O dever de motivação em questões de fato e de direito como garantia do jurisdicionado no novo CPC: breves notas sobre os aportes da teoria do direito para a constitucionalização do processo civil

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O dever de motivação em questões de fato e de direito como garantia do jurisdicionado no novo CPC: breves notas sobre os aportes da teoria do Direito para a constitucionalização do processo civil Por Daniel Giotti de Paula1

Sumário: 1. Introdução; 2. As narrativas da realidade como construções, os argumentos em torno a fatos e o dever de análise pelo julgador; 3. As normas jurídicas aplicáveis ao caso e o dever de sua revelação/motivação pelo julgador; 4. Um juiz atento aos argumentos ... e aos limites do Direito; 5. Bibliografia

Palavras-chave: dever de motivação; enunciados fáticos; reconstrução parcial da realidade pelo processo; argumentos de direito; normas jurídicas; propriedades relevantes; dever de revelação da norma.

1. Introdução

A lei n. 13.015/05 traz um dos dispositivos normativos mais importantes do ordenamento jurídico brasileiro. Esboçam-se nele os requisitos essenciais, para que uma decisão judicial de mérito, seja individual (=sentença2), seja coletiva (=acórdão), não padeça de nulidade. Refiro-me ao artigo 489, do novo CPC, transcrito na integra:

Art. 489. São elementos essenciais da sentença:

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Doutorando em Finanças Públicas, Tributação e Desenvolvimento pela UERJ, Procurador da Fazenda Nacional, Coordenador da Pós-Graduação em Direito Tributário do IDS/INTEJUR Professor-convidado dos Programas de Pós-Graduação em Direito, lato sensu da UFJF, PUCRio, UFF e PUC-Minas. 2 Artigo 203, § 1º Ressalvadas as disposições expressas dos procedimentos especiais, sentença é o pronunciamento por meio do qual o juiz, com fundamento nos arts. 485 e 487, põe fim à fase cognitiva do procedimento comum, bem como extingue a execução

I – o relatório, que conterá os nomes das partes, a identificação do caso, com a suma do pedido e da contestação, e o registro das principais ocorrências havidas no andamento do processo; II – os fundamentos, em que o juiz analisará as questões de fato e de direito; III – o dispositivo, em que o juiz resolverá as questões principais que as partes lhe submeterem. § 1º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que: I – se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida; II – empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso; III – invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão; IV – não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador; V – se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos; VI – deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento. § 2º No caso de colisão entre normas, o juiz deve justificar o objeto e os critérios gerais da ponderação efetuada, enunciando as razões que autorizam a interferência na norma afastada e as premissas fáticas que fundamentam a conclusão. § 3º A decisão judicial deve ser interpretada a partir da conjugação de todos os seus elementos e em conformidade com o princípio da boa-fé”, (grifos nossos)

Os grifos feitos revelam duas mudanças substanciais na prática judicial, que se pretendem forjar após o período de início de vigência da lei. O julgador deve enfrentar todos os argumentos deduzidos em juízo; não podendo também invocar, como razão de decidir, apenas um ato normativo, sem se desvencilhar do dever de mostrar a relação lógico-jurídica entre o caso sob apreciação e a norma jurídica ou o conjunto de normas jurídicas aplicáveis ao caso. Não é que esses deveres já não existissem como projeções de uma série de princípios e regras, de que são exemplos o do devido processo legal, o contraditório, a ampla defesa, a boa-fé processual e a motivação, mas tendo eles fonte explicita ou implicitamente constitucional, sem previsão clara em normas processuais, a jurisprudência do STJ, sobretudo, e do STF, em menor grau, construiu-se ao arrepio desse estatuto constitucional de proteção do jurisdicionado. De qualquer sorte, a inclusão expressa desses deveres do julgador suscita uma mudança na forma como se decide, o que representa a necessidade de reversão da jurisprudência existente e da própria forma como os sujeitos processuais entendam seus papéis no processo. Com intuito de estimular essa mudança cultural, este artigo traz aportes da teoria do direito, propondo alguns critérios de validação da decisão judicial em relação às questões de fato e de direito, fiando-se, ainda, na concepção argumentativa do Direito3.

2. As narrativas da realidade como construções, os argumentos em torno a fatos e o dever de análise pelo julgador

Segundo essa concepção, “o Direito é entendido como uma estrutura argumentativa por meio da qual são reconstruídas as alternativas semânticas possíveis de uma norma mediante critérios hermenêuticos. A norma jurídica, em geral, não contém um único sentido, mas alternativas semânticas e núcleos de significação, de maneira que a atividade do intérprete consiste em reconstruir alternativas decisórias por meio de uma atividade dinâmica e argumentativa” (ÁVILA, Humberto. Segurança Jurídica: Entre permanência, mudança e realização no Direito Tributário. 2ª ed., São Paulo: Malheiros, 2012, p. 159). 3

A dogmática processual, há muito, tenta diferençar controvérsias de fato e de direito. Fugiria ao escopo deste breve artigo revisar toda a bibliografia sobre o tema, mas se adota a concepção de que, na verdade, existe uma relação entre o fato e o direito na tomada de decisão judicial, “pois o ´fato em litígio´ somente se pode identificar de acordo com a norma jurídica que se usa como critério para decidir”4. Sob a ótica da teoria do direito, poder-se-ia conjecturar que a interpretação envolveria as questões jurídicas, enquanto a aplicação do direito pressuporia identificar um fato e concluir qual norma jurídica ou conjunto de normas jurídicas se aplicaria ao caso. Para Sérgio André Rocha, interpretação “seria a compreensão dos sentidos possíveis de um determinado texto”, enquanto a aplicação “consistiria na valoração de um dado fato de acordo com o resultado da interpretação”5 É que, muitas vezes, interpretam-se os textos normativos, em uma operação complexa e integrada, sincronicamente se dando qualificação jurídica a um fato. Um exemplo de como isso ocorreria é na análise da licitude de planejamento tributário. Outro exemplo, já analisado pelo Superior Tribunal de Justiça, que demonstra a arbitrariedade dessa cisão, foi o caso do redirecionamento de execuções fiscais para pessoas físicas pela dissolução irregular das pessoas jurídicas ou a elas equiparadas. Havendo uma dúvida sobre o que caracteriza o redirecionamento ou para qual pessoa física se deve redirecionar a execução (aquele administrador que o era na época do fato gerador ou na época da dissolução irregular ou apenas para aquele que atendesse aos dois requisitos), o Superior Tribunal de Justiça entendeu que esse tipo de análise envolve, em parte, a qualificação jurídica de

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TARUFFO, Michele. La prueba. Trad. por Laura Manríquez e Jordi Ferrer Beltrán. Madrid: Marcial Pons, 2008, p. 17. 5 ROCHA, Sérgio André. O que é o formalismo tributário? In: QUEIROZ, Luís Cesar de Souza; OLIVEIRA, Gustavo da Gama Vital. Tributação Constitucional, Justiça Fiscal e Segurança Jurídica. Rio de Janeiro: GZ Editora, 2014, p. 56.

um fato, tendo afastado o enunciado n. 7 de sua súmula dominante, avançando na análise da questão fática6. Seja como for, o julgador aprecia as provas produzidas e aceita determinada descrição parcial da realidade7. Uma descrição interessante é que as partes tentam fazer com que o julgador aceite ou creia em uma narrativa judicial, uma reconstrução dos fatos. Como adverte Michele Taruffo, porém, o procedimento judicial é uma situação complexa, “em que várias ´histórias´ são construídas e contadas por diferentes sujeitos, desde diferentes pontos de vista e de maneiras distintas” 8. Daí que não seja apenas a coerência de uma narrativa apresentada pela parte que deve levar o juiz a aceitar a reconstrução dos fatos, sendo mister que os enunciados sobre fatos sejam considerados falsos ou verdadeiros pelo julgador. Essa descrição de como são construídos judicialmente os enunciados sobre fatos sugere, por fim, mudança interessante na atuação dos magistrados. Conectada com a teoria do jurista italiano, pode-se trazer à colação a ideia de Daniel Mendonca no sentido de que os enunciados sobre fatos são relacionais, ou seja, são elementos de juízo sobre cuja base se considera provado um fato9. A dogmática processual acostumou-se a chamar esses enunciados de alegações, quando forjados pelas partes10, e fundamentos e razões de decidir, quando esboçados ou tomados como verdadeiros pelo magistrado11.

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STJ, AgRg no REsp n. 1279422, 2ª Turma, Rel. Min. Humberto Martins, j. em 13.03.2012, p. no DJe 19.03.2012. 7 MENDONCA, Daniel. Las claves del derecho. Barcelona: Gedisa, 2000, p. 191. 8 TARUFFO, M. Op. cit., p. 189l 9 MENDONCA, Daniel. Interpretación y aplicácion del derecho. Alméria: Servicio de publicaciones de la Universidad de Almería, 1997, pp. 77-78. 10 Digno de nota que, segundo Luis Alberto Reichelt (A prova no Direito Processual Civil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, pp.49-52), pela doutrina mais moderna, não são os fatos propriamente ditos que são objeto de prova, mas as alegações sobre a prova. Além do próprio autor, são signatários dessa corrente Cândido Rangel Dinamarco, Luiz Guilherme Marinoni, Sérgio Cruz Arenhart, Carlos Alberto Alvaro de Oliveira, Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda, Santiago Sentís Melendo, Friedrich Stein, Francesco Carnelutti, Michele Taruffo e Giovani Verdi. 11 Não se deve esquecer que, tanto pelo CPC de 1973, quanto pelo CPC de 2015, é possível que o magistrado decida uma causa a partir de um fundamento, não trazido em qualquer alegação das partes. Isso, porém, não é um consenso universal, pois existem sistemas em que o fundamento ou razão de decidir deve ter sido trazido pelas partes, não podendo o juiz inovar na fundamentação.

Na sistemática do novo Código Civil, os enunciados sobre fatos, na dicção do artigo 489, IV, são argumentos em torno ou sobre fatos, quando deduzidos pelas partes, e são fundamentos de fato da decisão, segundo dicção do inciso segundo do parágrafo primeiro do mesmo dispositivo, quando integrarem a construção do enunciado de fato levado a efeito pelo juízo. O novo CPC indica que o juiz deve enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador. Sob o ponto de vista dos enunciados fáticos, esse dever afasta posições absolutamente atentatórias ao devido processo legal e seus corolários, contraditório e ampla defesa, como a de magistrado que indefere, sem fundamentar, todos as perguntas formuladas por advogados em colheita de depoimento pessoal ou prova testemunhal ou, o que seria muito pior, kafkaniamente pior, mas nem por isso inverossímil, que é a prática por um magistrado de dispensar oitiva de partes e de testemunhas, formulando apenas uma pergunta, a parir da qual se declara convencido sobre os fatos ocorridos. Lembre-se de que os enunciados sobre os fatos, em geral, possuem versões diversas pelas partes, e essa é a razão para que, apenas se um enunciado sobre um fato for apresentado por uma parte e não contraditado pela outra, aquele fato se tornar incontroverso. Assim, na formulação de seu convencimento, o magistrado deve estar aberto epistemicamente a encontrar a melhor versão da realidade fática, e, na decisão judicial, deve expressar quais os elementos racionais de juízo levaram a considerar provado determinado fato. Nem se alegue que o artigo 489, CPC, impede a duração razoável do processo, pois criaria obrigação desmedida para o magistrado, ao determinar analisar todos os enunciados sobre fatos formulados por uma parte. A própria redação do inciso quarto sugere que somente se devem analisar os argumentos em torno a fatos aptos a afastar à reconstrução feita pelo magistrado. Limites normativo e epistêmico operam no cumprimento desse dever.

Epistemicamente, tem-se que a razoabilidade passa a operar como um critério de controle da decisão judicial. Argumentos complexos exigem fundamentos de fato melhor explicitados na decisão judicial, como no caso de uma narração extensa e complicada, que demonstraria uma relação causal de fatos12. Argumentos outros, que, em verdade, trazem enunciados sobre fatos simples, desafiam menor dever de motivação pelo magistrado. A motivação passa a ser uma questão de grau, o que não significa desmerecer o dever, mas apenas indicar que se devem buscar quais fatos são jurídica ou logicamente relevantes para o caso13. Ademais, o novo CPC, como o anterior, já traz regra para o magistrado revelar os fatos controversos, a partir da filtragem de sua relevância jurídica e lógica. Trata-se do saneamento, claramente considerado decisão pelo novo CPC:

Art. 357. Não ocorrendo nenhuma das hipóteses deste Capítulo, deverá o juiz, em decisão de saneamento e de organização do processo: (omisso) II – delimitar as questões de fato sobre as quais recairá a atividade probatória, especificando os meios de prova admitidos;

Paulo Henrique Mortiz Martins da Silva demonstra, inclusive, como o bom uso do saneamento do processo pode ser expressão do dever de cooperação estabelecido no artigo 6º, do novo CPC14. Em verdade, o que esses dispositivos todos reforçam é o dever de o magistrado bem identificar a demanda e quais os fatos são controversos.

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Em contexto semelhante, ver TARUFFO, M. Op. cit., 2010, p. 56. Ibidem, p. 55. 14 SILVA, Paulo Henrique Mortiz Martins. Novo CPC busca prestação jurisdicional mais rápida, eficiente e completa. In: “CONJUR, 29 de março de 2015. 13

3. As

normas

jurídicas

aplicáveis

ao

caso

e

o

dever

de

sua

revelação/motivação pelo julgador

Como está revelada a relação indissociável entre questões de fato e questões de direito, há que se analisar o dever de motivação do magistrado em relação aos argumentos de direito. Na teoria geral do Direito, cujos aportes teóricos cada vez mais se aproximam da dogmática processual, de que são exemplos contundentes as obras de Michele Taruffo, Luiz Guilherme Marinoni, Jordi Ferrar Beltrán e Fredie Didier Jr., tem-se a definição da norma como uma ordem estatal ou, mais modernamente, como razões ou planos para os indivíduos agirem. Essa visão sobre a norma jurídica, que expressa da melhor forma possível a prática judicial, realça que existe um processo intelectivo, desde a edição da norma em abstrato até se chegar à norma concreta, individualizada, segundo o qual o cidadão identifica qual a conduta que se espera dele. Quando o cidadão falha nessa atividade intelectiva ou simplesmente assume o risco de tomar conduta diversa à norma jurídica, é necessário aplicar a ele uma sanção, que nada mais é do que a aplicação de uma consequência jurídica por um fato ocorrido na realidade. Jordi Ferrer Beltran afirma que as sanções somente são aplicadas pela existência de órgãos específicos – juízes e tribunais -, cuja função principal é determinar à ocorrência desses fatos, para os quais o Direito vincula consequências jurídicas e a imposição delas aos sujeitos previstos pelo próprio sistema jurídico15. Sendo bem didático, tome-se como exemplo a postura de duas pessoas, uma que deixa de pagar tributo devido e outra que mata. Para que o Direito funcione informativamente e, realmente, impeça o cometimento de homicídios e obrigue o pagamento de tributos, é necessário que as condutas contrárias a

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BELTRAN, Jordi Ferrer. La valoración racional de la prueba. Madrid: Marcial Pons, 2007, pp. 29-30.

essas obrigações, fatos que se operam na realidade, sejam de alguma forma detectadas. O processo judicial, em geral, e a atividade probatória, em particular, são as formas erigidas pelo Direito como aptas a detectar esses fatos. Para o jurista catalão, “a prova como atividade teria a função de comprovar a produção dos fatos condicionantes, aos quais o direito vincula consequências jurídicas, ou, o que é o mesmo, determinar o valor da verdade das proposições que descrevem a ocorrência de fatos condicionantes”16, A partir dos dispositivos normativos, deve o cidadão identificar qual conduta está permitida, proibida ou obrigada. O ideal, do ponto de vista da segurança jurídica, é que cada dispositivo normativo trouxesse claramente uma conduta permitida, proibida ou obrigada, reduzindo o problema do cidadão a simplesmente conhecer esse dispositivo. De qualquer forma, o sistema jurídico operaria – e todos, de fato, operam – com base na ficção de que todos conhecem os vários dispositivos normativos. O problema, porém, é de perspectiva maior: como o legislador não consegue, por incompetência ou impossibilidade lógica, frente a complexidade, atender aquele ideal, existem dispositivos normativos sem norma, dispositivos normativos que trazem mais de uma norma e normas que são expressas pela conjugação de vários dispositivos normativos17. Revela notar, porém, que a indeterminação, a vagueza e a ambiguidade dos textos normativos, de há muito, deveriam afastar-se as atividades simplistas de se recorrer a dispositivos normativos, em parte ou integralmente, para decidir controvérsias judiciais. Mesmo para dispositivos que se valem de conceitos matemáticos, erigidos como exemplos de objetividade na formulação normativa, existem problemas em sua interpretação.

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Ibidem, p. 30. Amplamente difundida a ideia no Brasil, sobretudo a partir da obra de Humberto Ávila a seguir referenciada, para a qual se remete o leitor: ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios. 9ª ed., São Paulo: Malheiros, 2009. 17

A partir do dispositivo constitucional de que poderia ser presidente da República cidadão brasileiro nato com 35 anos, sem verificar a existência de normas infraconstitucionais e jurisprudência sobre o tema, surgiriam várias possibilidades interpretativas: 1. a idade se verificaria na data da posse; 2. ou deveria ser verificada na data da diplomação; 3. ou, em verdade, já na data da candidatura. Como o Direito deve ser guia para ação humana, a indeterminação, a vagueza e a ambiguidade dos textos normativos devem ser corrigidas, ao longo do tempo, pela publicação de novos textos normativos ou mesmo por correção jurisprudencial, que se dá, pelas várias técnicas de decisão (v.e.: declaração de inconstitucionalidade parcial sem redução de texto, interpretação conforme etc). Disso adviria que a certeza do Direito seria um processo dinâmico e que se realiza ao longo do tempo, mas que tenderia a se concretizar. Sendo assim, pelo artigo 489, § 1º, I, do novo CPC, o julgador não poderia indicar, reproduzir ou parafrasear dispositivos, para decidir uma causa, justamente porque o Direito se opera além dos dispositivos normativos, pelas normas jurídicas propriamente ditas. Existindo mais de um sentido possível para um texto normativo, o Direito somente conserva o caráter informativo, se a interpretação e aplicação levada a cabo pelo magistrado for um daqueles sentidos possíveis e, mais do que isso, ater-se à jurisprudência dominante. É que, pensando-se na dinâmica jurídica, pode-se conceber que o sistema jurídico é um conjunto de normas associado a um parâmetro temporal, embora ao longo do tempo pode se falar na persistência de uma ordem jurídica18. Por isso, de um dispositivo pode-se chegar a uma norma em um tempo e, se estiver dentro da moldura normativa, em momento posterior, pode-se construí nova norma. Pense-se na vedação ao não-confisco como limite constitucional ao poder de tributar. Em um primeiro momento, entendeu-se que somente se aplicaria ao principal de uma obrigação tributária. Em um segundo momento, passou-se a 18

BELTRÁN, Jordi Ferrer; RODRÍGUZ, Jorge Luis. Jerarquías normativas y dinámica de los sistemas normativos. Barcelona: Marcial Pons, 2011, p. 88.

aplicar o artigo 150, IV, CR/88, para as multas moratórias e, finalmente, o STF passa, na atual quadra, a aplicar o limite também às multas punitivas, lidandose, com um conteúdo variável, já tendo dito que é inconstitucional multa punitiva de 350%, 225% e não para 150%, por exemplo. Percebe-se, assim, claramente que o universo de casos regulados pela norma do não-confisco em matéria tributária foi se alargando ao longo do tempo. O fato de isso ser permitido não afasta a necessidade de se conceber algum controle, sobretudo quando essa operação se dá em instâncias ordinárias. De certa forma, o que o novo CPC estabelece é afastar o decisionismo, uma postura judicial de, com espeque em livre convencimento, criar-se o direito por vontade pessoal do magistrado e após os fatos que deveria regular19, em um atendado conjunto à segurança jurídica e à legalidade.= Além da agressão a essas duas normas que garantem o jurisdicionado, seria contraintuitivo considerar natural o decisionismo, pois, normalmente, a maioria das pessoas, na regularidade dos casos, age como a própria norma jurídica em abstrato já estabelecia. Não se tolera mais atitude voluntarista do magistrado, para o qual norma só surgiria após uma decisão judicial, embora, com Kelsen, reconheça-se que a indeterminação da linguagem conduz a uma situação de possível incerteza apriorística das normas em abstrato, de modo que direito válido é uma opção judicial (=ato de vontade) dentro de opções legítimas que o texto normativo permitiria. Sem desconhecer que existem casos em que o juiz realmente criaria uma norma jurídica – “quando o juiz dá uma interpretação à lei conforme à Constituição ou a reputa constitucional”20, a preocupação maior nesse estudo é saber como evitar que o juiz, a pretexto de estar simplesmente aplicando a lei, estar criando nova norma jurídica, pois não se estriba em uma fonte social do

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Para uma crítica contundente dessa postura, ver STRECK, Lênio. O que é isto? Decido conforme minha consciência. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. 20 DIDIER JR. Fredie. Sobre a fundamentação da decisão judicial. Disponível em http://www.frediedidier.com.br/wp-content/uploads/2012/02/sobre-a-fundamentacao-dadecisao-judicial.pdf, acesso em 19.04.2015

direito, ou mal aplica o direito, errando sobre a base fática que atrairia a incidência de uma norma jurídica. Isso ocorre, sobremaneira, no recurso a princípios como supertrunfos ou coringas. Marcelo Neves, por exemplo, cita instigante caso de “rinha de galos” submetido ao Supremo Tribunal Federal, no qual como razão de decidir invocouse a dignidade da pessoa humana. Sob a ótica do novo CPC, os Ministros do STF deveriam ter exercido especial ônus argumentativo, para provar que dentro do universo de casos regulado pela dignidade da pessoa humana estaria a briga entre animais. Pode parecer que, em muitos casos, princípios são utilizados como argumentos de mero reforço retórico e isso influenciaria pouco na formação do Direito, mas a verdade é que, a todo momento, eles informam a aplicação das regras jurídicas, limitando ou ampliando o universo de casos regulados por essas últimas. Por tudo isso, justifica-se um mecanismo de controle erigido é o dever de se explicar a relação entre a(s) norma(s) existente(s) e o(s) caso(s) sob apreciação. Mais uma vez, a teoria analítica tem a colaborar. O objetivo de uma norma é solucionar casos, ou seja, “circunstâncias ou situações nas quais interessa saber se uma ação está permitida, ordenada ou proibida, por um determinado sistema normativo”21. Trata-se de saber se um fato ocorrido seria aquele regulado por uma norma. Para chegar a essa conclusão, necessário que se reconheçam quais as propriedades relevantes para incidência da norma. Por hipótese ainda, pensa na regra-matriz do ISS. Como se discutiu à exaustão, se ele era devido no local do estabelecimento ou da prestação, a definição da norma de incidência passava por isso. Conhecido o fato de que certa pessoa jurídica prestou um serviço no Município X e o local do estabelecimento é no Município Y, a cobrança do ISS por X ou Y não é uma

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ALCHÓURRON, Carlos E.; BULLYGIN, Eugenio. Introducción a la metodologia de las ciências jurídicas y sociales. Buenos Aires: Editorial Astrea, 1987, p. 52.

questão de fato, que aparentemente é simples de se concluir, mas uma questão jurídica. Com Frederick Schauer, tem-se que as normas podem tratar de menos casos do que deveriam tratar ou de mais casos do que se esperaria o legislador que tratassem, o que sugere serem sub ou sobreinclusivas. Na verdade, as normas operam por generalizações e porque essas “são necessariamente seletivas, as generalizações probabilísticas incluirão algumas propriedades que em casos particulares serão irrelevantes, e todas as generalizações, probabilísticas ou não, vão excluir algumas propriedades que em alguns casos particulares serão relevantes”22. Todos se lembram dos exemplos de Herberth Hart, a demonstrar esse problema. A norma proibitiva de que um carro entre no parque pode suscitar questões como saber, se dentro do universo de casos regulados, poderia não estar o da entrada de uma ambulância em atendimento de emergência, por exemplo. Esse insight permite que se visualize algo potencialmente pernicioso, que é a ampliação e redução de abrangência das normas por atos judiciais, desbordando-se da limitação que deveriam guardar com as normas, feito de forma decisionística pelo julgador, quando não invocando critérios de justiça e de moral particulares, não reconduzidos ao Direito. A definição de que qual a norma, quais as propriedades relevantes se verificam naquele caso aptas a atrair a norma, mostram-se ainda mais interessantes, quando se pensa em normas-princípio. Ora, se elas possuem uma dose indeterminada de conteúdo, afastar uma norma-regra que regularia de maneira mais clara um caso, passa a exigir esforço argumentativo do magistrado. Tanto quando o magistrado invoca um princípio aleatoriamente, quanto quando aplica mal uma regra jurídica, alargando ou diminuído seu campo de incidência, estão agindo de forma voluntarista, além dos limites jurídicos.

22

SCHAUER, Frederick. Playing by the Rules: A Philosopical Examination of Rule-Based Decision-Making in Law and in Life. New York: Oxford University Press, 2002, p. 34.

O dever de motivação da decisão judicial, como uma obrigação decorrente da própria ideia de Estado de Direito, age para que o direito não seja aleatório, posterior aos casos que regula e um produto arbitrário, deve-se verificar se a decisão judicial está conforme a ordem jurídica. Uma sentença judicial deve ser motivada, e motivação é “a expressão linguística das razões que justificam a decisão adotada”23. Essa é a versãopadrão do silogismo judicial que, para muitos processualistas, deveria ser afastada

da

prática

jurídica,

em

tempos

de

neoconstitucionalismo,

neoprocessualismo ou pós-positivismo. O erro nessa versão crítica do ato de decidir e o correlato do dever de motivar é desconhecer que o Estado de Direito rima bem com previsibilidade, cognoscibilidade e confiabilidade, e essas três facetas da segurança jurídica, não se conquistam com a assunção de que o juiz constrói sempre a norma24. Não é desmerecer o fato de a Constituição irradiar efeitos por toda ordem jurídica, nem na primazia dos direitos fundamentais, pois a constitucionalização do processo sugere que se chegou a essa etapa. Nesse sentido, o artigo 8º do novo Código de Processo Civil, “ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência. Antes mesmo do novo CPC, parte da doutrina já clamava por um neoprocessualismo, cujas características básicas seriam

“i) inserção do direito processual na perspectiva constitucional; ii) aplicação dos princípios constitucionais processuais independente da existência de previsão legal; iii) utilização da reserva de consistência (e

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BELTRAN JR., Jordi. Apuntes sobre el concepto de motivación de las decisiones judiciales. In: ISONOMÍA, n. 34, abril/2011, p. 94. 24 Corolário dessa posição, entre outros, é representado por Luiz Guilherme Marinoni: “se nas teorias clássicas o juiz apenas declarava a lei ou criara a norma individual a partir da norma geral, agora ele constrói a norma jurídica a partir da interpretação de acordo com a Constituição, do controle de constitucionalidade e da adoção da regra do balanceamento (ou da regra da proporcionalidade em sentido estrito) dos direitos fundamentais no caso concreto” (Curso de processo civil: teoria geral do processo. São Paulo: RT, 2006, p. 96).

não simplesmente a reserva do possível) para justificar eventual escolha do exegeta; iv) fundamentação analítica (e não meramente sintética); v) democratização do processo (preocupação com as formas de intervenção popular); vi) visão publicista do processo; vii) implementação concreta dos princípios da colaboração e da cooperação; viii) aumento dos poderes do juiz no curso do processo”25

O neoprocessualismo, no entanto, recomenda que o artigo oitavo, por lidar com material jurídico abstrato, altamente indeterminado e com forte viés axiológico, seja temperado com institutos e mecanismos que evitem decisões arbitrárias. A ferramenta lógica de controle – e, no caso brasileiro, como de outros ordenamentos, também normativa – é a motivação As razões de decidir não podem ser casuísticas e arbitrárias, pois isso geraria nova norma jurídica, obviamente inválida. Esse controle somente se efetiva a partir da análise da movimentação exarada judicialmente. O juiz deve dar boas razões, justificar como e porque assim decidiu. Mais do que isso, deve ele levar em conta os argumentos em torno das questões jurídicas postos pelas partes, pois a ideia de que o juiz conhece o Direito, nos tempos modernos, pressupõe ônus maior, exigindo-lhe que conheça qual o sentido que um dispositivo normativo traz e qual vem sendo utilizado pelos Tribunais Superiores. Não se quer dizer que o juiz deva, necessariamente, analisar todos os argumentos de direito, nem que isso exija dele uma análise pormenorizada sempre.

25

FARIA, Márcio Carvalho. Neoconstitucionalismo, neoprocessualismo, pós-positivismo, formalismo-valorativo ... a supremacia constitucional no estudo do processo. In: “Revista Ética e Filosofia Política, n. 15, volume 2, dez./2012, p. 104, disponível em https://www.academia.edu/3591871/NEOCONSTITUCIONALISMO_NEOPROCESSUALISMO_ P%C3%93S-POSITIVISMO_FORMALISMOVALORATIVO..._A_SUPREMACIA_CONSTITUCIONAL_NO_ESTUDO_DO_PROCESSO, acesso em 19.04.2015.

Como quem lida com execução fiscal, posso afiançar que, não raro, exceções de pré-executividade e embargos à execução fiscal trazem uma série de argumentos sem qualquer nexo com a demanda ou trazem argumentos, normas hipotéticas, já afastadas pelo STF e STJ, por exemplo. Para dar rendimento ao processo, e não se menoscabar a duração razoável do processo, o que se espera é que o julgador, até possa decidir com base em algum argumento de direito não esgrimado, mas ele deve levar em conta os argumentos alegados pelas outras partes. Como o Direito é uma prática argumentativa, as teorias hermenêuticas, com seus desenvolvimentos a partir de autores como Robert Alexy, Manuel Atienza e muitos juristas atuais, deverá ser aplicada como controle intersubjetivo da decisão judicial, calibrando os ônus argumentativos para o juiz superar as alegações das partes e estabelecer as razões de decidir.

4. Um juiz atento aos argumentos ... e aos limites do Direito

A teoria analítica do Direito ajuda a deixar o rei nu. Não se pode mais menosprezar a importância dos fatos, antes se devendo levá-los a sério. Existem casos difíceis no Direito, que não se referem às controvérsias jurídicas, mas aos fatos envolvidos. Por outro lado, o magistrado, em tempos de neoprocessualismo, não pode ser um sujeito processual com posição privilegiada, como se pudesse construir sua própria narrativa na reconstrução dos fatos e invocar meramente os dispositivos normativos para chancelar suas decisões. O processo ambicionado com o novo CPC quer mais: objetiva que os fatos sejam construídos em bases epistêmicas e normativas sólidas, além de as normas que os regulem sejam demonstradas pelos magistrados de forma clara, aberta e dialógica. Nesse sentido, por mais que já houvesse material constitucional para democratizar e constitucionalizar o processo, o artigo 489, CPC, inaugura, entre

outros, dois deveres substanciais para o magistrado: fundamentar bem sua decisão em torno a fatos e a direito, para isso indicando os motivos pelos quais aceitou alguns enunciados sobre fatos e também qual norma ou normas se aplicam ao caso; e, ainda, analisar todos os argumentos substanciais que possam infirmar sua decisão. Sugere-se, no atendimento desse desiderato, que o magistrado deixe claro os raciocínios que tomou para construir a narrativa da realidade pelo processo, bem como o caminho intelectivo para chegar às normas de incidência no caso.

5. Bibliografia

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