O dever ser nos limites do ser ainda não: Direito e Utopia em Ernst Bloch

July 28, 2017 | Autor: Felipe Castro | Categoria: Filosofia do Direito, Ensino Jurídico, Crise do Ensino Jurídico
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REVISTA CRÍTICA DO DIREITO Só leia se estiver seguro para abandonar o conforto de suas certezas

ISSN 2236-5141 QUALIS B1

NÚMERO 4 - VOLUME 64

Cleomar Rodrigues, dirigente da LCP, foi assassinado por pistoleiros a mando de latifundiários em 22/10/2014

1º de dezembro de 2014 a 31 de março de 2015 Só leia se estiver seguro para abandonar o conforto de suas certezas

FICHA CATALOGRÁFICA

Revista Crítica do Direito nº 1, vol. 9 São Paulo, 2011 Mensal ISSN 2236-5141 QUALIS B1 Vários editores 1. Teoria do Direito - produção científica CDD 341.1 Índice para catálogo sistemático 1. Teoria do direito 341

EDITOR RESPONSÁVEL Vinícius Magalhães Pinheiro CONSELHO EDITORIAL Alysson Leandro Barbate Mascaro Daniel Francisco Nagao Menezes Júlio da Silveira Moreira Roberta Ibañez Thiago Ferreira Lion Tiago Freitas Vinicius Magalhães Pinheiro

Sumário

EDITORIAL ....................................................................................................................................4 A FELICIDADE NORMATIZADA: PEC 19-2010 E SEU DÉFICIT DEONTOLÓGICO ..............................5 DIREITOS FUNDAMENTAIS SOCIAIS, PROIBIÇÃO DE RETROCESSO E HISTORICIDADE: UM DIÁLOGO COM A OBRA HISTORIA Y CONSTITUCIÓN, DE GUSTAVO ZAGREBELSKY ....................15 DIREITOS HUMANOS E EVOLUÇÃO DA PROTEÇÃO CONTRA DESASTRES HIDROLÓGICOS: UM ESTUDO SOB A ÓTICA DA TEORIA CRÍTICA .................................................................................24 O DEVER-SER NOS LIMITES DO SER-AINDA-NÃO: DIREITO E UTOPIA EM ERNEST BLOCH ..........32 EDUCAÇÃO JURÍDICA POPULAR: UMA PROPOSTA DE EMANCIPAÇÃO ......................................44 OS ESPAÇOS URBANOS DE CIDADANIA E DEMOCRACIA E O PLANO DIRETOR COMO INSTRUMENTO JURÍDICO DEMOCRÁTICO DE GESTÃO URBANA ................................................62 PLANO NACIONAL DE POLÍTICA CRIMINAL E PENITENCIÁRIA (PNPC-2011): UMA INICIATIVA CONTRA-HEGEMÔNICA FRENTE AO ESTADO PUNITIVO BRASILEIRO .........................................72 RISCO, EMERGÊNCIA E A CEGUEIRA DO DIREITO NO ESTADO DE EXCEÇÃO ..............................86 PEDRINHAS E A REALIDADE DO SISTEMA PENITENCIÁRIO BRASILEIRO....................................121 PINKY E O CÉREBRO: O Domínio do Mundo pelo Direito. ........................................................135 CONSIDERAÇÕES SOBRE A DETERMINAÇÃO DA FORMA JURÍDICA A PARTIR DA MERCADORIA .................................................................................................................................................148 UMA APRESENTAÇÃO DOS DILEMAS DA CONSTITUIÇÃO DE WEIMAR PELA LITERATURA DE BERTOLT BRECHT .....................................................................................................................167 O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E A DISCRIMINAÇÃO POR ORIENTAÇÃO SEXUAL: HOMOFOBIA E HOMOAFETIVIDADE NA DECISÃO DA ADPF 132/ ADI 4.277 ..................................................178

EDITORIAL A Revista Crítica do Direito publica sua 64ª atenta ao status da luta de classes no Brasil. Cleomar Rodrigues, dirigente da Liga dos Camponeses Pobres do norte de Minas e do sul da Bahia no final de outubro. Mais um entre tantos outros crimes do latifúndio brasileiro, o caso de Cleomar serve-nos de balizamento sobre trato público com a questão agrária: aliado dos grandes proprietários ligados ao agronegócio, o Estado nada mais é que um comitê gestor de interesses de grandes capitalistas. As investigações criminais andam a passos lentos, a reforma agrária não sai do papel e a violência contra os trabalhadores é uma constante. Na atual edição, há novidades. A partir desta edição, a Revista Crítica do Direito terá periodicidade quadrimestral. Ainda, nossas edições contarão com versão em ".pdf", sem mais formato de site. Assim, nossas leitoras e leitores independentemente de acesso à internet poderão consultar a última edição. Boa leitura! Os Editores

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A FELICIDADE NORMATIZADA: PEC 19-2010 E SEU DÉFICIT DEONTOLÓGICO

RAONI GAMA Advogado. Especialista em Processo Civil pela Uniderp. Assuntos de interesse: Direito, Filosofia, Constitucionalismo, Análise Crítica.

VIVIANE RIEGEL Pesquisadora e Docente. Doutoranda em Sociologia pela Goldsmiths College. Assuntos de interesse: Consumo, Cultura Global, Práticas Sociais Locais, Análise Crtícia. Recebido em agosto/2014 Aceito em outubro/2014

Resumo: A partir da apresentação de Proposta de Emenda Constitucional realizada em 2010 no Senado brasileiro, que prevê o direito à busca da felicidade, desenvolvemos uma análise de perspectiva crítica, por meio de um estudo bibliográfico, que cuida (a) sintaticamente da disputa epistemológica sobre o positivismo jurídico; (b) da questão do déficit deontológico da imposição da felicidade; (c) dos fundamentos da felicidade e suas críticas pelas questões relacionadas aos desejos dos indivíduos e; (d) do processo de normatização da vida e do dever de ser feliz, pelas críticas de controle do poder. Como questão crítica, verificamos se a “PEC da Felicidade”, inserida no contexto do positivismo jurídico includente, e que associa, portanto, felicidade e moral, é uma peça que reflete uma ficção, uma tentativa de generalização, de idealização e de totalitarismo sobre a vida dos indivíduos.

Palavras-chaves: felicidade normatizada; déficit deontológico; positivismo jurídico.

“Quem lhe meteu na cabeça que você deveria ser feliz?” (Nicanor Parra)

1- Introdução No dia 07 de julho de 2010, o senador Cristovam Buarque (PDT-DF) protocolou no Plenário do Senado uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que prevê o “direito à busca da felicidade” como um direito básico de todos os cidadãos, a partir da garantia de todos os direitos sociais (BUARQUE et. al., 2010). A PEC propõe a alteração do artigo 6º da Constituição Federal de 1988 para a seguinte redação: “Art. 6º São direitos sociais, essenciais à busca da felicidade, a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos 1 desamparados, na forma desta Constituição.”

Como principal justificação para tal emenda, apresenta-se o dever do Estado em cumprir corretamente com suas obrigações para com a sociedade, uma vez que por meio desse processo é possível assegurar ao indivíduo sua busca individual pela felicidade, que ora pressupõe a observância da felicidade coletiva.

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Texto proposto pela PEC 19/10, eufemisticamente batizada “PEC da Felicidade”

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Tal proposta segue a linha da positivação do que se considera felicidade, não mais como um direito natural, mas como a razão de ser dos indivíduos de qualquer civilização, ou seja, uma razão universal. Tal linha segue a visão positivista que pauta a Declaração de Independência dos Estados Unidos, também considerada um marco para os direitos humanos. Nessa perspectiva, a PEC no. 19 de 2010 pressupõe que existem direitos sociais essenciais à busca da felicidade, mesmo que a busca da felicidade, em si, não seja assegurada, o que, automaticamente, anularia todo o objetivo desse artigo constitucional (RUBIN, 2010). A difícil tarefa de conceituar a felicidade, e as diferentes formas de defini-la, em diferentes contextos socio-históricos culturais, por distintas linhas epistemológicas, deixa no ar a necessidade de tutela constitucional da busca à felicidade, considerando-se a subjetividade da questão. Diante de tal questão, esse artigo tem o objetivo de analisar com uma perspectiva crítica a proposta de alteração constitucional defendida pelo “PEC da Felicidade”, bem como suas reais consequências no mundo pós-moderno, sem descuidar de expor sintaticamente a disputa epistemológica na qual está inserida. Para tal, verifica-se (1) a questão do déficit deontológico da imposição da felicidade, baseado nas leituras de Habermas e Kelsen; (2) os fundamentos da felicidade, pela construção do projeto Kantiano, criticados por Freud e ComteSponville pelas questões relacionadas aos desejos dos indivíduos e; (3) o processo de normatização da vida e do dever de ser feliz, pelas críticas de controle do poder desenvolvidas por Nietzche e Agamben (baseado na visão de poder de Foucault).

2 - Um embate epistemológico: positivismo jurídico excludente e positivismo jurídico includente A ideia de positivismo jurídico parte da distinção entre direito positivo e direito natural, a qual existe desde a Idade Clássica. Em Aristóteles, tem-se que o direito natural surte efeitos, da mesma forma, em todas as partes, e prescreve ações cujo valor não depende do juízo que sobre elas tenha o sujeito, mas existe independentemente do fato de parecerem boas a alguns ou más a outros; o direito positivo, por sua vez, tem eficácia no âmbito em que foi posto e estabelece determinadas ações que, uma vez previstas em lei, devem ser desempenhadas tal como nela previsto (assim, a lei diz como agir). O positivismo jurídico é uma ruptura com a consideração do direito natural enquanto direito, admitindo-se, portanto, apenas o direito positivo (BOBBIO, 2006, p. 12). Antes de adentrar criticamente sobre a “PEC da Felicidade”, é necessário fazer alusão a duas visões epistemológicas que disputam o perfil operacional do direito: positivismo jurídico excludente e o positivismo jurídico includente. Para fins deste estudo, dois critérios nortearão a dissociação contida nessa “contenda”: a relação direito e moral. Dessa maneira, identificamos em qual dessas visões epistemológicas encontra-se inserido o texto da “PEC da Felicidade”.

2.1 – Positivismo jurídico excludente, positivismo jurídico radical, ou anti-incorporacionismo O positivismo jurídico excludente, ou positivismo jurídico radical, ou antiincorporacionismo amolda-se epistemologicamente com o positivismo jurídico moderno que propõe uma rigorosa dissociação entre direito e moral e uma interpretação jurídica calcada substancialmente nas amarras sintáticas do texto normativo emanado da autoridade juridicamente competente. Nessa linha, ocorre uma separação inequívoca entre moral e o Direito, significando um encarceramento do Direito em per si, mantendo distantes os valores sociais que permeiam empiricamente a realidade social.

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O Direito só pode ser distinguido essencialmente da Moral quando [...] se concebe como uma ordem de coação, isto é, como uma ordem normativa que procura obter uma determinada conduta humana ligando à conduta oposta um ato de coerção socialmente organizado, enquanto a Moral é uma ordem social que não estatui quaisquer sanções desse tipo [...] (KELSEN, 2003, p. 71)

Assim, o direito não se fundamenta, ou depende, da moral para ser válido e/ou legítimo: a legitimidade do direito, no positivismo jurídico excludente, encontra-se unicamente na forma pela qual foi criado. Ou dito de outro modo, “Uma norma jurídica não vale porque tem um determinado conteúdo, quer dizer, porque o seu conteúdo pode ser deduzido pela vida de um raciocínio lógico do de uma norma fundamental pressuposta, mas porque é criada por uma forma determinada [...]”(KELSEN, 2003, p. 221). Já a interpretação, no positivismo jurídico excludente, não é uma abertura no Direito à moral, ela é, somente, e tão somente, uma suposição descritiva da própria norma. Assim, portanto, interpretação somente pode resultar uma enunciação propositiva, e não o próprio Direito (KELSEN, 2003, p. 221).

2.2 – Positivismo jurídico includente, positivismo jurídico moderado ou incorporacionismo Já por sua parte, o positivismo jurídico includente ou positivismo jurídico moderado ou, simplesmente, incorporacionismo traz para o seu seio a moral como fato legitimante do próprio Direito. Assim, elementos morais podem ser encontrados tanto na interpretação quanto na validade do sistema jurídico. É comum, portanto, a interseção entre Direito e moral, de modo que sempre estão presentes, no Direito, aspirações sociais que permitam correlação entre os dois campos. Nessa perspectiva o próprio entendimento da norma sofre uma modificação: não se pode afirmar, de modo geral, que o texto, a sintaxe, é a norma; direito surge a partir do caso concreto, e não do texto — conjunto de signos linguísticos sintaticamente organizados.2 Em síntese: [...] a inclusão da moral no ordenamento poderá ser considerada como estrutural e inerente à validade do próprio sistema ou simples critério de interpretação das normas [...], mediante o encontro entre o positivismo e conteúdos da moral no âmbito de validade ou da interpretação jurídica, que podem vir sob o mesmo ou diferente critério de legitimação do direito positivo, de tal modo que princípios da moral possam ser incorporados à interpretação e aplicação das normas jurídicas. (TORRES, 2011, p. 58, grifos no original do autor)

2.3 – A “PEC da felicidade” e o positivismo jurídico includente: a busca pela felicidade social pela justiça

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“As chamadas Teorias Analíticas do Direito, que envolvem a questão sintática [relação signo-signo], elegem como tema central de sua pesquisa a validade das normas jurídicas, entendida como a relação entre normas jurídicas (como, por exemplo, o modelo kelseniano), que são, ao fim e ao cabo, signos linguísticos. As chamadas Teorias Hermenêuticas do Direito, que envolvem a questão semântica [relação signo-significado], elegem como tema central de sua pesquisa o sentido das normas jurídicas, entendido como relação entre a norma e seu significado. Finalmente, as chamadas Teorias Pragmáticas do Direito, que envolvem a questão pragmática [relação signo-falante], elegem como tema central de sua pesquisa a força do direito, entendida como o poder do direito de obrigar a conduta humana e, portanto, a questão do seu fundamento de legitimidade” GALUPPO, Marcelo Campos. Igualdade e diferença: Estado Democrático de Direito a partir do pensamento de Habermas. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. p. 109. (grifos no original do autor)

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A partir da descrição das linhas epistemológicas do positivismo jurídico, é possível verificar que a “PEC da Felicidade” está inserida no contexto do positivismo jurídico includente. A análise justifica-se pela impossibilidade de se desassociar “felicidade” e moral, ou seja, pelo caráter axiológico do que seja ser feliz. A definição de ordem justa, segundo Kelsen, é paralela ao anseio humano por felicidade, justificando assim o papel da justiça na busca da felicidade social: Ordem justa significa essa ordem regular, o comportamento dos homens de modo a contentar a todos, e todos encontrarem sob ela felicidade. O anseio por justiça é o eterno anseio do homem por felicidade. Não podendo encontrá-la como indivíduo isolado, procura essa felicidade dentro da sociedade. Justiça é felicidade social, é a felicidade garantida por uma ordem social. Nesse sentido Platão identifica justiça à felicidade, quando afirma que só o justo é feliz e o injusto, infeliz (KELSEN, 2001, p. 2).

Dessa forma, a felicidade é utilizada, por diversos momentos, para se manter contato direto com a complexa relação entre o próprio Direito e a moral. Por vezes, para afastar um do outro, por vezes, para aproximar. O que, por sua ocasião, revela uma relação sintagmática entre o que a sociedade entende por (sua) felicidade e o Estado a captar e normatizar a questão.

3 – A associação entre princípios e valores; ou, o perigo de (im)por felicidade por seu déficit deontológico; ou felicidade pra que(m)? Dentro do contexto positivista jurídico includente, Habermas (2010) resume que (1) normas são deontológicas; valores são teleológicos; (2) as normas coagem/obrigam igualmente a todos; os valores não coagem/obrigam a todos; (3) normas têm pretensão de validade binária (proibido/permitido); valores tem uma pretensão de uma gradual atratividade; (4) as normas indicam o que é “bom para todos”; os valores indicam o que é “bom para nós (ou para mim)”; (5) normas não podem ser contraditórias entre si; valores podem. Assim, admitir que uma norma (“Princípio da felicidade”) seja fruto de uma manifestação jurídico axiológica, como claramente quer a PEC em questão, acabaria, ao cabo, destruindo o modal deontológico3 presente em todas as normas jurídicas. Imaginemos que a situação em que o intérprete, diante de um caso concreto, decidir que, axiologicamente, a felicidade em questão não corresponde ao que ele entende ser felicidade, ele irá afastar o princípio positivado? Ou ele irá aplicar menos ou mais a norma, até chegar ao nível de felicidade que ele entenda ser o mínimo justo? Pensamos por bem que não4. Ora, esse tipo de PEC, na realidade brasileira, panprincipiologismo 5 e solispismo 6 tão criticados por Streck:

encontra

amparo

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Modal Proibido/Permitido.

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Citando Agostinho Ramalho Marques Neto, “quem nos salva da bondade dos bons (juízes)?”

no

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O termo panprincipiologismo foi cunhado por Lenio Streck para fazer referência ao “abuso principiológico que vivenciamos em terrae brasilis” ou “um álibi para decisões que ultrapassam os próprios limites semânticos do texto constitucional.” (STRECK, Lenio, Hermenêutica Jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 8 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. 2009, p. 493 e 516). 6

“[...]quando falo aqui – e em tantos outros textos – de um sujeito solipsista, refiro-me a essa consciência encapsulada que não sai de si no momento de decidir[...] O que é isso – decido conforme minha consciência? Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.

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[...]O que ocorre é que, a partir da desculpa dos termos vagos, ambíguos ou de textura aberta, tomam-se decisões de conveniência ou com base em argumentos de política, de moral ou de economia. Acabamos por confundir a era dos princípios e a abertura semântica, que sempre existe, com autorização para uma livre atribuição de sentido, como se existisse um grau zero de sentido. Assim, enfraquece-se a autonomia do Direito e a doutrina. Um exemplo que ilustra bem esse já referido estado e natureza hermenêutica consiste numa conhecida decisão do então ministro Humberto Gomes de Barros, do STJ, na qual ele afirmou julgar de acordo com a sua consciência, sustentando que a doutrina deveria se amoldar ao pensamento dos membros do respectivo tribunal. Ora, se os juízes seguirem esse conselho – e parcela considerável parece que segue – quem segura o sistema? (STRECK, 2010, [grifo próprio])

Nessa medida, os princípios acabam sem seus conteúdos normativos. Tal “abertura” axiológica produz efeitos deletérios, servindo puramente de álibis teóricos, como na frase do ex-ministro Gomes de Barros, quando este afirmou: “não me importa o que a doutrina diz. Na autoridade de minha jurisdição, decido conforme a minha consciência” [grifo próprio] Se por um lado desejam-se associar os princípios/normas aos valores, por outro lado rechaça-se que princípios são valores. Eis que acabam por cair na mesma armadilha problemática: as duas distinções conceituais embaraçam valor e norma, valor e princípio, portanto, a norma seria um ”nada” deontológico a ser “inteirado” pelo entendimento axiológico do intérprete. É característica do positivismo jurídico pós-moderno a repressão ao sentido axiológico e esvaziamento do fundamento ontológico subjetivista7 do Direito, portanto a redução do Direito a simples fato ou fenômeno empírico (o Direito é aquilo que se vê). Ora, além da critica do déficit deontológico no conceito de princípio contido na “PEC da Felicidade”, a referência frequente aos “valores”8 demonstra bem, para agravar a situação, que, paradigmaticamente, os operadores do direito mantêm atrelados e em débito enorme com o neokantismo da escola de Baden, na qual a apreensão do mundo pelo saber humano ocorre somente por meio da existência do objeto que desencadeia a ação do pensamento e ao qual todo conhecimento deve se referir. No pensamento kantiano, a lei jurídica não é considerada como algo inato, e sim algo que surge do acordo entre indivíduos autônomos para justamente assegurar a realização da liberdade em sociedade. O homem, ao se propor cumprir a lei moral, deve ter por fim a ser alcançado o próprio cumprimento da lei, não o resultado da ação. Nesse caso, a lei deve ser o único fundamento determinante da vontade, enquanto que, se a máxima da ação estiver baseada em um objeto material, o fim estaria condicionado à máxima proposta.

4 - Fundamentos filosóficos e ontológicos da felicidade; ou, com isso, Kant foi feliz? A felicidade é fundamentalmente empírica, na medida em que depende dos desejos subjetivos determinados pelos sentimentos de prazer ou de dor. A produção do desejo é sempre contingente, pois é determinada por objetos empíricos. Nessa perspectiva, é impossível universalizar os desejos e determinar a felicidade. Isso significa afirmar que somente se o homem fosse um ser onisciente poderia especificar o que é a felicidade. Só um ser onisciente poderia conhecer o todo absoluto, na determinação da vontade, que garantisse para ao indivíduo um máximo de bem-estar. A felicidade, para o homem, não passa de um 7

Contidos, entre outros, nos autores Paul Anselek, Michel Troper e André Jean Arnald, que, em brevíssimo resumo, para eles, e principalmente Anselek, a norma contém uma significativa relativização, pois estão inseridas no pensamento humano, ou seja, são apenas “padrões” ou “parâmetros de comportamento”, variando de caso a caso e de pessoa a pessoa. (GOYARD-FABRE, Simone. Os Fundamentos da Ordem Jurídica, São Paulo: Martins Fontes, 2002). 8

Em sua justificação, contida no texto da PEC, assim escreve-se: “A busca individual pela felicidade pressupõe a observância da felicidade Coletiva”, assim como diversos outros trechos recheados de referências tácitas ao pensamento kantiano.

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ideal impossível de ser estabelecido, já que se baseia em sensações e não em um princípio universal, a priori, válido para todos (KANT, 1980).9 A felicidade, com efeito, liga-se ao bem-estar, mais precisamente ao sentimento de prazer do sujeito subjetivamente considerado. A partir da sensibilidade, o homem só toma interesse por aquilo que lhe proporciona prazer. O sentimento de prazer, que é receptivo, faz com que o homem sofra diversos estímulos. O prazer proporcionado pela sensação provoca, no homem, um interesse que o conduz a produzir, pela faculdade de desejar, o objeto aprazível na efetividade da ação. O interesse, então, é satisfeito pelo objeto do desejo. O resultado é, em primeira instância, que o sentimento de prazer seja prático, isto é, que sirva de fundamento subjetivo de determinação do arbítrio. A base dos objetos do prazer está justamente no efeito que proporcionam ao ânimo. Esse efeito é meramente subjetivo, e tem a sua validade restrita ao sujeito afetado. É, portanto, no interesse empírico que se funda a necessidade de produção do objeto que sacia o prazer. A produção do objeto aprazível do desejo dá-se por meio da faculdade de desejar. A máxima produção do objeto aprazível do desejo chama-se, segundo Kant, felicidade. Desde a Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Kant afirma que a constante busca pela felicidade se dá a partir da eterna insatisfação do homem enquanto ser empírico. Portanto, essa busca é impulsionada principalmente pelas necessidades e inclinações sensíveis. Logo, a felicidade pode ser concebida e manifestar-se de diversos modos. Visto que os desejos e as inclinações humanas, nada mais são do que princípios empíricos e subjetivos, a vontade humana não pode ser reduzida a um princípio comum e válido para todos. Nessa perspectiva cada homem, empiricamente considerado, possui subjetivamente a necessidade de satisfazer as suas próprias aspirações. Então, é natural que cada ser humano, enquanto sujeito agente, busque para o seu agir as mais variadas finalidades. A satisfação, baseada nas necessidades empíricas ou em sentimentos atribuídos ao sensível, não é outra coisa senão a felicidade. Na vida ou, mais precisamente, na determinação das ações, o homem pode ser influenciado tanto pela racionalidade quanto pela sua natureza sensível. Esse aspecto dual deve ser considerado no momento em que se fala da determinação da vontade. Com efeito, é justamente nessa dualidade que se apresenta o paradoxo relativo à felicidade e à moralidade. Kant reconhece a necessidade de a razão humana teórica valer-se da experiência, a fim de não se perder em abstrações; em contrapartida, a razão prática, isto é, a Ética, carece dispensar a experiência. No que se refere à doutrina da moralidade, Kant pressupõe que o homem tenha, forçosamente, de abstrair, enquanto motivo, de todo o sensível ou empírico, a fim de valer-se tão-somente da pura razão; caso contrário, tende a perder-se no labirinto dos desejos e dos sentimentos. Ocorre que, para Kant, toda a ação que retira sua motivação da experiência sensível é estranha à moral. O agente da ação deve intencionar o seu agir visando unicamente ao cumprimento do dever enunciado pela lei moral. A busca da felicidade, enquanto fim natural, consiste em uma busca inevitável, mas que pode ser prejudicial. Kant tem plena consciência de que o homem é um produto da natureza, diferenciado somente a partir de suas características particulares. Portanto, por ser um produto da natureza, todo o ser humano, de certa forma, também está submetido à causalidade natural. Ao homem tentar promover a felicidade alheia assim como a sua é um conselho válido para toda a humanidade, mas não é uma obrigação estrita, ou seja, uma lei válida universalmente. Por conseguinte, o mandamento da promoção da felicidade é uma lei prática não universal, pessoal e subjetiva. Nesse sentido, cada um deve fazer o máximo, respeitando os limites da moralidade, para realizar-se plenamente e, se possível, prestar auxílio aos outros. Com efeito, em certo sentido, é uma obrigação, para o homem, preservar a própria felicidade, desde que, para isso, não venha a prejudicar outrem.

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Kant afirma, na Crítica da razão pura, que “a felicidade consiste na satisfação de todas as nossas inclinações”, portanto, algo puramente pessoal e incomunicável. Com efeito, ela pode ser concebida e manifesta de diversos modos, e a vontade do homem, em sua relação, não é possível de ser reduzida a um princípio comum válido para todos. Princípios empíricos são subjetivos e contingentes, logo, a posteriori, e relacionam-se com as mais variadas finalidades; e a satisfação baseada em princípios empíricos não é outra coisa senão a felicidade.

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A felicidade é um fim que todo o ser humano almeja. Segundo o dizer de Kant, existe “uma inclinação universal para a felicidade”. Todavia, ela jamais pode ser considerada, enquanto fim, como um dever, sem que se incorra em contradição. A felicidade baseia-se no amor de si. Por conseguinte, é também contraditório dizer que o homem está submetido à obrigação de promover a sua própria felicidade com todas as suas forças. Em primeiro lugar, a obrigação é promover a moralidade, e “só em seguida me é permitido olhar à volta em busca da felicidade” (KANT, 1995, p. 12-14). O ideal, nessa perspectiva, pois, é ter plena consciência da retidão moral e sentir-se feliz com isso. Contudo, é claro que a busca da felicidade pessoal é considerada não como um fim em si mesmo. Se a felicidade fosse realmente um fim, o dever, mesmo que indireto, de providenciá-la afetaria a habilidade da vontade para se atingir qualquer outra finalidade. Sendo assim, o princípio da felicidade jamais poderia tornar-se uma lei válida para todos, posto que seu fundamento é simplesmente a matéria da faculdade de desejar, baseada unicamente nos sentimentos subjetivos de prazer e desprazer de cada indivíduo. Confirmando a impossibilidade de universalizar o conceito de felicidade, ou mesmo de afirmar sua existência, analisamos aqui a evolução histórica do conceito a partir das obras de Freud e de Comte-Sponville. Em O mal-estar na civilização, Freud afirma que o propósito, a intenção, aquilo que os homens buscam e pedem da vida é a felicidade. Seus esforços caminham na direção de um viver feliz, objetivando assim permanecerem. Este é, na leitura freudiana, o objetivo de toda atividade humana: a busca pela felicidade. Freud entende que essa empresa, a busca pela felicidade, apresenta dois aspectos, duas metas ao redor das quais toda a atividade humana girará: uma meta negativa e uma meta positiva. A meta negativa diz respeito à ausência de sofrimento e desprazer. A meta positiva, por sua vez, refere-se à experiência de intensos sentimentos de prazer. Para Freud, a felicidade propriamente dita só poderia estar ligada à meta positiva, ou seja, à experimentação dos tais intensos sentimentos de prazer. É a partir desse raciocínio que Freud propõe que “o que decide o propósito da vida é simplesmente o programa do princípio do prazer” (FREUD, 1996, p. 84). E, já que em seu entendimento tal programa jamais será executado, pois se encontra em desacordo com a humanidade, o alcance do propósito da vida e, consequentemente, a felicidade não foram incluídos no plano da “Criação”. O homem, para Freud, portanto, não está destinado a ser feliz. Diante da ideia moderna de trabalhar em prol do bem comum. Porém, frisemos o quão paradoxal é tal assertiva. Afinal, lutar pelo bem comum diante das forças da natureza é buscar segurança. O paradoxo se encontra no fato de que, ao longo do texto de O mal-estar na civilização, Freud propõe que o homem é infeliz justamente pelo fato de ter de abrir mão de seus desejos e interesses tendo em vista o objetivo de viver em comunidade e de se manter seguro. A criação de normas de conduta e, consequentemente, de um senso de justiça não é algo natural, mas uma convenção necessária. É a substituição do poder do indivíduo pelo poder da comunidade que marca o passo decisivo da civilização. Já o filósofo André Comte-Sponville propõe que, em uma discussão acerca do tema da felicidade, um primeiro ponto a se investigar é a questão do desejo, pois, “ser feliz é — pelo menos numa primeira aproximação — ter o que desejamos” (COMTE-SPONVILLE, 2001, p. 25). Nesse ponto, o autor critica a noção platônica de desejo, entendido como falta, e afirma que, se levarmos em consideração aquilo que é proposto em Platão, “o que não temos, o que não somos, o que nos falta, eis os objetos do desejo e do amor” (COMTE-SPONVILLE, 2001, p. 26), a felicidade se torna algo impossível. Entende-se que a felicidade é uma produção do pensamento. Por isso, Comte-Sponville dirá que a infelicidade é sempre um fato. Mas, a felicidade não. Trata-se o desejo e o pensamento para que esta possa ser inventada. A felicidade existe em ato, ou, como argumenta o autor, “no limite: a felicidade não existe. É necessário, portanto inventá-la” (COMTE-SPONVILLE, 2006, p. 10). Sendo assim, pode-se diferenciar que a noção de felicidade para Freud se realiza em ato e tem algo de aceitação e afirmação da vida, e que para Comte-Sponville ela está na ordem de um ideal inatingível, já que somos constituídos pela falta eterna do objeto que nos daria a satisfação plena. Analisando essas duas noções, compreende-se porque não há garantia alguma de que determinado caminho possibilita um maior contentamento, e, portanto,

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que no campo da felicidade as incertezas reinam. Nessa perspectiva, haveria a possibilidade de imaginar a via da normatização, a definição de um caminho obrigatório que levaria à felicidade?

5- Felicidade como normatização da vida, ou, ser feliz por obrigação A felicidade como um processo de normatização da vida e como um projeto civilizatório pode ser compreendida pela luz da concepção democrática nietzscheana, assim como pela análise do poder desenvolvida por Agambem (baseado em Foucault). Para Nietzsche (em Genealogia da Moral) a vida humana era percebida como um todo integrado, tanto biológica quanto culturalmente, uma vida qualificada como continuação e decorrência da animal/corporal, e vice-versa. Desta apreensão da vida humana como inseparável da natural, decorre sua definição de vida como vontade de potência. Nietzsche encontra nos valores modernos de liberdade e igualdade, que sustentam a vida moderna, a própria causa de sua falência. Os ideais libertários e igualitários são ficções criadas pela moral que não levam em consideração que o processo de socialização é um meio para o desenvolvimento da singularidade, que resulta na generalização de um tipo humano extremamente egoísta e ressentido. No contexto niilista que busca salvação por meio da democracia, a decorrência lógica, portanto, é a normatização da vida, em um sentido mesmo de normalização: “onde a lei já não é tradição, como ocorre conosco, só pode ser ordenada, imposta por coerção, de modo que temos que nos conformar com a lei arbitrária” (NIETZSCHE, 2001). Para o filósofo, deve haver uma distinção entre cultura e política, sendo a cultura um mero meio para o desenvolvimento de uma cultura afirmativa. Já a democracia configura-se nesse contexto como um sistema totalizante, pois pretende ser tanto política quanto cultural. Já para Agamben, a vida encontra-se exposta sem qualquer proteção à disposição de decisões políticas, decorrendo desse fato uma animalização do homem, que cada vez mais abre mão da vida qualificada em nome da proteção da vida biológica. Segundo o filósofo, a vida despida de qualificação é o valor básico da política moderna, sendo que constitui mesmo o núcleo originário do poder soberano estatal, e é a ela que são dirigidas as técnicas políticas, “com as quais o Estado assume e integra em sua esfera o cuidado da vida natural dos indivíduos” (AGAMBEN, 2002). O Estado Moderno legitima-se, portanto, por sua capacidade de proteção da vida, ou seja, de salvaguardar o indivíduo de um estado de guerra de todos contra todos, onde a vida encontra-se em risco constante. Segundo Agamben, tanto os estados totalitários quanto os que se apresentam como democráticos legitimam-se a partir deste mesmo argumento. Deste modo, a democracia está pautada no mesmo valor que o totalitarismo, a vida natural, despida de qualificação. Analisando o sistema axiológico contemporâneo, baseado nas perspectivas de Nietzsche e de Agambem, verifica-se que ocorre um esvaziamento do sentido da vida que leva ao niilismo e ao predomínio de uma vida não-qualificada, hedonista e imediatista, onde o espaço político perde o caráter de arena de luta e debate para tornar-se apenas um campo de controle (na concepção foucaultiana de poder disciplinar sobre o corpo). Neste contexto, não há espaço para diferença ou alteridade, pois o outro, apenas um conceito formal que pode ser excluído a qualquer tempo, somente representa que uma ameaça de insegurança e instabilidade. É a partir deste conformismo com a necessidade psicológica humana de segurança, que ocorre o desenvolvimento de uma vontade de verdade, que o Estado moderno legitima-se e amplia seus poderes de modo a normatizar normalizando, garantindo uma previsibilidade das condutas daqueles que constituem seu corpo político. A redução do Estado conjuntamente com a ascensão do neoliberalismo nas últimas décadas não levou ao desaparecimento da racionalidade da biopolítica. Pelo contrário, o neoliberalismo pode ser visto como a sua forma hegemônica, uma vez que determina em sua base o direito ao próprio corpo, à saúde, à felicidade, à satisfação das necessidades. Ao mesmo tempo, tem expandido o domínio da economia e desta forma alargada e reforçada a racionalidade do biopoder. Foucault argumenta em Microfísica do Poder que uma vez que a lei

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se faz presente nesse sistema, o sujeito de direito torna-se a vida, e politicamente essa vida foi substituída pelo homem, que por sua vez fica subjugado à lei. Assim, a lei escraviza o direito à vida, ao corpo, à saúde e à felicidade, como resultado desta lógica de supressão de subjugação do ser. Dessa forma, quando analisamos a obrigação da busca da felicidade como objetivo único dos atos de qualquer indivíduo no contexto contemporâneo, verifica-se a subjugação do ser à normalização da vida. Não somente no caso da PEC proposta no Senado brasileiro, mas tal valor é naturalizado igualmente por constituições de outros países democráticos, assim como altamente reconhecida por órgãos internacionais, como a ONU, que a partir de 2013 estipulou o dia internacional da felicidade (http://www.un.org/apps/news/story.asp?NewsID=47387&fb_action_ids=10151921132646150&f b_action_types=og.likes&fb_ref=.Uyum_a0Zkeo.like&fb_source=aggregation&fb_aggregation_i d=288381481237582#.U31VU7O5dD9). Ora, caberia, portanto, ao nosso texto constitucional tornar a busca da felicidade uma obrigação social ou uma consequência da concretização de direitos sociais? A constitucionalização do direito à busca da felicidade, sem a devida garantia efetiva de preceitos essenciais, parece dispensável, e até pouco recomendável, podendo resultar exatamente no seu oposto, como argumenta Horbach (2013), em verdadeira depressão coletiva constitucionalizada. Nessa perspectiva, inserir a discussão da felicidade no mundo do Direito, significa vincular sua natureza às categorias, discursos e métodos próprios de argumentação do campo. O domínio de tal arsenal exige conhecimento técnico e treinamento específico que não está a disposição de todos e todas (BARROSO, 2014). Esse processo possui principalmente duas consequências: (a) elitização e (b) exclusão do debate, pois todos aqueles que não dominam a técnica e a linguagem não têm acesso à discussão. Assim, poderia vir a (re)forçar a apatia social que ficaria, portanto, à espera de um juiz que providenciaria a felicidade a todos. Assim, fica claro, a nosso entender, que seu déficit deontológico resulta exatamente da falta de compreensão do contexto cultural dos indivíduos e das vontades que eles possuem a partir de seus desejos próprios. Uma vez que a felicidade é uma incerteza, seria possível pensar em impor sua realização via normatização, para que se mantenha controle sobre os atos e as vidas dos cidadãos? Ponderamos por melhor que não o seja. A “PEC da Felicidade”, inserida no contexto do positivismo jurídico includente, e que associa, portanto, felicidade e moral, é uma peça que reflete uma ficção, uma tentativa de generalização, de idealização e de totalitarismo sobre a vida dos indivíduos. Além disso, é de se levantar uma dúvida sobre a capacidade institucional, que envolve a determinação de qual poder está mais habilitado a produzir a melhor decisão sobre uma determinada matéria. É de se imaginar que os riscos de efeitos sistêmicos imprevisíveis e indesejáveis podem recomendar uma posição de cautela por parte do Estado. Ou será que no futuro, com a aprovação dessa PEC, teremos o Ministério da Felicidade? Ou, ainda, o juizado das pequenas (in)felicidades? Nesse caminho, o legislador que busca normatizar a felicidade através de uma PEC, na verdade deveria ouvir as palavras ecoadas por Fernando Pessoa em seu Livro do desassossego: “A felicidade está fora da felicidade”.

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BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 2006. BUARQUE, Cristovam et. al. PEC - Proposta de Emenda à Constituição, Nº 19 de 2010. Senado do governo brasileiro. 2010. Disponível em: http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=97622 COMTE-SPONVILLE, André. A Felicidade, Desesperadamente. São Paulo: Martins Fontes, 2001. _______________________. Tratado do Desespero e da Beatitude. São Paulo: Martins Fontes, 2006. FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2006. FREUD, Sigmund. O Mal-Estar na Civilização. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. 21. Rio de Janeiro: Imago, 1996. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. 2. ed. v. 1. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2010. HORBACH, Beatriz Bastide. Constitucionalizar a Felicidade é Cura ou Placebo? ConJur Observatório Constitucional. 03 de agosto de 2013. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2013-ago-03/observatorio-constitucional-constitucionalizar-felicidadecura-ou-placebo KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Tradução de Valério Rohden e Udo Baldur Moosburger. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1980. _____________. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Trad. Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 1995. KELSEN, Hans. O que é Justiça? A justiça, o direito e a política no espelho da ciência. Tradução Luís Carlos Borges. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001. ____________. Teoria Pura do Direito. Tradução de João Baptista Machado. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral. Trad. Paulo César Souza, São Paulo: Brasiliense, 1987. ___________________A Gaia Ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. RUBIN, Beatriz. O Direito à Busca da Felicidade. Revista Brasileira de Direito Constitucional – RBDC n. 16 – jul./dez. 2010. Disponível em: http://www.esdc.com.br/RBDC/RBDC-16/RBDC16-035-Artigo_Beatriz_Rubin_(O_Direito_a_Busca_da_Felicidade).pdf STRECK, Lenio. O que é Isso – decido conforme minha consciência? Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. TORRES, Heleno Taveira. Direito Constitucional Tributário e Segurança Jurídica: metódica da segurança jurídica do sistema constitucional tributário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.

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DIREITOS FUNDAMENTAIS SOCIAIS, PROIBIÇÃO DE RETROCESSO E HISTORICIDADE: UM DIÁLOGO COM A OBRA HISTORIA Y CONSTITUCIÓN, DE GUSTAVO ZAGREBELSKY FUNDAMENTAL SOCIAL RIGHTS, PROHIBITION OF REGRESSION AND HISTORICITY: A DIALOGUE WITH THE WORK HISTORIA Y CONSTITUCIÓN, BY GUSTAVO ZAGREBELSKY LUIS OTÁVIO VINCENZI DE AGOSTINHO Assessor no Ministério Público do Estado do Paraná- MP/PR. Mestre em Ciência Jurídica pela Universidade Estadual do Norte do Paraná - UENP, campus Jacarezinho-PR. Graduado em Direito pela UENP. THADEU AUGIMERI DE GOES LIMA Promotor de Justiça de entrância final do Ministério Público do Estado do Paraná, titular na Comarca da Região Metropolitana de Londrina. Diretor e professor do curso de pós-graduação, nível de especialização, em "Ministério Público e Estado Democrático de Direito", da Fundação Escola do Ministério Público do Paraná (FEMPAR), unidade de Londrina. Professor do curso de pós-graduação, nível de especialização, em "Direito Negocial: Direito Penal Econômico", da Universidade Norte do Paraná (UNOPAR), unidade de Arapongas. Mestre em Ciência Jurídica pela Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP) (2010/2012). Especialista em Direito e Processo Penal pela Universidade Estadual de Londrina (UEL) (2006/2007). Graduado em Direito pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP) (1997/2001). Membro-fundador, vice-presidente e pesquisador do Instituto Ratio Juris - Pesquisa, Publicações e Ensino Interdisciplinares em Direito e Ciências Afins. Colunista do website Jurisconsultos (www.jurisconsultos.org), na seção "Transformações no Direito Processual". Recebido em agosto/2014 Aceito em outubro/2014

SUMÁRIO: Introdução; 1. A relevância da História para o Direito Constitucional; 2. Neoconstitucionalismo, direitos fundamentais e políticas públicas: o (des)caso brasileiro; 3. O princípio da proibição de retrocesso em uma visão constitucional pautada pela historicidade; Conclusão; Referências. RESUMO: O artigo estuda o princípio da proibição de retrocesso, buscando fundamentá-lo e analisar as relações entre a História, a Constituição e os direitos fundamentais sociais a partir das ideias trazidas na obra Historia y Constitución, de Gustavo Zagrebelsky. Verifica a possibilidade de justificar a proteção dos direitos fundamentais sociais a partir do significado e da importância deles em cada momento histórico, o que confere ao princípio da proibição de retrocesso um caráter fluido e o abre ao debate democrático. PALAVRAS-CHAVE: História; Constituição; direitos fundamentais sociais; proibição de retrocesso; Gustavo Zagrebelsky.

ABSTRACT: The paper studies the principle of prohibition of regression, seeking to found it and analyze the relations between History, Constitution and fundamental social rights parting from the ideas brought in the work Historia y Constitución, by Gustavo Zagrebelsky. It verifies the possibility of justifying the protection of fundamental social rights parting from their meaning and importance in each historical moment, what gives to the principle of prohibition of regression a fluid character and opens it to the democratic debate.

KEYWORDS: History; Constitution; fundamental social rights; prohibition of regression; Gustavo Zagrebelsky.

INTRODUÇÃO Passados mais de vinte anos desde a promulgação de nossa atual Constituição Federal, em 1988, o déficit de cumprimento de suas disposições se mostra assombroso. Com efeito, muitos dos direitos fundamentais sociais previstos em seu texto ainda se encontram carentes de efetivação, especialmente em razão da ausência de políticas públicas imprescindíveis para proporcionar a fruição pelos respectivos destinatários. Ao seu turno, aqueles direitos que já tiveram implementadas as atividades estatais necessárias à sua concretização constantemente se veem ameaçados de diminuição ou mesmo de completa eliminação, face aos insaciáveis anseios neoliberais e à subserviência governamental pronta a atendê-los. Sobreleva, destarte, diante desse infeliz quadro, a importância do estudo dos mecanismos disponibilizados pelo ordenamento jurídico para preservar as árduas conquistas e ainda concretizar as incumpridas promessas trazidas no art. 3º. da Lei Maior, de construir uma sociedade livre, justa e solidária (inciso I); garantir o desenvolvimento nacional (inciso II); erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais (inciso III); e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (inciso IV). No contexto ora descrito, merece grande atenção o chamado princípio da proibição de retrocesso, elemento constitucional apto a obstar o aviltamento de direitos sociais prestacionais e o retraimento da ação estatal na promoção do bem comum. Eis, resumidamente, o objetivo deste artigo: abordar o princípio da proibição de retrocesso, buscando fundamentá-lo e analisar as relações entre a História, a Constituição e os direitos fundamentais sociais a partir das ideias trazidas na obra Historia y Constitución, de Gustavo Zagrebelsky. Serão preferencialmente empregados, na consecução da tarefa proposta, os métodos hipotéticodedutivo, dialético e histórico-evolutivo. Com efeito, a hipótese ora levantada, posicionando-se no sentido da possibilidade de justificar a proteção dos direitos fundamentais sociais a partir do significado e da importância destes em cada momento histórico, o que confere ao princípio da proibição de retrocesso um caráter fluido e aberto ao debate democrático, será submetida a falseamento mediante o cotejo com as vantagens e desvantagens de uma tutela rígida e temporalmente inflexível, parâmetro adequado de comparação. Antes, porém, não poderá ser olvidado o exame de suas origens históricas e de seu desenvolvimento ao longo do tempo, bem como deverão ser confrontadas e criticamente avaliadas as diferentes orientações de respeitados juristas que se debruçaram sobre o tema, procurando organizá-las em uma síntese superadora de suas possíveis contradições. Outrossim, o presente estudo parte de referenciais teóricos que se inserem na concepção doutrinária conhecida por neoconstitucionalismo, notadamente as correntes que preconizam a força normativa dos princípios e regras insculpidos na Constituição e a irradiação de seus efeitos sobre todo o Direito infraconstitucional. Na primeira seção do trabalho, será abordada a relevância da História para o Direito Constitucional, tal qual sustentada por Gustavo Zagrebelsky. Em seguida, na segunda seção, serão correlacionados o neoconstitucionalismo, a previsão de direitos fundamentais sociais nas Constituições contemporâneas e o dever do Estado Democrático de Direito de implementá-los por intermédio de políticas públicas, analisando a realidade brasileira. Na terceira seção do artigo, o princípio da proibição de retrocesso será examinado sob uma perspectiva constitucional pautada pela historicidade, encerrando-se com a conclusão obtida no trato do assunto.

1. A RELEVÂNCIA DA HISTÓRIA PARA O DIREITO CONSTITUCIONAL Gustavo Zagrebelsky nasceu em San Germano Chisone, na Itália, em 1943. Foi juiz e presidente da Corte Constitucional italiana. É professor de Direito Constitucional na Universidade de Turim (Torino) e autor de várias obras da disciplina, dentre elas El derecho dúctil: Ley, derechos, justicia, clássico da literatura jurídica que influenciou muitos estudiosos filiados ao chamado neoconstitucionalismo. A obra Historia y Constitución (2005) consiste em uma reflexão de Gustavo Zagrebelsky sobre a possibilidade de se conferir à História um lugar e um significado de ordem metodológica no âmbito do Direito Constitucional, que supere sua tradicional visão como mera “disciplina auxiliar” deste ramo da ciência jurídica. Assevera ele que a colocação e a análise do tema se condicionam essencialmente a dois fatores, intrinsecamente ligados e variáveis no decorrer do tempo: as características do objeto (no caso, a Constituição) e as tarefas da ciência (isto é, do Direito Constitucional) em relação a ele. O jurista denuncia a insuficiência das várias concepções positivistas, sejam elas legalistas, historicistas, estatalistas ou institucionalistas, entre outras, para a compreensão da Constituição do pluralismo, porquanto esta representa, em síntese, uma solução de composição e consenso entre os diversos interesses contrastantes presentes na sociedade no momento constituinte. Com efeito, sustenta que tais correntes partem de um “dado” (v.g., o texto normativo, o acontecimento histórico) e procuram “descrevê-lo tal como é”, sem qualquer pretensão criativa e crítica concernente a esse objeto e sem lhe indagar os fundamentos de validade. Todavia, adverte que a(s) metodologia(s) positivista(s) se mostra(m) inadequada(s) para resolver as inevitáveis tensões que se revelam cotidianamente no jogo das aspirações legitimamente incorporadas no quadro constitucional, emblemáticas de seu caráter compósito. Em acréscimo, traça um escorço dos embates entre as ideias dos revolucionários/racionalistas do Século XVIII, que viam na Constituição a cristalização de um ilimitado e irrefreável Poder Constituinte, capaz por isso de curvar ao seu exclusivo talante o devir histórico (manifestação do positivismo legalista), e dos conservadores/historicistas do Século XIX, que a tinham por um subproduto dos fatores reais da História, estando assim por ela cerceada (manifestação do positivismo historicista). Aborda, outrossim, a tormentosa dialética estabilidade/mudança (ou imobilidade/renovação) que permeia o caráter regulador do texto constitucional e as intensas discussões a seu respeito, mencionando a prevalência, hodiernamente, da posição intermédia. Ou seja, possibilita-se a sua modificação, sujeita contudo a exigências mais rigorosas e/ou determinadas vedações. Prossegue, alegando que a Constituição não deve mais ser vislumbrada como uma ordenação abstrata e inexorável da realidade social, mas como uma referência à qual os seus atores haverão de recorrer para encontrar respostas justas a problemas concretos. Propõe, pois, uma exegese de cunho tópico-retórico, que convida a doutrina e a jurisprudência a um papel criativo na efetivação das normas constitucionais. Argumenta Zagrebelsky que […] a constituição do pluralismo contemporâneo se pode considerar positiva enquanto é recriada continuamente pelo concurso de múltiplas vontades que, ao convergirem sobre ela e segundo os modos dessa convergência, a redefinem continuamente em seu alcance histórico-concreto. (2005, p. 82, tradução nossa)1 E, adiante, completa que A legitimidade da constituição depende então não da legitimidade de quem a fez ou falou por meio dela, senão da capacidade de oferecer respostas adequadas ao nosso tempo ou, mais precisamente, da capacidade da ciência constitucional de buscar e encontrar essas respostas na constituição. (2005, p. 88, tradução nossa)2

1 No original: “[...] la constitución del pluralismo contemporáneo se puede considerar positiva em quanto que es recreada continuamente por el concurso de múltiples voluntades que, em su converger hacia ella y según los modos de esa convergencia, la redefinem continuamente em su alcance histórico-concreto.”

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No original: “La legitimidad de la constitución depende entonces no de la legitimidad de quien la ha hecho y há hablado por medio de ella, sino de la capacidad de ofrecer respuestas adecuadas a nuestro tiempo o, más precisamente, de la capacidad de la ciencia constitucional de buscar y encontrar esas respuestas em la constitución.”

Nessa tarefa de diuturna concretização e atualização, sobreleva a importância dos princípios, normas dotadas de grande plasticidade que promovem a real integração entre passado, presente e futuro, visto que caracterizam formulações sintéticas das matrizes histórico-ideais do ordenamento jurídico. Obtempera o autor que eles, por um lado, declaram as raízes e, por outro, indicam uma direção, sendo, ao mesmo tempo, fatores de conservação e inovação (2005, p. 89). Por fim, conclui que as constituições de nossa época olham para o futuro tendo firme o passado, quer-se dizer, o patrimônio de experiência histórico-constitucional que querem salvaguardar e enriquecer (2005, p. 91). 2. NEOCONSTITUCIONALISMO, DIREITOS FUNDAMENTAIS SOCIAIS E POLÍTICAS PÚBLICAS: O (DES)CASO BRASILEIRO No segundo pós-guerra, sobretudo depois da Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948, verificou-se a emergência de um novo e vigoroso constitucionalismo, de inspiração nitidamente humanista (DALLARI, 2010, p. 139-140), que conferiu à Constituição, Lei Maior do Estado, papel de primazia e de direcionamento em relação ao ordenamento jurídico-positivo. Com efeito, deixou ela de ser compreendida como mera “carta de intenções políticas” ou, pejorativamente, singela “folha de papel” dependente dos fatores reais de poder, passando a ser reconhecida como dotada de preponderância, de efetiva força normativa e de irradiação sobre todo o Direito infraconstitucional. No que tange a seu conteúdo, outrossim, as Constituições, em suas várias manifestações concretas no mundo ocidental, viram-se enriquecidas com a consagração do Estado Democrático de Direito, que se lastreia no valor fundamental da dignidade da pessoa humana e em imperativos axiológicos de moral e justiça. De acordo com Lenio Luiz Streck (2002, p. 64), o Estado Democrático de Direito consubstancia um aprofundamento das fórmulas do Estado de Direito e do Estado de Bem-Estar Social (Welfare State), impondo à ordem jurídica e à atividade estatal um cerne utópico de transformação do status quo, isto é, um caráter prospectivo e emancipador. Eduardo Cambi (2009, p. 26-27) assevera que as Constituições modernas desempenham relevante função na modificação da realidade, porquanto se notabilizam pela presença de metarregras sobre a produção do Direito, exatamente para vincular os poderes públicos, inclusive com a previsão de mecanismos contramajoritários, no escopo de dirigir a ordem jurídica à concretização dos direitos fundamentais de todos. Essa nova maneira de ver a Constituição, que envolve o indeclinável compromisso de cumprir suas disposições e de realizá-la integralmente na vida cotidiana, perpassa diferentes concepções doutrinárias que, grosso modo, diante da apontada identidade metodológica e teleológica, podem ser agregadas sob o rótulo do neoconstitucionalismo (CAMBI, 2009, p. 21-54; ALMEIDA, 2010, p. 18-25). Traço marcante e destacado do Estado Democrático de Direito, herdado do Estado Social, porém intensificado no novel modelo (STRECK, 2002, p. 85), é a previsão, no texto constitucional, de normas que estabelecem posições jurídicas subjetivas ativas invocáveis por seus titulares no sentido de exigirem do ente público determinadas atuações positivas, de cunho jurídico ou material. Integram o gênero que Ingo Wolfgang Sarlet (2009, p. 189-190) denomina de direitos a prestações em sentido amplo, e que abrange, como suas espécies, os direitos à proteção, os direitos à participação na organização e procedimento e os direitos a prestações em sentido estrito. Os últimos, também referidos pelo autor como direitos sociais prestacionais, voltam-se, essencialmente, à melhoria das condições de vida e à consecução da igualdade material e da justiça social, garantindo a participação do povo na distribuição pública de bens materiais e imateriais (2009, p. 282). A problemática maior dos chamados direitos a prestações em sentido estrito, direitos sociais prestacionais ou simplesmente direitos sociais consiste na sua efetividade, quer-se dizer, na sua implementação prática e consequente fruição pelos beneficiários, conforme explana José Eduardo Faria: Ao contrário dos direitos individuais, civis e políticos e das garantias fundamentais desenvolvidas pelo liberalismo burguês com base no positivismo normativista, cuja eficácia requer apenas que o Estado jamais permita sua violação, os “direitos sociais” não podem simplesmente ser “atribuídos” aos cidadãos. Como não são self-executing nem muito menos fruíveis ou exequíveis individualmente, esses direitos têm sua efetividade dependente de um welfare commitment. Em outras palavras, necessitam de uma ampla e complexa gama de programas governamentais e de políticas públicas dirigidas a segmentos específicos da sociedade; políticas e programas especialmente formulados, implementados e executados com o objetivo de concretizar esses direitos e atender às expectativas por eles geradas com sua positivação. A inexistência dessas políticas e desses programas, é

evidente, acaba implicando automaticamente a denegação desses direitos. (2004, p. 272-273) Segundo Virgílio Afonso da Silva (2010, p. 241-242), alguns aspectos pragmáticos são decisivos para gerar a crise de efetividade dos direitos fundamentais sociais. Alude o jurista que, via de regra, as reais condições para o exercício dessas prerrogativas constitucionais precisam ser ainda criadas, e a criação delas se mostra economicamente mais custosa, mormente porque cada direito social costuma demandar uma prestação estatal exclusiva, que somente é aproveitada em sua realização, e não na de outros. Em síntese, os direitos a prestações em sentido estrito dependem inexoravelmente de políticas públicas (CAMBI, 2009, p. 18), expressão que, em sentido lato, “designa todas as atuações do Estado, cobrindo todas as formas de intervenção do poder público na vida social.” (GRAU, 2005, p. 26) Para uma conotação mais restrita e adequada ao objeto do presente trabalho, faz-se pertinente o acréscimo do adjetivo sociais, a fim de concebê-las como atividades estatais destinadas a instituir órgãos, entidades, bens e serviços que concretamente proporcionem aos seus beneficiários, “mediante a compensação das desigualdades sociais, o exercício de uma liberdade e igualdade real e efetiva” (SARLET, 2009, p. 199). Ressalta Lenio Luiz Streck (2002, p. 64) que a Assembleia Constituinte que elaborou a Carta Magna de 1988 se inspirou fortemente em diplomas constitucionais produzidos em contextos históricopolíticos semelhantes ao que então vivia nosso país, isto é, de ruptura com regimes autoritários e de retomada da democracia, citando como exemplos os de Portugal, pós-Revolução dos Cravos, e Espanha, em seguida à queda da ditadura de Franco. A atual Constituição trouxe em seu art. 1º. a menção ao conceito de Estado Democrático de Direito, atribuindo expressamente à República Federativa do Brasil tal qualidade. Ademais, na esteira dos paradigmas inspiradores, elencou em seu bojo invulgar número de direitos a prestações, dotados destarte de fundamentalidade formal e material, conforme a lição de Ingo Wolfgang Sarlet (2009, p. 74-78). Não obstante a positivação desses direitos prestacionais e a declarada vontade constitucional de sua efetivação, aferível pela própria existência de instrumentos jurídicos como o mandado de injunção (art. 5º., inciso LXXI, da CF), a arguição de descumprimento de preceito fundamental (art. 102, § 1º., da CF) e a ação direta de inconstitucionalidade por omissão (art. 103, § 2º., da CF), voltados a fazer cessar um estado de violação da Lei Maior, in casu oriundo do non facere estatal (lato sensu) legislativo ou executivo, é notoriamente conhecido o déficit de cumprimento, em especial no que concerne aos direitos a prestações em sentido estrito ou, resumidamente, direitos sociais. Sabido que os direitos sociais usualmente exigem, para seu concreto gozo, a implementação de políticas públicas sociais, bem como que estas, contudo, sob os mais variados argumentos e escusas, têm sido sistematicamente olvidadas, recusadas ou eliminadas pelos poderes públicos das esferas da federação, torna-se imprescindível indagar sobre os mecanismos constitucionais para a sua preservação, dentre os quais se destaca o chamado princípio da proibição de retrocesso.

3. O PRINCÍPIO DA PROIBIÇÃO DE RETROCESSO EM UMA VISÃO CONSTITUCIONAL PAUTADA PELA HISTORICIDADE A Constituição Federal de 1988, ao instituir o atual Estado Democrático de Direito, reconheceu um longo catálogo de direitos fundamentais, dentre os quais se incluem direitos sociais, potencializado pela previsão de sua aplicabilidade imediata. Muitos desses direitos, por outro lado, vieram positivados em enunciados dos quais exsurgem normas programáticas, que, segundo Canotilho, podem ser assim explicadas: Qualquer norma constitucional deve considerar-se obrigatória perante quaisquer órgãos do poder público (Crisafulli). Mais do que isso: a eventual mediação concretizadora, pela instância legiferante, das normas programáticas, não significa que este tipo de normas careça de positividade jurídica autônoma, isto é, que a sua normatividade seja apenas gerada pela interpositio do legislador; é a positividade das normas-fim e normas-tarefa (normas programáticas) que justifica a necessidade da intervenção dos órgãos legiferantes. (2007, p. 1177) Atribui-se às normas constitucionais programáticas, portanto, o cariz de normas-programas, a serem cumpridas após a implementação das condições materiais ou jurídicas necessárias, sempre prestigiando o sentido de conquistas sucessivas, de observância compulsória pelos órgãos legislativos e judiciários, como também pelo administrador público, conforme complementa Canotilho:

Concretizando melhor, a positividade jurídico-constitucional das normas programáticas significa fundamentalmente: (1) vinculação do legislador, de forma permanente, à sua realização (imposição constitucional); (2) vinculação positiva de todos os órgãos concretizadores, devendo estes tomá-las em consideração como directivas materiais permanentes, em qualquer dos momentos da actividade concretizadora (legislação, execução, jurisdição); (3) vinculação, na qualidade de limites materiais negativos, dos poderes públicos, justificando a eventual censura, sob a forma de insconstitucionalidade, em relação aos actos que as contrariam. (2007, p. 1177) Percebe-se, assim, que embora as normas programáticas não tenham um grau de eficácia máximo, não são destituídas de eficácia, pois no mínimo estabelecem limites negativos para os poderes públicos, sendo que todas as normas inferiores que contrariarem o texto constitucional carregarão a marca da inconstitucionalidade. José Afonso da Silva afirma que não há norma constitucional alguma destituída de eficácia, pois […] todas elas irradiam efeitos jurídicos, importando sempre uma inovação na ordem jurídica preexistente à entrada em vigor da constituição a que aderem e a nova ordenação instaurada. (1999, p. 81) A respeito das consequências da inobservância das normas programáticas, assevera o professor paulista: É que as normas programáticas se resolvem, prima facie, num vínculo ao Poder Legislativo, quer lhe assinalem somente certo fim a atingir, quer estabeleçam, desde logo, restrições, limites, observância de certas diretrizes, critérios ou esquemas gerais, para alcançar o escopo proposto. Em ambas as hipóteses [sustenta Crisafulli] não há dúvida de que a inobservância das normas constitucionais programáticas por parte do órgão legislativo será motivo de invalidade, total ou parcial, do ato de exercício de seu poder, ou seja, da lei deliberada de modo contrário ou diverso de quanto disposto na constituição. (1999, p. 159) Por conseguinte, em virtude de sua concepção dirigente, todos os avanços sociais conquistados pela Constituição de 1988 e pela legislação por ela recepcionada ou sob sua égide promulgada possuem sustentação constitucional programática e devem ser protegidos em face de potenciais modificações deletérias. Trata-se de diretrizes a serem perseguidas e respeitadas. A partir dessa ótica, ganha espaço o princípio da proibição de retrocesso, cada vez mais contemplado na doutrina constitucional e invocado pelos tribunais a fim de resguardar o núcleo essencial de direitos fundamentais sociais e de solidariedade, caracterizando um verdadeiro “dever de proteção”, que se traduz da seguinte maneira: Concretamente, a “proibição do retrocesso social” determina, de um lado, que, uma vez consagradas legalmente as “prestações sociais”, o legislador não pode depois eliminá-las sem alternativas ou compensações. Uma vez dimanada pelo Estado a legislação concretizadora do direito fundamental social, que se apresenta face a esse direito como uma “lei de proteção” (Schutzgesetz), a acção do Estado, que se consubstanciava num “dever de legislar”, transforma-se num dever mais abrangente: o de não eliminar ou revogar essa lei. (QUEIROZ, 2006, p. 69-70) Sobre a natureza do princípio da proibição de retrocesso, em sentido amplo, Canotilho sustenta que [...] a ideia aqui expressa também tem sido designada como proibição de contra-revolução social ou da evolução reacionária. Com isto quer dizer-se que os direitos sociais e econômicos (ex: direito dos trabalhadores, direito à assistência, direito à educação), uma vez obtido um determinado grau de realização, passam a constituir, simultaneamente, uma garantia institucional e um direito subjectivo. [...] O princípio da proibição do retrocesso social pode formular-se assim: o núcleo essencial dos direitos sociais já realizado e efectivado através de medidas legislativas [...] deve considerar-se constitucionalmente garantido sendo inconstitucionais quaisquer medidas estaduais que, sem a criação de outros esquemas alternativos ou compensatórios, se traduzam na prática numa “anulação” pura e simples desse núcleo essencial. A liberdade de conformação do legislador e inerente autoreversibilidade têm como limite o núcleo essencial já realizado. (2007, p. 432)

Destarte, o princípio da proibição de retrocesso surge como uma cláusula de vedação a qualquer modificação que implique em retroagir, substancialmente, na conquista social já alcançada. A amarga experiência tida por um histórico de violações dos direitos e garantias individuais é diretamente proporcional à defesa da proibição de retrocesso, de modo que o passado sempre seja lembrado na interpretação constitucional, para que não haja perda substancial dos direitos obtidos. Porém, o princípio deve ser visto de um modo flexível e aberto ao debate democrático, devendo pesar o significado e a importância em um dado momento histórico da política pública e do direito social que ela efetiva. No curso histórico, as necessidades sociais vão sendo modificadas, de forma que caberá ao Estado promover a todo tempo as políticas públicas necessárias para a concretização dos direitos sociais exigidos, rompendo com a visão tradicionalista da Constituição. Para Zagrebelsky, a natureza das coisas sociais pretende para si a perfeição, que anda de mãos dadas com a imutabilidade (2005, p. 39). Ambas as questões devem ser interpretadas conjuntamente, conforme alude o autor: Só o que é imperfeito muda: ou porque se corrompe ou porque se melhora. A imutabilidade deve ser garantida para o que é perfeito, a fim de preservá-lo como tal. Mas, por sua vez, a ausência de mudanças é testemunha da perfeição. (2005, p. 40, tradução nossa) Zagrebelsky se refere à mutabilidade das Constituições e à permanente necessidade de modificação de seus textos, motivo pelo qual a História é indispensável à evolução do constitucionalismo. O princípio da proibição de retrocesso é a constitucionalização desse pensamento. A conquista social alcançada, seja por meio de uma lei, seja por meio de uma política pública, deve ser imutável, desde que perfeita para dado momento. A abordagem deste rompimento é dada por Miguel Carbonell, no prólogo da obra Historia y Constitución, de Zagrebelsky: Mas, como configurar concretamente estes elementos ideais que geram a futura configuração política? A resposta será variável e incompleta se não formos capazes de superar as visões tradicionais que os juristas seguem tendo sobre a constituição e sobre a ciência do direito constitucional. [...] Um sistema constitucional não é nem pode ser, na prática, somente revolução ou somente conservação, mesmo que, às vezes, os defensores de outra ótica duvidem disto. (2005, p. 11, tradução nossa) Nota-se que o rompimento com as visões tradicionais é condição primária para a concretização da proibição de retrocesso, haja vista que a conservação será importante sempre que necessária para garantir patamares razoáveis em prol dos direitos dos cidadãos. A partir do momento em que tais patamares não se encontrarem mais satisfatórios para preservar o núcleo essencial de algum direito social, será o tempo da mudança, em busca de uma prestação estatal mais eficiente. Assim, políticas públicas que em determinado contexto histórico não mais se justificarem ou produzirem efeitos práticos, por terem exaurido sua finalidade, podem ser retiradas do sistema jurídico (v.g., as políticas de inclusão social por meio de cotas raciais, que perderiam o sentido de existirem se não houvesse mais preconceito racial em determinada sociedade, ou os programas de complementação de renda, que não seriam mais necessários se a promessa constitucional da erradicação da pobreza fosse atingida). Daí vem o entendimento de que a proibição de retrocesso é relativa, sempre devendo ser adequada à História. Vale lembrar, conforme salienta Eduardo Cambi, que “tal proibição de retrocesso não é absoluta, não servindo para engessar a argumentação e os espaços democráticos, mas apenas para assegurar condições materiais básicas para o exercício democrático de todos” (2009, p. 229). Desta forma, tem-se que o princípio da proibição de retrocesso é diretamente vinculado à evolução histórica da sociedade, havendo que acompanhar as demandas sociais e ser invocado sempre que

um direito fundamental ou social se encontre comprometido, mas sem significar um impedimento ao debate democrático, para a revisão periódica das políticas públicas disponibilizadas pelo Estado, inclusive com a descontinuidade daquelas que não mais se mostrarem necessárias, por terem atingido a contento seus escopos. Acerca da proteção que emana do princípio, Felipe Derbli enuncia: O que se quer dizer, neste ponto, é que o reconhecimento do princípio da proibição de retrocesso social é capaz de oferecer aos cidadãos alguma proteção em face do turbilhão de transformações que assola o mundo nos dias de hoje. Particularmente no caso do Brasil, é absolutamente necessário que se vislumbre, na Constituição, princípio que permita a proteção dos patamares já alcançados e consolidados na diária missão de cumprimento do projeto de justiça social delineado pela Constituição – que, por isso, devem ter a sua disciplina infraconstitucional minimamente preservada das constantes e bruscas modificações que atualmente acometem a realidade política, econômica e social no país e no mundo. (2007, p. 290) Muito se pode considerar na relação da proteção da dignidade da pessoa humana com a cláusula da proibição de retrocesso, haja vista que a intenção primordial desta vedação é a de proteger o núcleo essencial dos direitos e garantias fundamentais sociais conquistados pelo cidadão, em matriz constitucional e infraconstitucional. Ademais, a proibição do retrocesso guarda estreito liame com as cláusulas pétreas, expressas no art. 60, § 4º, da Constituição Federal. Em que pese o artigo traga um rol de quatro incisos, referindo-se às matérias que não poderão ser objeto de emenda constitucional tendente a aboli-las, tem-se que a interpretação desta expressa proibição de retrocesso deve ser a mais ampla possível. É o que defende Vladimir Brega Filho: Embora o art. 60, § 4º, inciso IV, da Constituição fale apenas em “direitos e garantias individuais”, não há dúvida de que a melhor interpretação, diante dos princípios da interdependência e da indivisibilidade dos direitos fundamentais, é a de que todos os direitos fundamentais são cláusulas pétreas da Constituição. (2002, p. 79) Em suma, cada momento histórico traz consigo a exigência de certos direitos e garantias fundamentais sociais a serem prestados pelo Estado. A importância desta constante transformação somente pode ser compreendida por meio da influência da História sobre o Direito Constitucional e seus institutos.

CONCLUSÃO A Constituição do pluralismo, de acordo com Gustavo Zagrebelsky, representa uma solução de composição e consenso entre os diversos interesses contrastantes presentes na sociedade no momento constituinte. Por isso, as metodologias positivistas, sejam elas legalistas, historicistas, estatalistas ou institucionalistas, mostram-se inadequadas para resolver as inevitáveis tensões que se revelam cotidianamente no jogo das aspirações legitimamente incorporadas no quadro constitucional, emblemáticas de seu caráter compósito. Daí também resulta que a Constituição não deve mais ser vislumbrada como uma ordenação abstrata e inexorável da realidade social, mas como uma referência à qual os seus atores haverão de recorrer para encontrar respostas justas a problemas concretos, por meio de uma exegese de cunho tópico-retórico. As Constituições do mundo ocidental, a partir do segundo pós-guerra, viram-se enriquecidas com a consagração do Estado Democrático de Direito e vieram a prever em seus bojos grande sorte de direitos fundamentais de caráter prestacional, dependentes de políticas públicas para sua concretização. O princípio da proibição de retrocesso é um importantíssimo mecanismo constitucional para a preservação daqueles direitos, uma vez que impede que as políticas públicas já implementadas em favor de sua efetivação sofram reduções drásticas. Contudo, há que se atentar para o caráter relativo ou flexível que possui o princípio da proibição de retrocesso, posto que sua função é assegurar condições materiais básicas para o exercício democrático de todos, acompanhando a evolução das necessidades sociais e não podendo ser invocado como entrave ao debate democrático. Como corolário, as políticas públicas devem atender as demandas sociais, sendo viável a sua supressão quando e desde que não mais subsistam as

razões que motivaram sua implantação.

REFERÊNCIAS BREGA FILHO, Vladimir. Direitos fundamentais na Constituição de 1988: conteúdo jurídico de expressões. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002. CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e neoprocessualismo: direitos fundamentais, políticas públicas e protagonismo judiciário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2007. DALLARI, Dalmo de Abreu. A Constituição na vida dos povos: da Idade Média ao século XXI. São Paulo: Saraiva, 2010. DERBLI, Felipe. O princípio da proibição de retrocesso social na Constituição de 1988. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. FARIA, José Eduardo. O direito na economia globalizada. São Paulo: Malheiros, 2004. GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. QUEIROZ, Cristina. O principio da não reversibilidade dos direitos fundamentais sociais. Coimbra: Coimbra, 2006. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 3. ed. rev. ampl. e atual. São Paulo: Malheiros, 1999. SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2010. STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002.

ZAGREBELSKY, Gustavo. Historia y Constitución. Trad. e prólogo de Miguel Carbonell. Madri: Trotta, 2005.

DIREITOS HUMANOS E EVOLUÇÃO DA PROTEÇÃO CONTRA DESASTRES HIDROLÓGICOS: UM ESTUDO SOB A ÓTICA DA TEORIA CRÍTICA NILTON CARLOS DE ALMEIDA COUTINHO

Mini currículo: Procurador do Estado de São Paulo, com atuação perante os Tribunais Superiores em Brasília. Coordenador do Grupo Trabalhista da PGE/SP em Brasília. Mestre em Direito pelo CESUMAR/PR. Doutor em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Professor junto à UNB – Universidade de Brasília. Email: [email protected] Última publicação: Livro “Advocacia e Direito Público. Belo Horizonte : Del Rey, 2013 Recebido em agosto/2014 Aceito em outubro/2014

RESUMO O presente trabalho tem como objetivo analisar a evolução da proteção contra os desastres hidrológicos, dentro de um contexto de direitos humanos, utilizando como matriz teórica a investigação crítica de Joaquin Herrera Flores, a qual destaca a contínua evolução dessa categoria de direitos e a luta de classes a ela inerentes. Assim, o texto aborda a origem, evolução e características dos direitos fundamentais, bem como o tratamento constitucional dado a proteção contra desastres, com destaque para a efetividade da proteção de tal direito, por meio do reforço das garantias legais reconhecidas e da participação popular. PALAVRAS-CHAVE DESASTRES; DIREITOS FUNDAMENTAIS; PROTEÇÃO INTRODUÇÃO Os desastres hidrológicos, com destaque para as inundações (segundo dados disponibilizados pelo Ministério da Integração Nacional, por meio da sua Secretaria Nacional de Defesa Civil constituem-se como a espécie responsável pela maioria das mortes decorrentes de desastres no território Brasileiro. (para maiores detalhes cf. BRASIL. Ministério da Integração Nacional. Secretaria Nacional de Defesa Civil. Universidade Federal de Santa Catarina. Centro Universitário de Estudos e Pesquisas sobre Desastres. Comunicação de Riscos e de Desastres. Atlas brasileiro de desastres naturais 1991 a 2010: volume Brasil. Florianópolis: CEPED, 2012) Dada a relevância do tema, a proteção contra desastres (e, em especial, os desastres hidrológicos) passa a ser analisadas sob a ótica da teoria crítica do direito, perquirindo-se em torno de sua natureza jurídica, em uma conotação progressista, dentro de um viés de direito fundamental. A teoria critica dos direitos humanos, defendida por Joaquín Herrera Flores, parte de determinadas premissas. Dentre elas, destaque-se a crítica em relação à concepção universalista de direitos humanos e a contrariedade a razões transcendentais para explicação de tais direitos, em oposição à teoria tradicional de direitos humanos. FLORES (2009), na mesma linha que BOBBIO, defende a contínua evolução dos direitos fundamentais em decorrência das necessidades da sociedade. Desse modo, segundo FLORES (2009, p. 37) tais direitos são “resultados sempre provisórios das lutas sociais pela dignidade”. Na verdade, tem-se que a essencialidade de determinados bens para a existência de uma vida digna é que lhes outorga a característica de “direito fundamental”, de tal forma que o processo de positivação de tais direitos é posterior a sua configuração e surgirá graças a processos históricos, às lutas e conquistas sociais implementadas. Assim, para o referido autor, os direitos

fundamentais constituem-se como o resultado de processos de luta do ser humano pelo acesso a determinados bens necessários para a sobrevivência ou pela criação de condições materiais concretas que nos permitam uma satisfação "digna" dos mesmos (FLORES, 2009, p.36). Nesta perspectiva, a proteção contra desastres hidrológicos (e, em especial, inundações e enchentes) demanda uma reflexão por parte do operador do direito em relação a sua natureza jurídica, dentro de um Estado Democrático e de Direito. 1. Direitos humanos: origem, evolução e características De início, registre-se que os termos “direitos humanos” e “direitos fundamentais” serão utilizados como sinônimos, tendo em vista a similitude entre os mesmos. Assim, discorrendo sobre a temática dos direitos humanos, FLORES (2009, p. 37) ensina que os mesmos referemse a dinâmicas sociais que objetivam a construção de condições materiais e imateriais necessárias para a obtenção de determinados bens. Assim, para ele, ao lutar pelo acesso a determinados bens, os atores sociais colocam em funcionamento determinadas práticas sociais que visam propiciar ao ser humano os meios e instrumentos (políticos, sociais, econômicos culturais ou jurídicos) que possibilitem a construção das condições materiais e imateriais necessárias para viver com dignidade. Logo, tais direitos originam-se das lutas sociais em busca do acesso igualitário aos bens entendidos como “fundamentais” ou “essenciais” para a existência de uma vida digna. Para BOBBIO (1192, p. 17), os “direitos do homem” traduzem-se em um termo de difícil conceituação, face sua amplitude terminológica. Trata-se, segundo ele, de direitos que pertencem (ou deveriam pertencer) a todos os indivíduos. São direitos cujo reconhecimento é condição imprescindível para o aperfeiçoamento da pessoa humana. Para PANSIERI (2008, p.121-122), os direitos humanos referem-se a normas definidoras de direitos inerentes à pessoa humana. Com relação ao rol de direitos que devem ser entendidos como “direitos fundamentais” ou “direitos humanos”, observe-se que estes têm se ampliado ao longo dos anos, uma vez que, com a evolução da sociedade, novos direitos passaram a ser reconhecidos e protegidos. Por se tratar de direitos destinados a todos os indivíduos, indistintamente, os direitos humanos são considerados universais. Tal característica, contudo, é criticada por vários doutrinadores. Sobre o tema, LEMOS (2014) faz menção às consequências que a adoção da concepção universalista traz para a compreensão do ser humano. Isso porque, na sua visão, a partir desse pensamento descontextualizado e abstrato, os seres humanos passam a ser tratados como meros coadjuvantes no processo histórico, de tal forma que os direitos dos indivíduos surgem como se decorressem de um “processo mágico” A doutrina tradicional costuma dividir os direitos humanos em diversas dimensões. Para alguns, tal divisão é prejudicial, eis que – dadas as características inerentes aos direitos humanos (tais como a indisponibilidade, a irrenunciabilidade, a intransmissibilidade, a inalienabilidade, a imprescritibilidade, a inviolabilidade, a vitaliciedade, a universalidade, a oponibilidade erga omnes, a indivisibilidade, a efetividade, a irrevogabilidade, a proibição de retrocesso, a autoaplicabilidade, a complementariedade, a interdependência, a não taxatividade e a extrapatrimonialidade) a sua compartimentalização ou subdivisão em categorias não é adequada. Do mesmo modo, a doutrina tradicional contempla as seguintes dimensões de direitos fundamentais: Os direitos fundamentais de primeira dimensão são aqueles que relacionados a direitos do próprio indivíduo como tal, ou seja: direitos que limitam a atuação do Estado na liberdade individual. São, conforme diz BONAVIDES (2006, p. 563-564), “direitos de resistência ou de oposição perante o Estado”, sendo também chamados de direitos civis e políticos, os quais englobam os direitos à vida, à liberdade, a propriedade, à igualdade formal, os direitos de participação política e algumas garantias processuais. Aqui, encontram-se os direitos subjetivos dos cidadãos que exigem uma postura negativa, não interventiva por parte do Estado. Assim, neste primeiro momento, os direitos fundamentais estabelecem limites de atuação ao Estado. Já os direitos de segunda dimensão surgem com o objetivo de garantir a igualdade material entre as pessoas, tornando-se necessária uma ação positiva por parte do Estado, por meio de direitos prestacionais, ou seja: direitos que impelem o Estado a programar políticas públicas com vistas ao bem-estar social da população, exigindo-se, portanto, uma postura mais ativa por parte do ente estatal.

Com o desenvolvimento da sociedade, houve um aumento no rol de direitos a serem tutelados, surgindo o que se convencionou denominar de direitos de terceira dimensão, objetivando tutelar a qualidade de vida e a solidariedade entre os homens. Tais direitos abrangeriam o direito a um meio ambiente equilibrado, a uma saudável qualidade de vida, ao progresso, à paz, à autodeterminação dos povos e a outros direitos difusos, pertencentes a grupos determinados. Desse modo, os direitos de terceira dimensão passam a se caracterizar em função da sua transindividualidade, ou seja: caracterizam-se como direitos de titularidade coletiva ou difusa. Há, ainda, os chamados direitos fundamentais de quarta dimensão, podendo-se mencionar aqueles direitos associados à engenharia genética ou aqueles necessários à concretização da sociedade aberta ao futuro, em sua dimensão de máxima universalidade, associando-os assim ao direito à democracia, à informação e à pluralidade. (BONAVIDES, 2002. p.525). Por fim, os direitos fundamentais de quinta dimensão seriam os direitos relacionados à paz. Neste sentido, observa-se que, no âmbito da teoria crítica dos direitos humanos, não há relevância na divisão dos direitos fundamentais em gerações ou dimensões, nem, tão pouco, em atribuir-lhes graus de importância, haja vista que a luta por dignidade possui caráter global e universal, não sendo possível dividir os direitos relacionados à manutenção dessa dignidade. Neste aspecto LEMOS (2014) esclarece que, para a teoria critica dos direitos, essa classificação ou subdivisão é irreal e perigosa. Primeiro, porque cria uma hierarquia de direitos, depois porque desvincula uma categoria das outras. Não há como se falar de direitos humanos separados um dos outros, em verdade, são todos concomitantes e inter-relacionados. Contudo, tal divisão não visa classificar os direitos humanos em grau de importância, mas, apenas, esclarecer o contínuo de gradativo surgimento de novos direitos. Nesta perspectiva, o direito proteção contra desastres (analisado de forma ampla) pode ser tutelado enquanto direito fundamental de: primeira dimensão (quando não há a necessidade de intervenção do Poder Público); segunda dimensão (quando a proteção refere-se todo o corpo social); terceira (quando se relaciona a determinados grupos de indivíduos); quarta (quando sua ocorrência pode agredir o patrimônio genético da espécie humana, comprometendo sua existência, podendo-se citar os desastres radioativos, as mutações genéticas e outros desastres que possam causar alterações no genoma humano, etc.); e quinta dimensão (quando a ocorrência de um desastre pode afetar o direito à convivência pacífica entre os seres humanos.). Neste aspecto, observe-se que FLORES (2009, p. 37) ao tratar dos direitos humanos, entende tratar-se de direitos afirmados politicamente a partir de lutas sociais, de tal forma que encontram-se em contínua evolução e ampliação. Sobre o tema, MASCARO (2010) esclarece que o direito instrumentaliza a luta de classes a partir de determinada estrutura. Assim, na visão do referido autor o direito é – na realidade – a expressão da luta de classes. E à medida que a sociedade evolui, o direito também evolui. Com relação à evolução e ampliação dos direitos humanos, BOBBIO (1192, p. 19) defende tratar-se de direitos historicamente relativos, na medida que sofrem alterações conforme o momento histórico e o tipo de civilização. Nessa linha, FLORES (2009, p. 114) defende que os direitos humanos decorrem de uma marcha de processos de luta em defesa da dignidade humana. Com efeito, aduz o autor: Eles [os direitos humanos] não são algo dado, nem estão garantidos por algum “bem moral”, alguma “esfera transcendental” ou por algum “fundamento originário ou teleológico”. São produtos culturais que instituem ou criam as condições necessárias para implementar um sentido político forte de liberdade. (idem, ibidem). De qualquer modo, é importante observar que a subdivisão dos direitos fundamentais em dimensões (ou gerações) vem apenas reforçar a ideia de que o conteúdo jurídico da dignidade humana (e consequentemente, o rol dos direitos fundamentais) tende a se ampliar ao longo dos anos, na medida em que a sociedade evolui e novos direitos são reconhecidos e agregados ao rol dos direitos fundamentais. (BUCCI, 2006. p. 3). Contudo, o surgimento e a ampliação de novos direitos visa, apenas, ampliar a proteção conferida ao ser humano em sua essência e dignidade. Ademais, com base no disposto no artigo 5º, parágrafo 2º da Constituição Federal, tem-se que direitos e garantias nela expressos não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. Logo, trata-se de rol meramente exemplificativo, sendo possível concluir-se pela aceitação da existência de direitos

fundamentais fora do Título II e, inclusive, fora do corpo da Constituição Federal. (MEDEIROS, 2004. p. 110-111). Segundo entende FLORES (2005, p.27), a teoria crítica do direito deve sustentar-se sobre dois pilares: o primeiro seria o reforço das garantias formais legalmente reconhecidas. Já o segundo pilar residiria na capacidade de ação dos grupos mais desfavorecidos pelo sistema jurídico, no sentido de participar de forma ativa, propiciando uma mudança no equilíbrio de poder em áreas com menos resistência legal. Dentro deste contexto de surgimento e evolução de direitos faz-se necessário indagar-se acerca do tratamento constitucional dado à proteção contra os desastres hidrológicos, dentro de uma conotação progressista, bem como os instrumentos jurídicos disponíveis para sua efetivação.

2. Sociedade de risco, desastres e tratamento constitucional: uma análise crítica Tradicionalmente, os desastres naturais (tais como os desastres hidrológicos) eram considerados como causas excludentes de responsabilidade, eis que relacionados a aspectos atinentes a caso fortuito ou força maior. Contudo, a evolução da sociedade e das necessidades do ser humano fizeram com que fosse necessário rever essa concepção, tendo em vista os riscos aos quais a sociedade moderna encontra-se sujeita. Com o crescimento do capitalismo, criou-se um campo propício para o surgimento e solidificação de uma sociedade de risco, na qual a mesma passa a conviver com ameaças de eventos negativos e prejudiciais, decorrentes do seu desenvolvimento. Nesta linha, atente-se par ao fato de que o crescimento populacional e o desenvolvimento econômico trazem consigo outra consequência relevante, qual seja: o surgimento de núcleos habitacionais em locais impróprios, com condições de habitabilidade precárias e com maior probabilidade de ocorrência de desastres, surgindo as chamadas áreas de risco. Segundo BECK (1998) a denominada “sociedade de riscos” configura-se como um modelo de sociedade que procura desfrutar dos benefícios e possibilidades da ciência, mas, também, encontra-se obrigada a conviver e a gerenciar os riscos impostos por estes avanços. Neste contexto, o risco de desastres passa a fazer parte do dia a dia dessa sociedade, surgindo a necessidade de buscar-se mecanismos e instrumentos que possam proteger a sociedade contra tais desastres ou, pelo menos, mitigar-lhes as consequências. (Cf.COUTINHO, 2014) Especificamente em relação à proteção contra desastres (e, notadamente os hidrológicos) a Constituição Federal estabeleceu que o planejamento e a promoção da defesa permanente contra as calamidades públicas é de competência da União, destacando sua atuação em relação às situações de secas e inundações. Assim, consoante estabelece o artigo 22, XXVIII, da Constituição Federal, tem-se que a defesa contra os desastres hidrológicos é considerada uma situação de interesse geral, razão pela qual a competência em relação ao assunto foi atribuída à União. Do mesmo modo, ao atribuir-se à União a competência para planejar e promover a defesa permanente contra as calamidades públicas, especialmente as secas e as inundações, a Constituição que concluiu que: 1) Secas e inundações são consideradas calamidades públicas; e 2) A defesa (e proteção) contra secas e inundações deve ser adotada de forma prioritária. Do mesmo modo, tem-se que, em sede de direito de proteção contra desastres, a evolução da sociedade possibilitou o surgimento de novas tecnologias e o aparelhamento estatal com vistas a uma melhor preparação contra os efeitos da mudança climática. Hoje, a sociedade consegue prever, com relativa antecedência, a ocorrência de uma série de eventos naturais danosos, criando para o Poder Público o dever de adotar medidas aptas a evitar ou mitigar os prejuízos advindos de tais acontecimentos. Para que o indivíduo possua a condição de “ser humano” é essencial que o mesmo tenha acesso a uma vida digna, isto é, que tenha acesso a bens (materiais ou imateriais) imprescindíveis para a satisfação das necessidades vitais do indivíduo. (CADEMARTORI, 2013). Vinculou-se, então, a dignidade da pessoa humana a uma serie de direitos fundamentais, tais como o direito a vida e qualidade de vida, o direito a moradia, o direito à saúde, dentre outros. Segundo FLORES (2009, p. 37), a dignidade concretiza-se pelo acesso igualitário e generalizado aos bens que fazem com que a vida seja “digna” de ser vivida. Ocorre que os riscos não atingem todos os indivíduos de forma igualitária, fazendo com que camadas

hipossuficientes da população sofram de forma mais intensa os efeitos decorrentes dessas alterações sociais. Neste sentido, FLORES (2009, p. 31) preleciona: A deterioração do meio ambiente, as injustiças propiciadas por um comércio e por um consumo indiscriminado e desigual, a continuidade de uma cultura de violência e guerras, a realidade das relações transculturais e das deficiências em matéria de saúde e de convivência individual e social que sofrem quatro quintos da humanidade obrigam-nos a pensar e, consequentemente, a apresentar os direitos desde uma perspectiva nova, integradora, crítica e contextualizada em práticas sociais emancipadoras. Neste aspecto, observe-se que o ordenamento jurídico contemporâneo trata acerca da necessidade de proteção contra calamidades públicas, com destaque para as secas e inundações. Logo, dentro deste cenário jurídico, torna-se possível afirmar que a proteção contra desastres encontra-se contemplada no texto constitucional implicitamente (por força do disposto no citado parágrafo segundo do artigo 5º) e, no tocante aos desastres hidrológicos, houve expressa menção no texto constitucional acerca da importância de sua proteção. Assim, a visualização da proteção contra desastres enquanto um direito humano fundamental pode contribuir para a redução dos efeitos dos desastres, na medida em que se passa a exigir do estado uma preocupação maior com a situação enfrentada e, consequentemente, uma maior atuação em relação aos desastres, contribuindo para sua concretização enquanto direito de tal natureza. Porém, muito embora haja previsão no texto constitucional acerca da proteção contra calamidades públicas, a proteção contra desastres demanda uma reflexão acerca de sua natureza jurídica e dos instrumentos jurídicos aptos a sua proteção, eis que a proteção contra eventos dessa natureza encontra-se diretamente relacionada à manutenção da dignidade da pessoa humana. Isso porque tal proteção pelo ordenamento jurídico é relevante não apenas em razão de sua expressa no texto constitucional, mas, principalmente, em razão dos bens jurídicos a serem tutelados por meio da sua proteção efetiva. Assim, para que se avance na proteção contra desastres hidrológicos é necessário o reforço das normas que tratam sobre o tema, tendo-se em mente que tal proteção é fundamental para a manutenção da dignidade da pessoa humana e, em especial, das pessoas que vivem em áreas de risco ou outras nas quais a possibilidade de eventos dessa natureza é maior. Porém, não basta o mero reconhecimento do direito, havendo necessidade de criar-se e ampliar-se os mecanismos jurídicos aptos a sua efetivação enquanto direito humano. 3. Da proteção contra desastres enquanto direito humano fundamental Por mais pleonástica que a expressão “direito humano fundamental” possa parecer sua utilização visa justamente enaltecer a importância da proteção contra desastres para a manutenção da dignidade da pessoa humana, tendo em vista ser esta o “cerne” da proteção dos direitos humanos e dos direitos fundamentais. Conforme mencionado, o segundo pilar da teoria crítica refere-se à possibilidade de agir, de modo a criar novas formas de garantir os resultados das lutas sociais (FLORES, 2005, p.27). Neste aspecto, torna-se importante mencionar que a teoria crítica dos direitos humanos visa, por meio da luta de classes, a constante mutação e evolução do direito, reconhecendo-se garantias, prerrogativas e instrumentos que possibilitem a melhoria das condições de vida do indivíduo, possibilitando a manutenção da dignidade da pessoa humana em todas as suas vertentes. Visa-se, assim, que os homens possam, procurar, reivindicar e conquistar mais direitos. Tem-se, assim, que, para a teoria crítica, o ser humano possui papel primordial na criação do direito. Segundo o posicionamento de FLORES (2009, p. 34-35), os direitos humanos são o resultado de lutas e valores defendidos pela sociedade, encontrando-se em contínua evolução, constituindo-se como processos institucionais e sociais que possibilitam a abertura e a consolidações de espaços de luta pela dignidade humana. Assim, a participação popular ganha papel crucial na proteção dos direitos humanos, haja vista que não é possível entender os direitos dissociados de um universo de luta de grupos sociais, culturais e econômicos empenhados em promover o crescimento e a emancipação humana. O surgimento e fortalecimento dos direitos humanos exige uma pressão social efetiva por meio de Iniciativas Cidadãs e de reivindicações de grupos sociais que, de um modo ou de outro,

restaram historicamente marginalizados do processo de positivação e de reconhecimento institucional de suas expectativas. Isso porque os direitos dessa parcela da população exigem não apenas o seu reconhecimento formal (por meio de normas jurídicas), mas, principalmente, o seu reconhecimento perante o poder público e os demais cidadãos. (Nesta linha, cf. FLORES, 2009, p. 77). Para que se possa compreender a razão pela qual a proteção contra os desastres pode (e deve) ser feita sob a ótica dos direitos fundamentais é necessário relembrar-se que a teoria critica dos direitos humanos tem como pretensão avançar em cima de garantias e desenvolverse em cima das conquistas históricas obtidas ao longo da humanidade, reafirmando os pontos positivos, além de estabelecer “uma postura marginal ou periférica que permita retirar o olhar cego e acrítico, descontextualizado, que as conquistas formalmente realizadas posteriormente as lutas acabaram gerando” (LEMOS, 2014). Neste aspecto, observe-se que a participação popular e a luta de classes são elementos presentes na teoria crítica. Isso se dá, entre outras razões, em decorrência da dificuldade de se romper estruturas legais vigentes em sociedades estruturadas pela dominação, tais como as sociedades capitalistas e as sociedades de risco. Para romper essa estrutura, ou, pelo menos, permitir-se o reconhecimento, surgimento e proteção de novos direitos, a participação popular é medida essencial para tal mudança de concepção. FLORES (2009, p. 33) critica a concepção usual no sentido de que os direitos humanos se consubstanciariam no “direito a ter direitos”. Para ele, mais do que ter direitos é necessário discutir-se quais bens tais direitos devem garantir, além das condições materiais necessárias para exigir ou colocar tais direitos em prática, bem como as lutas sociais que devem ser colocadas em prática para que se possa garantir um acesso mais justo para que todos possuam uma vida digna. Nesta mesma linha, BOBBIO (1992, p. 37) entende que o problema central a ser enfrentado refere-se às medidas a serem implementadas para a efetiva proteção dos direitos fundamentais. Tal concretização exige a criação de condições que permitam o gozo de seus direitos civis e políticos, tais como direitos referentes à segurança e integridade física; direitos relativos às necessidades fundamentais da vida (alimentação e água); direitos relativos às outras necessidades de proteção econômica, social e cultural; etc. Contudo, em que pese a importância do reconhecimento direito de proteção contra desastres enquanto direito humano fundamental, sua simples inclusão no rol de tais direitos, não é suficiente para sua adequada proteção jurídica. Há, assim, a necessidade de atribuir-se maior eficácia e efetividade na sua tutela jurídica, possibilitando uma maior resiliência dos Municípios em relação a eventos dessa natureza, o que pode ser obtido por meio de políticas públicas, planejamento, participação popular e medidas concretas em prol da proteção contra desastres hidrológicos. Ademais, consoante assevera FLORES (2009, p. 39), os direitos fundamentais devem ser garantidos não apenas por meio de normas jurídicas, mas, também, por políticas públicas e por uma economia aberta às exigências da dignidade. A efetiva proteção contra a ocorrência de desastres deve dar-se por meio de políticas públicas a serem implementadas pelo Poder Público de modo a garantir a preservação do meio ambiente e, consequentemente, garantir a saúde e a qualidade de vida dos indivíduos, protegendo-os contra a ocorrência futura de desastres. Na impossibilidade de se evitar a ocorrência de desastres, tais políticas devem procurar minimizar os efeitos e os danos provocados pelos desastres, o que pode ser feito por meio de normas e estudos técnicos que estabeleçam critérios seguros para construções de moradias. Dessa forma, a implantação de políticas públicas deve ter como objetivo a satisfação dos interesses da coletividade, de modo a preservar seus direitos fundamentais. Neste sentido, consoante ensina BUCCI (1996, p. 135) o fundamento mediato e fonte de justificação das políticas públicas é o Estado social, marcado pela obrigação de efetivação dos direitos fundamentais positivos. Tal modelo de Estado fundamenta-se na busca pela redução das desigualdades sociais, por meio de sua atuação direta nas atividades econômicas e sociais e ampliação dos serviços públicos, com vistas ao estabelecimento de uma vida digna. (RIBAS, 2007, p. 38) Somente tratando-se a proteção contra os desastres hidrológicos como um direito fundamental do indivíduo será possível políticas públicas que possam, de fato, contribuir para implementar e garantias a proteção deste direito com todos os meios possíveis, mitigando-se os danos causados aos indivíduos e impedindo que novos desastres venham a ocorrer e violar direitos fundamentais dos indivíduos. E, para isso, a participação popular e a capacidade de ação dos grupos representativos das minorias são fundamentais nesta busca pela proteção de tais direitos.

Conclusões Em razão do desenvolvimento da sociedade e dos riscos nela existentes, os desastres tendem a se tornar cada vez mais frequentes e com maior intensidade, sendo certo que, dentre tais ameaças, destacam-se os desastres hidrológicos (tais como as inundações e enchentes, etc.) Contudo, observa-se que esses eventos negativos não atingem todos os indivíduos de forma igualitária, sendo certo que as comunidades economicamente hipossuficientes são mais vulneráveis aos efeitos decorrentes de eventos climáticos negativos. Surge, assim, um conflito no qual, os hipossuficientes encontram-se sujeitos a riscos de maior magnitude se comparados ao indivíduos com maior poder aquisitivo, surgindo a necessidade de uma maior proteção a esta parcela da população. A proteção contra desastres, dentro de um Estado Democrático e De Direito, constitui-se como um direito fundamental autônomo e diretamente relacionado a outros direitos fundamentais, tais como o direito à vida, o direito à moradia, o direito à saúde, à qualidade de vida, ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e à assistência aos desamparados. Proteger o cidadão contra os efeitos decorrentes de um desastre constitui-se em medida essencial para a manutenção da dignidade da pessoa humana. Para a proteção de tais direitos a Constituição federal brasileira criou normas específicas para a proteção contra calamidades públicas, muito embora o rol de direitos fundamentais mencionados na Constituição Federal seja meramente exemplificativo. Nesta linha, e considerando a evolução da sociedade em termos de direitos humanos e políticas públicas protetivas, a proteção contra desastres constitui-se como um direito fundamental do indivíduo e que, portanto, deve ser tutelado e protegido pelo Estado. Neste aspecto, a Administração Pública não pode imiscuir-se do seu papel de gestor dos interesses da coletividade, devendo atuar de modo a possibilitar a adequada proteção do direito fundamental de proteção contra desastres. A teoria crítica do direito sustenta-se sobre dois pilares, quais sejam: o reforço das garantias formais legalmente reconhecidas e a capacidade de ação dos grupos mais desfavorecidos, no sentido de possibilitar a discussão e o debate de ideias, estimulando uma mudança nas relações de poder, por meio da luta de classes. Assim, tal teoria crítica entende que a discussão em torno do rol de direitos humanos fundamentais é um processo dialético contínuo, uma vez que tratam-se de direitos afirmados politicamente a partir de lutas sociais, de tal forma que encontram-se em contínua evolução e ampliação. Assim, a positivação de direitos e a efetivação de direitos positivados reflete-se como um processo incessante e em contínua transformação e evolução. Neste aspecto, FLORES (2005b, p.18) entende os direitos humanos como um processo dinâmico (tanto sob o aspecto social, como político, econômico e cultural) e intimamente relacionado com o surgimento e expansão do modo de produção e as relações sociais capitalistas, os quais foram historicamente desenvolvidos. Neste aspecto, a proteção contra desastres tem ganhado relevância no ordenamento jurídico atual. Contudo, ainda há muito o que se avançar em termo de proteção de direitos humanos, sendo certo que a proteção contra desastres traduz-se em medida essencial para a manutenção da dignidade das pessoas que se encontram sujeitas à ocorrência de desastres hidrológicos. REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS BECK, Ulrich. La sociedade del riesgo: hacia una nueva modernidad. Barcelona: Paidós, 1998. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 2002. p.525 BUCCI, Maria Paula Dallari. As políticas públicas e o direito administrativo. Revista Trimestral de Direito Público, São Paulo, n. 13, p. 135, 1996 BUCCI, Maria Paula Dallari. O conceito de política pública em direito. In: ______. Políticas públicas: reflexões sobre o conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2006. CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart; GRUBBA, Leilane Serratine. O embasamento dos direitos humanos e sua relação com os direitos fundamentais a partir do diálogo

garantista com a teoria da reinvenção dos direitos humanos. In: Rev. direito GV vol.8 no.2 São Paulo July/Dec. 2012. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S180824322012000200013. Acesso em 10 de nov. 2013 COUTINHO, Nilton Carlos de Almeida. Desastres, cidadania e o papel do Estado: as relações entre os direitos fundamentais e a proteção contra desastres “naturais” hidrológicos. Tese (Doutorado em Direito) – Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2014. FERRAJOLI, Luigi. Los fundamentos de los derechos fundamentales. Madrid: Editorial Trotta, 2001. FLORES, Joaquín Herrera. Introducción General. In Moura, Marcelo Oliveira de. Irrompendo no Real. Escritos de Teoria Crítica dos Direitos Humanos. Pelotas: Educat, 2005 FLORES, Joaquín. A reinvenção dos direitos humanos.Trad. Carlos Roberto Diogo Garcia et al. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009 LEMOS, Eduardo Xavier. Revisitando HERRERA FLORES: compreensões acerca da teoria crítica de direitos humanos. In: revista critica do direito Número 3 - Volume 58, 2014. Disponível em: http://www.criticadodireito.com.br/todas-as-edicoes/numero-3---volume58/revisitando-herrera-flores-compreensoes-acerca-da-teoria-critica-de-direitos-humanos. Acesso em 21 de jun. 2014 MASCARO, Alysson Leandro Barbate. Filosofia do Direito. São Paulo: Atlas, 2010. MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de. Meio ambiente: direito e dever fundamental. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004 MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade: estudos de direito constitucional. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2004. RIBAS, Paulo Henrique. O papel do estado na concretização dos direitos fundamentais sociais mediante a prestação de serviços públicos. Curitiba: Pontifícia Universidade Católica do Paraná, 2007.

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O DEVER-SER NOS LIMITES DO SER-AINDA-NÃO: DIREITO E UTOPIA EM ERNEST BLOCH Felipe Araújo Castro Professor da UFRN – Centro de Ensino Superior do Seridó. Mestre em Direito pela UFRN. Recebido em agosto/2014 Aceito em outubro/2014

RESUMO O ensino jurídico no Brasil passa por uma crise de seus paradigmas científicos com evidentes reflexos na prática forense. Há um claro descompasso entre um discurso de consideração dos objetivos sociais do texto constitucional e uma atividade jurídica “neutra”, centrada no positivismo normativista, que favorece a manutenção de um status quo de desigualdades materiais. Nesse contexto, a revisitação de autores ligados a tradição materialista da filosofia e preocupados com a transformação social tem o condão de construir uma prática jurídica emancipadora do homem. O conceito de Utopia em Ernst Bloch traz a potencialidade de transformar o ser-ainda-não constitucional em realidade. Palavras-chave: Utopia. Ensino Jurídico. Eficácia Constitucional. Ernst Bloch “O ódio à utopia é um sintoma repetitivo que, de geração em geração, afeta os defensores da ordem existente atormentados pelo medo da alteridade”.

Miguel Abensour LAW AND UTOPIA IN ERNST BLOCH ABSTRACT Legal education undergoes a crisis of its scientific paradigms with clear impacts on the legal practice. There is a mismatch between in one side a speech defending the importance of the constitutional social goals and in the other side a legal practice supposedly neutral, centred in a normatvist positivism that favoured the manuteince of the material inequalty. In this context, the revisitation of authors from a materialist filosofical tradition concerned with social transformation have the capability of construct a human amancipatory legal practice. The concept of Utopia in Ernst Bloch has the potentiality the constitucional yet-to-be in reality. Keywords: Utopia. Legal Education. Constitutional Effectiveness. Ernst Bloch.

1 INTRODUÇÃO: O MITOS DA NEUTRALIDADE E DA AUTONOMIA DO DIREITO O ensino jurídico no Brasil passa por uma crise estrutural, que repercute na prática forense. Uma das faces dessa crise é o amoldamento da formação do “jurista” menos para formar cidadãos capazes de um comportamento crítico da sociedade em que vive e do fenômeno “Direito” e mais para responder as necessidades do mercado e do interesse particular dos aspirantes a “bacharéis” na aprovação do Exame da Ordem e∕ no ingresso em carreiras de Estado mediante concurso público. Um dos problemas centrais do ensino jurídico esta relacionado a uma crise de paradigma científico, este, compreendido aqui, como um conjunto de pressupostos compartilhados por uma determinada comunidade científica. Com efeito, mal interpretado ou não, o normativismo positivista, expresso, sobretudo, na clássica obra de Kelsen, Teoria Pura do Direito (1934), continua a ser o centro de gravidade do ensino jurídico no país 1. Ainda que, não raras vezes, apareça com algumas

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Existem numerosos exemplos de grandes escolas jurídicas ou grupos de pesquisa que fogem a essa regra, no entanto, não passam da exceção que comprova a regra, uma vez ainda que qualitativamente possam ter produção intelectual digna de reverência, proporcionalmente são irrelevantes frente ao números de escolas jurídicas que trabalham o método normativista vulgar, fenômeno notadamente intensificado pela massificação do ensino jurídico superior com a proliferação das Universidades Privadas de duvidosa qualidade. Ou ainda, quando compõe um grupo de pesquisa, muitas vezes estão isolados institucionalmente, uma ilha num oceano

sofisticações, notadamente advindas da moderna teoria sistêmica (LUHMANN, 2005), porém, redundando nas mesmas consequências. As crenças compartilhadas por esse positivismo, grosso modo, são a da autonomia do direito frente a outros sistemas sociais, a radical separação entre o direito e a moral, entre o dever-ser e o ser e da interpretação lógico-formal neutra das normas. Essa perspectiva teórica acaba por impedir a realização da finalidade primordial do Direito, qual seja, a concretização de um ideal de justiça assente na igualdade entre os homens, que nos parece ser um dado antropológico fundamental (SUPIOT, 2007). Nesse paradigma normativista, a justiça ou não é consideração do Direito, ou é reduzida a um simples caráter procedimental, nesse sentido, sua realização é baseada na simples observâncias das regras pré-estabelecidas do jogo. A crise da ciência jurídica se insinua mais claramente no plano histórico, onde o telos, enquanto realização da justiça, passou a ser o simples controle social, autoritário e antidemocrático, já que a mera utilização repressiva dele, com uma função exclusivamente controladora, no limite, tem provocado mais exclusão que inclusão social, mais injustiça do que injustiça, mais repressão do que libertação, portanto, tem provocado a própria ineficácia do direito. (MACHADO, 2009, p. 4). O que se tem no Brasil é uma leitura reducionista e equivocada do trabalho de Kelsen, que, não obstante, é passada entre inúmeras gerações de juristas como uma profissão de fé, na qual a “ciência jurídica quer única e exclusivamente conhecer o seu objeto” e “já não lhe importa a questão de saber como deve ser o direito, ou como ele deve ser feito” (KELSEN, 2006, p. 1). Esquece-se que o autor vienense admitiu ao longo de sua obra o caráter multifacetado do Direito e suas influências advindas de diversas dimensões sociais e valorativas. Bem como não é considerado o contexto no qual escreveu sua obra, um momento de predominância do positivismo científico e de necessidade de firmar a autonomia do Direito frente à sociologia por meio da criação de um método próprio, como fizera anos atrás Durkheim na sociologia 2. É evidente que essa crise de paradigmas reflete significativamente, senão decisivamente, na prática forense dos operadores do direito, formados por essas instituições de ensino superior, “por que essa atuação há muito se tornou um fazer simplesmente tecnológico, despolitizado e exercido com total indiferença pelos critérios éticos de justiça” (MACHADO, 2009 p. 17). Na verdade, o que passa despercebido por esses modelos de sociologia compreensiva que pregam a autonomia do Direito é, nada mais nada menos, a realidade das relações de poder; uma realidade cruel que fica ainda mais evidente na tentativa de aplicação desses modelos às realidades da periferia do mundo. Dessa forma, no caso brasileiro, como nossas eleições ainda são escandalosamente decididas pelo (ab)uso do poder econômico, o código binário do sistema econômico (ter∕não ter) é substituído pela lógica eleitoral democrática; consequentemente, o Parlamento acaba sendo composto por representantes dos interesses econômicos que determinaram a eleição previamente e não do povo, assim, também deixa de funcionar por meio de seu código binário próprio (maioria∕minoria) e passa então a funcionar em função também do sistema econômico. Na ponta dessa lança, o Direito, produzido pelo Parlamento, passa a ser sobredeterminado pela economiae, portanto, não autônomo 3. Assim, aplicar o Direito de maneira neutra é consolidar a lógica acima descrita é perpetuar os valores ideológicos prevalentes no atual momento do desenvolvimento societário, ou seja, aqueles do (neo)liberalismo. Com efeito, a crise do ensino jurídico é apenas mais um manifestação – e como parte, também é representação do todo – da crise do sistema ideológico liberal-conservador4. conservador do direito. Para exemplo de pesquisas em busca de um uso transformador do Direito (CAMPILONGO; FARIA, 1991). 2

DURKHEIM, Emile. As regras do método sociológico. 17ª ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2002

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Dessa forma, a aplicação da teoria sistêmica à realidade brasileira chega aos mesmos resultados já descritos pela tradicional análise marxista do direito (PASUKANIS, 1989). 4 Os ideais de neutralidade e objetividade, notas marcantes das correntes da ciência jurídica predominante no país hoje, são reflexos do método pelo qual a ideologia (neo)liberal se mascara como imparcialidade nas ciências enquanto esconde a defesa de seus valores intrínsecos. Pois, “em nossa cultura liberal-conservadora o sistema

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Os mitos da autonomia e neutralidade do direito frente a política e a economia podem ser facilmente contestados pela observação de seu comportamento em eventos recentes da história brasileira, como o julgamento da ação penal 470 e a realização da Copa do Mundo FIFA de 2014. No mundial de futebol, durante os dias de celebração do evento, dentro de áreas determinadas em função de interesses estratégicos ou proximidade com os estádios, foram suspensos uma série de direitos fundamentais de cidadãos brasileiros, sobretudo as liberdades de reunião e manifestação, em benefícios dos interesses econômicos envolvidos na Copa. Com efeito, o Judiciário foi utilizado, inclusive, para expedir mandados de prisão preventivos contra manifestantes antes mesmo que qualquer ilícito fosse cometido 5, ou seja, mantendo o status quo não apenas mediante uma suposta “neutralidade”, mas também fazendo parte do aparato repressor. Já no caso do julgamento do mensalão, era visível que as opiniões políticas e jurídicas se misturam de acordo com a coloração ideológica de cada falante. Dessa forma, “nunca na história desse país” se viu tantas pessoas associadas aposições situadas num espectro político considerado “de direita” defenderem a necessidade de ultrapassar as regras processuais e realizar-se “justiça”, assim como nunca se viu tantos intelectuais tidos como “de esquerda” na posição de defesa do devido processo legal. Em outras palavras, o que determinava o posicionamento dos comentadores, assim como dos juízes, era o réu e não os fatos jurídicos. Ao fim e ao cabo, o que podemos observar da prática forense brasileira é, salvo casos isolados de alguns operadores quixotescos, um compromisso, consciente ou não, com a manutenção do status quo em um claro descompasso com a vontade constitucional transformadora. Em outras palavras, a atuação dos operadores jurídicos não contribui com a realização dos objetivos da Carta Constitucional, quando não os atrapalha ou intensifica. Nesses termos, atua sobre todo o campo do direito, desde sua ciência e ensino até a sua prática, uma força ideológica que, travestida de suposta neutralidade na aplicação do direito e alicerçada num positivismo normativista, favorece a manutenção das relações de poder. 2 UTOPIA Para o combate a esse cenário, é oportuno o resgate da categoria da utopia no estudo do Direito, como antítese da ideologia, capaz de revelar e desconstruir as bases que a sustentam: Ideologia é justamente a forma de pensamento que, correspondendo aos interesses da classe dominante, tende a manter a posição social de uma classe mediante a conservação do status quo. À ideologia opõe-se a utopia, forma de pensamento que corresponde aos interesses das classes subjulgadas, tendo por objetivo não só justificar as pretensões desta classe, como também revelar e destruir as bases sociais em que se alicerça a ideologia (COELHO, 2007, p. 198). As investigações acerca da utopia constituem uma tradição que remonta ao século de ouro ateniense com as especulações platônicas sobre o modelo ideal de sociedade. Utopia consiste em um “não-lugar”, um estado societário ideal diferente do mundo sensível e onde se projeta um maior grau de desenvolvimento humano. Em suas primeiras teorizações era localizada num futuro afastado ou numa terra distante, desconhecida e inacessível, locais meramente idealizados, inexistente ou irrealizáveis. Nessas construções utópicas a situação do ser humano é ideal, no sentido do melhor imaginável, tratava-se da representação da satisfação do projeto e sentido de vida humana. Essas narrativas cumpriam a função de estabelecer um paralelo comparativo entre a realidade desigual e ideológico socialmente estabelecido e dominante funciona de modo a apresentar – ou desvirtua – suas próprias regras de seletividade, preconceito, discriminação e até distorção sistemática como ‘normalidade’, ‘objetividade’ e ‘imparcialidade científica’.” (MÉSZAROS, 2004, p. 57). Esse fenômeno pode ser bem observado dentro do Direito no campo das ciências criminais (BARATTA , 2002). 5

No momento em que o artigo é escrito (28 de Jul de 2014) encontra-se preso o estudante e servidor da Universidade de São Paulo, Fábio Hideki Harano, acusado de adotar e organizar táticas de “Black-block”. Matéria disponível em < http://www.brasilpost.com.br/2014/07/23/fabio-hidekipreso_n_5612735.html?utm_hp_ref=brazil>

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imperfeita e um modelo ideal de sociedade. Serviam então como um guia que apontava o caminho dos modelos sociopolíticas necessárias para melhoria dos padrões de vida. Data do início da modernidade, talvez, a mais famosa dessas projeções, a obra de Thomas Morus intitulada justamente Utopia (1516), com conteúdo e forma fortemente influenciada pelas obras de Platão, inclusive na utilização do recurso ao diálogo Ao descrever sua organização societária ideal, Morus não deixa de estabelecer uma crítica às relações sociais de seu tempo, assim, utiliza o recurso da ficção para criticar a realidade, uma vez que esta, estando em desacordo com as condições encontradas na Utopia, por oposição, seria imperfeita. Outras sociedades utópicas conviveram e concorreram com a obra de Morus, notadamente, construções teológicas mais antigas como a Cidade de Deus de Santo Agostinho, na qual são construídas em oposição a Cidade dos Homens, fruto do pecado original e condenada a imperfeição e a Cidade de Deus, o paraíso da redenção. A utopia, ainda que não se tenha dado esse nome, na verdade, é um recurso comum às três religiões do livro (o Islamismo, o Cristianismo e o Judaísmo), vez que todas fazem referência a um reino transcendente ao que existimos, onde não mais haveria dominação do homem sobre o homem e no qual as injustiças terrenas seriam recompensadas. Outra etapa significativa no florescimento das utopias está no século XIX. Essas novas construções surgem como possível resposta à perversa exploração de crianças, mulheres e homens nas fábricas e a consequente condição de vida das pessoas nas cidades europeias dentro do contexto da Revolução Industrial. Ainda que não tenham reivindicado esse título para si, posteriormente, é exatamente sob a alcunha de socialistas utópicos que uma série de homens como Owen, Fourier e Cabet serão lembrados pela historiografia. A escolha do termo “utópico” por Marx e Engels para designar esses homens e seus projetos carrega uma carga pejorativa que os criadores do socialismo científico pretendiam imprimir aos seus adversários. A intenção dos autores do manifesto comunista era demonstrar e ressaltar a impossibilidade da construção das sociedades almejadas por Owen ou Cabet em oposição as possibilidade reais do socialismo científico que defendiam. Essa impossibilidade se dava em função dos socialistas utópicos desconsiderarem o aspecto materialista da história, qual seja, o antagonismo violento e inconciliável da luta de classes, partindo, ao invés, da ideia à realidade. No entanto, certamente não significa dizer que o próprio socialismo científico não mantivesse um quê de utopia, especialmente no que concernia aos resultados esperados. Uma vez que não se tem notícias da existência de uma sociedade livre da exploração do homem pelo homem, na qual tivesse sido experimentada a verdadeira liberdade no socialismo, esse tipo de construção permanece como um não-lugar, ainda a ser realizado6. Nesse sentido, o que realmente os separaria – socialistas utópicos e científicos – seria a maior pragmaticidade do segundo grupo, mais preocupado em, por meio da análise das condições concretas e históricas, garantir o advento do socialismo. Com efeito, ainda que não se negue a importância histórica desses socialistas utópicos, a despeito das boas intenções que permeavam os seus projetos, muito pouco foi substancialmente alterado na relação entre trabalhadores e empregadores em função de suas ações. 2.1 A utopia em Ernst Bloch O sentindo que pretendemos dar e trabalhar para o signo “utópico” é substancialmente diferente do apresentado e tem como referência o trabalho do filósofo marxista alemão Ernst Bloch. Levando em consideração seus primeiros escritos, ainda nas décadas iniciais do século XX, porém, sobretudo, o trabalho desenvolvido em sua obra seminal, O princípio da esperança, dividida em três volumes lançados em datas diferentes durante a década de 1950. Para o filósofo alemão, o conceito de utopia é bastante simples. É caracterizado pelo serainda-não, em outras palavras, um dever-ser ainda não concretizado, projetado para o futuro, portanto, mantendo a conexão com a raiz etimológica; um não-lugar. No entanto, o salto qualitativo está na distinção entre as utopias abstratas, aquelas imaginárias como a de Morus ou dos socialistas utópicos, idealizações que jamais poderão concretizar-se, da utopia concreta, desenhada a partir da realidade e suas contradições e projetada para as possibilidades efetivas do presente no futuro, efetivamente o conceito que nos interessa (MASCARO, 2008, p. 114).

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“Considera-se como utópico todo socialismo voluntarista, o que, de modo algum, significa que esteja isento de utopia o socialismo que a ele se opõe.” (BUER, 1986, p. 20).

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Bloch refaz a compreensão marxista da gênese do direito como uma tecnologia de dominação burguesa, porém, enxerga nele um potencial emancipador e transformador que lhe é negado por outras correntes do marxismo 7. Em outras palavras, o potencial revolucionário dos ideais franceses de 1789, a saber, liberdade, igualdade e, sobretudo, a fraternidade, ainda não realizados, representa um déficit utópico do qual as constituições ocidentais são herdeiros e que, ainda que não possa ser alcançado exclusivamente mediante o manuseio do direito, certamente pode e deve receber sua contribuição. Como dito, é necessário contrapor a utopia concreta, ou seja, realizável, permeada por sonhos não conclusos do passado, baseada nas reais condições do presente e projetada para um futuro melhor, das utopias abstratas, aquelas sem arreios na realidade fenomênica. Uma utopia concreta trabalha com a concretização de projetos encerrados num documento político como a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão e nossa Constituição, transformando-se também numa utopia jurídica; enquanto uma utopia abstrata seria aquela de Morus, que se passa numa ilha imaginária onde existe uma sociedade perfeita construída ficcionalmente sem nenhuma referência a uma realidade existente ou ainda aquelas dos socialistas utópicos, pois, ao se isolarem, essas comunidades acabavam por abdicar de qualquer potencial transformador para além de suas fronteiras. Já os sonhos diurnos, construídos em oposição aos sonhos noturnos de Freud, conjuntamente com a esperança, são a força motriz da prática utópica concreta. Enquanto os sonhos noturnos, objeto da psicanálise, são um não-mais-consciência, representações de eventos do passado sobre os quais o homem perdeu o contato, mas que são determinantes de seu presente, os sonhos diurnos, como o nome já sugere, é um sonhar de dia, trata-se de projetar o futuro quando os desejos e privações estão presentes e são cognoscíveis, nos momentos em que o homem tem consciência de si e de seu exterior. O inconformismo do sonhador, esse querer mais, são antecipações do realmente possível e conduzem àquilo que “nunca havia sido experimentado como presente” (BLOCH, 2005, p. 116). Por fim, a esperança enquanto função utópica é a principal energia da função expectante. Diante das privações, das carências e de outros males, por mais que o ser humano sobreviva na adequação às más condições de vida a que é sujeitado, a figura do sonhador inconformado projeta sempre um futuro melhor. Como já afirmado, o anseio pela justiça é um dado antropológico, assim, “desde o princípio exige-se das pessoas que se adaptem ao tamanho do cobertor e elas aprendem a fazer isso; só que os seus desejos e sonhos não obedecem” (BLOCHJ, 2005, p. 451). Porém, esses sonhos diurnos e essa esperança não são realizações individuais num ambiente competitivo onde a disputa do lençol tenha como conseqüência necessária descobrir os pés do próximo; nem o é uma realização para um futuro distante e impreciso, são realizações para as multidões e para o momento presente. Bloch aponta que a liberdade não é o afastamento do indivíduo do mundo, afim de que pense e delibere sozinho, de modo próprio. É a liberdade no próprio mundo, ocasião em que os homens se tornarão, todos, senhores. (MASCARO, 2008, p. 146) Trata-se de uma corrente marxista que pode ser definida como espécie de marxistamessiânica, a exemplo e ao lado das reflexões de um de seus interlocutores, Walter Benjamin. Uma mistura inicialmente paradoxal de materialismo e transcendência que enxerga em momentos históricos específicos, as revoluções, e num sujeito, o povo, a tarefa do messias, de realização do projeto humano de emancipação. Assim, a função utópica é a única transcendente que restou, e a única que é digna de permanecer: uma função transcendente sem transcendência. Seu esteio e correlato é o processo que ainda não resultou no seu conteúdo 7

Como é sabido, Marx não se dedicou em nenhum dos seus textos à análise exclusiva e metódica acerca do direito, não obstante, é possível aplicar o método dialético marxista a essa ciência, como de fato já foi feito. A mais célebre e pioneira dessas abordagens foi desenvolvida pelo jurista soviético PASUKANIS, E. B. A teoria geral do direito e o marxismo. Rio de Janeiro: Renovar, 1989. Em terras brasileiras ver NAVES, Márcio Bilharinho. Marxismo e direito: um estudo sobre Pachukanis. São Paulo: Boitempo, 2008. Os resultados são pela sobredeterminação do direito pelas formas de produção, negando qualquer autonomia à forma jurídica, mero reflexo da infra-estrutura, consequentemente, a construção de uma sociedade realmente livre (comunista) passava necessariamente pela abolição também do direito.

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mais imanente, o qual está sempre a caminho de se realizar – logo, o qual existe, ele próprio, em esperança e intuição objetiva do que-ainda-não-veioa-ser como de algo que-ainda-não-se-tornou-bom (BLOCHJ, 2005, p. 144).

Essas elaborações, como as de Ernst Bloch e Walter Benjamin, somam ao conjunto do materialismo histórico fragmentos messiânicos, românticos e libertários que permitem transformar o pessimismo do diagnóstico dos marxismos sobre a sociedade burguesa num inconformismo que impulsiona “um projeto revolucionário com vocação emancipadora geral.” (Löwy, 2005, p. 154). O que os mantém como marxistas é o não abandono do método dialético, inclusive, a revisão do marxismo e sua superação é uma imposição do próprio método (LUKÁCS, 2012). Essas abordagens ultrapassam as correntes marxistas mais vulgares que negam qualquer dignidade ao Direito, qualificando-o como mero reflexo da infra-estrutura e, portanto, totalmente condicionado pelas forças econômicas do capital. Outro autor de tradição marxista e que se opõe a essa visão economicista do Direito e reconhece nesse campo uma potencialidade transformadora do Direito é Franz Neumann, Filósofo do direito contemporâneo a Bloch e igualmente em diálogo constante com os autores que compunham a Escola da Frankfurt. Em sua célebre análise sobre o nacional-socialismo na Alemanha (NEUMANN, 2005), o autor reconhece a gênese ideológica do direito, ligado a burguesia liberal e vinculado a realização dos interesses dessa classe, porém, dirá que a participação do operariado no Parlamento teria o condão de interromper essa função ideológica do Direito (RODRIGUEZ, 2004, p. 63), dessa forma, abrindo portas para uma outra utilização do processo de produção e aplicação das normas, transformadora. É evidente que esse retorno a essa rica produção realizada, sobretudo, na metade final do século passado não pode ser feita sem uma revisão e adequação à realidade de nosso tempo, visto que “o clássico também sofre metamorfose, pode ser lido nos moldes da exegese doutrinal ou de maneira plural. Outrossim, o retorno ao clássico permite sua atualização, universalizando-o” (ARRUDA JUNIOR, 1996, p. 134). Dessa forma, desde já visualizamos algumas possibilidades. Diante da complexidade das sociedades modernas multifacetadas e da significativa perda de poder político da organização do proletariado diante da crescente automação, não acreditamos mais, com Neumann, que o espaço de excelência da transformação social seja exclusivamente o Parlamento preenchido pelo proletariado, mas também os espaços urbanos8, bem como pensamos que não cabe mais apenas ao proletariado o objetivo messiânico de libertação do homem, mas às organizações em multidões 9. Portanto, é imprescindível resgatar no ensino jurídico superior uma corrente materialista e contestadora da filosofia do direito para transformar a prática do Direito. Essa tradição é representada por pensadores como Ernst Bloch, Walter Benjamin, Franz Neumann, bem como Herbet Marcuse e Georg Lukács; tradição hoje apagada de nossos manuais acadêmicos e em franca oposição à filosofia dos vencedores, que nos parece representada pela esmagadora preponderância de estudos alicerçados em construções teóricas conservadoras como aquelas propostas por Luhmann ou Habermas. 2.2 O método dialético 8

Não nos esqueçamos que ao redor do mundo tem persistido uma demanda ética na política que tem conduzido a eclosão de manifestações como o Occupy Wall Street, A Primavera Árabe e as Jornadas de Junho no Brasil; expressões do poder constituinte latente do povo que ocorrem nas ruas da cidade e bem longe do Parlamento (HARVEY, 2012). 9

“Devemos distinguir a multidão, em termos conceituais, de outros sujeitos sociais, como o povo, as massas e a classe operária.” [...] “A multidão [...] é múltipla. A multidão é composta por inúmeras diferenças internas que nunca poderão ser reduzidas a uma unidade ou identidade única” [...] “o desafio apresentado pelo conceito de multidão consiste em fazer com que uma multiplicidade social seja capaz de se comunicar e agir em comum, ao mesmo tempo que se mantém internamente diferente” (HARDT; NEGRI , 2012, p. 12-13). É importante destacar a expressão do fenômeno da multidão nas Jornadas de Junho. Não se tratava de um sujeito social único, mas da soma de atores sociais plurais e independentes entre si, agindo em torno de bandeiras que guardam um conteúdo social comum, mas também distintas entre si.

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Os autores citados não compõem um grupo de reflexões que possam ser agrupadas e rotuladas com o título de alguma escola, além disso, as leituras de suas obras recebem diferentes cargas interpretativas, hora assumindo um teor mais ou menos conservador. Então, o que permite que os tratemos de maneira conjunta¿ O método dialético que os une10. Acreditamos que uma abordagem crítico-dialética é a única capaz de elucidar a complexidade da forma jurídica, intensamente perpassada por fatores sociopolíticos com reflexos ideológicos, compreender suas contradições e propor sua superação. O método entende o homem e a realidade como elaborações históricas, produtos da práxis humana, constituindo uma teoria da realidade como totalidade concreta, no sentido dado por Kosik, segundo qual “o princípio metodológico da investigação dialética da realidade social é o ponto de vista da totalidade concreta, que antes de tudo significa que cada fenômeno pode ser compreendido como momento do todo” (KOSIK, Karel, 1976, p, 76). Portanto, é importante que partamos da realidade e não da ideia, assim, a partir da análise do particular – que também é representação do universal – deve-se proceder a reconstrução da realidade no pensamento, para torná-la então não apenas cognoscível, mas, sobretudo passível de transformações por meio da práxis, realizando os conselhos de Marx na sua undécima tese sobre Feuerbach11. Não por coincidência, é exatamente essa tese de Marx que abre os estudos sobre a dialética marxista realizados por Lukács em História e consciência de classe, na oportunidade, em oposição aos estudos “metafísicos” nos quais o objeto deve permanecer intocado e imodificado, o autor sentencia que “para o método dialético a transformação da realidade constitui o problema central” (LUCÁKS, 2012, p. 64). Adotar esse método significa abandonar os esquemas de uma ciência do direito baseada num hermético positivismo normativista e passar a compreender o direito pela maneira como ele se manifesta cotidianamente, ou seja, como uma realidade fortemente influenciada por fatores políticos, econômicos e ideológicos. Para realizar a tarefa devemos iniciar da realidade da prática dos nossos operadores jurídicos e, principalmente, das consequências dessa prática. Indagando a quem serve a reprodução, em nossas Universidades e para fora delas, desse ensino e prática bancários. A partir desse processo será possível, como dito, não apenas conhecer a realidade de nossa prática jurídica, mas também transformá-la. Ressalta-se ainda outra característica essencial do método dialético: realiza a construção de conhecimentos provisórios, portanto, é essencialmente revisionista, onde teoria e prática se transformam criticamente, buscando permanentemente a sua superação. 3. A CONTRA-HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO O resgate de autores inseridos numa tradição materialista, não metafísica, e a adoção do método dialético para compreensão e transformação do Direito é uma empreitada inscrita num projeto que pode ser chamado de uma contra-história da filosofia do Direito12, pois vai de encontro à filosofia dominante e tem como objetivo munir os operadores do direito de uma cultura jurídica que favoreça a transformação social. Um projeto dessas proporções tem a ambição de contribuir para o fim de qualquer forma de exploração do homem e da mulher, seja entre nações, regiões, povos, gênero ou raça; é um projeto 10

Como ensina Lukács, o que define o marxismo ortodoxo não é uma crença cega nos pressupostos de Marx, que redundaria também numa espécie de dogmatismo. O método dialético pressupõe a construção de conhecimentos provisórios, sempre superáveis por novas sínteses. A ortodoxia se refere ao método e suas categorias, como a contradição, as teses e antíteses e superação mediante as sínteses. (LUCÁKS, 2012, p. 64) 11

Os filósofos apenas interpretam o mundo de diferentes maneiras, trata-se, porém, de transformá-lo.

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A exemplo da proposta feita por Onfray em seu Contra-história da filosofia, no qual inicia com a afirmação que “a historiografia é do âmbito da arte da guerra” e mais adiante defende que “a escrita da história da filosofia grega é platônica [...] a historiografia dominante no Ocidente liberal é platônica. Assim como se escrevia a história apenas do ponto de vista marxista-leninista no Império soviético do século passado, em nossa velha Europa, os anais da disciplina filosófica se estabelecem do ponto de vista idealista. Conscientemente ou não. (ONFRAY, 2008, p. 15).

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grandioso, utópico, porém, concreto, pois, caso contrário, se considerado uma utopia abstrata irrealizável, toda a produção dos documentos internacionais sobre direitos humanos, bem como as constituições dos Estados modernos, não passariam de legislação simbólica, menos que cartas de intenções e mais verdadeiras ferramentas de dominação ideológica. Pois, ainda segundo Bloch, o único herdeiro do que na antiga burguesia revolucionária se pleiteava em termos de humanidade, é o marxismo (BLOCH, 2006, p. 444), pois Marx via o comunismo como possibilidade de realização daquilo que a burguesia prometeu, criou condições de concretização e não cumpriu, em função de não ser de interesse da filosofia e prática burguesa a eliminação da crise advinda da própria forma de ser burguesa (BLOCH, 2005, p. 15). Em suma: Trata-se de um objetivo universal que se inspira na promessa não cumprida de 1789: liberdade, igualdade e fraternidade ou, sobretudo solidariedade, por incluir tanto os irmãos quanto as irmãs. São valores revolucionários que contém, como salientava Ernst Bloch, um excedente utópico que ultrapassa os limites estreitos e mesquinhos da sociedade burguesa. A universalidade utópica [...] se opõe inteiramente à pseudo-universalidade ideológica que considera o status quo como o universal humano acabado (LÖWY, 2012, p. 154). Assim, cabe negar também qualquer leitura pós-moderna sobre o fim da história e um suposto aperfeiçoamento de uma única narrativa vencedora; o momento histórico indica exatamente o caminho contrário. O aprofundamento das crises econômicas do capitalismo e de seus paradigmas ideológicos, bem como a predominância de uma moral individualista racional-instrumental incapaz de resolver os problemas ainda não solucionados da modernidade, dão novo fôlego ao retorno aos clássicos, sobretudo os autores que foram “vencidos”. Nesse contexto, é o que pretendemos fazer revisitando sobre a ótica do direito a categoria da utopia. 3.1. A constituição federal de 1988 como projeto utópico concreto No Brasil, a Constituição Federal de 1988 é o documento representativo por excelência dessa utopia concreta, no sentido de encerrar um projeto alicerçado na promoção da dignidade da pessoa humana e que tem por objetivo a construção de uma sociedade justa e igualitária a ser promovida com a redução drástica de todas as desigualdades e livre de preconceitos de gênero, raça, orientação social e outras naturezas. Nesse sentido é um “não-lugar”, um “ser-ainda-não”, no entanto, não há que se falar numa utopia abstrata, uma vez que a Constituição é a consolidação de sonhos diurnos do passado nunca realizados, como aquelas da nossa primeira república, que voltam ao seu texto, bem como sonhos diurnos mais recentes como a promoção e proteção de um meio ambiente saudável. É uma Carta herdeira também, portanto e evidentemente, daqueles mesmos ideais da Revolução Francesa. Claro, não se nega, a CF de 88 é também um documento constitutivo de uma ordem liberal em sua defesa da propriedade e da liberdade de iniciativa. Porém, o que lhe define são seus substanciais traços sociais, vez que, mesmo o resguardo da propriedade é condicionado ao cumprimento de sua função social. Sua função social exige o uso racional dos recursos naturais, a observância das relações de trabalho e sua valorização e a preservação do meio ambiente, autorizando a interpretação de se tratar de um dever-direito, no sentido que, a propriedade que não observar os ditames constitucionais da função social propriedade não o é (MARÉS, 2003). Nossa investigação se insere na busca da(s) causa(s) da ineficácia social do texto constitucional brasileiro, sobretudo no que concerne às questões que possibilitariam uma verdadeira emancipação do cidadão brasileiro, não obstante o texto constitucional constituir um projeto plenamente realizável e que contém objetivos que remontam a períodos significativamente anteriores à década de 1980, como a nunca realizada erradicação do analfabetismo que data da primeira república. A pesquisa tem como objeto privilegiado o Direito, notadamente a formação de seus operadores e o reflexo dessa formação na prática forense, é de se indagar se existem as ferramentas jurídicas adequadas a transformação da realidade por que os nossos operadores insistem em falas ultrapassadas que não condizem com a vontade da Constituição¿ A hipótese é que um determinado modelo de ensino positivista, bancário (FREIRE, 2012). e voltado para as necessidades do mercado e obtenção de resultados positivos em provas de avaliação geral acaba por formar profissionais não aptos a manusear o direito em sua potencialidade emancipatória e libertadora.

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A compreensão desse paradoxo, certamente, exige aportes externos ao campo, assim, expor que o Direito é o objeto privilegiado da pesquisa, implica necessariamente que não será o único, dessa forma, pretendemos lançar mão de uma abordagem pluridisciplinar, centrada primordialmente nas áreas da filosofia geral e do direito, da sociologia e da da antropologia, porém sem olvidar de tantas mais áreas quanto forem possíveis e úteis para desenvolvimento de nosso objeto de pesquisa. Tampouco entendemos o Direito como panacéia de todos os problemas sociais ou mesmo como o ambiente mais adequado para solução das questões essenciais de uma democracia; ambiente que ainda acreditamos ser o da política, desde que oxigenado por novas formas de participação direta e canais de comunicação entre as multidões e seus representantes. Nosso argumento é que o direito tem muito a contribuir e está contribuindo muito aquém, com o que é, na verdade e ontologicamente, a sua função mais nobre e primordial, a emancipação do homem. É nesse sentido que Alain Supiot nos fala de uma aspiração à justiça como um dado antropológico fundamental, ou seja, inerente a humanidade e, portanto, ao direito. Segundo o autor, seria necessário para a vida em sociedade o compartilhamento de uma ideia comum sobre o sentido da vida entre os homens e o direito, mais precisamente a dogmática jurídica, seria a ferramenta cultural criada pelo Ocidente para unir os homens, pois é nele que estão expressas as nossas crenças fundamentais. Hoje, nas constituições ocidentais, essa união se dá em volta da realização da dignidade humana de forma geral e irrestrita, sendo sua realização o que constitui e preenche esse sentido de justiça compartilhado. Não sendo revelado nem por Deus, nem pela ciência, o direito é uma técnica elaborada por homens e que, portanto, pode servir aos mais diversos fins, inclusive, fins imorais. Para que o direito realize o potencial transformador do qual falamos: O estudo do Direito necessita de estudiosos e eruditos capazes de compreender os desafios morais, econômicos e sociais que dão sentido à técnica jurídica e não de êmulos do Doutor Diafoirus aspirantes ao estatuto de ‘verdadeiro’ cientista (SUPIOT, 2007, Prefácio, XXV). Nesse ponto saltam as possibilidades de realização de paralelos com a obra de Rousseau, especialmente as intrínsecas relações entre o Contrato Social e seu tratado sobre educação intitulado Emílio. Não é por acaso que em seu Direito Natural e Dignidade Humana Bloch vai ressaltar Rousseau, ao lado de Bachofen, como as duas grandes fontes de sua concepção de direito natural como construção social voltada à realização de uma justiça socialista. De Rousseau admira o peso que o autor confere ao cidadão e não ao indivíduo capitalista. De Bachofen, em quem Bloch vê uma continuação de um romantismo rousseaniano, retira a concepção de direito matriarcal trabalhado em obra homônima, citando a célebre dicotomia existente em Antígona entre uma dignidade feminina haurida da terra e o domínio patriarcal estatal (MASCARO, 2008 p. 147). Retomando à Rousseau, da mesma forma que o filósofo genovês enxergava na formação dos Emílios – por meio de um rigoroso processo de educação com 25 anos de duração e voltado à cidadania – o mais importante requisito para o surgimento de uma vontade geral que fosse diferente da simples soma das opiniões e verdadeira representante do interesse público, o direito necessita da formação de operadores comprometidos com a realização do potencial transformador que se encerra em seu texto13. Trata-se de fenômenos conexos, um processo cíclico, uma vez que uma atitude progressista dos operadores do direito em busca da realização da dignidade humana, notadamente no que concerne aos direitos sociais e, sobretudo, à educação, poderia exatamente criar as condições para o surgimento dos Emílios do século XXI. Pois, ainda que não haja o real interesse político e prático na concretização dos direitos sociais pela elite brasileira – elite que na prática detém vitaliciamente a maioria dos acentos no Parlamento, bem como compõe a esmagadora maioria dos altos cargos do funcionalismo público – 13

Não queremos inferir que a simples formação desses profissionais teria o condão de resolver todas as mazelas da sociedade brasileira e enfim concretizar a Constituição, na realidade, trata-se de um processo menor dentro de um fenômeno mais abrangente, pois, de nada adiantará a mudança da mentalidade de nossos operadores se sua nova prática não for aceita e até mesmo endossada pela população em geral. Portanto, uma radical transformação da educação de base continua sendo o objetivo mais premente para realização de uma verdadeira democracia brasileira, pondo fim nos processos eleitorais comprados que comprometem a autonomia da Política e do Direito por meio de sobredeterimanação que sofrem essas esferas do sistema econômico.

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caso passemos a formar operadores jurídicos comprometidos com a concretização do déficit utópico de nossa constituição, sobretudo o direito fundamental à educação de qualidade a todos, teríamos condições de iniciar o processo de formação de verdadeiros cidadãos, aptos a construir uma vontade geral coletivista por meio da sua participação co-responsável nos processos políticos. Nesse ponto, é importante indagar sobre as reais possibilidades dos integrantes das carreiras jurídicas de inserirem na sua prática profissional um uso transformador do Direito. Não se pode olvidar, no entanto, que a composição dessas carreiras, em função da realização de processos seletivos que valorizam uma educação bancária e que são excessivamente complexos, privilegia indivíduos advindos das elites dominantes, portanto, membros daquela mesma elite que comando politicamente o país. Nesse sentido, passa a ser objetivo dessa pesquisa investigar alternativas também para a composição dessas carreiras por sujeitos mais plurais, consequentemente, mais representativos dos diferentes setores da sociedade brasileira. Para além, é imperioso avaliar o papel que o Direito exerce e pode exercer na sociedade, bem como analisar a formação do operador do direito hoje, a saber, precisamos saber se o direito realmente pode ser instrumento de mudança social e se os juristas têm a formação cultural e superior necessária para o exercício de suas funções em busca dessa transformação. Podemos adiantar, porém, que a atual formação do jurista brasileiro, por diversas razões, seja em função de uma adequação dos projetos políticos pedagógicos ao mercado, seja em função da expansão das escolas de direito com pouco ou nenhum critério, está centrada num paradigma científico do positivismo normativista e no paradigma ideológico do liberalismo e que esse quadro: Nem permite a produção de uma cultura enciclopédica e humanística; portanto, uma cultura jurídica mais ampla e mais consistente que não se resuma apenas ao ensino de normas; nem fornecem aos bacharéis em direito a formação adequada para que possa entender os reais problemas políticos de seu tempo, ou os problemas específicos da realidade brasileira atual, de maneira que viessem a atuar consequentemente na conjuntura desses problemas (MACHADO, 2009, p. 4). A ausência dessa prática transformadora do direito contrasta com a realidade do texto constitucional e contribui significativamente para sua não realização. Há um claro distanciamento, até mesmo uma oposição, entre discurso e fala14; onde temos um discurso constitucional extremamente progressista, síntese das lutas democráticas travadas no mais recente processo de redemocratização do país em franca contradição a uma atuação jurídica nos cânones da legalidade liberal e privatista. Nesse sentido, nos lembra Supiot que o direito “é uma obra plenamente humana, da qual participam aqueles que se dedicam a estudá-lo e não podem interpretá-lo sem levar em consideração os valores por ele veiculados” (SUPIOT, 2007, Prefácio, p. XXIV). Um dos efeitos mais perversos de uma filosofia política normativista construída nos moldes kelsenianos, ou diretamente referente ao seu método, é que, separando radicalmente a ciência da sociologia do direito, realiza a “criação das aparências de uma utopia que já realizou plenamente a sua inserção na história” (PÊPE; WARAT, 1996, p. 24). São imprevisíveis os resultados da radicalização dos canais democráticos, aliado a formação de cidadãos libertos do processo de reificação e aptos à construção de uma vontade geral libertadora. No entanto, parece-nos o caminho de realização do projeto de felicidade do homem, consubstanciado no sonho de Rosa Luxemburgo de um socialismo com democracia, local de fala de onde crava Bloch “nenhuma democracia sem socialismo e nenhum socialismo sem democracia” (BLOCH Apud MASCARO, 2008, p. 164).

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O que se nota, não apenas em relação ao texto constitucional, mas também com outros documentos com teor social e progressista, como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), é uma prática profissional que não realiza, e até mesmo vai de encontro, com os seus objetivos declarados. No caso do ECA, está sempre presente nas peças processuais, um discurso de preocupação com a pessoa em desenvolvimento e o objetivo declarado de obter a ressocialização do jovem, no entanto, constroem-se falas que responsabilizam a pessoa em desenvolvimento e não há qualquer ação no sentido de fiscalização dos resultados. Importa ao Judiciário, tão somente, os números frios que indicam sua produtividade. (ROSA; SARTÓRIO, 2010). Sobre a necessidade de se desvelar os verdadeiros discursos por trás da utilização dos signos: “certamente os discursos são feitos de signos; mas o que fazem é mais que utilizar esses signos para designar coisas. É esse mais que os tornam irredutíveis à língua e ao ato da fala. É esse ‘mais’ que é preciso fazer aparecer e que é preciso descrever” (FOUCAULT, 2005, p. 55).

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EDUCAÇÃO JURÍDICA POPULAR: UMA PROPOSTA DE EMANCIPAÇÃO Popular legal education: a proposal for emancipation

Ricardo Oliveira Rotondano Advogado. Especialista em Direito Processual pela Universidade Gama Filho. Mestrando em Direito pela Universidade de Brasília. Recebido em agosto/2014 Aceito em outubro/2014

Resumo: O presente trabalho visa analisar a proposta de educação jurídica popular como efetivo instrumento de consecução dos direitos fundamentais, rompendo o histórico de desigualdade social brasileiro. Analisar-se-á inicialmente os principais elementos que contribuíram para a construção da situação de desigualdade social brasileira: o modelo de colonização português no Brasil, a modernidade e o positivismo jurídico. Após a referida investigação, discorrer-se-á sobre a ideologia do projeto de educação jurídica popular e os seus possíveis efeitos para a população brasileira. Palavras-chave: Direitos fundamentais – Educação – Emancipação.

Abstract: This study aims to analyze the propose of legal education popular as an effective instrument of achieving the fundamental rights, breaking the record of Brazilian social inequality. It will examine initially the main elements that contributed to the construction of the situation of Brazilian social inequality: the Portuguese colonization model in Brazil, modernity and legal positivism. Following this investigation, will talk about the ideology of popular legal education project and its possible effects on the brazilian population. Keywords: Fundamental rights – Education – Emancipation.

Introdução

O atual panorama socioeconômico brasileiro revela índices alarmantes de desigualdade e exclusão social. Segundo censo recente realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), os 10% mais pobres ganhavam apenas 1,1% do total de rendimentos. Já os 10% mais ricos ficaram com 44,5% do total. Outro recorte revela o rendimento médio no grupo do 1% mais rico: R$ 16.560,92. Os dados valem para a população de 101,8 milhões de brasileiros com 10 anos ou mais de idade e algum tipo de rendimento em 2010. A renda média mensal apurada foi de R$ 1.202. Levando-se em conta os habitantes de todas as idades, o IBGE calculou a renda média mensal per capita de R$ 668. O Censo indica, porém, que metade da população recebia até R$ 375 por mês, valor inferior ao salário mínimo oficial em 2010, que era de R$ 510 (FGV/CPS, 2011).

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Um estudo aprofundado revela que a atual conjuntura econômico-social brasileira é resultado de uma complexa cadeia de sucessivos fatores, que ao longo da história, construíram uma base social marcada pela opressão e desigualdade. Entre tais fatores, destacamos o modelo impróprio de colonização exercido pelos portugueses em terras brasileiras, marcado essencialmente pela distinção entre uma aristocracia opressora, e uma grande massa oprimida. A modernidade, de modo semelhante, contribuiu para a construção e manutenção do atual estágio de segregação social, ao imbuir no cidadão uma espécie de passividade que, inegavelmente, serve como entrave a qualquer modo de movimento social libertador. Por fim, ainda é possível citar que o modelo positivista de direito, negando a validade de um direito baseado na ética – e interpretado conforme esta – acaba servindo às classes dominantes, e cedendo continuidade ao modelo jurídico de Estado opressor, individualista e elitista. O presente trabalho tem o escopo de analisar, com criticidade, a formação da situação social contemporânea do Brasil. Mais do que isso: pretende-se, ademais, formular uma teoria concreta acerca da possível solução para a referida problemática. Segundo parcela de renome da doutrina, a educação configura-se como caminho profícuo para a transformação do atual paradigma de desigualdade econômico-social brasileiro. A investigação em tela propõe que tal educação seja imbuída de conteúdo jurídicocrítico. Não basta, desse modo, somente fornecer uma educação “básica”, formalista, sem qualquer caráter axiológico, ao cidadão oprimido. Os objetivos em foco somente poderão ser efetivamente alcançados a partir da disseminação de um conhecimento capaz de transformar a visão do homem sobre sua posição social, e sobre as estruturas sociais das quais faz parte. Entendemos que o conhecimento jurídico preenche tais requisitos, tendo o poder de conceder ao sujeito oprimido a chave para as grelhas que o acorrentam em sua posição de segregação. A constatação do atual (e deplorável) panorama socioeconômico brasileiro pode ser facilmente inferida a partir das diversas notícias divulgadas pelos meios de comunicação nacionais, além dos dados estatísticos divulgados no primeiro parágrafo deste trabalho. Falta clareza e consenso, entretanto, sobre os fatores responsáveis pela formação desta situação. Dessa forma, iniciaremos a presente pesquisa com uma breve análise acerca dos elementos que auxiliaram a formação do referido entrave para, posteriormente, desenvolver hipótese sobre a sua possível transposição.

1. A colonização portuguesa em terrae brasilis

O modelo colonial português implantado no Brasil deve ser caracterizado como um dos principais fatores para o surgimento do panorama de deficiência socioeconômico visualizado nacionalmente. A colonização portuguesa foi, desde o princípio, marcada pelo caráter elitista. Todo o

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aparato organizacional do Estado servia aos interesses da aristocracia portuguesa dominante. O modelo de exploração intensa que marcou a colonização despreocupou-se, por consequência, com a formação do povo brasileiro. Aníbal Quijano (2205, p. 123) explica que, durante a ocupação colonial, os colonizadores brancos latino-americanos, que detinham o poder político e eram donos de escravos e servos, buscavam acumular cada vez mais riqueza às custas da população colonizada. Era evidente o antagonismo de interesses entre tais senhores proprietários e a imensa mazela de nativos desprivilegiados – negros, índios e mestiços. Ao contrário dos Estados Unidos, praticou-se no Brasil a livre exploração da força produtiva servil, posto que somente os brancos europeus eram dignos do trabalho assalariado. Nessa esteira, o direito aplicado em terras brasileiras servia exclusivamente aos interesses da colônia. Os ideais da população nativas restavam rejeitados pelo projeto de colonização português. Nas palavras de Antonio Carlos Wolkmer (2003, p. 40): “O principal escopo dessa legislação era beneficiar e favorecer a Metrópole. A experiência político-jurídica colonial reforçou uma realidade que se repetiria constantemente na história do Brasil: a dissociação entre a elite governante e a imensa massa da população”. Este é um ponto crônico: o histórico da colonização nos mostra que a formação da sociedade nacional foi marcada, essencialmente, pelo poder exacerbado. O povo brasileiro não vislumbrou outro modus operandi português, que não fosse ligado a alguma espécie de opressão. Não lhe eram concedidas oportunidades de participação no Estado em construção, sempre a serviço do colonizador: Esta foi, na verdade, a constante de toda a nossa vida colonial. Sempre o homem esmagado pelo poder. Poder dos senhores das terras. Poder dos governadores gerais, dos capitães-gerais, dos vice-reis, do capitão-mor. Nunca, ou quase nunca, interferindo o homem na constituição e na organização da vida comum (FREIRE, 1967, p. 74).

Este modelo colonial, baseado na concentração de autoridade da metrópole, deu origem a uma população apática, sem expressão. A inexistência de participação popular nos projetos de construção do Estado – ou melhor, a inexistência da prática da cidadania – gerou na coletividade a habitualidade com aquela situação. Ademais, a inatividade pública configurou outro importante efeito: a não formação de uma identidade nacional. Com propriedade, ensina Paulo Freire (1967, p. 71): Entre nós, pelo contrário, o que predominou foi o mutismo do homem. Foi a sua não-participação na solução dos problemas comuns. Faltou-nos, na verdade, com o tipo de colonização que tivemos, vivência comunitária. Oscilávamos entre o poder do senhor das terras e o poder do governador, do capitão-mor.[...] É que em todo o nosso background cultural, inexistiam condições de experiência, de vivência da participação popular na coisa pública. Não havia povo.

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A população brasileira cresceu em um contexto de extrema subserviência aos interesses alienígenas, e acabou internalizando à sua práxis tal posição. É o que aponta Darcy Ribeiro (1968, p. 63), definindo como subalterno o característico do povo colonizado brasileiro, historicamente privado de riqueza e dos lucros do seu trabalho, degradado e humilhado. Assume, então, como sua a imagem de que era um simples reflexo da cosmovisão europeia, que considerava os povos coloniais racialmente inferiores. Esta era uma perspectiva dos europeus como um todo em relação aos povos ameríndios que habitavam o território colonizado. Efetuou-se em relação aos nativos das terras americanas uma “práxis de dominação” (DUSSEL, 1993, p. 43), centrada na perspectiva do ego conquistador europeu e em sua individualidade. O ameríndio era visto pelo europeu colonizador como um ser diferente de si: como uma coisa, um selvagem, um animal. Negou-se qualquer política de alteridade em relação aos povos nativos da América. O referido discurso é corroborado por Dalmo de Abreu Dallari (2007, p. 33). O autor aponta que o modelo colonial português implantado no Brasil é o principal responsável por inúmeros entraves à consecução dos direitos fundamentais. O autor ilustra a referida tese apontando o desnível regional brasileiro como grande exemplo dos problemas sociais gerados pela colonização lusa: As formas de ocupação do território, bem como a repercussão de acontecimentos políticos da Europa, além dos interesses econômicos europeus, tudo isso contribuiu para a definição de um tipo de sociedade em que desigualdade de direitos e de acesso à riqueza e aos benefícios proporcionados pela vida social é escandalosamente evidente. Um desnível antigo e persistente é o de caráter regional. Na verdade, existem regiões profundamente diferenciadas entre sí, sendo evidente a existência de uma parte pobre e atrasada, especialmente nas regiões norte e nordeste do país, ao lado de outra mais desenvolvida, moderna e dinâmica, em que há muito mais oportunidades de trabalho e de ascensão social, englobando o sul e o centro-sul do país.

Pode-se afirmar, com referência na lição exposta, que a colonização lusa foi um dos grandes fatores responsáveis pela formação de uma sociedade marcada pela desigualdade. O próprio projeto colonizador estava destinado a gerar tal consequência, visto que tinha claro intuito exploratório. Além da problemática referente à espécie de colonização aplicada em terras brasileiras, há ainda outro elemento com semelhante contribuição que merece destaque no presente estudo: o movimento histórico-filosófico denominado modernidade.

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2. A modernidade e seus efeitos

Enquanto a análise do tópico anterior tinha como campo de estudo acontecimentos no plano territorial brasileiro e latino-americano, a modernidade – tema deste tópico – engloba uma conjuntura muito mais ampla. A influência e os efeitos da era moderna envolvem uma gama considerável de diferentes áreas, e os seus efeitos pode ser facilmente visualizados na sociedade atual. Cabe destaque para o ideal de “universalizar a razão”, pregado pela modernidade, e que acabou se tornando um projeto de “europeização” do globo. Isto porque a “razão” disseminada pelos ideais modernos era identificada simplesmente com o progresso científico elaborado pelo modelo europeu de conhecimento. Dessa forma, universalizar a razão significa expandir o modo de pensar europeu para o resto do mundo. 15 A professora Ivone Lixa (In WOLKMER et al., 2010, p. 126) entoa as principais características e efeitos do movimento e período moderno: Modernidade, assim, é um projeto múltiplo, ambíguo e complexo que enfeixa em si relações de dominação desenvolvidas mundialmente desde o século XV cujo impulso foi a autoelaboração europeia de um imaginário de “progresso” linear e universal. Uma “missão civilizadora” cujos “efeitos colaterais”, apesar de previstos e contabilizados desde seu início, eram “justificáveis e inevitáveis” para ser superado definitivamente o estado de natureza, conceito político que, além de ter servido para liquidar a experiência histórica e cultural das civilizações não europeias, também é usado para apontar a irracional condição humana fora da sociedade civil.16

Nesse sentido, há a atribuição de culpa aos povos considerados “selvagens” por seu suposto atraso científico-cultural. O modo de vida europeu – considerado o último estágio de desenvolvimento global – é o único que se enquadra no conceito de civilização, devendo ser estendido aos demais povos, como forma de retirá-los do seu patamar de subdesenvolvimento.

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Nestes termos, Santiago Castro-Gómez (Ciências sociais, violência epistêmica e o problema da “invenção do outro”. In LANDER, Edgardo. A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latinoamericanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005, p. 84), com amparo na lição de Robert Meek, entoa que: “Assim, a maioria dos teóricos sociais dos séculos XVII e XVIII (Hobbes, Bossuet, Turgot, Condorcet) coincidiam na opinião de que a ‘espécie humana’ sai pouco a pouco da ignorância e vai atravessando diferentes ‘estágios’ de aperfeiçoamento até, finalmente, obter a ‘maioridade’ a que chegaram as sociedades modernas europeias”. 16

Incorrem na mesma lição Bruno J. R. Boaventura e Ivone M. F. da Silva (A incompletude da modernidade pela aporia da questão social. Aletheia, n. 2, pp. 25-45, 2012, p. 27): “O tradicional sucumbiria ao progresso, estava anunciada a revolução: o novo tempo se ilumina, a humanidade conhece o alvorecer daquilo que chamará de modernidade, a nova etapa do contínuo processo global de europeização do mundo”.

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Estariam os europeus, assim, legitimados a utilizar até mesmo a violência para exercer tal tarefa, sob o pretexto de beneficiar os nativos colonizados. 17 Ademais, o modelo de investigação do conhecimento construído pela modernidade baseava-se em métodos empíricos: somente o que pode ser cognoscível ao homem através dos sentidos pode ser estudado. Nega-se, dessa forma, o estudo e a produção de conteúdos axiológicovalorativos. A modernidade primava pela reprodução e disseminação de conhecimentos técnicos, apenas; a formação crítica do indivíduo era, dessa forma, desprezada.18 Edgardo Lander (2005, p. 9) revela como a separação epistemológica provocada pelo conceito científico-moderno europeu incitou danos ao estudo das ciências sociais. O autor entoa que a ruptura ontológica entre o corpo e a mente, entre a razão e o mundo – com amparo na doutrina científica de Descartes – estrutura a ideia de um mundo “sem alma”, despreocupado com as concepções valorativas. O estudo científico torna-se engessado, mecânico, matemático: as ciências humanas e sociais passam a ser explicadas a partir de estruturas racionais dissociadas de institutos políticos ou ético-morais. A referida conjuntura acaba por formar sujeitos acríticos, distantes da construção política da sociedade. O projeto de modernidade, ao incitar no homem apenas a formação técnico-formalista, produz indivíduos passivos, incapazes de lutar contra a situação de opressão a que são submetidos. Bruno J. R. Boaventura e Ivone M. F. da Silva (2012, p. 40) atentam para a gravidade da situação, entoando que “O silêncio, o não protestar contra as desumanas condições sociais de vida impostas pelo projeto ocidentalizante da burguesia européia da modernidade significaria a admissão da miséria como condição natural de existência de boa parte da humanidade”. A “ignorância crítica” fruto da modernidade enclausura o cidadão no mundo opressor, que lhe é conhecido. Incapaz de elaborar um projeto de emancipação – por conta das limitações inerentes a uma formação estritamente técnica –, o homem aceita passivamente sua condição de oprimido. O referido paradigma faz com que, de modo inconsciente, o homem se refugie em “círculos de segurança”, preferindo assim a estabilidade cômoda trazida pela segurança do que a liberdade arriscada fruto da conscientização. O educador Paulo Freire (1987, p. 12) dialoga sobre o tema: 17

Neste sentido, Enrique Dussel (1492: O encobrimento do outro: a origem do mito da modernidade. Tradução de Jaime A. Clasen. Petrópolis, RJ: Vozes, 1993, p. 22): “Este povo, o Norte, Europa (para Hegel sobretudo Alemanha e Inglaterra), tem assim um ‘direito absoluto’ por ser o ‘portador’ do Espírito neste ‘momento de seu Desenvolvimento’. Diante de cujo povo todo outro povo ‘não tem direito’”. 18

“O padrão de conhecimento científico na modernidade, respeitadas as diferenças de perspectivas e áreas, segue um modelo de racionalidade que supõe, a partir da compartimentalização do real, distanciamento dos tipos de conhecimento, sobretudo do senso comum, enunciar discurso verdadeiro e generalizante sobre a realidade, fundamentado em metodologias que buscam isolar o objeto de estudo e verificar o seu comportamento sem interferir diretamente” (COSTA, A. B.; SOUSA JUNIOR, J. G. de. O direito achado na rua: uma ideia em movimento. In COSTA, A. B. [et al.] (orgs.). O direito achado na rua: introdução crítica ao direito à saúde. Brasília: CEAD/UnB, 2009, p. 20).

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Não raras são as vezes em que participantes destes cursos, numa atitude em que manifestam o seu “medo da liberdade”, se referem ao que chama de “perigo da conscientização”. “A consciência crítica (dizem...) é anárquica.” [...] O medo da liberdade, de que necessariamente não tem consciência o seu portador, o faz ver o que não existe. No fundo, o que teme a liberdade se refugia na segurança vital, como diria Hegel, preferindoa à liberdade arriscada.

Além da colonização portuguesa e da modernidade se configurarem como elementos importantes para que chegássemos ao atual estágio de desigualdade social brasileira, cabe a inclusão de um terceiro fator neste discurso. No tópico a seguir, realizaremos uma ponderação acerca dos efeitos gerados pelo positivismo jurídico nas sociedades ocidentais que o adotaram; em especial, os efeitos legados à sociedade brasileira.

3. Positivismo jurídico

A teoria positivista foi desenvolvida dentro do período moderno, recebendo diretamente sua influência. Como típico movimento moderno, o positivismo jurídico caracterizou-se pelo excessivo apego à racionalidade, construindo desse modo uma ciência jurídica essencialmente técnica, excluindo-se os juízos de valor.19 Isto porque a concepção metodológica de ciência da modernidade – herdada pelas positivistas – se caracterizava pelo empirismo, negando consequentemente o estudo de objetos metafísicos. Sobre o tema, Hugo de Brito Machado Segundo (2010, p. 45): Uma das principais características do positivismo jurídico é seu compromisso com determinada concepção de ciência. Isso porque, como se sabe, ele decorre da tentativa de tratar o Direito cientificamente, partindo de uma concepção de conhecimento científico como sendo aquele que pode ser submetido à experimentação, medições e a pesagens, o que afastaria de suas considerações tudo o que não pudesse ser apreendido pelos sentidos, tal como os valores, ou qualquer outra coisa considerada suprassensível ou metafísica.

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“Os positivistas normativistas são, todos, olimpicamente, ‘cientistas’; e, enquanto tal, ignoram a realidade e o social; podem, até mesmo (!), ser dotados de sentimento de sociabilidade, mas, enquanto ‘cientistas’, estão envolvidos com coisa distinta do direito, as normas jurídicas; como tal, põem-se a serviço da justificação de qualquer ordem, desde que válida; não importa que essa ordem seja iníqua, oprima o homem e a dignidade do homem; eles são ‘cientistas’, técnicos, e se recusam a, enquanto ‘juristas’, fazer política – estão tranqüilos, tantas vezes em que funcionam como justificadores da iniqüidade, porque são ‘cientistas’” (GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 4ª edição. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 107).

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Nesse quadro, ocorre a deificação da lei, tornando o direito um instrumento de manutenção do status quo social, impedindo consequentemente a mobilidade entre as classes – ou seja, negando a ascensão social dos marginalizados –, situação que ainda hoje é possível visualizar. Dessa forma, é essencial “perceber que a fundamentação teórica da (re)produção do conhecimento jurídico ainda se sustenta na neutralidade, que possibilita à ciência do Direito uma justificativa para a tomada de posição pelo conservadorismo” (COSTA et al., 2009, p. 23). Importante é perceber como a ideologia jurídico-positivista foi utilizada para dar amparo ao desejo das elites socioeconômicas, ao longo da história, de se perpetuarem no poder, concentrando-o em torno do seu grupo sociopolítico. Serviu, pois, como instrumento ao que Enrique Dussel (2007, p. 46-47) denomina “fetichização do poder”, ao transformarem as instituições estatais em instâncias extrínsecas à vontade do povo, que atuam não para o povo, mas sim sobre o povo, legitimando sua dominação. Isto porque o direito positivo, ao afastar-se do estudo de conceitos axiológicos, distanciase consequentemente da construção de um modelo de construção da justiça social. A investigação jurídica torna-se isenta de finalidade, ao ser analisado pura e simplesmente o direito posto de maneira técnico-formal. O direito positivo realiza, nesse interim, “uma construção dogmática dissociada da dinamicidade dos clames sociais, tornando o Direito descomprometido com uma tarefa maior de realização de justiça política” (TUTIKIAN, 2006, p. 202). O aporte histórico que referencia tais assertivas é trazido pelo professor Marcus Faro de Castro (2012, p. 190-191), ao considerar a situação da Alemanha em fins do século XIX e início do século XX. Ante iminentes transições sociopolíticas ocorridas no Estado alemão, a supremacia da ordem jurídica burguesa corria risco. No intuito de sedimentar um direito que fornecesse meios de rigoroso controle burocrático dos procedimentos político-administrativos, tornando, assim, possível assegurar juridicamente a ordem existente, investiu-se na proposta jurídico-positivista kelseniana, posto que este prometia atender exatamente a tais requisitos. A aplicação inconteste do direito, pregada pelos positivistas, serviu aos interesses das elites dominantes, mantendo as camadas menos favorecidas da população em constante situação de opressão. É necessário primar pela construção, interpretação e aplicação das normas jurídicas sempre com o contributo de valores humanos; insistir no contrário é identificar o destinatário do direito – o homem – como objeto, sem qualquer sentimento de justiça. Este foi o principal equívoco dos juristas positivistas, e que insiste em formar seguidores na sociedade jurídica atual. Neste sentido é a lição de Alain Supiot (2007, p. 24), entoando que a falha “dos juristas que acham realista expulsar as considerações de justiça da análise do Direito é esquecer que o homem é um ser bidimensional, cuja vida social se desenvolve a um só tempo no terreno do ser e do dever-ser”. Igualmente incisiva é a crítica elaborada por Hugo de Brito Machado Segundo (2010, p. 51): “ao identificar o direito como tudo o que existe de fato enquanto tal e se impõe pela coação, o

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positivismo não fornece elementos que permitam diferenciá-lo da ordem dada pelo domador ao animal domado”. Parece estar suficientemente justificada a contribuição do positivismo jurídico no atual quadro socioeconômico brasileiro. O modelo jurídico-positivista embasou a manutenção do status quo de desigualdade social, fornecendo instrumentos para que as elites pátrias mantivessem a grande população em situação de opressão. Identificar uma possível saída para o referido entrave é tarefa árdua. No entanto, ousamos apontar e fundamentar uma solução adequada para tanto: a disseminação da educação jurídica popular.

4. Educação jurídica popular como instrumento de emancipação

5.1 Por uma educação crítica Uma gama de autores tem apontado, com convicção, que a superação das constantes violações aos direitos fundamentais brasileiros somente pode ser alcançada através da educação (FREIRE, 1967; SILVEIRA et al., 2007; ARAÚJO et al., 2003). A ideologia apresentada revela não apenas a necessidade da garantia do direito básico à educação, “como direito fundamental, público, gratuito, obrigatório e subjetivo” que é (DELEVATTI, 2006, p. 12). O discurso em tela revela ser preciso uma educação imbuída de rigoroso teor crítico, sem o qual se torna impensável requerer do cidadão a reflexão social necessária para sua emancipação. O modelo de educação básica praticado cotidianamente, ainda quando efetivamente disponibilizado – na grande maioria das vezes, em instituições particulares de ensino – não contribui para formar indivíduos para a prática da cidadania. O paradigma educacional pátrio ainda compactua com os preceitos modernistas e de educação, ao preocupar-se apenas com a formação técnica do alunado, deixando de formá-lo para a vida pública. Serve, ainda, aos interesses capitalistas, que empregam na educação a função precípua de instrução técnico-operativa do homem, para que este se transforme em mão de obra qualificada. Alejandro Moreno (2005, p. 90) revela a engenhosidade do discurso capitalista, entoando que não se trata de modificar o sistema, mas sim de capacitar tecnicamente os excluídos para que se integre neste. Tal modelo de educação formalista, entretanto, ainda situa como refém do sistema capitalista o indivíduo social, primando pela apatia e pelo individualismo ao invés de investir na criticidade e alteridade. É preciso buscar uma verdadeira formação cidadã, não apenas voltada para a instrução técnica, mas sim baseada na capacidade de discernimento acerca das estruturas econômico-sociais. A reflexividade crítica seria, para a sociedade capitalista, um verdadeiro entrave à alienação consumista que a fomenta, no qual o cidadão desvendaria a teia social individualista na qual está

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inserido, e passaria a se dedicar à emancipação social ao invés de investir seus esforços no impulso consumista: No reino do capital, a educação é, ela mesma, uma mercadoria. Daí a crise do sistema público de ensino, pressionado pelas demandas do capital e pelo esmagamento dos cortes de recursos dos orçamentos públicos. Talvez nada exemplifique melhor o universo instaurado pelo neoliberalismo, em que “tudo se vende, tudo se compra”, “tudo tem preço”, do que a mercantilização da educação. Uma sociedade que impede a emancipação só pode transformar os espaços educacionais em shopping centers, funcionais à sua lógica do consumo e do lucro. (...) Antes disso, educação significa o processo de “interiorização” das condições de legitimidade do sistema que explora o trabalho como mercadoria, para induzi-los à sua aceitação passiva. Para ser outra coisa, para produzir insubordinação, rebeldia, precisa redescobrir suas relações com o trabalho e com o mundo do trabalho, com o qual compartilha, entre tantas coisas, a alienação (SADER In MÉSZAROS, 2004, p. 16-17).

Reforçando tal denúncia, Edgardo Lander (2005, p. 8) entoa ser necessário quebrantar o estabelecimento da sociedade capitalista como único meio de organização socioeconômica, investigando alternativas à conformação excludente da sociedade contemporânea. Para o autor, tal caminho “requer o questionamento das pretensões de objetividade e neutralidade dos principais instrumentos de naturalização e legitimação dessa ordem social”, assumindo um viés científico-crítico calcado na transposição do sistema capitalista-liberal, principalmente no que diz respeito à (re)construção ideológica das ciências sociais. Acrescente-se ainda que a educação transformou-se em uma transmissão vertical (professor-aluno) de conhecimento, no qual o discente apenas apreende o que lhe é passado pelo docente, mas se mantém distante da reflexão acerca do que lhe é disponibilizado. Estimula-se, sobretudo, a memorização mecânica de informação – atrofiando, essencialmente, a capacidade de interpretação de tais conhecimentos e da própria vida social. É o modelo de “educação bancária”, criticado por Paulo Freire, que compactua com o atual momento de segregação social: Em lugar de comunicar-se, o educador faz “comunicados” e depósitos que os educandos, meras incidências, recebem pacientemente, memorizam e repetem. Eis aí a concepção “bancária” da educação, em que a única margem de ação que se oferece aos educandos é a de receberem os depósitos, guardá-los e arquivá-los. Margem para serem colecionadores ou fichadores das coisas que arquivam. No fundo, porém, os grandes arquivados são os homens, nesta (na melhor das hipóteses) equivocada concepção “bancária” da educação. Arquivados, porque, fora da busca, fora da práxis, os homens não podem ser. Educador e educandos se arquivam na medida em que, nesta distorcida visão da educação, não há criatividade, não há transformação, não há saber (FREIRE, 1987, p. 33).

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É preciso realizar mudanças estruturais no modelo educacional brasileiro, incutindo neste o necessário diálogo crítico, fornecendo aos indivíduos uma formação adequada. Adequada para sair da situação passiva frente à opressão que lhe é imposta pelas elites dominantes. Somente a educação popular crítica tem o poder de conceder ao sujeito marginalizado capacidade de autodeterminação, de construção plena do espaço social em que deseja viver: A transitividade crítica por outro lado, a que chegaríamos com uma educação dialogal e ativa, voltada para a responsabilidade social e política, se caracteriza pela profundidade na interpretação dos problemas. Pela substituição de explicações mágicas por princípios causais. Por procurar testar os “achados” e se dispor sempre a revisões. Por despir-se ao máximo de preconceitos na análise dos problemas e, na sua apreensão, esforçar-se por evitar deformações. Por negar a transferência da responsabilidade. Pela recusa a posições quietistas. Por segurança na argumentação. Pela prática do diálogo e não da polêmica. Pela receptividade ao novo, não apenas porque novo e pela não-recusa ao velho, só porque velho, mas pela aceitação de ambos, enquanto válidos. Por se inclinar sempre a arguições (FREIRE, 1067, p. 60).

A educação popular crítica tem o claro viés de proporcionar ao sujeito oprimido a consciência acerca da sua situação de opressão – muitas vezes mascarada pelo próprio sistema organizacional. Ao poder analisar as relações sociais com clareza, o indivíduo oprimido pode – enfim – organizar-se socialmente, pleiteando a devida superação desta crise através dos mecanismos legais, garantindo a sua emancipação social. Para o revolucionário alemão Karl Marx, emancipação significa a capacidade da autoconsciência, através da superação da alienação, que transforma o homem em sujeito e não em objeto da história, pois são os sujeitos emancipados que podem construir uma nova forma de sociedade sem exploração do homem pelo próprio homem (CHASIN, 1987). Esta é igualmente a lição trazida por Enrique Dussel (2007, p. 99). O autor leciona que o poder dominador se legitima mediante o consenso apático da população. No momento em que os oprimidos adquirem consciência das estruturas de dominação social, tornam-se dissidentes, despertando o que Dussel chama de “poder libertador”. O consenso crítico do povo rompe a legitimidade do antigo poder dominador, e faz surgir a luta dos movimentos sociais organizados em busca de uma sociedade equilibrada e equânime. É esta ruptura e, consequentemente, o despertar para esta luta política, que uma educação crítica é necessária e capaz de provocar.

5.2 Conhecimento jurídico e emancipação A formação crítica do homem não pode prescindir de conteúdo jurídico. Isto porque o direito é – ou, ao menos, deveria ser – o principal instrumento de efetivação dos direitos fundamentais do homem, em seu sentido mais amplo. Entretanto, a distância entre o direito e a população em geral

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dificulta tal processo. Em especial, as camadas da população mais carentes nos sentidos social e econômico – que, por terem mais direitos violados, estariam mais necessitadas de tal informação – são geralmente as que majoritariamente desconhecem suas prerrogativas. Nessa seara, a ideologia da ampliação do acesso à justiça hoje no Brasil se constitui em prerrogativa da classe média. Selene Maria de Almeida (2003, p. 22) aponta, com precisão, a notória “insensibilidade quanto aos segmentos que historicamente nunca foram beneficiados pelas instituições do direito nem tiveram acesso aos tribunais”. Devido à falta de informação acerca dos seus direitos, as classes menos abastadas continuam sendo oprimidas socialmente pelas elites econômicas. Os recentes projetos de educação jurídica popular contém exatamente tal objetivo: disponibilizar a informação acerca dos direitos básicos para a população oprimida, de modo que esta possa se tornar consciente acerca das violações sofridas, e pleitear consequentemente suas prerrogativas.20 Dessa forma, a proposta de educação jurídica social pauta-se “na constatação do mundo, na denúncia das situações dissonantes e gritantes de injustiças e violações aos direitos humanos e no anúncio de como pode se dar a resolução das problemáticas que ferem a dignidade da pessoa humana” (MELO, 2010, p. 11). Em outras palavras: Por abarcar a todos os cidadãos, a toda a comunidade, é justo e necessário que estes indivíduos tenham conhecimento dos seus direitos, para que estes possam ser cobrados e consolidados pelos órgãos responsáveis, os quais atualmente não o concretizam, devido aos interesses dissonantes, de elites dominantes, de manutenção das condições injustas e por causa da formação que lhes é repassada que confere a instrução de mera perpetuação das estruturas sociais com que lida (MELO, 2010, p. 12).

O conhecimento das normas jurídicas enriquece a dupla proposta objetivada pela educação crítica: elucidar as estruturas sociais nas quais o sujeito está inserido e fornecer instrumentos de busca pela emancipação. É justamente nesse sentido que, ao disseminar o conhecimento jurídico ante a população marginalizada, estes terão a efetiva oportunidade de pleitear os direitos positivados que lhes eram negados. Desse modo, a ineficácia dos direitos fundamentais na atual sociedade brasileira quanto à grande massa populacional corre sério – e elogiável – risco de desaparecer:

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Como exemplos, podemos citar o projeto de extensão universitária denominado “Educação e Assessoria Jurídica Popular em Direitos Humanos”, vinculado ao curso de direito da Universidade Federal do Pará, e desenvolvido na Escola Municipal Parque Amazônia, na cidade de Belém/PA; o curso “Juristas Populares”, realizado na cidade de Goiás/GO, pela Comissão Pastoral da Terra e Espaço de Direitos Humanos Francisco Cavazutti, em parceria com o curso de direito da Universidade Federal do Goiás; o projeto “Promotoras Legais Populares”, desenvolvido em Brasília/DF, como projeto de extensão vinculado à faculdade de direito da Universidade de Brasília.

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A socialização do saber jurídico possibilita avanços inegáveis para a luta dos setores oprimidos, vez que o acesso ao conhecimento das Leis permite a exploração dos avanços positivados, através, por exemplo, da luta pela efetivação dos Direitos Humanos. Por outro lado, possibilita o reconhecimento dos limites da atuação dentro do Estado para a consecução da desejada transformação social, refletindo acerca do papel do Direito Positivo na conservação do status quo (ARAÚJO et al., 2003, p. 2).

A inovação da presente proposta é a centralização do conteúdo sócio-jurídico no sujeito oprimido, no sentido de disponibilizar ao indivíduo subjugado os meios necessários para a sua transição social, de acordo com a sua necessidade. Sendo assim, a educação jurídica social “busca na necessidade dos educandos o objetivo da educação e daí extrai os conteúdos a serem trabalhados”. Os sujeitos para o qual são direcionados os projetos de educação popular jurídica “consistem em homens e mulheres em busca de emancipação política, oriundos de diversos movimentos sociais ou das condições de desfavorecimento social. É a necessidade concreta que exige a formação de cidadãos” (VILELA et al., 2010, p. 5325). Desse modo: A socialização do saber jurídico se fundamenta na transmissão de noções fundamentais do conhecimento jurídico, de forma a orientar os cursistas – trabalhadores rurais, agricultores familiares, assentados, acampados, ribeirinhos, quilombolas e outras comunidades tradicionais rurais – acerca de como proceder diante de certos conflitos e litígios, encaminhar certas situações, às vezes mesmo, sem recorrer à jurisdição, desmistificar algumas informações no que tange ao Direito e também, trabalhar quais são os órgãos públicos para a efetivação e defesa dos direitos (VILELA et al., 2010, p. 5326).

Através da conscientização do sujeito oprimido, a educação jurídica popular origina uma nova modalidade de conhecimento, denominado por Boavetura Sousa Santos (2001, p. 107) como “conhecimento-emancipação”. A construção de um novo senso comum emancipatório, através do projeto de educação popular em direito, abre a real possibilidade de formação de uma sociedade plural e equânime. Nas palavras do autor: “O conhecimento-emancipação tem de romper com o senso comum conservador, mistificado e mistificador, não para criar uma forma autônoma e isolada de conhecimento superior, mas para se transformar a si mesmo num senso comum novo e emancipatório”.

5.3 A experiência baiana da educação jurídica social Tratando-se de projetos de educação jurídica popular, a Bahia abarca duas instituições de referência que instituíram com pioneirismo tal proposta: o Grupo de Apoio à Prevenção à AIDS da Bahia – GAPA, e a Associação dos Advogados dos Trabalhadores Rurais da Bahia – AATR. Tanto o

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GAPA/BA como a AATR/BA desenvolveram – e ainda desenvolvem – projetos de educação jurídica social, com foco principalmente na vulnerabilidade dos seus destinatários. A AATR/BA desenvolve, desde os anos de 1989/90, cursos de formação jurídica para trabalhadores rurais da cultura do café, na região da Chapada Diamantina, sobretudo nos municípios de Utinga, Bonito e Wagner e também nos municípios de Saúde, Senhor do Bonfim, Ibotirama e Oliveira dos Brejinhos – todos na Bahia (ROCHA, 2004, p. 83). Entretanto, tais cursos ocorriam de forma pontual, sem perspectiva a longo prazo. Foi justamente a partir desta necessidade que “surgiu a ideia de trabalhar com um conteúdo mais sistematizado, obedecendo a uma sequência lógica capaz de oferecer uma visão global do ordenamento jurídico brasileiro” (ROCHA, 2004, p. 83). Surge, então, o Curso de Formação e Monitoramento de Juristas Leigos, com o objetivo de socializar os conhecimentos jurídicos para formar cidadãos conscientes que atuem efetivamente na construção de uma sociedade justa e livre. Denise Rocha explica que os beneficiários diretos do projeto são lideranças comunitárias, dirigentes sindicais e assessores do movimento social. São beneficiadas de forma indireta organizações de trabalhadores rurais, como sindicatos, associações, cooperativas de pequenos produtores e grupos informais. O ciclo de conhecimento não se resumo a tais entidades, tendo em vista o seu efeito multiplicador: Uma vez formados, os beneficiários do curso organizam suas próprias turmas provocando um efeito “multiplicador”, posto que, os conteúdos podem ser transmitidos pelos cursistas para toda a comunidade, principalmente no que concerne a intervenção no poder local.O número de pedidos de novas turmas demonstra o grau de interesse crescente a cada etapa que é realizada (ROCHA, 2004, p. 84-85).

Veja-se que a aplicação do projeto contém eficácia imediata na consecução dos direitos fundamentais do trabalhador rural. O referido grupamento social passa a ter ciência dos seus direitos básicos, passando a pleitear direta e imediatamente seus direitos que frequentemente são negados pelos produtores rurais – ao não cumprirem as legislações trabalhistas – e pelos poderes públicos – que não lhes fornecem direitos básicos –, por exemplo. Nesse sentido: A proposta supre uma necessidade histórica das lideranças populares, que muito pouco conhecem de seus direitos, onde as pessoas passam de uma postura de simples respondentes da ordem vigente para postura de questionamento e conflito com a ordem social estabelecida, saindo de uma posição passiva para a de agentes transformadores de seu contexto de vida (ROCHA, 2004, p. 85).

A primeira experiência em educação jurídica popular desenvolvida pelo GAPA/BA teve origem entre os anos de 2002 e 2004, através de projeto financiado pela Fundação Ford, inspirado no

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trabalho realizado pela AATR/BA. O projeto realizou, inicialmente, pesquisa sobre a violação de direitos humanos nos bairros periféricos da cidade de Salvador, visando identificar situações de discriminação que afetam os públicos beneficiários das ações do programa de direitos humanos (BRASIL, 2008, p. 155). Face à desinformação da população carente, algumas violações de direitos humanos nem sequer eram percebidas enquanto tal pelos entrevistados, como a violência doméstica contra a mulher. Tendo em vista o referido panorama, o projeto de educação jurídica popular em desenvolvimento pelo GAPA/BA teve que reformular sua metodologia para incluir tais temáticas. O projeto de educação jurídica popular do GAPA/BA agrega, como público alvo, uma heterogeneidade de diferentes grupos – tendo em comum o intuito do trato/prevenção à Aids, tendo em vista sua vulnerabilidade social. Nesse sentido, o GAPA/BA agregou pessoa vivendo com HIV/Aids – PVHA, as chamadas “minorias sexuais” – travestis, transexuais, homossexuais, mulheres oriundas de bairros periféricos e jovens egressos (BRASIL, 2008, p. 155). A partir do ano de 2006, o GAPA/BA procurou aprimorar e ampliar as fronteiras do seu projeto de educação jurídica social. O denominado programa “Educação Jurídica Popular: ampliando a perspectiva política” procurou aprofundar, juntamente com outras ONGs, a experiência em educação jurídica popular. Fomentou-se a reunião de promotores legais populares – líderes com formação nos projetos de educação jurídico-social – de várias partes do país, no sentido de comungar as diferentes experiências obtidas nas mais diversas localidades do Brasil (BRASIL, 2008, p. 156-157). Nesse sentido, o GAPA/BA estendeu o projeto de educação jurídica popular aos membros das mais diversas bandeiras e projetos sociais, “o que tem facilitado a interseção das discussões e saberes durante a formação, ampliando a noção de defesa de Direitos para além da causa específica de cada cursista de forma a proporcionar sentido prático à interdependência dos Direitos Humanos” (BRASIL, 2008, p. 157). Ainda, procurou-se atender à disseminação territorial do alcance do projeto, de modo que a seleção incluiu 40% das pessoas vindas do interior do estado da Bahia. Resta evidenciado, dessa forma, que a disseminação do conhecimento jurídico perante as camadas oprimidas e marginalizadas se reveste como instrumento de politização e conscientização destas, estimulando a transformação da sua realidade social. O processo educativocrítico é visto como um aprendizado coletivo, com reais chances de proporcionar aos grupos sociais desfavorecidos a consciência emancipadora necessária para que estes transformem o espaço em que vivem.

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Considerações finais

Ante toda a argumentação exposta, pudemos visualizar claramente alguns dos principais elementos formadores da atual conjuntura de desigualdade social vivenciada no Brasil. O modelo de colonização portuguesa, durante toda a sua vigência, segregou a grande massa da população brasileira. Oprimiu-a, utilizando como instrumento para tanto o aparato jurídico-estatal, impedindo-a de contribuir para a construção de uma sociedade livre e democrática. A modernidade pregou uma modalidade científica afastada da metafísica e, consequentemente, de valores éticos. A formação meramente técnica recebida pelo homem tornou-o um indivíduo acrítico, despreocupado com a participação social – mais do que isso: alheio à opressão do seu semelhante. O positivismo, por sua vez, permitiu às elites dominantes utilizar o direito como instrumento de manutenção do status quo social. Distanciando-se de qualquer análise valorativa, distanciou-se igualmente dos reclames e anseios sociais dos oprimidos. A gravidade dos níveis de desigualdade social no Brasil é evidente. Como possível solução à esta problemática, apontamos a proposta de educação jurídica social. Este é um movimento que já vem sendo implantado em algumas cidades brasileiras, e que vem demonstrando resultados proveitosos. Tem base, principalmente, na doutrina do educador Paulo Freire, podendo ser ainda correlacionado a outras ideologias jurídico-políticas – como o Direito Alternativo e o Direito Achado na Rua. Os projetos de educação jurídica popular visam combater a apatia do cidadão brasileiro, que mesmo após séculos de opressão, não parece ter se insurgido contra tal situação degradante e opressora típicas da sociedade capitalista contemporânea. Utilizam a conscientização crítica fruto da formação jurídica para libertar o sujeito oprimido da submissão no qual este se encontra, incorrendo em proveitosa transição social das parcelas mais vulneráveis socioeconomicamente. A ambiciosa ideologia da educação jurídica social objetiva combater o cenário de exclusão e opressão do cidadão em duas principais searas: na problemática referente à informação e na disponibilização de meios profícuos para a ascensão social dos mais carentes. Em primeiro plano, estimula-se a reflexão acerca da situação social que o sujeito oprimido ocupa – e da que deveria ocupar – por meio de inovadora ideologia de instrução jurídica. Adiante, instrumentaliza-se o cidadão para que este concretize sua emancipação, sendo-lhe instruído acerca das possibilidades jurídicas de reclamação dos seus direitos negligenciados, e quais os institutos possíveis e responsáveis para tanto. Almeja-se, a partir da ideologia tecida na proposta de educação jurídica popular, buscar uma via alternativa para a consecução dos direitos fundamentais. Busca-se, destarte, resgatar a população carente para a sua tarefa de autoemancipação, de modo que esta tenha efetivos meios para realizar sua transição social. A partir de tais premissas, as camadas oprimidas poderão envolver-

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se diretamente na luta pela construção de uma sociedade mais justa, não mais sendo obrigada a delegar tal tarefa aos seus representantes políticos. Não é por acaso que alguns juristas entendem que adentraremos uma nova geração de direitos humanos, encabeçada pelo direito à informação. Este parece ser justamente o caminho para a libertação das camadas populares da exploração que lhes é imposta. Através da plena conscientização dos seus direitos, e dos instrumentos para defendê-los – e este parece ser um cenário de respeito ao direito humano-fundamental à informação – o cidadão poderá construir um novo panorama pátrio, dentro do qual exercerá materialmente a cidadania. Dessa forma, há que se deixar de lado a comodidade, a descrença, a apatia, o egoísmo. Havendo efetiva esperança de – enfim – ser superada a crise de igualdade e justiça que assola a nação brasileira, tal oportunidade não deve ser abandonada sem luta. É preciso implantar um projeto macroestrutural de educação jurídica popular nacional, para que sejam colhidos os bons frutos desta proveitosa ideologia. REFERÊNCIAS ALMEIDA, Selene Maria. O paradigma processual do liberalismo e o acesso à justiça. Revista CEJ, Brasília, n. 22, pp. 20-24, jul./set. 2003. ARAÚJO, Maurício Azevedo de; OLIVEIRA, Murilo Sampaio. Programa Juristas Leigos: da socialização do saber à emancipação política. Revista da AATR, ano 1, nº 1, pp. 1-7, 2003. BOVENTURA, Bruno J. R.; SILVA, Ivone M. F da. A incompletude da modernidade pela aporia da questão social. Aletheia, n. 2, pp. 25-45, 2012. CASTRO, Marcus Faro de. Formas jurídicas e mudança social: interações entre o direito, a filosofia, a política e a economia. São Paulo: Saraiva, 2012. CHASIN, L. (org). Marx Hoje. Cadernos de ensaio 1. Série grande formato. São Paulo: Ensaio, 1987. COSTA, A. B.; SOUSA JUNIOR, J. G. de. O direito achado na rua: uma ideia em movimento. In COSTA, A. B. [et al.] (orgs.). O direito achado na rua: introdução crítica ao direito à saúde. Brasília: CEAD/UnB, 2009. DELEVATTI, Alex Faturi. A educação básica como direito fundamental na Constituição Brasileira. 2006. 116 f. Dissertação (Mestrado em Ciência Jurídica) – Universidade do Vale do Itajaí, Itajaí, 2006. Desigualdade de renda na década: FGV/CPS, 2011. Disponível em: . Acesso em: 05 nov. 2012. DUSSEL, Enrique. 1492: O encobrimento do outro: a origem do mito da modernidade. Tradução: Jaime A. Clasen. Petrópolis, RJ: Vozes, 1993. _____. 20 teses de política. Tradução: Rodrigo Rodriguez. São Paulo: Expressão Popular, 2007. FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967. _____. Pedagogia do oprimido. 17ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 4ª edição. São Paulo: Malheiros, 2002. LANDER, Edgardo (org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005. MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. Fundamentos do direito. São Paulo: Atlas, 2010.

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OS ESPAÇOS URBANOS DE CIDADANIA E DEMOCRACIA E O PLANO DIRETOR COMO INSTRUMENTO JURÍDICO DEMOCRÁTICO DE GESTÃO URBANA Camila Ragonezi Martins Graduada em Direito e mestranda do programa de Direito Agrário da Universidade Federal de Goiás. Fernando Antonio de Carvalho Dantas Professor Doutor da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Goiás Pedro Nunes Britto Moreira Graduando em Direito na Universidade Federal de Goiás. Recebido em agosto/2014 Aceito em outubro/2014

SUMÁRIO: Introdução; 1. Os espaços urbanos não-hegemônicos; 1.1 Os espaços democráticos e de cidadania; 1.2 Espaços de cidadania, democracia e o Plano Diretor; 2. Uma breve análise da democracia e da nova participação popular democrática no processo de planejamento urbano; 2.1 Alguns pontos da exitosa participação popular no caso dos orçamentos participativos da cidade de Porto Alegre e sua relação com o Plano Diretor; Conclusão. RESUMO: A partir de Milton Santos este artigo realiza uma breve análise das grandes cidades brasileiras, sem especificar nenhuma delas, tratando da sua produção, bem como de sua dinâmica espacial e social, sob perspectivas hegemônica e contra-hegemônica. Com efeito, objetiva formular uma análise que ressalta a importância das ações e experiências populares como elementos fundamentais no processo de elaboração do planejamento urbano por meio do Plano Diretor Participativo. Dessa maneira, utilizando-se das análises de Boaventura de Sousa Santos o presente estudo se propõe a interpretar o Direito e o Plano Diretor Participativo como vetores de construção do meio urbano que podem receber usos alternativos e assim serem utilizados como instrumentos emancipatórios e de promoção de uma democracia urbana. Palavras-chave: Direito e geografia; Plano Diretor; Direito à cidade; Participação popular. ABSTRACT: From Milton Santos this article provides a brief overview of the major Brazilian cities, without specifying them, treating their production as well as its spatial and social dynamics under hegemonic and counter-hegemonic perspectives. Indeed, formulate an objective analysis that highlights the importance of popular actions and experiences as key elements in the development of urban planning through Participative Master Plan process. Thus, using the analysis of Boaventura de Sousa Santos this study aims to interpret the law and Participative Master Plan as vectors for construction of the urban environment that can receive alternatives uses and thus be used as emancipatory tools and promoting urban democracy. Keywords: Law and geography; Master Plan; Right to the City; Popular participation. INTRODUÇÃO O urbanismo analisado a partir de uma perspectiva jurídica, tradicionalmente interpretou a cidade a partir de um viés conservador, de maneira que desconsiderou as realidades e complexidades sociais urbanas, limitando-se a compreender o espaço urbano como uma soma de lotes, fossem eles públicos ou privados. Nesse sentido, o sistema jurídico brasileiro hegemonicamente traduziu o meio urbano a partir de uma ótica liberal e legalista do direito civil e da propriedade privada, que conferiu ao Estado e à justiça institucional o pequeno papel de regular conflitos particulares. Tais paradigmas em muito contribuíram para a

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construção das cidades brasileiras tal como as vemos hoje: um espaço em que prioritariamente são consagrados os direitos individuais dos proprietários, em detrimento dos interesses populares e sociais. No Brasil, notadamente a partir da década de 1980, surgem e ganham força os movimentos pela reforma urbana que entre outras demandas lutavam pelo direto de planejar democraticamente a cidade. Nesse contexto, um dos principais anseios dos atores que buscavam lastro jurídico para ações de reforma urbana foi a inclusão do Plano Diretor como instituto democrático de obrigatoriedade legal. Objetivavam normatizar o Plano Diretor como o instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana, que seria formatado como lei municipal cujo objetivo fundamental era definir o melhor modo de ocupação das áreas de um município, de maneira que dividiria os espaços municipais em unidades territoriais menores, para determinar como seriam utilizadas, o que corresponderia ao seu uso dentro dos parâmetros de cumprimento da função social da propriedade urbana. No direito urbanístico, o funcionamento social da propriedade é a determinação do uso das propriedades privadas, públicas e de todos os espaços das cidades, que devem estar conjugados com a lógica social e coletiva do ordenamento e funcionamento do meio urbano, para garantir que as pessoas que vivam nas cidades possam usufruir equitativamente dos espaços citadinos para a efetivação de seus direitos fundamentais. O Plano Diretor consagrado pela atual Constituição de 1988 como o instrumento básico da política de desenvolvimento das cidades brasileiras é quem define os usos de cada espaço urbano, determinando como cumprirão com sua função social. Por isso, o planejamento urbano por meio do Plano Diretor formatou-se como o principal instrumento urbanístico institucional de construção de uma cidade socialmente justa. Nesse contexto, o presente trabalho parte do pressuposto segundo o qual só cabe à população definir os usos ideais dos espaços urbano, pois além de essa mesma população ser a usufrutuária do meio urbano, é a parte legítima e principal – definida constitucionalmente e em lei de regulamentação constitucional (Estatuto da Cidade) – no processo de planejamento e construção das cidades. Destacando a importância da participação popular, tomaremos como escopo teórico as análises de Milton Santos que entende que a sociedade civil pode, por meio das contraracionalidades, dos espaços de cidadania e dos movimentos horizontalizantes, pautados em uma democracia ampla e real de todos segmentos sociais, encontrar caminhos alternativos e construir um meio urbano mais solidário, humano e que atenda aos interesses populares, de maneira a adequar tais exames ao processo do planejamento urbano democrático por meio do Plano Diretor. Nessa mesma perspectiva, utilizaremos como o escopo teórico as obras de Boaventura de Sousa Santos, Leonardo Avritzer e David Sanchez Rubio para compreender de que maneira a participação direta pode efetivar-se nesse processo de planejamento urbano institucional. Com efeito, este estudo parte da compreensão do Plano Diretor enquanto política pública que pode ser emancipatória, desde que seja, de sobremodo, democrática. Por isso, é fundamental analisarmos a importância e as maneiras de efetivação da participação popular democrática e direta no processo de elaboração e demais fases do Plano Diretor. Nessa perspectiva, o planejamento urbano formulado por meio do Plano Diretor deve ser a manifestação das demandas sociais dos homens e mulheres que vivem no meio urbano e notadamente a expressão dos interesses dos pobres que, mesmo sendo a maioria da população, são tão marginalizados. Por isso, o objetivo deste trabalho é analisar a maneira por meio da qual o Plano Diretor pode concretizar-se como um instrumento democrático que possibilite a participação plenamente democrática de toda a população no processo de elaboração, implementação, acompanhamento e revisão do Plano Diretor.

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1 OS ESPAÇOS URBANOS NÃO-HEGEMÔNICOS Com efeito, inicialmente recorreremos a Milton Santos que examinou alguns importantes pontos à respeito da dinâmica social popular das cidades, analisando as contraracionalidades e os paradigmas do funcionamento dos espaços públicos democráticos de cidadania, que se opõem à mesquinha, individualista, antidemocrática e hegemônica lógica neoliberal, tão presente nos espaços urbanos contemporâneos. A partir de um exame crítico voltado ao campo da ação humana, Milton Santos (2006) apresentou a conceituação e a estrutura dinâmica do que denominou contra-racionalidades que são as distintas maneiras de apreensão da realidade que não se coadunam com a lógica neoliberal, tão baseada no consumismo e no individualismo. Nesse sentido, tais racionalidades significam resistência às atuais conjunturas sociais, econômicas e culturais hegemônicas. No contexto do presente estudo, as contra-racionalidades que se relacionam ao meio urbano representam a insatisfação da população que vive no espaço urbano contemporâneo. Nessa perspectiva, indivíduos ou grupos sociais descontentes desenvolvem formas alternativas de significar as cidades, utilizando-se de lógicas que não colocam o capital privado e a ação econômica como pontos centrais da vida cotidiana. Essa alternativas, fundadas na solidariedade e cooperação, opõem-se a uma injusta realidade social que oprime a população que não dispõe de recursos, sejam econômicos ou outros, como o educacional; para acessar as facilidades materiais e imateriais das cidades. Para Milton Santos, o processo dinâmico das contra-racionalidades configura-se na psicoesfera e na tecnosfera; no sentido de apresentar-se dialeticamente tanto a partir das teorias e conhecimentos, quanto materialmente, por meio de espaços e das mais diversas ações não-hegemônicas de construção do meio urbano. Nesse viés, Milton Santos (2006) define as contra-racionalidades mostrando seu lugar comum na sociedade e indicando que: [...] se localizam, de um ponto de vista social, entre os pobres, os migrantes, os excluídos, as minorias; de um ponto de vista económico, entre as atividades marginais, tradicional ou recentemente marginalizadas; e, de um ponto de vista geográfico, nas áreas menos modernas e mais "opacas", tornadas irracionais para usos hegemónicos (SANTOS, 2006, p. 210). Trata-se de uma análise que compreende que os grupos humanos marginalizados (quase sempre de espaços marginais), demandando por melhores condições de vida, insubordinam-se às racionalidades dominantes. Os indivíduos e os espaços submetidos às mais perversas condições socioeconômicas vistas na cidade contemporânea são exatamente os que mais precisam de um planejamento urbano que emancipe e seja libertador. Assim, para Milton Santos (2006), a expansão de lógicas alternativas à racionalidade hegemônica transforma a sociedade porque cria redes e espaços que se configuram com base em pressupostos que não da ação econômica e do capital privado, mas da solidariedade e da cooperação. Dessa maneira, de certos recortes territoriais urbanos surgem novas formas de experimentar a vida cotidiana contemporânea e dessas novas significâncias, ou contraracionalidades, surgem o que M. Santos chama de redes alternativas, sejam elas técnicas, informacional ou comunicacional. As redes não-hegemônicas, como regra, não são muito extensas, e exatamente por serem locais, frequentemente tornam-se íntimas das populações que vivem em seu espaço de influência. Por serem construídas com intencionalidades sociais, políticas, econômicas e culturais que vão além do interesse de mercado, podem influenciar de maneira intensa os espaços e a vida cotidiana das pessoas que relacionam-se com essas redes. Assim, se para Milton Santos a sociedade contemporânea se organiza em torno das redes técnicas, informacionais e comunicacionais que criam o espaço social, as contraracionalidades urbanas transformam a cidade porque, ou criam novas redes ou dão novos usos

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às já existentes. Tratam-se de novas formas de entender e desenvolver o trabalho (redes técnicas), a informação (redes informacionais) e a comunicação (redes comunicacionais). Nesse sentido, as redes técnicas que “[...] constituem as condições e técnicas do trabalho” (SANTOS, 2006, p. 227), no contexto do estudo das cidades, podem, por exemplo, apresentar-se antihegemonicamente como cooperativas, bancos populares ou por meio de atividades econômicas localmente desenvolvidas que tenham como base a solidariedade e a cooperação. No mesmo viés, as redes informacionais socialmente e politicamente empregadas podem ser integradas pelos jornais e rádios locais populares, enquanto que as redes comunicacionais se fortalecem a partir da integração dialógica solidária dos indivíduos que compartilhando os mesmo espaços, buscam a melhoria das suas condições. As redes não-hegemônicas que são fragmentos da expressão popular e do interesse social, econômico e cultural de grupos e indivíduos acabam emergindo materialmente, de maneira que influenciam a criação e transformação dos espaços humanos. Milton Santos (2006) nos diz que: [...] a esse recorte territorial, chamamos de horizontalidade, para distingui-lo daquele outro recorte, formado por pontos, a que chamamos de verticalidade. Nesses espaços da horizontalidade, alvo de frequentes transformações, uma ordem espacial é permanentemente recriada, onde os objetos se adaptam aos reclamos externos e, ao mesmo tempo, encontram, a cada momento, uma lógica interna própria, um sentido que é seu próprio, localmente constituído. É assim que se defrontam a Lei do Mundo e a Lei do Lugar (Santos, 2006, p. 227). As contra-racionalidades que configuram as redes alternativas apresentam-se como instrumentos locais e mais ou menos singulares que auxiliam e dão suporte a novas maneiras de dar sentido aos espaços urbanos e a vida daqueles que estão sob sua influência, seja das pessoas pobres e excluídas, seja de setores sociais que se mostram insatisfeitos com a lógica sistêmica contemporânea, notadamente neoliberal. 1.1 OS ESPAÇOS DEMOCRÁTICOS E DE CIDADANIA Milton Santos, que desenvolveu seus estudos prioritariamente sobre os aspectos da natureza do espaço, reconheceu em sua análise as relevantes questões que envolvem a dinâmica social desse mesmo espaço. Nesse sentido, dentre os mais diversos elementos sociais, considera que as forças populares são importantes vetores de conformação do meio produzido e usufruído pelos homens e mulheres. No contexto do estudo das cidades, a análise das contra-racionalidades e das redes não-hegemônicas se confunde e se assemelha à investigação dos indivíduos e grupos humanos que se insubordinam e constroem espaço alternativos e democráticos. As redes alternativas que se desenvolvem localmente a partir da vontade e da organização de grupos humanos insubordinados, podem em sua estrutura e funcionamento privilegiar em diferentes níveis o diálogo e a democracia interna. Nesse perspectiva, quanto mais a organicidade dessas redes propiciar que todos os que estão em sua esfera de atuação participem de sua construção, mais serão consideradas como a representação da vontade popular. Assim, para nosso estudo, a democracia é não somente um elemento da conformação, mas de qualificação das redes alternativas locais. Em sentido oposto, Milton Santos considera que a atual conjuntura socioeconômica neoliberal apresenta-se concretamente em voraz expansão, atingindo com grande intensidade os mais diversos espaços humanos, notadamente os ambientes urbanos, que vão sendo sufocados em seus aspetos mais humanos, o que materialmente configura o fim dos espaços públicos de democracia e cidadania.

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De tal maneira, para o presente trabalho, o problema da democracia é um espacial, constituindo-se na falta de espaços democráticos e cidadãos. Nesse viés, Milton Santos assevera que é “no território, tal como ele atualmente é, que a cidadania se dá tal como ela é hoje, isto é, incompleta” (SANTOS, p. 2012, p. 18). Por isso, concordamos com Alcindo José de Sá (2013), que consubstanciado nas análises de Milton Santos, considera que as questões da cidadania, de direito e de espaços de direitos, são problemas de “máxima concreção histórica” (SÁ, 2013, p. 21 e 59), ou seja, da falta de espaços nos quais possa-se concretizar processos democráticos e cidadãos. 1.2 ESPAÇOS DE CIDADANIA, DEMOCRACIA E O PLANO DIRETOR Diante do exposto, para este estudo que trata dos processos democráticos na elaboração e demais fases do Plano Diretor, a questão da efetivação de uma qualificada participação popular nas etapas de um planejamento urbano perpassa pela ultilização ou criação de espaços democráticos e de cidadania nos quais a participação popular possa efetivamente ocorrer. Tais espaços seriam potencializados quantitativamente e qualitativamente se formatados levando-se em consideração as contra-racionalidades e as redes não-hegemônicas específicas de cada recorte territorial no qual se pretende fomentar a participação popular para fins de planejamento urbano. É nesse contexto que o Plano Direto Participativo deve forjar-se em instrumento não-hegemônico e emancipatório que cria, fomenta, mas sobretudo utiliza-se dos espaços alternativos já existentes, que sejam cidadãos, solidários e democráticos, para desenvolver um planejamento urbano que atenda as necessidades populares É por isso que a análise dos espaços democráticos e cidadãos das cidades é ponto fundamental deste estudo que procura compreender o que é a cidadania e a participação popular na elaboração e demais fases do Plano Diretor, pois como asseverou Milton Santos (2012): [...] o discurso novo do planejamento – novo mas só em aparência, porque carente de um conteúdo realmente novo – vale-se de acentos retóricos, como, por exemplo a fastidiosa alusão a participação, coisa que, por falta de definição, não se pode reconhecer, e, por falta de vontade política, não pode ser definida nem implementada (SANTOS, 2012, p. 159). Nessa perspectiva, para o presente trabalho, a participação democrática popular está intimamente ligada à criação e à formatação de espaços democráticos e de cidadania. Sobre tal ponto, Alcindo José de Sá (2013), esclarece que: [...] David Harvey chama esses emergentes e sufocados embates territoriais de espaços de esperança; Milton Santos denomina de espaços de contra-racionalidade. Todavia, independente das adjetivações, são espaços substantivos de vida, de flamejar a razão histórica como processo não meramente econômico e de racionalidade técnica instrumental, porque esta breca solidariedades mais amplas (SÁ, 2013, p. 61). Tratam-se, portanto, de espaços nos quais as pessoas possam desenvolver laços de autêntica convivência humana: nos quais os homens e mulheres possam se encontrar, deliberar, reaprender a comunicação libertadora, a tolerância e a cidadania. Dessa maneira, um processo democrático de planejamento urbano perpassa pela abertura desses espaços democráticos e cidadãos que proporcionem possibilidades de participação à toda a sociedade e especialmente aos grupos mais marginalizados, que tanto anseiam por possibilidades de participar por vias institucionais e de maneira mais efetiva da construção sócio-espacial da cidade onde vivem.

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É por esse motivo que os processos democráticos que envolvam a elaboração, implementação, acompanhamento e revisão do Plano Diretor devem dar a devida importância, não somente ao produto final do planejamento urbano, qual seja o plano diretor ideal, mas ao processo de construção desses resultados, que passa pela formatação de espaços nos quais a população efetivamente exerça a cidadania e a democracia. A partir de tal exame, compreendemos que a cidadania se constrói em espaços cidadãos, sejam eles materiais ou imateriais, e que esses espaços só podem ser considerados de cidadania se imbuídos de uma lógica de cooperação, solidariedade, tolerância, convivência e deliberação, porque a cidadania se faz coletivamente. Nesse mesmo sentido, as redes alternativas e não-hegemônicas são tão importantes porque coonstituem-se nesses espaços da coletividade cidadã. Entendemos que as noções expostas que tratam das redes não-hegemônicas, bem como das contra-racionalidades, se examinadas conjuntamente ao estudo do Direito e da Democracia, compõem uma análise que corrobora para compreender criticamente o Plano Diretor como instrumento jurídico-político que necessariamente deve contar com a participação popular, e que pode utilizar-se e pontencializar os espaços de democracia e cidadania já constituídos pelas contra-racionalidades e pelas redes não-hegemônicas 2 UMA BREVE ANÁLISE DA DEMOCRACIA E DA NOVA PARTICIPAÇÃO POPULAR DEMOCRÁTICA NO PROCESSO DE PLANEJAMENTO URBANO Buscando esclarecer o que é a participação popular na elaboração e nas demais fases do Plano Diretor, recorremos a Boaventura de Sousa Santos e a Leonardo Avritzer que desenvolvem interessantes análises acerca do que seria uma democracia real, que conta com processos de participação popular direta. Com efeito, examinando as maneiras de concretizar uma efetiva participação democrática popular em nossa sociedade, Sousa Santos (1998) destaca a importância de processos institucionais democráticos e cidadãos. Nesse sentido, o sociólogo português considera como um importante instrumento de efetivação da democracia a construção de “desenhos institucionais alternativos” (SOUSA SANTOS, 1998, p. 65), que nada mais são do que institutos e mecanismos políticos-governamentais utilizados como ferramentas cidadãs. Nessa perspectiva, utilizaremos a análise de Sousa Santos (1998) para compreendermos o Plano Diretor como um desses desenhos institucionais que podem ser alternativos. Para Boaventura de Sousa Santos e Leonardo Avritzer (2002), o problema da democracia contemporânea está intimamente relacionado ao reconhecimento de que a democracia não constitui “um mero acidente ou uma simples obra de engenharia institucional” (SOUSA SANTOS, AVRITZER, 2002, p. 51). Trata-se sim de perceber que a democracia é uma forma sócio-histórica que não foi determinada por quaisquer tipos de leis naturais. Nesse viés, importante para concepções não-hegemônicas de democracia, é compreender que os processos democráticos implicam na ruptura com as tradições estabelecidas e sustenta-se na tentativa de instituição de novas determinações, novas normas e novas leis. Nesse mesmo sentido, David Sánchez Rubio (2013) assevera que hegemonicamente existe uma racionalidade e um imaginário oficial conceitual à respeito da democracia que tende a distanciar, reduzir e abstrair das práticas e vivências sociais as concepções que tratam de processos substanciais e qualitativos de participação direta. São as concepções e práticas de uma democracia hegemônica que utiliza-se de uma racionalidade instrumental mercantilizada e sufoca os espaços de cidadania, geraando assimetrias e desigualdades sociais. Por isso, de extrema importância é o desenvolvimento de novos propostas democráticas, que partam de uma conceituação libertária, sobretudo pautadas na aproximação do conceito de democracia da vida cotidiana e que compreenda que os processos democráticos são conquistas sociais históricas. Dessa maneira, para Rubio, os processos de democratização, protagonizados pelos cidadãos, grupos sociais e suas respectivas lutas, devem ser revisitados cotidianamente por meio da participação popular ativa e direta, bem como ampliados a fim de que neles sejam incorporados elementos que perpassam aspectos sociais e expressem os anseios populares vividos cotidianamente

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Diante de tal contexto, Sousa Santos e Leonardo Avritzer, analisando os processos democráticos, expõem a necessidade da “democracia se articular com uma nova gramática social” (SOUSA SANTOS, AVRITZER, 2002, p. 66), que se constitui em nova forma de relação entre Estado e sociedade, na qual o primeiro passa a ser entendido como um “novíssimo movimento social” (SOUSA SANTOS, 1998, p. 59-74). É a compreensão de que os processos democráticos necessitam de uma reestruturação para serem forjados com mais qualidade e efetividade. Tratam-se de procedimentos nos quais o Estado e as suas ferramentas institucionais – e aqui citamos o Plano Diretor– sejam apreendidos como instrumentos emancipatórios democráticos e cidadãos. Com efeito, consideramos que o Plano Diretor deve forjar-se em torno desses processos democráticos não-hegemônicos para então tornar-se instrumento institucional emancipatório. Por isso, Boaventura de Sousa Santos (1998), considera que o Estado, por meio de “desenhos institucionais alternativos”, poderá configurar-se como um importante organismo para consecução da inclusão cidadã, destacando que esse “Estado experimental” deve: [...] não só garantir a igualdade de oportunidades aos diferentes projetos de institucionalidade democrática, mas deve também – e este é o segundo princípio de experimentação política – garantir padrões mínimos de inclusão, que tornem possível a cidadania ativa necessária a monitorar, acompanhar e avaliar o desempenho de projetos alternativos. Estes padrões mínimos são indispensáveis para transformar a instabilidade institucional em campo de deliberação democrática. O novo Estado de bem-estar é um Estado experimental e é a experimentação contínua com participação ativa dos cidadãos que garante a sustentabilidade do bem-estar (Sousa Santos, 1998, p. 67). Nessa perspectiva, entendemos que a organização e o apoio institucionalgovernamental são relevantes pontos para a efetivação da participação no Plano Diretor: uma política institucional estatal que, se construída em torno de “padrões mínimos de inclusão”, pode tornar-se em um instrumento de realização da democracia e da cidadania transformador das cidades. 2.1 ALGUNS PONTOS DA EXITOSA PARTICIPAÇÃO POPULAR NO CASO DOS ORÇAMENTOS PARTICIPATIVOS DA CIDADE DE PORTO ALEGRE E SUA RELAÇÃO COM O PLANO DIRETOR Sousa Santos e Avritzer destacam como exemplo de democracia e participação a experiência brasileira dos Orçamentos Participativos da cidade de Porto Alegre (SOUSA SANTOS, AVRITZER, 2002, p. 53) e nesse contexto ganha relevância para o presente trabalho uma breve análise, realizada por Avritzer (2003), de algumas das característas que se destacaram nesse importante caso concreto. Ressalta-se de início que não obstante Avritzer (2003) analisar em seus estudos o caso do Orçamento Participativo da cidade de Porto Alegre, suas lições podem ser úteis na compreensão dos processos de elaboração de outras políticas públicas em espaços urbanos. Com efeito, o Orçamento Participativo e o Plano Diretor são políticas públicas que apresentam muitas semelhanças, dentre as quais destacamos os fatos de ambas serem políticas municipais e urbanas que envolvem a participação direta das populações que vivem nas cidades. Nesse sentindo, uma análise da exitosa experiência dos Orçamento Participativo de Porto Alegre, reconhecida internacionalmente, pode ser de grande valia para o presente trabalho. Em sua análise, Leonardo Avritzer (2003) caracterizou a participação popular como a cessão da soberania política daqueles que a detêm institucionalmente (os representantes políticos a nível local) à todos aqueles cidadãos que se apresentam nos espaços de deliberação democrática: em primeira instância, as assembleias populares. Avritzer assevera que a participação implica “[...] na reintrodução de elementos de participação a nível local, tais

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como assembleias regionais e de elementos de delegação, tais como conselhos” (AVRITZER, 2003, p. 3). Nesse sentido, pontua ainda que a participação se caracteriza por ser a “[..] tentativa de reversão das prioridades de distribuição de recursos públicos a nível local” (AVRITZER, 2003, p.4), objetivando atender as prioridades dos setores mais necessitados. Destaca também o denominado princípio da “auto-regulação soberana”, que é nada mais do que o imperativo que determina que as regras da deliberação e da participação sejam delimitadas pelos próprios participantes do debate, o que não somente garantiria mais legitimidade, como também potencializaria o interesse de participação nos processos democráticos locais. Para Avritzer de grande relevância é “[...] o papel das pré-estruturas organizativas da sociedade civil no êxito da políticas participativas” e “[...] a capacidade do estado de induzir formas de associativismo e práticas deliberativas semelhantes aquelas existentes no campo da sociedade civil” (AVRITZER, 2003, p. 7). Essas e outras características que foram responsáveis pelo sucesso da importante política pública do Orçamento Participativo da Cidade de Porto Alegre, que logrou êxito ao efetivar substanciais processos de participação direta popular, parecem corresponder em muitas medidas a um modelo ou proposta de participação no caso do planejamento urbano por meio Plano Diretor. Nesse contexto, as contra-racionalidades e as redes não-hegemônicas podem corresponder a estas estruturas organizativas locais já existentes na sociedade e que contam com um regulação própria. De maneira semelhante, destacam-se como medidas importantes para a formatação dos espaços de deliberação institucionais a necessidade de um amplo apoio institucional/governamental e uma rigorosa organização procedimental pautada nos conhecimentos, vivências e experiências dos próprios participantes de tais processos democráticos. CONCLUSÃO A partir do exposto, entendemos que o processo de participação popular no planejamento urbano por meio do Plano Diretor pode e deveria utilizar-se das experiências populares, por meio das contra-racionalidades, de redes solidárias autônomas, bem como dos espaços de democracia já existentes, para potencializar a participação de todos os setores sociais, especialmente dos pobre e das minorias excluídas, nessa importante política pública de desenvolvimento e expansão urbana que é o planejamento das cidades. O Plano Diretor deveria partir dos espaços democráticos e cidadãos já existentes, bem como fomentar e incentivar a criação de espaços semelhantes nos quais a população possa deliberar, debater e decidir assuntos de interesse local. Esses sítios nos quais a população pode expressar sua insatisfação com as cidade, também deve ser de decisão e proposição de um planejamento urbano que atenda aos interesses coletivos populares. . Consubstanciado nos escopos teóricos apresentados, verificamos ainda que o Plano Diretor pode ser instrumentalizado para tornar-se um importante “desenho institucional alternativo” de efetivação dos processos democráticos e cidadãos. Nesse sentido, um interessante caminho estratégico para efetivação da participação popular no processo de elaboração de demais fases do Plano Diretor é o da concretização de procedimentos institucionais jurídico-políticos dirigidos para a efetivação da plena participação político-social, realizada por indivíduos e grupos sociais, para a consecução de um fim específico: a elaboração e demais fases do Plano Diretor das cidades. É nessa perspectiva que consideramos o Plano Diretor como um importante instrumento democrático e de emancipação social e assim destacamos a necessidade de efetivação de processos de participação democrática direta. Nesse viés, os processos democráticos no âmbito do planejamento urbano por meio do Plano Diretor são importantes não apenas para consecução do fim último de tal política

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urbana, que seria um planejamento ideal, mas também porque tais processos, se minimamente democráticos, garantiriam a abertura de espaços de deliberação, debate, cidadania e solidariedade. A democratização da participação popular nos processos de elaboração, implementação, acompanhamento e revisão do Plano Diretor, não é somente um ponto central da legitimidade e efetividade dessa importante política pública urbana, mas de maneira ampla pode ser também elemento fundamental para a concretização de processos democráticos e cidadãos nas cidades brasileiras. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALFONSIN, Betânia de Moraes. Cidade para todos/Cidade para todas-Vendo a cidade através do olhar das mulheres. In: FERNANDES, Edésio; ALFONSIN, Betânia (Orgs). Direito Urbanístico: Estudos Brasileiros e Internacionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2006a. _______________. Operações urbanas consorciadas como instrumento de captação de maisvalias urbanas: um imperativo da nova ordem jurídico0urbanística brasileira. In: FERNANDES, Edésio; ALFONSIN, Betânia (Orgs). Direito Urbanístico: Estudos Brasileiros e Internacionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2006b. ALFONSIN, Jacques Távora. Do “diga que eu não estou”à relação entre pobreza e função social da terra no Brasil. In: FERNANDES, Edésio; ALFONSIN, Betânia (Orgs). Direito Urbanístico: Estudos Brasileiros e Internacionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. AVRITZER, Leonardo. Modelos de deliberação democrática: uma análise do orçamento participativo no Brasil. Universidade de Coimbra: Centro de Estudos Sociais, 2003. ___________________. O orçamento participativo e a teoria democrática: um balanço crítico. Universidade de Coimbra: Centro de Estudos Sociais, 2007. ___________________. Sociedade Civil e Participação Social no Brasil. Universidade de Coimbra: Centro de Estudos Sociais. CASTELLS, Manuel. Crisis Urbana, Estado y movimientos sociales en las sociedades dependientes latinoamericanas. México, 1979 _________________. Problemas da Investigação em Sociologia Urbana. 2ª ed. Lisboa: Editorial Presença/Martins Fontes, 1979. CHÁVEZ, Maurício Genet Guzmán. Biodiversidade e conhecimento local: do discurso a prática baseada no território. In: I Encontro Nacional de Pós Graduação e Pesquisa em Ambiente e Sociedade. 2012. ELIAS, Denise. Milton Santos: a construção da geografia cidadã. Florianópolis: Revista do Departamento de Geociências-GEOSUL, v. 18, n. 35, p. 131-148, jan/jun. 2003. FERNANDES, Edésio. Direito e gestão na construção da cidade democrática no Brasil. Campinas: Oculum Ensaios. Revista de Arquitetura e Urbanismo, nº 4, 2005 ___________________. A nova ordem jurídico-urbanística no Brasil. In: FERNANDES, Edésio; ALFONSIN, Betânia (Orgs). Direito Urbanístico: Estudos Brasileiros e Internacionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2006a. ___________________. O desafio dos Planos Diretores Municipais. In: FERNANDES, Edésio; ALFONSIN, Betânia (Orgs). Direito Urbanístico: Estudos Brasileiros e Internacionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2006b. LEFEBVRE, Henri. O Direito à Cidade. Brochura, 2001

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PLANO NACIONAL DE POLÍTICA CRIMINAL E PENITENCIÁRIA (PNPC2011): UMA INICIATIVA CONTRA-HEGEMÔNICA FRENTE AO ESTADO PUNITIVO BRASILEIRO Debora Regina Pastana Doutora em Sociologia pela Faculdade de Ciências e Letras – FCL da Universidade Estadual Paulista – UNESP, Professora adjunta do Instituto de Ciências Sociais (INCIS/UFU) e do corpo permanente de docentes do Programa de Pós-Graduação em Direito Público da UFU. Recebido em agosto/2014 Aceito em outubro/2014

Resumo: O tema central deste artigo é apresentar o Plano Nacional de Política Criminal e Penitenciária (PNPC-2011) como uma iniciativa contra-hegemônica que, mesmo limitado em sua eficácia, revela uma argumentação institucional importante para desencadear a tentativa de “democratizar a democracia” no Brasil. Partindo das recentes reflexões sociológicas de Loïc Wacquant, David Garland, Nils Christie e Zygmunt Bauman percebemos que o atual arranjo capitalista generaliza-se quase que instantaneamente em todo o globo, atrelando o sucesso dos empreendimentos econômicos a nova face da política criminal. Apelidado teoricamente no Brasil de “Estado punitivo”, esse modelo hegemônico se caracteriza por apoiar o endurecimento penal, aumentar as taxas de encarceramento, ignorar a seletividade penal, defender a privatização prisional e judicializar o cotidiano. Aprovado na 372ª reunião ordinária do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), em abril de 2011, o PNPC apresenta uma proposta política que se coloca contrária a tal modelo hegemônico. Preocupado com o fortalecimento da cidadania, o plano propõe “reduzir as taxas de encarceramento, descriminalizar condutas, ter modelos distintos de prisões para cada segmento, combater a seletividade penal, buscar menos justiça criminal e mais justiça social, investir na justiça restaurativa, empoderar a população para busca de solução dos conflitos, priorizar as penas alternativas à prisão, eleger o sistema prisional como problema central (...) e fortalecer o Estado na gestão do sistema penal”. Apresentando esse plano brasileiro, voltado para a reflexão crítica desse panorama punitivo, objetiva-se propiciar argumentos para um debate fecundo sobre o tema.

Palavras-chave: Estado punitivo - política criminal - democracia Summary: The central theme of this paper is to present the National Plan for Criminal and Penitentiary Policy (PNPC-2011) as one that even limited in their effectiveness counter-hegemonic initiative reveals a major institutional arguments to trigger the attempt to "democratize democracy" in Brazil. Building on recent sociological reflections Loïc Wacquant, David Garland, Nils Christie and Zygmunt Bauman noticed that the current capitalist arrangement generalizes almost instantaneously across the globe, linking the success of the new economic enterprises face criminal policy. Theoretically nicknamed in Brazil "punitive state", this hegemonic model has to support the criminal hardening, increasing incarceration rates, ignoring the selectivity criminal, prison privatization and defend judicialize everyday. Approved at the 372nd annual meeting of the National Council for Criminal and Penitentiary Policy (NSCLC), in April 2011, the PNPC presented a policy proposal that arises contrary to such hegemonic model. Worried about strengthening citizenship, the plan proposes to "reduce incarceration rates, decriminalize conduct, have different models of arrests for each segment, combat criminal selectivity, seek less criminal justice and social justice, invest in restorative justice, empower population to search for conflict resolution, prioritize alternatives to imprisonment, to elect the prison system as a problem (...) and strengthen the state in the management of the criminal justice system. " Introducing this Brazilian plan, aimed at critical reflection that punitive panorama, the objective is to provide arguments for a fruitful debate on the subject.

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Keywords: punitive state criminal political democracy

Introdução Atualmente as atenções desta pesquisadora concentram-se nas mudanças da política criminal brasileira ocorridas nas últimas duas décadas e que se ajustam à política econômica global. O intuito tem sido sempre analisar a ampliação do controle ao crime no Brasil. Tal ampliação é cada vez mais emblemática nas sociedades democráticas contemporâneas, refletindo um novo paradigma de controle social traduzido não apenas em um exercício autoritário, mas, acima de tudo, numa atuação antidemocrática socialmente reconhecida como necessária. Contudo, nessa comunicação, analisa-se um plano político que não se coaduna com tal paradigma. Com a nítida proposta de enfrentar o hegemômico modelo neoliberal de controle social, o Plano Nacional de Política Criminal e Penitenciária (PNPC2011), mesmo limitado em sua eficácia, revela uma argumentação institucional importante para desencadear a tentativa de “democratizar a democracia” no Brasil. Recentemente parte considerável da humanidade se vê inserida na tendência homogênea de obsessão securitária. O atual arranjo capitalista, de fato, generaliza-se quase que instantaneamente, atrelando o sucesso dos empreendimentos econômicos a nova face da política criminal. De acordo com Wacquant (2001, p 136), propaga-se na Europa: (...) um novo senso comum penal neoliberal — sobre o qual vimos precedentemente como atravessou o Atlântico — pelo viés de uma rede de ‘geradores de idéias’ neoconservadoras e de seus aliados nos campos burocrático, jornalístico e acadêmico —, articulado em torno da maior repressão dos delitos menores e das simples infrações (com o slogan, tão sonoro como oco, da ‘tolerância zero’), o agravamento das penas, a erosão da especificidade do tratamento da delinqüência juvenil, a vigilância em cima das populações e dos territórios considerados ‘de risco’, a desregulamentação da administração penitenciária e a redefinição da divisão do trabalho entre público e privado, em perfeita harmonia com o senso comum neoliberal em matéria econômica e social, que ele completa e conforta desdenhando qualquer consideração de ordem política e cívica para estender a linha de raciocínio economicista, o imperativo da responsabilidade individual — cujo avesso é a irresponsabilidade coletiva — e o dogma da eficiência do mercado ao domínio do crime e do castigo. (sic) O controle do crime nas democracias liberais do Ocidente realmente pretende-se absoluto. Para tanto, os Estados, com “punho de ferro”, organizam, de maneira autoritária e simbólica, suas políticas penais, implementadas para reforçar a função essencial do Estado burguês: “a garantia do sono tranqüilo do proprietário de Adam Smith e a redução do risco da morte violenta que atemorizava Thomas Hobbes” (Paixão e Beato, 1997, p 02). Essa nova configuração penal evidencia o investimento cada vez maior dos Estados em ações repressivas e severas, e explicita nítidos contornos de um “Estado punitivo” que se ajustam ao atual panorama econômico e social externado pelo recente modelo capitalista de desenvolvimento. É justamente essa associação que tem determinado um novo enfoque nas reflexões sobre o controle social em nível global e nacional. É, portanto, essencial poder identificar posturas ordinariamente punitivas que caracterizam o Estado policial e a conseqüente criminalização da miséria. Mas o que torna uma política criminal unicamente “punitiva”? Para ser mais exata, e utilizando a perspectiva de Garland (1999), o que é que poderia justificar a descrição de uma trajetória da sociedade como “punitiva”?

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A resposta é mais complexa do que parece. A “punitividade”, de fato, em parte é um juízo comparativo acerca da “severidade” das penas com relação às medidas penais precedentes, em parte depende dos objetivos e das justificativas das medidas penais, assim como também da maneira pela qual a medida é apresentada ao público. As novas medidas que aumentam o nível das penas, reduzem os tratamentos penitenciários, ou impõem condições mais restritivas aos delinqüentes colocados em liberdade condicional ou vigiada (...) podem ser consideradas “punitivas”, pois aumentam com relação a um ponto de referência anterior. (Garland, 1999, p. 60) Assim, a maior parte das medidas penais recentes, engajadas em um modo de ação que expressa a necessidade constante de punição severa, traduzindo o sentimento público de intranqüilidade e insegurança e insistindo nos objetivos repressores ou denunciadores; atestam, ao mesmo tempo, seu caráter inequivocamente “punitivo”. Essa onipresença punitiva demanda reformas institucionais apresentadas como tentativas de dar conta do suposto aumento da criminalidade violenta e do sentimento de insegurança que se verifica no âmago da sociedade civil. A pressão da opinião pública, amplificada pelos meios de comunicação de massa, aponta para o aumento do controle penal, tendo como paradigma preferencial o fortalecimento e a severidade no trato com o crime e o encarceramento em massa das classes populares. As medidas que configuram tal postura são pouco originais e singularmente violentas: condenações mais severas, encarceramento massivo, leis que estabelecem condenações obrigatórias mínimas e perpetuidade automática no terceiro crime (“three strikes and you’re out”), estigmatização penal, restrições à liberdade condicional, leis que autorizam prisões de segurança máxima, reintrodução de castigos corporais, multiplicação de delitos aos quais são aplicáveis pena de morte, encarceramento de crianças (aplicação de legislação criminal “adulta” aos menores de 16 anos), políticas de “tolerância zero”, etc. Enfim, são legislações que nada mais expressam do que o desejo de vingança orquestrado pelo velho discurso da “lei e da ordem”.(Argëllo, 2005, p 01). De acordo com Wacquant (2007, p 126-127) esse modelo neoliberal de gestão penal destina-se a “regular, senão perpetuar, a pobreza e armazenar os dejetos humanos do mercado”. Volta-se para aqueles que compõem o sub-proletariado negro das grandes cidades, as frações desqualificadas da classe operária, aos que recusam o trabalho mal remunerado e se voltam para a economia informal da rua, cujo carro-chefe é o tráfico de drogas (Wacquant,1999, s/p). Com efeito, essa penalidade neoliberal, denominada por Wacquant (2001, p. 10) de “ditadura sobre os pobres” procura reprimir com severidade “as desordens suscitadas pela desregulamentação da economia, pela dessocialização do trabalho assalariado e pela pauperização relativa e absoluta de amplos contingentes do proletariado urbano, aumentando os meios, a amplitude e a intensidade da intervenção do aparelho policial e judiciário”. Mesmo países que não adotaram o modelo de Estado de bem estar social, como o Brasil, paulatinamente abandonaram políticas assistencialistas ou, especificamente no campo penal, de natureza preventivas, e passaram a adotar modelos meramente punitivos e repressores. De fato, também no Brasil1 ocorre paulatinamente o abandono do ideal de bem1

No Brasil, assim como na maioria dos países da América Latina, o autoritarismo antecede a recente ascensão do modelo econômico neoliberal. De fato, nossa arbitrariedade relacionada ao controle social está atrelada a questões mais complexas da nossa história política. Outra

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estar social — cuja política penal é de caráter preventivo — e a adoção, cada vez maior, de um modelo meramente punitivo e repressor. Uma vez diminuído o setor assistencial do Estado, sua instituições passam a se dedicar à promoção do seu setor repressivo. Por certo, mesmo no Brasil podemos visualizar o que Garland (1999) chamou de “obsessão securitária” que direciona as políticas criminais para um maior rigor em relação às penas e maior intolerância com o criminoso. O controle absoluto desse modelo de Estado, de forma ambígua, passa a ser simultaneamente bombeiro e incendiário. No mesmo movimento ele incentiva a desconfiança, desqualifica qualquer solução que não seja a jurídica e apresenta seu único remédio: mais segregação e restrição de liberdade. Tal modelo também tem como conseqüência imediata aumentar o número de detentos em proporções inquietantes, fenômeno percebido em várias democracias contemporâneas. No Brasil, por exemplo, a política de encarceramento tem aumentado vertiginosamente2 nos últimos anos, tendo ultrapassado, no ano de 2014, a marca dos 567.000 presos. Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ)3, o Brasil ocupa o quarto lugar no ranking dos países com a maior população prisional, só perdendo para os Estados Unidos, China e Rússia. O sistema penitenciário brasileiro, por sua vez, ocupa, de acordo com dados do Departamento Penitenciário Nacional, (DEPEN)4, 1478 estabelecimentos com um total de 310.687 vagas (homens: 288.104 e mulheres: 22.583), e, portanto, déficit de mais de 257.000 vagas. Tal aumento, lógico, não é exclusividade nacional, dada à característica liberal de sua adoção. Wacquant (2001b), ao analisar o inchaço das penitenciárias norte-americanas, comentou que “se fosse uma cidade, o sistema penitenciário americano seria a quarta metrópole do país”. Esse encarceramento em massa reflete, de fato, uma estrutura de dominação contemporânea que mascara uma exclusão capitalista ainda mais perversa, o isolamento e a neutralização dos miseráveis em praticamente todo o globo. constatação que particulariza o autoritarismo nacional é a crise de legitimidade pela qual passa nossa democracia atual. Gizlene Neder (1996) chega afirmar que em nossa formação socioeconômica desenvolvemos fantasias de controle social absoluto a partir da cultura jurídico-política da Península Ibérica. Vera Batista (2001), ao comentar tal afirmação, destaca que “nem o fim da escravidão nem a República romperam com o legado da fantasia absolutista do controle social (...). A atuação da polícia nas favelas cariocas, tanto quanto a chacina de Eldorado dos Carajás, é a prova viva deste legado”. Wacquant (2001, p. 8), em nota que fez aos brasileiros no livro As prisões da miséria, chama atenção para as especificidades do Brasil. Segundo o autor, por um conjunto de razões ligadas à nossa história e nossa “posição subordinada na estrutura das relações econômicas internacionais (estrutura de dominação que mascara a categoria falsamente ecumênica de ‘globalização’)”, e a despeito do enriquecimento coletivo das décadas de industrialização, nossa sociedade “continua caracterizada pelas disparidades sociais vertiginosas e pela pobreza de massa que, ao se combinarem, alimentam o crescimento inexorável da violência criminal, transformada em principal flagelo das grandes cidades”. 2 Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a população carcerária, que em 1988 era de 88.041 presos, o que representava taxa de encarceramento de 65.2 por cem mil habitantes, atingiu, em fevereiro de 2014, espantosos 567.655 presos, elevando a taxa de encarceramento para 358 por cem mil habitantes. O aumento foi da ordem de 644%, o que representa 479.614 presos a mais no sistema. In. Novo diagnóstico de pessoas presas no Brasil. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/28746-cnj-divulga-dados-sobre-novapopulacao-carceraria-brasileira. Acesso em 06 de junho de 2014. 3 Novo diagnóstico de pessoas presas no Brasil. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/28746-cnj-divulga-dados-sobre-nova-populacao-carcerariabrasileira. Acesso em 06 de junho de 2014. 4 Para mais informações sobre o perfil do cárcere brasileiro consulte o Relatório Estatístico de 2012 produzido pelo DEPEN e disponível na página virtual do Ministério da Justiça: http://portal.mj.gov.br/data/Pages/MJD574E9CEITEMIDC37B2AE94C6840068B1624D28407509CPTBRN N.htm. Acesso em 11 de dezembro de 2012.

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Nesse contexto, o próprio Plano Nacional de Política Criminal e Penitenciária (PNPC-2011) reconhece uma descrença institucional na possibilidade de impulsionar significativas mudanças em política criminal. “Essa descrença, aliada a um oportunismo legislativo e à lucratividade da mídia, alimentam um pernicioso fatalismo e um sentimento de vingança no povo brasileiro. Cresce o ódio de brasileiras/os contra brasileiras/os, é fortalecida a violência institucional e a ‘justiça’ extrajudicial, instituem-se os estereótipos e ampliam-se as instituições e os custos do controle” (PNPC, 2011, p 01). A postura contra-hegemônica do Plano Nacional de Política Criminal e Penitenciária (PNPC-2011) Assim, nesse momento obsessivo por segurança, é fundamental analisar uma política que, no rumo contrário, busca “assumir o controle do sistema penal e dar outra direção para a violência e a criminalidade neste País” (PNPC, 2011, p 01). Aprovado na 372ª reunião ordinária do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), em 26/04/2011, o PNPC destaca que até o momento a política brasileira tem optado por “continuar alimentando a espiral da criminalidade”, “apoiando o endurecimento penal, aumentando as taxas de encarceramento, adotando o modelo de superprisões, ignorando a seletividade penal, idolatrando a pena privativa de liberdade, elegendo as facções criminosas como problema central, apoiando a privatização do sistema penal, combatendo apenas a corrupção da ponta, judicializando todos os comportamentos da vida, potencializando o mito das drogas, enfraquecendo e criminalizando os movimentos sociais e defensores de Direitos Humanos e considerando o sistema prisional adjacente e conseqüente das polícias” (PNPC, 2011, p 01). Tal afirmação do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) é significativa, pois além de denunciar as injustas escolhas políticas do governo brasileiro, ainda explicita o uso meramente simbólico das políticas penais atuais que, em grande medida, estão associadas ao projeto liberal em curso no país Aqui partimos do pressuposto essencial de que a atual expansão do controle penal não pode ser analisada sem considerarmos sua direta ligação ao recente projeto liberal implementado em praticamente todo o Ocidente capitalista. Mesmo países que não adotaram o anterior modelo de Estado de bem estar, como o Brasil, paulatinamente começaram a abandonar políticas penais de natureza preventivas e passaram a adotar modelos meramente punitivos e repressores. O objetivo deste artigo, portanto, é analisar uma tentativa política contrahegemônica que corajosamente aponta os paradoxos presentes na atuação do Estado brasileiro relacionados à questão criminal e sua responsabilidade diante dos impasses na consolidação democrática nacional. Contrariando o atual modelo político, centralizado na atuação punitiva e evidenciado na recorrência cada vez maior ao Direito Penal como solução em prima ratio de praticamente todos os conflitos sociais, o PNPC de 2011 propõe “reduzir as taxas de encarceramento, descriminalizar condutas, ter modelos distintos de prisões para cada segmento, combater a seletividade penal, buscar menos justiça criminal e mais justiça social, investir na justiça restaurativa, empoderar a população para busca de solução dos conflitos, priorizar as penas alternativas à prisão, eleger o sistema prisional como problema central, fortalecer o Estado na gestão do sistema penal, combater todos os níveis da corrupção, enfrentar a questão das drogas nas suas múltiplas dimensões (social, econômica, de saúde, criminal), fortalecer o controle social sobre o sistema penal e ter política, método e gestão específica para o sistema prisional” (PNPC, 2011, p.01). Buscando “um novo modelo brasileiro de política criminal e penitenciária” o PNPC 2011 rechaça a ordem penal vigente que, sem alterar radicalmente os ritos democráticos, permite a expansão do controle penal de forma extraordinária e autoritária. Essa ordem, apelidada por Antoine Garapon (2001, p 152) de “democracia jurídica”, impõe, a partir da desconfiança, uma constante culpabilização das relações sociais. O

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Direito Penal, sob essa ótica, deve necessariamente prever e controlar toda e qualquer conduta social. “Se a Justiça é o novo palco da democracia, seu novo sentido, o Direito Penal, passa a ser a nova leitura das relações entre as pessoas cada vez mais estranhas umas às outras” (Garapon, 2001, p.153). Importante destacar que desse contexto recente emergem discursos científicos que procuram legitimar tal endurecimento penal como, por exemplo, as preleções de Jakobs (2003) sobre um Direito Penal do Inimigo. Segundo o autor os inimigos contemporâneos seriam tanto os terroristas quanto os criminosos econômicos, os delinquentes organizados, os autores de delitos sexuais e outros infratores penais perigosos (Jakobs, 2003, p. 39). Em outras palavras, é inimigo quem se desvia permanentemente do Direito recusando-se a retornar ao fiel cumprimento da norma. Ainda segundo o autor, os inimigos atuais não devem ser tratados como cidadãos, não sendo sujeitos processuais. “Cabe ao Estado não reconhecer seus direitos, ainda que de modo juridicamente ordenado”(Jakobs, 2003, p.45). Contra o inimigo não há devido processo legal, ao contrário declara-se guerra. Não sem razão, portanto, que Oliveira (2000, p 59-63) observa, já no começo do século, a existência de uma “exceção permanente”, uma espécie de “antidemocracia na América”, que se refugia no simulacro de constitucionalidade, e que, em suas palavras, “mal disfarça uma dominação que, outra vez, inverte a fórmula, gramsciana, de 80% de consenso e 20% de violência, para as proporções opostas”. Em escala global, essa pode ser também a imagem do recorrente “estado de exceção” retratado por Agamben (2004, p. 13) ao apontá-lo como paradigma de governo dominante na política contemporânea. Ainda segundo o autor: Esse deslocamento de uma medida provisória e excepcional para uma técnica de governo ameaça transformar radicalmente – e, de fato, já transformou de modo muito perceptível – a estrutura e o sentido da distinção tradicional entre os diversos tipos de constituição. O estado de exceção apresenta-se, nessa perspectiva, como um patamar de indeterminação entre democracia e absolutismo. (Agamben, 2004, p. 13). Enfim, é justamente essa democracia, pontuada por estados de emergência permanentes, que o PNPC 2011 está denunciando e fazendo clara oposição. Há mais de duas décadas vivemos sob a égide de uma Constituição democrática, no entanto, as relações entre os governos e a sociedade caracterizam-se cada vez mais pela ilegalidade e arbitrariedade. Nesse sentido, atualmente pode-se dizer, sem receio, que vivemos sob a mais violenta intervenção do Estado na vida dos cidadãos, materializada através de uma dominação simbólica articulada pelo medo e pela fragilidade democrática. “Por não sabermos mais distinguir a violência legítima da ilegítima, somos incapazes de determinar a dívida, quer dizer, o preço do ingresso na vida em comum” (Garapon, 2003, p. 51). É bom salientar que não é de hoje 5 que o Estado brasileiro adota uma política penal de exceção, contrária às noções de democracia e cidadania, e que coloca “a questão social como um caso de polícia”. O presidente Washington Luís pode ter eternizado a frase que resume essa postura autoritária, mas a política já existia antes dele e continua nos dias atuais, agora perfeitamente adaptada ao contexto neoliberal.

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Fazendo referencia a essa especificidade, Argüello (2005, p.1) atesta que “na América Latina, a preocupação com a violência criminal também se tornou uma obsessão coletiva e toma proporções que, de tão graves, lembram os tempos sombrios das ditaduras militares, quando a doutrina de segurança nacional legitimava a tortura e todas as demais formas de violação dos direitos humanos, em nome da razão de Estado. Hoje, é no altar da ideologia da segurança pública que se tornam facilmente sacrificáveis a democracia e os direitos humanos”.

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Nosso legado de autoritarismo e pouca resistência cidadã facilitou, em grande medida, a adequação do projeto neoliberal no fim dos anos 80. Como bem observa Wacquant (2001, p. 7) “a penalidade neoliberal ainda é mais sedutora e mais funesta quando aplicada em países ao mesmo tempo atingidos por fortes desigualdades de condições e de oportunidades de vida e desprovidos de tradição democrática e de instituições capazes de amortecer os choques causados pela mutação do trabalho e do indivíduo no limiar do novo século”. Assim, entre nós a consolidação do Estado punitivo apenas agravou nossos males históricos, vale dizer, a “deslegitimação das instituições legais e judiciárias, a escalada dos abusos policiais, a criminalização dos pobres, o crescimento significativo da defesa das práticas ilegais de repressão, a obstrução generalizada ao princípio da legalidade e a distribuição desigual e não eqüitativa dos direitos do cidadão” (Wacquant, 2001, p. 12). Nesse contexto, o controle social brasileiro apresenta-se ainda mais autoritário e seletivo, traduzido em aumento desproporcional de penas, maior encarceramento, supressão de direitos e garantias, endurecimento da execução penal entre outras medidas igualmente severas. Para reverter esse status quo, o PNPC 2011 propõe 14 medidas que contemplam dezenas de mudanças importantes para a transformação radical da política prisional no país. Na tentativa de “evitar que a ampliação do acesso à justiça se transforme em aumento do poder punitivo” a primeira medida propõe a “transformação da mentalidade punitiva da população” por meio da “sistematização e institucionalização a Justiça Restaurativa” (PNPC, 2011, p 02). A segunda medida, ao reconhecer a inexistência de uma política de integração6 social dos egressos do sistema prisional, propõe a “criação e implantação de uma política de integração social dos egressos do sistema prisional” por meio de elaboração e implantação de “um programa integrado com outros Ministérios e Poderes, que envolva ações sociais, familiares, educacionais e laborais” para finalmente “efetivar a assistência à educação, a capacitação profissional e laboral nas unidades prisionais, vinculando-as com ações para os egressos” (PNPC, 2011, p 03). Partindo do pressuposto de que é preciso “superar a dicotomia discursiva que está estabelecida entre a pena de prisão e a pena não privativa de liberdade (...) e reconhecer que esses sistemas são complementares e que o funcionamento efetivo de um é vital para o fortalecimento do outro” propõe a terceira medida um “Aperfeiçoamento do sistema de penas e medidas alternativas à prisão” através, principalmente, “da ampliação de sua aplicação para outros tipos penais” e “da implantação de serviços de monitoramento e de fiscalização” das referidas penas. (PNPC, 2011, p 03- 04). A quarta medida, reforça a importância da Lei 10.216/01, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais 7, e propõe a “implantação da política de saúde mental no sistema prisional”. Para isso, sugere “implantar as adequações procedimentais na fase processual, de execução penal e quando da desinternação ou liberação do interno; instalar serviços adequados para realização dessa política; atuar em conjunto com as políticas já existentes, do Ministério da Saúde, do Ministério da Assistência Social e do CNJ”. Preocupado em dispensar atendimento diferenciado para gerar igualdade de direitos o PNPC exterioriza seu cuidado com “as questões de gênero, de condição sexual, de 6

Alguns Estados têm ações localizadas e recentemente o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) iniciou programa voltado à empregabilidade (Começar de Novo). 7

Esse tema já foi detalhado pela Resolução N° 4/2010 do CNPCP e pela Resolução N° 113/2010, e Portaria 26, de 31 de março de 2011, ambas do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

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deficiência, de idade, de nacionalidade, entre outras,” reconhecendo que tais diferenças “são vividas também no campo criminal e penitenciário, e não devem ser desconsideradas”. Segundo o plano, “é uma questão de acesso aos direitos e de gestão das políticas públicas”. Nesse sentido propõe em sua quinta medida (PNPC, 2011, p 05-06): a) Assegurar as visitas íntimas para a população carcerária LGBTTT (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis e transgêneros); b) Garantir a assistência pré-natal e a existência de espaços e serviços específicos para gestantes durante a gestação e também no período de permanência dos filhos das mulheres presas no ambiente carcerário (conforme Resolução deste Conselho); c) Elaborar políticas de respeito às mulheres transexuais e travestis nos presídios estaduais; d) Estudar a possibilidade de unidades específicas para população LGBTT (acompanhar a experiência em andamento, de Minas Gerais); e) Garantir a acessibilidade nas unidades prisionais, conforme a orientação da NBR 9050; f) Garantir as condições de manifestação e de profecia de todas as religiões e credos; g) Criar sistema de acompanhamento de estrangeiros presos no Brasil e implantar políticas de atendimento adequadas, e unidades específicas para estrangeiros (quando necessário), garantindo o cumprimento das leis e dos tratados e acordos internacionais de que o Brasil é signatário; h) Aplicar a separação de pessoas presas por facção criminosa para aquelas que realmente estejam ligadas a grupos organizados do crime e que precisem de controle ou proteção, eliminando as separações por origem, isto é, por locais de moradia, que supostamente são comandados por determinados grupos, evitando assim a criação de unidades específicas por facções criminosas; i) Elaborar e implantar metodologia específica para cada público Outra preocupação importante externada pelo PNPC 2011 é o uso abusivo da prisão provisória. Segundo o plano, 44% dos presos no Brasil são provisórios 8. Este fenômeno se deve à banalização da prisão cautelar, hoje concedida rotineiramente pelos juízes de primeira instância, que muitas vezes apenas homologam as prisões em flagrante realizadas pela polícia, sem que haja fundamentação apropriada. Se analisarmos o comportamento do Poder Judiciário, veremos que em incontáveis vezes o uso da prisão provisória é feito em desacordo com a Constituição Federal. Isto pode ser verificado nos mutirões carcerários do CNJ, que revisaram 156.708 processos e beneficiaram 41.404 presos, dos quais 23.915 foram postos em liberdade” (PNPC, 2011, p 07). 8

O CNJ identificou que os índices de presos provisórios são diferentes nas unidades da Federação, sendo que o Distrito Federal possui o menor percentual, 20%, e o Piauí, o maior, 74%. De qualquer forma, segundo dados da International Bar Association2, uma em cada cinco destas prisões é ilegal (PNPC, 2011, p 07).

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Nesse sentido, como sexta medida propõe o PNPC 2011, “garantir a defesa técnica plena e efetiva”, “criar meios rápidos e eficientes para instrução do pedido de liberdade provisória”, “determinar o fim da carceragem nos distritos policiais”, promover “mutirões carcerários para identificar situações irregulares”, entre outras medidas. Além disso, destaca apoiar o polêmico monitoramento eletrônico como forma alternativa à prisão provisória. Atestando que “ainda há três Estados no País que não possuem Defensoria Pública instalada, e quase 50% dos demais Estados têm quadros de pessoal muito aquém do necessário” o PNPC 2011 reconhece que sendo “a maioria dos presos brasileiros é pobre, e sem a Defensoria Pública plenamente instalada” acabam não tendo “direito à defesa ou ao acompanhamento na fase da execução penal”. Nesse sentido, propõe em sua sétima medida “instalar Defensoria Pública em todos os Estados e na União; garantir autonomia financeira e administrativa com previsão orçamentária para o órgão; ampliar o número de defensores públicos estaduais e da União, bem como garantir quadro de apoio técnico adequado e suficiente; garantir a presença dos defensores nas delegacias e unidades prisionais, assim como reforçar a obrigatoriedade da sua visita nas unidades e fomentar a criação de centrais de assistência a presos provisórios” (PNPC, 2011, p. 08). Segundo o plano, “o sistema penal, nas suas três instâncias (policial, judicial e penitenciária), por tratar-se de um mecanismo de coerção, tende a fechar-se institucionalmente” (PNPC, 2011, p 09).. As prisões são conhecidas como instituições totais, que, por obrigarem os sujeitos a viver exclusivamente no mesmo espaço, com a mesma rotina, com as mesmas pessoas e por ter uma hierarquia bem definida e desigual (funcionários e presos), propicia com facilidade o adoecimento psíquico, a infantilização, o abuso de poder e a perda de parâmetros sociais. É fundamental que esses espaços possam ser oxigenados com a presença da sociedade civil, inclusive para que a sociedade se envolva na prevenção da criminalidade e não reforce a ideologia da vingança, criando cada vez mais estereótipos. (PNPC, 2011, p 08). Assim, propõe em sua oitava medida o fortalecimento do controle social do cárcere no Brasil, por meio de várias iniciativas como o “fortalecimento jurídico, social e financeiro dos conselhos de comunidade, os conselhos penitenciários e os patronatos”; com o “combate a violência institucional (com ênfase na erradicação da tortura e na redução das letalidades policial e prisional)” e com a criação de “um mecanismo nacional e mecanismos estaduais de prevenção à tortura, nos moldes ‘Protocolo Facultativo à Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes’ (promulgado pelo Decreto nº 6.085/2007)” entre outras medidas (PNPC, 2011, p 09). Em sua nona medida propõe o “enfrentamento das “drogas”. Ao atestar que “desde 2008 ocorre um aumento importante do percentual de presos por tráfico de drogas no País” e que isso “parece decorrer da Lei 11.343/2006, que aumenta a pena mínima para o crime de tráfico de drogas, institui tipos abertos e penas desproporcionais, bem como concede poderes extensos aos policiais que efetuam os flagrantes, mesmo se as apreensões forem de pequenas quantidades”, o PNPC 2011 destaca que ser preciso avaliar em que medida isso realmente contribui no combate ao tráfico de drogas. Segundo o plano, “ao aumentar-se o número de pessoas presas, disponibilizam-se mais pessoas vulneráveis para a organização do tráfico e também mais consumidores, pois na medida em que a prisão danifica os laços familiares e profissionais, cria dependências financeiras e sociais dos grupos organizados e rotula os sujeitos” (PNPC, 2011, p 09-10). Nesse sentido, ainda segundo o plano, “uma legião de jovens é empurrada para a vida marginal com eficiência e para continuação da dependência química (a prisão não trata nem física, nem psicologicamente, a dependência em drogas)” (PNPC, 2011, p 10). Outro aspecto observado pelo plano é o da seletividade penal, “eis que a ampliação do poder da polícia reforça a escolha de determinados indivíduos como inimigos, sendo um eficaz filtro negativo do sistema da justiça criminal, dadas as dificuldades das organizações policiais no

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que tange à formação, metodologia, midiática/social”. (PNPC, 2011, p 10).

estrutura

de

trabalho,

corrupção

e

pressão

Por essas razões propõe o PNPC 2011: a)ampliar a assistência de saúde e social aos dependentes químicos, em conformidade com a Política Nacional de Saúde Mental; b) Viabilizar mecanismos que garantam a aplicação de medidas como o tratamento voluntário para pessoas com dependência em drogas, em substituição à pena privativa de liberdade; c) Fomentar a discussão a respeito do uso, da dependência e do tráfico de drogas, e sobre os investimentos públicos aplicados na prevenção e no combate às drogas; d) Desenvolver ações integradas entre os Ministérios para geração de oportunidades econômicas e sociais para as populações vulneráveis e em risco social; e) Fomentar a capacitação dos agentes penitenciários para lidar com dependentes químicos; f) Fomentar a adoção de políticas de controle de acesso de drogas e materiais proibitivos nas unidades por meio de mecanismos tecnológicos, eliminando a prática de revista íntima nos familiares e visitantes das pessoas presas; g) Mobilizar autoridades para o cumprimento do art. 26 e do § 7º do art. 28 da Lei n. 11.343/2006 (Lei de Drogas), que trata dos serviços de atenção à saúde para o usuário ou dependente de drogas preso e determina a disponibilização ao infrator de estabelecimento de saúde no caso de porte de drogas para consumo pessoal, respectivamente; h) Promover a assimilação da cultura de substitutivos penais à prisão e outras formas de extinção da punibilidade, como o indulto natalino. Outra preocupação do PNPC 2011, relacionada ao sistema prisional, é sua própria arquitetura. Segundo o plano: Na maioria dos casos, os Estados têm construído as mais esdrúxulas e improvisadas estruturas para abrigar pessoas presas. Constatam-se celas sem nenhuma ventilação, iluminação ou incidência de sol e com pé direito baixo em localidades com médias de temperatura de 30 a 40 graus Celsius. Ou unidades que só tem celas, sem espaço para visitas, atividades educativas ou laborais, administrativas ou alojamento para funcionários. Ou, ainda, unidades hiperequipadas com corredores gradeados, sistemas inteiramente automatizados, várias ante-salas de segurança, grades entre presos e profissionais de saúde, paredes triplas e metros de concreto armado abaixo da construção para abrigar presos acusados de furto, roubo e pequenos traficantes. Não é possível tanto descaso para com as pessoas e para com o dinheiro público. (PNPC, 2011, p 11). Nesse sentido, para reverter essa situação dramática e vexatória, propõe em sua décima medida:

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a) Estabelecer padrões de pequena, média e grande complexidade para as construções prisionais, considerando as especificidades do público que será abrigado e as atividades que devem existir nas unidades; b) Garantir que os espaços sejam pensados a partir das necessidades das pessoas que os habitam, que nele trabalham e que os visitam. As estratégias de segurança devem ser garantidas sem desrespeitar o desenvolvimento sadio e seguro da vida; c) Respeitar os princípios de acessibilidade, de desenho universal e da ecologia humana; d) Fazer gestão com os Estados para o cumprimento dos padrões estabelecidos na Resolução 03/2005 do CNPCP, e suas alterações; e) O Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN) e os departamentos estaduais responsáveis pela administração prisional devem aprovar apenas projetos em conformidade com a Resolução 03/2005 do CNPCP, e suas alterações, e demais legislação pertinente; f) Eliminar o uso de celas-container. As medidas 11, 12 e 13 procuram aprimorar a gestão prisional; combater a corrupção e a ineficiência do sistema criminal e estabelecer novos parâmetros para a produção legislativa em matéria penal no país. O PNPC 2011 propõe várias iniciativas nesse sentido, destacando-se “a criação da Escola Nacional Penitenciária (ESPEN) com atribuições de pesquisa, ensino e intercâmbio que possam desenvolver e orientar os Estados com respeito a uma metodologia nacional na área prisional”, “a criação e implantação, nos Estados, de quadros de carreira do pessoal administrativo, especializado, de instrução técnica e de vigilância”; o estimulo “a criação ou o incremento de serviços de inteligência penitenciária, bem como de grupos de gerenciamento de crises; a busca pela estruturação “de uma imprescindível e intensa gestão de acompanhamento, intervenção e proposição legislativa” em matéria penal; a busca pela garantia de que “as instâncias competentes, como a Secretaria de Assuntos Legislativos (SAL) do Ministério da Justiça (MJ), o DEPEN e o CNPCP, sejam ouvidas nas alterações legislativas que se referem ao sistema criminal e penitenciário e o apoio a “alterações legislativas que tenham como resultado a garantia de direitos” (PNPC, 2011, p 1215). Por fim, em sua décima quarta medida o PNPC 2011, sintetizando todas as suas intenções, propõe a “construção de uma visão de justiça criminal e justiça social”. Haveria mais pessoas presas porque há mais delito ou porque há mais políticas criminológicas centradas na prisão? Elias Carranza6 demonstra que os dois fatores são verdadeiros, mas, com relação ao aumento do delito, é estabelecida uma relação com a desigualdade na distribuição de renda como sendo um vetor de forte determinação, embora não seja o único. Portanto, é imperativo construir uma nova visão de justiça criminal, lastreada nas ações de justiça social. O Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (PRONASCI) já trouxe contribuição nessa direção, porém com pouco espaço para refletir e integrar os aspectos relacionados às políticas criminais e penitenciárias. O sistema prisional é parte integrante da dimensão da segurança pública, e deve alcançar um patamar de importância política mais relevante. A promoção da segurança social refletirá na melhora qualitativa e na diminuição quantitativa da sua estrutura, mas para isso deverá ser visto e ouvido com a mesma intensidade que os demais setores da justiça criminal. Com essa reflexão propõe o PNPC 2011 (p 16):

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a) Ampliar a discussão crítica da sociedade, dos meios de comunicação e das instituições de ensino superior no sentido de que o simples aumento das penas e a criação de novos tipos penais não trazem soluções aos estruturais problemas da criminalidade. O arrefecimento de tais problemas se inicia não com um maior rigor penal, mas com políticas sociais de inclusão; b) Estimular a melhoria sistemática das condições de humanidade nos cárceres, promovendo atenção material, à saúde, jurídica, educacional, social e laborativa, com o apoio da comunidade; c) Estimular a resolução de conflitos pela sociedade por meio da mediação, perdão e reconciliação, entre outras práticas que configurem a promoção de uma cultura de paz; d) Apoiar e estimular ações de promoção de qualidade de vida da população, respeito à diversidade e prática da alteridade como maneira de alcançar comunidades seguras; e) Estabelecer limite ao número de vagas no sistema prisional no País e gerenciar o sistema penal a partir disso; f) Garantir racionalidade do uso e expansão das alternativas à prisão Considerações finais Assim, o que se observa é uma postura institucional diferente e que merece ser analisada, inclusive em seu grau de eficácia. É no mínimo intrigante que, em um momento em que prevalecem a postura ostensiva e os objetivos repressivos na política penal brasileira, o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária produza um documento político absolutamente contrario a tal conjuntura. Ao observarmos a maioria das medidas de controle, sugeridas ou implementadas, por diferentes setores do Estado brasileiro fica nítido a identidade de postura e objetivos. Embora o discurso político aponte várias iniciativas democráticas de controle, é a postura ostensiva e os objetivos repressivos que acabam se destacando na política brasileira de controle social. Nosso ordenamento penal9 está impregnado de valores que refletem

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Apenas para ilustrar, nossa legislação penal prevê uma pena de oito a quinze anos de reclusão para aquele que, por menos de vinte e quatro horas, seqüestrar pessoa com o fim de obter qualquer vantagem, como condição ou preço do resgate (art. 159 do Código penal). Absurdamente, nosso mesmo ordenamento estabelece uma pena bem inferior (reclusão de um a três anos) para aquele que, sem exigem qualquer vantagem, mantém alguém, indefinidamente, em cárcere privado (art. 148). Outro absurdo, que escancara tal dominação classista presente em nossa legislação, é a pena prevista para quem reduz alguém à condição análoga de escravo. Segundo o Código penal (art. 149), reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto; sujeita o criminoso a uma pena de reclusão de dois a oito anos. O anteprojeto do novo código penal (PLS236/2012) não é diferente. Tal projeto traz disposições altamente punitivas como o aumento máximo de cumprimento de pena privativa de liberdade de 30 para 40 anos (sobrevindo condenação por fato posterior ao inicio de cumprimento de pena); o aumento da pena para homicídio culposo, para os crimes contra a honra, para quem promover jogo de azar, explora menores, etc.; a flexibilização da progressão de regime que se dará com um sexto, um terço, metade e até três quintos da pena dependendo do crime, da reincidência, etc.; e, principalmente, a criação de inúmeros tipos penais, vale dizer, novas condutas rotuladas como criminosas, como terrorismo,

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exatamente essa dominação autoritária, seletiva e excludente. Composto, em sua maioria, por penas que importam encarceramentos longos e degradantes, inclusive para menores, e que são associados em grande medida aos crimes tradicionais (praticados principalmente contra o patrimônio ou associados ao pequeno tráfico de entorpecentes), nosso corpo de leis está longe de representar um instrumento democrático de controle. Seguindo orientação contrária, o PNPC 2011 aposta em um modelo preventivo, garantidor de direitos e que denúncia toda a pratica atual como perversa, injusta e antidemocrática. Nesse momento, portanto, apresenta-se como de fundamental importância ampliar as análises sobre as políticas penais adotadas atualmente pelo Estado brasileiro. Embora sobre o tema ainda seja possível adiantar que prevalece a adesão às premissas liberais, acompanhada necessariamente pela violência institucional materializada no maior encarceramento, no surgimento de novas infrações puníveis com prisão, no aumento das penas para diversos delitos, no recrudescimento na execução penal e na drástica redução na concessão de benefícios penais; por outro lado, surge propostas, como o PNPC 2011, que na contramão da hegemonia neoliberal buscam um novo modelo de atuação penal comprometido com a democracia e a garantia de direitos. Assim, este estudo se justifica por revelar-se uma excelente oportunidade para o aprofundamento das reflexões sobre o uso simbólico do controle penal no Brasil, sobre os impasses na consolidação democrática nacional e, principalmente sobre uma política que busca exatamente o fortalecimento da democracia brasileira. Discutir de forma pormenorizada o PNPC 2011 poderá contribuir para a quebra de um paradoxo contemporâneo perturbador. Cidadania e autoritarismo não podem imperar em um momento que se julga democrático. Enfim, nesse esboço de trabalho, a proposta central é discutir o PNPC 2011, sua importância política e sua potencial eficácia, em um momento em que ainda impera no Brasil uma política penal de exceção contrária às noções de democracia e cidadania e que coloca novamente a questão social como um caso de polícia.

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bullying, crimes eleitorais, cibernéticos, enriquecimento ilícito, uso de informações privilegiadas, além do aumento do rol de crimes hediondos entre outros.

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