPC, a comunidade jurídica passou a empenhar-se em estudar seus institutos e, no que envolve os Juizados, em identificar quais das novas normas se aplicam a estes. Em meio a essa tarefa, surgiu uma aparente controvérsia quanto à aplicação do art. 489, § 1º, NCPC, vez que foram editados enunciados interpretativos que apontam em direções contrárias quando confrontam tal dispositivo aos Juizados Especiais. O Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC) lançou o Enunciado n. 309, o qual assinala que “o disposto no § 1º do art. 489 do CPC é aplicável no âmbito dos Juizados Especiais” 25. De outra banda, a Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (ENFAM) editou o Enunciado n. 47, cujo teor estabelece que “o art. 489 do CPC/2015 não se aplica ao sistema de juizados especiais” 26, estando nessa exclusão, portanto, o mencionado § 1º. O Fórum Nacional dos Juizados Especiais Federais (FONAJEF), por sua vez, posicionou-se, por meio do Enunciado n. 1º, do seu Grupo 2, no sentido de que “a regra do art. 489, parágrafo primeiro, do NCPC deve ser mitigada nos juizados por força da primazia dos princípios da simplicidade e informalidade que regem o JEF”27. E, mais recentemente, o Fórum Nacional dos Juizados Especiais (FONAJE) tratou do tema, também através de um Enunciado, nº 162, o qual aponta que “não se aplica ao Sistema dos Juizados Especiais a regra do art. 489 do CPC/15 diante da expressa previsão contida no art. 38, caput, da lei 9.099/95″28. Pois bem. Percebe-se, pela simples leitura dos enunciados acima descritos, que existe um conflito. Há posições distintas acerca da aplicação de uma mesma norma e pautadas em fundamentos também diversos. De um lado, defende-se o emprego integral do art. 489 ao sistema de Juizados; de outro, nega-se por completo a sua aplicação e, ainda, há quem defenda uma mitigação de tal dispositivo. Verificada, pois, a existência de tal controvérsia, faz-se necessário buscar instrumentos para dirimi-la. Assim, para que seja possível construir uma resposta legítima para a aplicação ou não do art. 489, § 1º, NCPC aos Juizados Especiais, partir-se-á do exame dos argumentos utilizados por quem defende a exclusão ou mitigação de tal aplicação, quais sejam, o argumento da prevalência dos princípios da simplicidade e informalidade no âmbito dos Juizados e o da previsão do art. 38, caput, da Lei 9.099/95. Como já foi indicado, os Juizados Especiais possuem um rito peculiar, mais simples e informal, com o intuito precípuo de levar até o jurisdicionado a solução da sua controvérsia, em menor tempo e com custos geralmente módicos. Os princípios da simplicidade e da informalidade são, portanto, estruturantes, típicos elementos identificadores desse sistema, 25

Este e os demais enunciados do FPPC estão disponíveis em: http://portalprocessual.com/wpcontent/uploads/2015/12/Carta-de-Curitiba.pdf. Acesso em: 20 jan. de 2016. 26 A totalidade dos enunciados da ENFAM está disponível em: http://www.enfam.jus.br/wpcontent/uploads/2015/09/ENUNCIADOS-VERS%C3%83O-DEFINITIVA-.pdf. Acesso em: 20 jan. de 2016. 27 Todos os enunciados do FONAJEF podem ser acessados neste endereço eletrônico: http://www.ajufe.org/arquivos/downloads/xii-fonajef-enunciados-131973.pdf. Acesso em: 21 jan. de 2016. 28 Disponível em: www.amb.com.br/fonaje/?p=32. Acesso em: 20 jan. de 2016.

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sem os quais este não se sustenta. Assim, os grupos que defendem o afastamento ou a mitigação do art. 489, § 1º, NCPC aos Juizados, acreditam ser tal norma incompatível por conferir, em tese, uma maior complexidade ao sistema, violando o caráter simples e informal deste. No entanto, esta não é a ótica que deve prevalecer. O art. 489, § 1º, não cria um dever antes inexistente 29, mas apenas confere voz, materializa, na legislação processual civil, uma decorrência lógica do princípio constitucional da motivação das decisões judiciais: não é admitido que uma decisão judicial seja fundamentada de modo insuficiente ou que contenha apenas aparência de fundamentação, sob pena da decisão ser declarada nula. E isto em qualquer sistema. O princípio da motivação exige uma fundamentação adequada e suficiente30, seja qual for o procedimento adotado, do menos ao mais complexo; inclusive nos Juizados Especiais 31. Não espera-se que o magistrado utilize, na fundamentação, desnecessárias e extensas dilações; isso não é o que se extrai da exigência constitucional. Porém, deve existir – aí sim - o compromisso do órgão jurisdicional com a inteireza e completude da fundamentação32, nos Juizados Especiais ou fora deles. Portanto, os princípios informadores dos Juizados não podem ser usados como meios para obliterar o exercício legítimo do dever de fundamentação, conforme traceja a Constituição e apenas reforça o art. 489, § 1º, NCPC. Sob outro viés, no que se refere ao art. 38 da Lei 9.099/95, há a determinação de que, na sentença, o juiz deve mencionar seus elementos de convicção, com breve resumo dos fatos relevantes, dispensando-se o relatório. Conforme exposto, há quem entenda, com base em tal dispositivo, que o mesmo seria suficiente para afastar o dever de fundamentação analítica trazido pelo NCPC, por constituir regra específica dos Juizados, não sendo o caso da aplicação subsidiária das regras do processo civil. Porém, tal entendimento não é o que se afigura mais acertado. Os três diplomas que regulam o sistema de Juizados Especiais não entram em pormenores no que diz respeito ao dever de fundamentação, conferindo o espaço necessário para a devida aplicação do Código de Processo Civil. Outrossim, o que é excepcionado pelo regramento específico dos Juizados é apenas a exigência de relatório, conforme a própria redação do art. 38 indica; jamais a de fundamentação. 29

“A rigor, o Novo Código de Processo Civil só desenha, incorpora ou prevê o que já existe, ou deveria existir. Não há nada, no dispositivo, que já não decorra naturalmente do direito fundamental à motivação das decisões judiciais. O artigo, inclusive, constata as falhas rotineiramente observadas para combatê-las; solidificando, assim, a garantia constitucional”. OKA, Juliana. Fundamentação das Decisões Judiciais no Novo CPC: vetar por quê? Disponível em: www.portalprocessual.com/fundamentacao-das-decisoes-no-novo-cpc-vetar-por-que/. Acesso em: 20 de jan. 2016. 30 “Não se exige do juiz que, ao elaborar suas decisões, escreva tratados ou monografias sobre o tema decidido. O que se exige é tão somente que o magistrado fundamente adequadamente suas decisões, o que será cumprido ainda que tal fundamentação seja sucinta (nos casos em que isso for possível). Fundamentação adequada: isto é o que exige o nosso ordenamento constitucional, isto é o que se revela adequado e conforme os pilares do Estado Democrático de Direito”. CÂMARA, Alexandre Freitas op. cit., p. 60. 31 Desse modo, o Enunciado n. 44 da ENFAM prevê que: “Admite-se o IRDR nos juizados especiais, que deverá ser julgado por órgão colegiado de uniformização do próprio sistema”, instituto complexo que, ainda assim, aplica-se ao sistema de Juizados, conforme autoriza o próprio art. 985, I, NCPC. 32 “Dispensam-se minúcias e até se repudiam digressões sobre pontos colaterais e irrelevantes, mas exige-se que o essencial seja objeto da motivação. Na prática, reputa-se não motivada a decisão judiciária que se omita sobre pontos de fato ou de direito cujo exame poderia conduzir a julgamento diferente daquele pelo qual houver optado o juiz.” DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do Processo Civil Moderno. Tomo 1 – 6ª ed. – São Paulo: Malheiros, 2010, p. 943.

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A estrutura do art. 489, § 1º, NCPC não se mostra incompatível e nem ultrapassa os limites da regulação subsidiária do direito adjetivo civil aos Juizados Especiais, vez que, repita-se, não impõe dever mais rebuscado ou complexo do que o que já é exigido pela própria Constituição, e nem cria norma sobre tema já regulado de modo diverso pelas leis específicas. Diante disso, não há como firmar outro entendimento senão o de que o art. 489, §1º, NCPC, veículo normativo do dever de fundamentação analítica, aplica-se aos Juizados Especiais – e a qualquer outro sistema -, em virtude de tratar-se de corolário do princípio da motivação das decisões judiciais. Por certo, qualquer posição que vise restringir ou excluir tal aplicação merece ser visto como inconstitucional, frente à violação de princípio expresso da Constituição (art. 93, IX), o qual não previu qualquer exceção ao seu comando, e cujo conteúdo apenas foi aclarado pelo legislador no art. 489, § 1º, NCPC, como se expôs ao longo de todo este trabalho. CONSIDERAÇÕES FINAIS O NCPC é um marco para a história do direito brasileiro. Com a sua entrada em vigor, será inaugurado não apenas um novo diploma processual civil, mas o primeiro a ter sua tramitação e lançamento em um ambiente democrático. Tal circunstância, por certo, possui forte influência nos institutos, regras e princípios que o informam. Dentre as inúmeras normas de relevância que integram o NCPC, destaca-se o dever de fundamentação analítica previsto em seu art. 489, § 1º, cujo teor elenca hipóteses exemplificativas em que a decisão judicial não será considerada fundamentada. Este dispositivo faz nada mais do que solidificar, na legislação processual civil, o princípio da motivação das decisões judiciais, insculpido no art. 93, IX, CF, sem ter a norma constitucional previsto qualquer exceção a este dever. Recentemente, porém, foram editados enunciados interpretativos, por processualistas civis e magistrados, manifestando divergências quanto à aplicação desse dispositivo ao sistema dos Juizados Especiais; tendo os segundos entendido que não cabe ou que deve ser mitigada a aplicação do respectivo artigo aos Juizados, enquanto que os primeiros se posicionam de forma favorável a esse emprego. Com a análise aqui realizada, conclui-se que o art. 489, § 1º, NCPC, ao revés do que vem sendo sustentado por alguns dos enunciados mencionados, deve ser aplicado a todo e qualquer procedimento judicial, seja menos ou mais complexo, pois materializa o dever de fundamentação suficiente, clara e adequada, compatível com os Juizados Especiais e com qualquer outro sistema que se diga judicial e democrático. O dispositivo em exame não cria obrigação antes inexistente, nem impõe aos magistrados o dever de proferir uma fundamentação longa ou prolixa; tão somente traduz, sem embaraços, o objetivo que deveria ser de fácil percepção e aceito por todos: a realização plena do princípio constitucional da motivação das decisões judiciais. REFERÊNCIAS BRAGA, Paula Sarno; DIDIER, Fredie J e OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de direito processual civil. v 2. – 10. ed. – Salvador: Ed. Jus Podivm, 2015.

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BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988. BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil: teoria geral do direito processual civil, 1. – 3ª ed. - São Paulo: Saraiva, 2009. CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de direito processual civil, volume 1. – 21. ed. – Rio de Janeiro: Lumes Juris, 2011. CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; DINAMARCO, Cândido Rangel; GRINOVER, Ada Pellegrini. Teoria Geral do Processo. – 30ª ed. rev. atual. e ampl. - São Paulo: Malheiros, 2014. DALLARI, Dalmo de Abreu. A Constituição na vida dos povos: da idade média ao século XXI. – 2. ed. – São Paulo: Saraiva, 2013. DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do Processo Civil Moderno. Tomo 1 – 6ª ed. – São Paulo: Malheiros, 2010. Enunciados ENFAM. Seminário – O Poder Judiciário e o Novo Código de Processo Civil. Disponível em: http://www.enfam.jus.br/wp-content/uploads/2015/09/ENUNCIADOSVERS%C3%83O-DEFINITIVA-.pdf. Acesso em: 20 jan. de 2016. Enunciados FONAJE. Disponível em: www.amb.com.br/fonaje/?p=32. Acesso em: 20 jan. de 2016. Enunciados FONAJEF. Disponível em: http://www.ajufe.org/arquivos/downloads/xiifonajef-enunciados-131973.pdf. Acesso em: 21 jan. de 2016. Enunciados FPPC. Carta de Curitiba. Disponível em: http://portalprocessual.com/wpcontent/uploads/2015/12/Carta-de-Curitiba.pdf Acesso em: 20 jan. de 2016. MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria geral do processo. – 4. ed. rev. e atual. – v. 1. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo na Constituição Federal: processo civil, penal e administrativo. – 10. ed. rev. ampl. e atual. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. OKA, Juliana. Fundamentação das Decisões Judiciais no Novo CPC: vetar por quê? Disponível em: www.portalprocessual.com/fundamentacao-das-decisoes-no-novo-cpc-vetarpor-que/. Acesso em: 20 de jan. 2016. PINTO, Oriana Piske de Azevedo Magalhães. Abordagem Histórica e Jurídica dos Juizados de Pequenas Causas aos Atuais Juizados Especiais Cíveis e Criminais Brasileiros. Disponível em: www.amb.com.br. Acesso em: 20 de jan. 2016. SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. – 37ª. ed. rev. e atual. Malheiros: São Paulo, 2014.

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