O DEVIDO PROCESSO LEGAL E SUAS ACEPÇÕES

August 25, 2017 | Autor: Pedro Luiz Pozza | Categoria: Direito Constitucional, Devido Processo Legal
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O DEVIDO PROCESSO LEGAL E SUAS ACEPÇÕES

Pedro Luiz Pozza Juiz de Direito no Rio Grande do Sul

SUMÁRIO: 1. Devido processo legal – histórico da cláusula. 2. Devido processo legal – modalidades. 2.1. Devido processo legal em sentido processual. 2.1.1. Inafastabilidade da jurisdição. 2.1.2. Princípio do juiz natural. 2.1.3. Contraditório e ampla defesa. 2.1.4. Direito à prova. 2.1.5. Motivação sentencial. 2.2. Devido processo legal em sentido substancial. 3. Especificamente sobre a cláusula do devido processo legal em sentido processual. 3.1. Impossibilidade de fixação a priori (Carlos Alberto Alvaro de Oliveira) – Sentido organizatório (Cândido Rangel Dinamarco). 3.2. Conteúdo mínimo essencial (Luigi Paolo Comoglio). Conclusão. Bibliografia.

1. DEVIDO PROCESSO LEGAL – HISTÓRICO DA CLÁUSULA1

A Magna Carta Libertatum, outorgada por João Sem Terra em 1215, em verdade era um acordo de vontade entre o monarca e seus súditos revoltados, sendo, de qualquer sorte, uma antecessora das modernas Constituições. Uma de suas principais garantias – art. 39 – era a necessidade de respeito à “lei do país” (law of the land) para a validade do julgamento, destinada, todavia, apenas aos nobres, únicos que, naquele momento histórico, eram “free man”, ou seja, homens livres. Tal art. 39 é tido como precursor da cláusula due process of law da Carta norteamericana, usando-se as duas expressões, até hoje, como sinônimas. Coke sustentou a prevalência da Magna Carta sobre os poderes do Estado, reconhecendo superior o art. 39 citado, mas adaptado aos novos tempos. Blackstone, no século XVIII, refez a ligação entre o art. 39 e a common law, transformando-se aquele na garantia primordial do processo inglês. Cumpre, entretanto, considerar a observação de Sergio Henrique Tiveron Juliano, 1

Este capítulo teve por norte As Garantias Constitucionais do Direito de Ação, de Ada Pelegrini Grinover, RT, São Paulo, 1973, págs. 23/42.

no sentido de que “A importância que a Magna Carta representa deve ser relativizada. Há exagero em considerá-la perfeita em seu arcabouço. Trata-se de documento firmado no ano de 1215, época em que a modernas liberdades sequer tinham sido formadas ou passavam pela cabeça do baronato. A concessão que fazia o Rei, no século XIII, a um ‘senhor’ caracterizava-se num privilégio de este poder montar e manter uma corte de justiça, ou em uma cidade de escolher por si mesma os seus oficiais. Pela linguagem do tempo, privilégios, na verdade, eram chamados de liberdades. Não julgavam os barões estar fazendo uma nova lei; exigiam que seus antigos privilégios (liberdades) fossem respeitados, direitos adquiridos, naquele tempo, pelo feudalismo. Para os barões, o único problema era o de fazer o Rei respeitar esses privilégios. Mas, pela redação, o texto não fora formulado sob essa forma, o que tem permitido às gerações uma leitura da Magna Carta de modo mais abrangente”. 2 Na América do Norte, o conceito de law of the land foi incorporado por várias das colônias inglesas. Proclamada a independência, o due process of law só foi incorporado ao constitucionalismo norte-americano pela V emenda, além de outras que protegiam os direitos e garantias individuais. A XIV emenda estendeu o alcance da cláusula citada aos Estados federados, em 1868. Não teve êxito, todavia, a tentativa de interpretar-se a XIV emenda em conjunto com a XIII, que vedava a escravidão. De qualquer sorte, consolidou-se o uso geral da XIV emenda, especialmente no sentido de que apenas por meio de um processo legal podem ser atingidos bens como a vida, a liberdade e a propriedade. Inicialmente, a Suprema Corte norte-americana interpretou a cláusula do due process of law somente como limitação do poder do Legislativo à modificação de estruturas do processo para limitar arbitrariamente direitos fundamentais por ela assegurados. Arbitrariedade, para a Corte, teria a ver com princípios comuns a todos os homens. Já em 1855 o Tribunal avança, entendendo que a cláusula impõe respeito não só aos princípios constitucionais mas também aos antigos costumes e formas processuais acolhidos na common law inglesa antes de 1776. Todavia, tal interpretação foi amainada, entendendo-se que normas procedimentais novas poderiam atender à cláusula, contanto assegurassem idênticas garantias consagradas pela common law. No início do século XX, a mesma Corte passou a entender a cláusula como direito a um processo inspirado em princípios universais e superiores de justiça. Vários magistrados, todavia, influenciaram para que os princípios de igualdade e de justiça processual fossem interpretados conforme o contexto histórico. Isso em decorrência do fato de que os juízos estão condicionados à ideologia de cada julgador, que pode variar de um para 2

Devido Processo e o Fluxo do Tempo Legal, in Revista Jurídica da Universidade de Franca, 2001, vol. 4, nº 6, págs. 167-185.

outro, pelo que a cláusula, por sua indeterminação, está sujeita a entendimentos pessoais e diversos. Aos poucos, entretanto, passa-se a entender que a cláusula não tem alcance apenas processual, mas também sobre regras de direito substancial. Passa-se a uma proteção mais ampla, sem distinção entre substance e procedure, garantindo a cláusula também que o gozo de direitos substanciais processuais não seja limitado de modo arbitrário ou desarrazoado. A tal ponto chegou-se à exacerbação do conceito que em vários julgamentos, na época do New Deal, a Suprema Corte norte-americana passou a imiscuir-se no mérito de atos estatais, passando a atuar, pois, sob o ponto de vista político-substancial. Abandonados tais excessos, porém, após a crise de 1936/1937, o entendimento substancial da cláusula é mais prudente, orientando-se a Corte pela acentuação das liberdades civis, não econômicas, ou seja, com o fim de afastar qualquer obstáculo injustificado à tutela dos direitos individuais, seja substancial, seja processual. Nos seus primórdios, a cláusula do due process of law tinha aplicação somente no direito processual penal, restrição, todavia, que foi deixada de lado com interpretação ampla, alcançando a tutela todas as situações judiciais, por intermédio de critérios de igualdade, subsumindo-se aquela no direito de ação e da defesa em juízo. Considerações essas que a Suprema Corte norte-americana deixou claro aplicar-se aos Estados membros, cujas regras, a despeito da autonomia daqueles para disciplinar seus próprios processos, não podem ofender a certos princípios de justiça. Ou seja, não será razoável a legislação estadual que, imputando ao indivíduo determinado direito, dificulte ou torne inviável a sua tutela em juízo. 2. DEVIDO PROCESSO LEGAL – MODALIDADES

2.1. Devido processo legal em sentido processual Conforme o Professor Carlos Alberto Alvaro de Oliveira 3, o due process of law 4 compreende, minimamente, a proibição de juízos de exceção e o princípio do juiz natural (art. 5º, incisos XXXVII e LIII), a igualdade (art. 5º, caput), aí compreendida a paridade de armas, o contraditório e a ampla defesa, com os recursos a ela inerentes (art. 5º, inciso LV), consideradas inadmissíveis as provas obtidas por meios ilícitos (art. 5º, inciso LVI), devendo o litígio ser 3

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O Processo Civil na Perspectiva dos Direitos Fundamentais, in ALVARO DE OLIVEIRA, Carlos Alberto (org), Processo e Constituição, Forense, Rio de Janeiro, 2004, p. 14. CEZAR SALDANHA SOUZA JÚNIOR, A Supremacia do Direito no Estado Democrático e seus Modelos Básicos, edição própria, Porto Alegre, 2002, p. 94), ao referir-se à cláusula nos países do common law, contesta a tradução utilizada. Diz tratar-se o due process of law de um princípio da processualidade com determinadas qualificações jurídicas, que denomina de princípio do processo jurídico devido.

solucionado por meio de decisão fundamentada (art. 93, inciso IX), ao que deve somar-se, ainda, o princípio da inafastabilidade da jurisdição. 5 Não se olvide, ainda, que com a Emenda Constitucional nº 45/2004, também passou a ser requisito do devido processo legal a duração razoável do processo judicial e administrativo, e os meios que garantam sua celeridade (art. 5º, inc. LXXVII). 6 Na Argentina, segundo Mabel De Los Santos, são três os requisitos para que o processo civil seja compatível com o devido processo legal, todos de hierarquia constitucional: a imparcialidade e independência dos juízes, requisito que está vinculado à igualdade das partes no litígio; a oportunidade de todo litigante de adequada defesa e produção de prova, ligada ao princípio do contraditório; e que a tutela judicial seja efetiva e prestada em tempo útil, requisito que envolve o princípio de economia processual. 7

2.1.1. Inafastabilidade da jurisdição

No Brasil, o princípio está assegurado no art. 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal, que dispõe não poder a lei excluir da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. Conforme Grinover 8, trata-se de princípio que tem como embrião o art. 179 da Carta do Império, que, em seu inciso 12, dispunha que ‘nenhuma autoridade poderá avocar as

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SERGIO LUIS WETZEL DE MATTOS (O Princípio do Devido Processo Legal Revisitado, Revista da AJURIS, nº 97, p. 272), sustenta, a nosso ver equivocadamente, que o duplo grau de jurisdição seria subprincípio constitucional inerente ao devido processo legal. Primeiro, porque a despeito da ausência de dispositivo escrito, haveria norma nesse sentido, emergindo do nosso sistema constitucional que atribui aos tribunais competência primordialmente recursal. Segundo, porque a previsão excepcional em nossa Constituição de julgamentos em única instância só vem a confirmar que o subprincípio não é absoluto, podendo ter limitações. E, terceiro, pela maior probabilidade de acerto resultante da sujeição das decisões judiciais a um segundo julgamento, promovendo a uniformização da jurisprudência relativamente à Constituição Federal e lei federal, colocando os juízes inferiores sob controle dos superiores, e, por fim, concedendo aos perdedores mais uma possibilidade de êxito. DAISSON FLACH refere que, a despeito do texto constitucional pátrio (certo, antes da promulgação da EC 45/2004) não assegurar expressamente o valor fundamental da tutela em tempo razoável, qualquer interpretação concretizadora da Carta Magna leva naturalmente a ele que, sendo um valor fundamental, dispensa formulação expressa. Ou seja, em que pese não constasse do texto original, tal princípio era emanação direta da autoridade da Constituição (Processo e Realização Constitucional: a construção do “devido processo”, em Visões Críticas do Processo Civil Brasileiro, – uma homenagem ao Prof. Dr. José Maria Rosa Tesheiner, AMARAL, Guilherme Rizzo e CARPENA, Marcio Louzada (coords.), Livraria do Advogado Editora, Porto Alegre, 2005, p. 23). “El debido proceso en la práctica judicial”, Revista Peruana de Derecho Processual, Estúdio Monroe Abogados, vol. VII, 2004, p. 179. A jurista cita (p. 183) algumas condutas judiciais que desrespeitam o princípio do devido processo legal, entre as quais citamos: 1) quando o juiz não resolve todos os incidentes na própria audiência, mas determina que os autos venham conclusos, o que afeta a concentração e, via de conseqüência, a economia processual e a garantia à tutela efetiva em tempo oportuno; 2) a permissão à parte que pratique diversos atos processuais separadamente, quando podem ser realizados em uma só oportunidade, sem que sofra prejuízo, hipótese em que se dilata o processo, violando o direito à tutela efetiva; 3) deixar o juiz de proferir sentença ou de remeter os autos ao segundo grau de jurisdição pela falta de pagamento da taxa judiciária, ao invés de determinar a expedição de certidão para a sua cobrança e prosseguir com o trâmite normal do feito, o que atinge a economia processual e, portanto, o direito à duração razoável do processo. As Garantias Constitucionais do Direito de Ação, São Paulo, RT, 1973, p. 133.

causas pendentes, sustá-las ou fazer reviver os processos findos’. Não se dirigia, todavia, ao Poder Legislativo, pelo que não impediu que tivesse lugar, ao tempo daquela Carta, o contencioso administrativo. Não havia previsão expressa do princípio, nas primeiras Constituições republicanas, ainda que os doutrinadores entendessem-no implícito como decorrência da separação dos poderes, interpretação contra a qual se erigiu barreira clara na reforma constitucional de 1926, que inclui, no art. 60, § 5º, que “Nenhum recurso judiciário é permitido, para a Justiça Federal, ou local, contra a intervenção nos Estados, a declaração de estado de sítio e a verificação de poderes, o reconhecimento, a posse, a legitimidade, a perda de mandato dos membros do Poder Legislativo ou Executivo, federal ou estadual; assim como na vigência do estado de sítio, não poderão os Tribunais conhecer dos atos praticados em virtude dele pelo Poder Legislativo ou Executivo”. Cumpre lembrar, ainda, a disposição do art. 75 do Código Civil revogado, que assegurava corresponder a todo o direito uma ação. A nível constitucional, a omissão continuou, surgindo, inclusive, disposições expressas de impossibilidade de apreciação judicial de determinadas questões. Assim, por exemplo, a Constituição Federal de 1934 vedava o exame pelo Poder Judiciário de questões exclusivamente políticas (art. 68) e de atos do Governo Provisório e de seus efeitos (art. 18, ADCT). Retrocesso maior ocorreu com a Carta de 1937 que, além de manter, em seu art. 94, a proibição prevista no art. 68 da Carta de 34, ampliou-a, proibindo o exame, pelo Poder Judiciário, de atos praticados em virtude dos estados de emergência ou de guerra (art. 170). Do mesmo modo, criou a esdrúxula possibilidade de que os efeitos da declaração de inconstitucionalidade de lei, proclamada pelo Poder Judiciário, fossem afastados se, submetido o diploma novamente à apreciação do Congresso, a juízo do Chefe do Executivo, fosse ele ratificado pelo voto de dois terços de cada casa (Câmara e Senado) – art. 96, § único. A Constituição Federal de 1946, a mais democrática que o país já teve, ao menos até a de 1988, deixou assente o princípio da inafastabilidade da jurisdição, conforme seu art. 141, § 4º. Redação que se manteve nas Cartas de 1967 (art. 150, § 4º) e na EC de 1969 (art. 153, § 4º). A EC de 1969, no entanto, voltou a prever exceções ao princípio, excluindo da apreciação judicial (art. 181) os atos do governo revolucionário de 1964 e, especialmente, aqueles baixados com base nos famosos AI´s (atos institucionais). No atual ordenamento constitucional pátrio, persistem, entretanto, duas limitações expressas ao princípio da inafastabilidade da jurisdição. Uma delas diz respeito às punições disciplinares militares, conforme o art. 142, § 2º, da Constituição Federal (que reproduz a restrição já prevista no art. 153, § 20, da EC 1/69), que não podem ser objeto de hábeas corpus, e cuja vigência tem sido reiteradamente afirmada pelo

STF. 9 Todavia, tem sido afirmado pelo STF, desde a EC 1/69, que cabe ao Poder Judiciário o exame da ocorrência dos quatro pressupostos de legalidade dessas transgressões (a hierarquia, o poder disciplinar, o ato ligado à função e a pena susceptível de ser aplicada disciplinarmente), entendimento que continua válido para o disposto no § 2º, do art. 142 da atual Constituição, que é apenas mais restritivo. Veja-se, a propósito, o HC 70648 / RJ, 1ª Turma, Relator o Min. Moreira Alves, julgado em 09/11/1993, DJ 04-03-94, pág. 03289 Ement Vol-01735-01, pág. 110. Outra hipótese de vedação do acesso ao Poder Judiciário, ainda que parcial, está prevista no art. 217, § 1º, da Constituição Federal, que dispõe: “O Poder Judiciário só admitirá ações relativas à disciplina e às competições desportivas após esgotarem-se as instâncias da justiça desportiva, reguladas em lei”. Segue o § 2º do mesmo artigo estatuindo que “A justiça desportiva terá o prazo máximo de sessenta dias, contados da instauração do processo, para proferir decisão final”. Celso Ribeiro Bastos sustenta que tal disposição tem por escopo impedir a paralisação de campeonatos por meio de liminares, mandados de segurança e ações cautelares, comuns antes do advento da citada disposição constitucional, que só podem ser utilizados após esgotada a instância desportiva ou na hipótese dessa, uma vez acionada, não proferir decisão final no prazo de sessenta dias. 10 Trata-se de uma justiça administrativa, que não faz parte do Poder Judiciário, cujos funcionários e membros não são funcionários públicos. Faz valer um poder disciplinar de natureza administrativa, decorrendo seus preceitos e sanções de atos do Ministério da Educação, com base na legislação federal vigente (Leis nº 8.028/90 e 8.672/93). 11 Note-se que a obrigatoriedade de sujeição das partes a tal contencioso administrativo só prevalece pelo prazo de sessenta dias. Isso quer dizer que, se nesse interregno, a justiça desportiva não proferir decisão final, o interessado poderá recorrer ao Poder Judiciário. Há, no entanto, aspecto importante, lembrado por Celso Ribeiro Bastos, acerca de competições de curta duração. Assim, por exemplo, se um campeonato tiver duração de apenas um mês, como a Justiça Desportiva terá prazo de sessenta dias para se pronunciar, nesse caso o prejudicado poderá recorrer ao Poder Judiciário antes de esgotado aquele. Do contrário, eventual decisão que lhe for favorável no contencioso administrativo não terá nenhum resultado prático. 12 9

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Nesse sentido: RE 338840/RS, Segunda Turma, Relatora a Min. ELLEN GRACIE, julgado em 19/08/2003, DJ-1209-2003, p. 00049. BASTOS, Celso Ribeiro e MARTINS, Ives Gandra, Comentários à Constituição do Brasil, Saraiva, 2ª ed., São Paulo, 2000, p. 835/836. Ob. Cit., p. 836. Idem, p. 842.

Ainda, lembra-se que tal disposição constitucional não afasta a possibilidade de recurso ao Poder Judiciário, mas desde que seja antes acionada a Justiça Desportiva. Isso significa que o vencido na instância administrativa poderá, se quiser, buscar a rediscussão da matéria na esfera judiciária. Também é pacífico o entendimento na Suprema Corte no sentido de que não cabe apreciação judicial de questões que dizem respeito, exclusivamente, à interpretação de normas regimentais do Poder Legislativo, que estão, pois, imunes ao controle judicial. 13 Por fim, outra questão que tem sido afastada do controle jurisdicional, por construção doutrinária e jurisprudencial, é a que diz respeito ao mérito do ato administrativo, como se vê de jurisprudência pacífica do STF e STJ. 14 No ponto, diz Hely Lopes Meirelles:

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O mérito do ato administrativo

consubstancia-se, portanto, na valoração dos motivos e na escolha do objeto do ato, feitas pela Administração incumbida de sua prática, quando autorizada a decidir sobre a conveniência, oportunidade e justiça do ato a realizar. Daí a exata afirmativa de Seabra Fagundes de que ‘o merecimento é aspecto pertinente apenas aos atos administrativos praticados no exercício de competência discricionária’. Nos atos discricionários, desde que a lei confia à administração a escolha e valoração dos motivos e do objeto, não cabe ao Judiciário rever os critérios adotados pelo administrador, porque não há padrões de legalidade para aferir essa situação. 16 Importa distinguir, todavia, que mesmo que atue o administrador com base no poder discricionário, caberá intervenção do Poder Judiciário sempre que se esconda ilegalidade resultante de abuso ou desvio de poder sob o rótulo de mérito administrativo. Assim, já decidiu o STJ que Não substitui o mérito administrativo a decisão que, verificando a falsidade do motivo exposto, invalida o ato. (REsp 593955/RJ, Quinta Turma, Rel. Ministro José Arnaldo da Fonseca, julgado em 22.02.2005, DJ 21.03.2005 p. 425). Do mesmo modo, A apreciação da legalidade do ato administrativo não significa ingerência do poder Judiciário no mérito administrativo, não configurando lesão à ordem pública administrativa (AgRg na SS 1412/AC, Corte Especial, Relator o Ministro Edson Vidigal, julgado em 01.12.2004, DJ 07.03.2005 p. 129).

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Nesse sentido: MS 24356 / DF, Tribunal Pleno, Relator o Min. CARLOS VELLOSO, julgado em 13.02.03, DJ-1209-2003, p. 00029; MS 22183 / DF, Tribunal Pleno, Min. MARCO AURÉLIO, julgado em 05/04/1995, DJ-12-1297, p. 65569. RMS 24256 / DF (Primeira Turma, Relator o Ministro ILMAR GALVÃO, julgado em 03/09/2002, DJ DATA-1810-2002 PÁG. 49); RMS 13421/TO (Rel. Ministro GILSON DIPP, QUINTA TURMA, julgado em 15.03.2005, DJ 04.04.2005 p. 325 e RMS 18151/RJ (Quinta Turma, Rel. Ministro GILSON DIPP, julgado em 02.12.2004, DJ 09.02.2005 p. 206). Direito Administrativo Brasileiro, Malheiros Editores, 17ª ed., São Paulo, 1990, p. 138. Obra e loc. citados.

2.1.2. Princípio do juiz natural Conforme Dinamarco, tal garantia “consiste em exigir que os atos de exercício da função estatal jurisdição sejam realizados por juízes instituídos pela própria Constituição e competentes segundo a lei. Seu significado político-liberal associa-se mais de perto às garantias do processo penal que do processo civil, resolvendo-se na preocupação de preservar o acusado e sua liberdade de possíveis desmandos dos detentores do poder: daí a idéia, sempre presente entre os estudiosos daquela matéria, de que a garantia do juiz natural impõe que o processo e julgamento sejam feitos pelo juiz que já fosse competente ao momento em que praticado o ato a julgar. No processo civil, em que as pessoas comparecem com suas pretensões e estas são julgadas – não os fatos, em si mesmos, ou a pessoa – tal aspecto da garantia do juiz natural deixa de ter toda a grande importância que tem no processo penal. A preexistência do órgão judiciário não se confunde com a preexistência de sua competência para o caso”. 17 Segue o referido mestre dizendo que tal garantia caracteriza-se por um trinômio, a saber: 1) julgamentos por um juiz e não por outras pessoas ou funcionários; 2) existência anterior do órgão judiciário, sendo proibida, também para o processo civil, eventuais juízes ou tribunais de exceção, criados depois de surgida a lide; 3) juiz competente segundo a Constituição e a lei. 18 No processo civil, a regra é que o juiz natural de determinada causa seja o juiz de primeiro grau, integrante da justiça estadual comum, conforme dispõe a lei de organização judiciária local. A Constituição Federal, entretanto, dispõe que algumas causas ou partes tenham direito a julgamento por juízes, digamos, especiais. Assim, por exemplo, as causas em que haja interesse da União, suas autarquias, fundações ou empresas públicas, são julgadas pelos juízes federais de primeiro grau, nos termos do art. 109 da Constituição Federal. Há, ainda, previsão expressa de que ao STF cabe, por exemplo, o processo e julgamento das ações diretas de inconstitucionalidade e declaratórias de constitucionalidade, das ações em que todos os membros da magistratura tenham interesse direto ou indireto, ou naquelas em que mais da metade dos membros do tribunal de origem estejam impedidos ou sejam direta ou indiretamente interessados (art. 102, I, letras a e n). 19 Questão tormentosa que tem sido freqüentemente analisada pelas Cortes pátrias, diz respeito à designação de juízes, tanto no primeiro como no segundo grau de jurisdição, para julgamento de determinados processos. São os chamados regimes de exceção, e que feririam o

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DINAMARCO, Cândido Rangel, Instituições de Direito Processual Civil, Malheiros Editores, 3ª ed., São Paulo, 2003, vol. I, p. 203. Obra e página citada. AO 465 AgR / RS, Primeira Turma, Relator o Min. CELSO DE MELLO, julgado em 18/03/1997, DJ 25-04-97, p. 15205.

princípio do juiz natural. 20 Significa dizer que só se poderá falar em ofensa ao princípio do juiz natural quando um juiz for indicado especificamente para julgar determinado processo; não quando essa designação referir-se a um determinado número de processos, justamente para suprir as deficiências da prestação jurisdicional, tão comum nos dias de hoje em que extremamente assoberbado o Poder Judiciário.

2.1.3. Contraditório e ampla defesa

Trata-se de garantia constante do art. 5º, inc. LV, da Constituição Federal, assegurado aos litigantes e acusados em geral, no processo judicial ou administrativo. Conforme Alexandre de Moraes, por ampla defesa entende-se o asseguramento que é dado ao réu de condições que lhe possibilitem trazer para o processo todos os elementos tendentes a esclarecer a verdade ou mesmo de omitir-se ou calar-se, se entender necessário, enquanto o contraditório é a própria exteriorização da ampla defesa, impondo a condução dialética do processo (par conditio), pois a todo o ato produzido pela acusação, caberá igual direito da defesa de opor-se-lhe ou de dar-lhe a versão que melhor lhe apresente, ou, ainda, de fornecer uma interpretação jurídica diversa daquela dada pelo autor. 21 No dizer de Dinamarco, Para cumprir a exigência constitucional do contraditório, todo modelo procedimental descrito em lei contém e todos os procedimentos que concretamente se instauram devem conter momentos para que cada uma das partes peça, alegue e prove. O autor alega e pede na demanda inicial; instituído o processo mediante o ajuizamento desta, o réu é admitido a pedir logo de início, podendo alegar fundamentos de defesa e postular a improcedência da demanda ou a extinção do processo; o autor pode pedir a antecipação da tutela, o que obterá se concorrerem os requisitos postos em lei (CPC, art. 273); ambas as partes são admitidas a produzir provas dos fatos alegados; a parte contrariada por uma decisão tem o caminho aberto para pedir ao Tribunal uma decisão favorável (recurso). Ao pedir, cada um dos litigantes alega, isto é, traz fundamentos destinados a convencer o juiz; e alega, também, ao fim do procedimento e antes da sentença, analisando os fatos, as provas e as conseqüências jurídicas daqueles etc. 22 Carlos Alberto Alvaro de Oliveira, lecionando sobre a evolução do princípio, diz que, a partir da segunda metade do século XX, o contraditório deixa de ser exclusivamente formal, 20

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A propósito: AI 413423, AgR / PR, Segunda Turma, Min. GILMAR MENDES, Julgado em 26/11/2002, DJ-19-122002 p. 00116. Em seu voto, cita o relator acórdão da lavra do ministro ILMAR GALVÃO, proferido no RE nº 255639 (1ª Turma, in DJU 14.05.01). Direito Constitucional, Ed. Atlas, 6ª ed., São Paulo, 1999, p. 113. Ob. Cit., págs. 215/216.

com o fim de atender à necessidade de um processo justo, recuperando-se a essencialidade do diálogo judicial na formação do juízo, resultado da colaboração e cooperação das partes com o juiz e vice-versa, conforme as regras formais do processo. Inclui-se também o valor da efetividade, cuja influência na amplitude do contraditório é imediata e ampla, realizada aquela pela concessão de liminares, seja para a conservação de direitos, seja para a antecipação de efeitos da sentença de mérito. 23 No dizer de Mauro Cappelletti, o contraditório consiste em que “todas as partes da relação ou estado objeto do juízo, pessoalmente ou por meio de seus representantes, tenham efetiva oportunidade de se defender e, assim, uma adequada oportunidade de serem ouvidas por um juiz imparcial. 24 Um dos momentos mais importantes do processo, que Dinamarco chama de alma do processo 25 é a citação, 26 ato pela qual o réu toma conhecimento da demanda contra si ajuizada, passando a integrar a relação processual e podendo apresentar sua defesa. Trata-se de ato que visa a concretizar a vetusta idéia de que é imprescindível ouvir as duas partes do processo, instaurando, assim, o contraditório, ligado umbilicalmente à administração da justiça, essencial à legitimação do poder jurisdicional, pautado pela atuação das partes na dialética judiciária, além de estimulá-las a colaborar com a formação e obtenção da decisão judicial. 27 Isso não significa, todavia, que a defesa seja peça essencial à validade do processo, pois o réu poderá não querer defender-se, quedando, assim, revel; Importa é que tenha oportunidade de defender-se, não que o faça efetivamente. Entretanto, em alguns casos, a lei processual exige não só a possibilidade de contraditório, mas sim que ele seja efetivo, real. Como exemplo temos a situação do réu citado por edital e que não apresenta contestação, dispondo a lei (CPC, art. 9º, II) que ele receba curador especial, a quem cabe, ainda que por negação geral, ofertar contestação, pena de nulidade do processo. Além disso, em relação a esse réu, não se aplicam os efeitos da revelia (CPC, art. 319), nos termos do disposto no art. 302, § único, do mesmo códex. 23 24

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A garantia do contraditório, Revista da AJURIS, nº 74, págs. 107/108. Juízes Legisladores, tradução de Carlos Alberto Alvaro de Oliveira, Sergio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre, 1993, págs. 75/76. Ob. Cit., p. 216. DANIEL FRANCISCO MITIDIERO (Comentários ao Código de Processo Civil, Memória Jurídica Editora, São Paulo, 2005, vol. II, págs. 252/254), diz que a doutrina faz críticas ao conceito adotado pelo legislador no art. 213 do CPC, pois a função do ato não seria apenas uma, a de chamar o réu ou interessado para vir a juízo defender-se, mas também a de cientificá-lo do conteúdo da petição inicial e instá-lo a vir a juízo e tornar-se parte da relação processual. Além disso, a atuação do réu não seria simples defesa, mas sim a de efetiva participação no contraditório; ao fim, porque o réu não tem obrigação de ofertar defesa, podendo quedar revel, se assim quiser, podendo, também, apenas vir a juízo para reconhecer a procedência do pedido. Finaliza conceituando o instituto como o expediente que visa à cientificação do conteúdo da petição inicial ofertada pelo demandante, tornando o demandado parte na relação processual, angularizando-a destarte, ao mesmo tempo em que se lhe exorta à participação no processo, possibilitando-se-lhe influir na construção do juízo ou no simples deslinde do processo. DINAMARCO, Cândido Rangel, Ob. Cit., págs. 245/246.

A proteção ao revel citado por edital justifica-se pelo fato de que a informação acerca da existência da demanda não foi feita de modo confiável, não se podendo afirmar se a ausência de defesa decorreu da vontade do demandado ou porque, em verdade, não teve ele conhecimento do processo. 28 O contraditório também deve ser observado pelo juiz, que não tem faculdades mas deveres e poderes. 29 Por isso, ele não pode limitar-se simplesmente à atuação das partes, na medida em que, a despeito de começar o processo por iniciativa do autor, incumbe ao juiz dar-lhe o impulso oficial, nos termos do art. 262, in fine, do CPC. Com isso, tem o juiz o dever de determinar a realização dos atos necessários, ainda que não haja requerimento das partes. Nicola Picardi, após tecer considerações sobre a evolução do princípio do contraditório, assevera, frente às modernas concepções da doutrina italiana, que aquele não consiste tanto em um instrumento de luta entre as partes, mas, ao contrário, um instrumento operativo do juiz, e, em conseqüência, um momento fundamental do juízo. 30 Ponto importante sobre a atuação do juiz diz respeito à sua iniciativa probatória que, a princípio, fica limitada pelo princípio dispositivo, cuja aplicação vem sendo aos poucos mitigada pelos doutrinadores. Não pode o juiz limitar-se a receber as provas trazidas pelas partes, examiná-las e dar-lhes o devido valor. Ao revés, tem o dever de, mantida sua imparcialidade, buscar carrear aos autos as provas que, mostrando-se necessárias, as partes não trataram de fazê-lo. Como diz Dinamarco, o processo civil moderno repudia a idéia do juiz Pilatos, que, em face de uma instrução mal feita, resigna-se a fazer injustiça atribuindo a falha aos litigantes. 31 Por isto, merece críticas severas a postura do magistrado que, ante os limites da lide, sabe da necessidade de instrução do feito, mas, a despeito disso, limita-se a determinar que as partes declinem se ainda têm outras provas a produzir e, em vista de seu silêncio, profere julgamento antecipado e de improcedência ante a ausência de prova das alegações do autor. Cômoda posição que não pode ser debitada à incapacidade dos advogados das partes, especialmente em se tratando de parte que litigue com assistência judiciária gratuidade ou gratuidade judiciária. Portanto, se o juiz verifica que há necessidade de dilação probatória, mesmo ante a omissão das partes, cumpre-lhe designar a audiência de que trata o art. 331 do CPC para, ouvidos os litigantes, apurar se há ou não possibilidade de que comprovem em juízo suas alegações. Somente assim, ou seja, dialogando com as partes, é que o juiz estará cumprindo realmente sua missão constitucional de solucionar conflitos, e não sendo apenas um burocrata do processo. 32 28 29 30

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Idem, p. 217. Idem, p. 220. “Audiatur et altera pars” – Le matrici storico-culturali del contradittorio, in Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile, Giuffrè Editore, Milano, 2003, p. 21/22. Ob. Cit., p. 223. DANIEL FRANCISCO MITIDIERO, Ob. Cit., 2004, vol. I, págs. 549 e 551, ensina que “Uma vez verificada pelo

Nesse sentido, aliás, a impar lição de Carlos Alberto Alvaro de Oliveira, quando sustenta não proceder a objeção de que se ao juiz for dada ampla liberdade de iniciativa probatória, em qualquer momento do processo, estaria afastada irremediavelmente a faculdade de exame dos fatos da causa sob o ângulo do norte dado pelo ônus de produzir a prova (ou suportar as conseqüências da escolha por não fazê-la), podendo, ainda, haver freqüente olvido à ocorrência da preclusão. Tal argumento deixa de lado, entretanto, o verdadeiro sentido da regra do ônus probatório, que deve ser utilizada pelo juiz apenas na hipótese de não suficientemente provados os fatos, o que pode suceder inclusive no processo de caráter exclusivamente inquisitório. Ademais, generalizado o entendimento de que não há preclusão para o juiz determinar a produção de provas, questão de ordem pública relativamente à prestação jurisdicional, visando sempre a permitir ao julgador uma melhor formação de seu convencimento. Logicamente, se ainda que empregados pelo próprio juiz, os meios probatórios não tiverem êxito, então, sim, impositiva a aplicação da regra relativa ao ônus da prova, seja para evitar o arbítrio daquele, seja para frear a litigiosidade entre as partes. 33 Outro aspecto do contraditório diz respeito à impossibilidade de o juiz decidir a causa com base em regra jurídica não discutida pelas partes. Ou seja, se durante todo o desenrolar do processo os litigantes deram enfoque jurídico determinado aos fatos da causa, não pode o juiz, seja no primeiro grau, seja no segundo, aplicar outra regra jurídica, com isso tomando aqueles de surpresa. Impõe-se, antes, que advirta as partes para que possam pronunciar-se sobre o enfoque jurídica suscitado de ofício pelo juiz. Tal obrigação está prevista expressamente no art. 16 do novo CPC francês, que proíbe o juiz de fundamentar sua decisão em argumentos jurídicos por ele suscitados de ofício, sem ter oportunizado às partes prévia manifestação sobre o assunto. Por isso, no dizer de Dinamarco, o juiz que ouve as partes antes de extinguir o processo por uma ilegitimidade ad causam não alegada pelo réu e portanto não posta em contraditório entre as partes, não está manifestando uma suposta predisposição contra o autor, ou prejulgando: ao contrário, ele estará oferecendo ao próprio autor uma oportunidade para, alegando, dissuadi-lo daquela impressão inicial. 34

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juiz a necessidade de prova, tem esse o dever de ordenar sua produção. E não se vá dizer que nesta hipótese tem o Estado de se conformar com a lacuna probatória e alçar mão das regras referentes ao ônus da prova para levar a efeito o julgamento da causa, porque tal frustraria o acesso à ordem jurídica justa”. Isso porque o processo civil não pode ser visto como coisa das partes, idéia essencialmente liberal, não se adequando com as aspirações da sociedade atual. A consagração, pois, da iniciativa ampla do juiz em matéria probatória, significa uma passagem do Estado absenteísta, impregnado do laisse faire, para um Estado com preocupações sociais, imbuído do propósito de avançar da paridade puramente formal até uma situação que, na medida do possível, aproxime-se de uma igualdade substancial. Do Formalismo no Processo Civil, São Paulo, Saraiva, 1997, p. 153. No mesmo sentido: JOSÉ ROBERTO DOS SANTOS BEDAQUE, Poderes Instrutórios do Juiz, RT, São Paulo, 3ª ed., 2001, págs. 114/124. Ob. Cit., p. 224.

Não deve, pois, o Tribunal surpreender as partes com decisão que se ampare, fundamentalmente, numa concepção jurídica de que não se tenham dado conta. Por isso, deve permitir o prévio pronunciamento dos litigantes quando pretender julgar a lide sob um enfoque totalmente diverso daquele dado até então pelos demais atores da causa. Isso visa também ao interesse público, não só das partes, pois a surpresa, o acontecimento não aguardado, só gera descrença do cidadão na administração da justiça. 35 Tal exigência, realmente, não é de aplicação costumeira. Ao revés, tem sido rara nos foros e Tribunais, especialmente em vista do elevado volume de trabalho que sobrecarrega todos os magistrados, mas também em decorrência do fato de que o juiz brasileiro, infelizmente, não cultiva o hábito de dialogar com as partes. No entanto, ainda que, pelo sistema processual civil brasileiro, não seja uma obrigação do julgador, é de bom alvitre que tal prática passe a ser adotada por todos. 36 Especialmente no segundo grau de jurisdição, onde muitos juízes não admitem o uso ampliado dos embargos declaratórios, única forma de correção do equívoco pelo próprio colegiado, que parte de uma premissa jurídica diversa da discutida pelas partes, e que no caso concreto mostra-se inadequada, o que poderia ser evitado se, antes, elas fossem instadas a se manifestar sobre o enfoque diverso pretendido dar pelo órgão julgador. Disso resulta a necessidade de interposição de recurso especial, com sensível demora na prestação jurisdicional. Lógico, isso não significa que o juiz possa sobrepor-se ao interesse disponível das partes que têm, ao fim e ao cabo, o poder de dispor sobre o processo. Respeitados os limites postos pela lei em harmonia com o sistema constitucional, cada uma das partes atuará como quiser e quando quiser, formulando pedidos e requerimentos na medida do que quiser e omitindo-se, se assim preferir, nos momentos em que entender de omitir-se. As manifestações da garantia constitucional da liberdade das partes transparecem ao longo de todo o processo, desde a sua instauração até que se extinga. 37 Assim, é a parte que, mesmo podendo pedir mais, pede menos. Podendo pedir a rescisão do contrato de compra e venda, por vício redibitório da coisa, postula apenas o abatimento do preço. O réu, a despeito de poder argüir a incompetência relativa do juízo, não precisa fazê-lo. Não é obrigado a impugnar o valor da causa, a despeito de estar em desacordo com os critérios do art. 259 do CPC. Tendo à sua disposição vários argumentos para sua defesa, o réu pode escolher por 35 36

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ALVARO DE OLIVEIRA, Carlos Alberto, A Garantia do Contraditório, Revista da AJURIS nº 74, p. 113/114. CARLOS ALBERTO ALVARO DE OLIVEIRA, com propriedade, diz que “A faculdade concedida aos litigantes de pronunciar-se e intervir ativamente no processo impede, outrossim, sujeitem-se passivamente à definição jurídica ou fática efetuada pelo órgão judicial”. E exclui, por outro lado, o tratamento da parte como simples ‘objeto’ de pronunciamento judicial, garantindo o seu direito de atuar de modo crítico e construtivo sobre o andamento do processo e seu resultado, desenvolvendo antes da decisão a defesa das suas razões (Poderes do Juiz e Visão Cooperativa do Processo, Revista da AJURIS, nº 90, 2003, p. 64). DINAMARCO, Cândido Rangel, Ob. Cit., p. 226.

argüir apenas um deles; ou, ainda, poderá optar pela revelia, desde que advertido previamente de suas conseqüências. E, logicamente, ao vencido sempre caberá o direito de recorrer ou não da sentença. Nos EUA, o contraditório e a ampla defesa são entendidos como um dos elementos fundamentais do devido processo legal, caracterizando-se na garantia assegurada a todo acusado por um crime a preparar sua defesa em igualdade de condições com a acusação. Entendese, nesse país, o direito de defesa como o direito a tomar ciência dos elementos nos quais a parte contrária fundamentará sua acusação, garantindo, com isso, integral contraditório. 38 Na Alemanha, o contraditório assegura-se por duas vias: o direito de ser ouvido e o direito de defesa. O primeiro (art. 103.1 da Constituição Federal alemã – GG – Lei Fundamental de Bohn de 23.05.49) é pressuposto indispensável à produção de uma sentença justa, fundamentando-se na necessidade de permitir ao réu pronunciar-se de forma relevante a respeito da acusação contra si formulada. O segundo assegura-se pela participação de um defensor, inclusive contrariamente à vontade do acusado, com o que se efetiva o princípio de igualdade de armas.

2.1.4. Direito à prova

A Constituição Federal, em seu art. 5º, inc. LVI, dispõe que são inadmissíveis, no processo, as provas admitidas por meios ilícitos. Donde se conclui que todos os meios não ilícitos são possíveis de ser usados no processo. Aliás, diz o art. 332 do CPC: Todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados neste Código, são hábeis para provar a verdade dos fatos, em que se funda a ação ou defesa. Além disso, deve ser considerado também o inc. XII do art. 5º da Constituição Federal, que preserva o sigilo de correspondência e comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal. Diz Alexandre de Moraes que As provas ilícitas não se confundem com as provas ilegais e as ilegítimas. Enquanto, conforme já analisado, as provas ilícitas são aquelas obtidas com infringência ao direito material, as provas ilegítimas são as obtidas com desrespeito ao direito processual. Por sua vez, as provas ilegais seriam o gênero do qual as espécies são as provas ilícitas e as ilegítimas, pois, configuram-se pela obtenção com violação de natureza material ou processual ao ordenamento jurídico. 39

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LEIBAR, Iñaki Esparza, El Principio del Proceso Debido, Jose Maria Bosch Editor, Barcelona, 1995, p. 100. Ob. Cit., p. 114.

A questão sobre a ilicitude das provas tem sido freqüentemente levada ao STF. 40, entendendo a Corte, primeiro, que é ilícita a prova decorrente de escuta telefônica levada a efeito anteriormente à lei nº 9296/96, que regulamentou o art. 5º, inc. XII, da Constituição Federal. Segundo, que sendo ilícita a prova, ela só contamina as demais se elas não forem autônomas e distintas daquela. Diferentemente do decidido pelo STF no HC 80949/RJ, supra referido, o STJ entende lícita a prova obtida por meio de gravação de conversa do autor de demanda cível com testemunha que depôs no processo. Nesse sentido o REsp 9012 / RJ, Terceira Turma, Relator o Min. Cláudio santos, Relator p/ Acórdão o Ministro Nilson Naves, julgado em 24/02/1997, DJ 14.04.1997 p.12735. Todavia, quanto à gravação telefônica, o STJ entendeu que não se trata de prova lícita (REsp 2194 / RJ, Quarta Turma, Relator o Ministro Bueno de Souza, Relator p/ Acórdão o Ministro Fontes de Alencar, Julgado em 01/12/1994, DJ 01.07.1996 p.24054). As limitações probatórias são justificáveis, especialmente porque se deve admitir que a verdade processual nunca é absoluta, mas relativa. O direito à prova não é, pois, amplo nem ilimitado, como se a principal finalidade do processo fosse a certeza material acerca das alegações de fato. Não houvesse limites para a atividade probatória, ter-se-ia de admitir que o juiz pudesse julgar com base em seu conhecimento pessoal sobre os fatos, toda a espécie de prova seria possível, inclusive a ilegítima, ao juiz caberia regular a forma de trazer aos autos as provas, conforme o caso concreto, e a ele seria permitido apreciá-las livremente, sem qualquer balizamento. Além disso, nenhuma restrição haveria à produção probatória ao largo do contraditório, impondo-se exaustiva investigação, ainda que em processos que versassem sobre direitos disponíveis, e até mesmo quando não impugnados os fatos. 41 No processo civil italiano, Gian Franco Ricci distingue a ilicitude relativamente à prova produzida em juízo, que se distingue em prova inadmissível e a produzida irregularmente e a respeito da prova produzida licitamente, mas que chegou às mãos da parte de forma ilícita. 42 Na primeira hipótese, encontra-se a prova que depende da admissão pelo juiz e de um posterior ato de sua parte, mas que pode ser ilícita, por exemplo, em se tratando do depoimento 40

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HC 80949 / RJ, Primeira Turma, Relator o Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, julgado em 30/10/2001, DJ 14-122001, p. 00026. Importante transcrever parte da ementa: Da explícita proscrição da prova ilícita, sem distinções quanto ao crime objeto do processo (CF, art. 5º, LVI), resulta a prevalência da garantia nela estabelecida sobre o interesse na busca, a qualquer custo, da verdade real no processo: conseqüente impertinência de apelar-se ao princípio da proporcionalidade – à luz de teorias estrangeiras inadequadas à ordem constitucional brasileira – para sobrepor, à vedação constitucional da admissão da prova ilícita, considerações sobre a gravidade da infração penal objeto da investigação ou da imputação. No mesmo sentido: “Recurso extraordinário. 2. Penal. Crime de tráfico de entorpecentes. 3. Escuta telefônica autorizada por magistrado, antes do advento da Lei n° 9.296, de 24.7.1996. Prova ilícita. [...] (RE 222204 / SP, Segunda Turma, Relator o Min. NÉRI DA SILVEIRA, Julgamento: 25/05/1998, DJ-28-04-00 PÁG.-00096) e HC 81494/SP, Segunda Turma, Relator o Min. MAURÍCIO CORRÊA, julgado em 05/03/2002, DJ 12-04-02, p. 54). ALVARO DE OLIVEIRA, Carlos Alberto, Do Formalismo no Processo Civil, Saraiva, 1ª ed., 1997, p. 147. Le prove illecite nel processo civile, Rivista Trimestrale de Diritto e Procedura Civile, Giuffrè Editore Milão, Milão, 1987, nº 1, p. 35.

de uma testemunha que excedeu ao limite permitido, ou a confissão realizada por pessoa sem poderes para tanto. Nesses casos, como em tantos outros similares, está-se diante de uma prova que não poderia ter sido aceita pelo juiz, vez que expressamente vedada pelo ordenamento jurídico, hipótese em que a doutrina divide-se: alguns sustentam que a prova admitida ilicitamente pelo juiz é ineficaz; outros, apenas na hipótese de ele assim decidir. 43 A segunda, é a prova pré-constituída, que tem como característica o fato de vir ao processo sem necessidade de prévia admissão pelo juiz, suficiente a simples produção pela parte (por exemplo, documentos, provas fotográficas, etc.). Não se trata a ilicitude da forma como foi produzida a prova, mas sim como ela foi obtida pela parte, como na hipótese de ter sido o documento furtado ou roubado pela parte que a levou aos autos. Segundo a maioria da doutrina italiana, a tendência é considerar essa prova ilícita. 44

2.1.5. Motivação sentencial

Conforme o art. 93, IX, da Constituição Federal, todas as decisões judiciais devem ser motivadas, sob pena de nulidade. Dinamarco refere tratar-se de requisito relacionado com o pressuposto político de necessidade de controle das atividades do juiz. Considerando que o juiz tem ampla liberdade para decidir, com base no princípio do livre convencimento (CPC, art. 131), dando aos elementos probatórios valor consoante sua inteligência e sensibilidade, estando, ademais, desvinculado de pressões e influências de outrem, inclusive dos órgãos superiores do Poder Judiciário, exige-se a motivação das decisões, destinada a atribuir ao ato decisório racionalismo e legitimidade, dando conta das razões que o levaram a concluir de determinada maneira. 45 A sentença deve preencher os requisitos do art. 458 do CPC, compondo-se, pois, de relatório, motivação e dispositivo ou conclusão. No Juizado Especial Cível, pode-se dispensar o relatório, o que tem sido feito também por alguns juízes estaduais em processos perante a justiça comum, sobrevindo decisões, todavia, no sentido da nulidade da sentença. 46 Alfredo Rocco diz que a motivação é requisito essencial da sentença porque se trata do desenvolvimento de um juízo lógico, sendo essa essencialmente um ato de inteligência do juiz 47, do que, todavia, discorda Michelle Taruffo. 48 43 44 45 46

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Págs. 36/37 e 39. Págs. 37/38. Ob. Cit., p. 241. Assim: APELAÇÃO CÍVEL Nº 70004592622 (NONA CÂMARA CÍVEL, TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RS, RELATOR: ROSA TEREZINHA SILVA RODRIGUES, JULGADO EM 30/04/2003); APELAÇÃO CÍVEL Nº 70002687069 (DÉCIMA SEGUNDA CÂMARA CÍVEL, TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RS, RELATOR: MARCELO CEZAR MULLER, JULGADO EM 20/03/2003. La Sentenza Civile, Casa Editrice Dott. A. Giuffrè, Milão, 1962, p. 58.

Taruffo define a motivação da sentença como requisito estrutural necessário ao provimento jurisdicional, decorrente do art. 111, 1º, da Constituição Italiana, conforme o qual só existe como tal a decisão se é racional e controlável. Trata-se de um dado que se relaciona coerentemente com a natureza da função jurisdicional no Estado Democrático, porquanto esse pressupõe a possibilidade de controle sobre o exercício do poder conferido ao juiz. E da falta de motivação decorre que a sentença não integra o “conteúdo mínimo” indispensável para que se reconheça o exercício legitimo do poder jurisdicional. 49 Aqui cumpre lembrar Mauro Capelletti, quando ele fala da atividade criadora do juiz, dizendo que se trata de um fator inevitável nos dias de hoje, em que desponta a criatividade. Indaga, todavia, se o juiz pode ser legislador, em decorrência dessa criação judiciária, e com isso sua função seria equiparada à do legislativo por invadir sua seara. Os juízes, realmente, acabam sendo compelidos a atuar como law-makers, pois são chamados a interpretar, esclarecer, integrar, plasmar e transformar, e muitas vezes a criar direito novo. Mas não passam, com isso, a ser legisladores, pois se assim fosse, deixariam de ser juízes. 50 Hermes Zanetti Júnior também perfilha da posição de Cappelletti, dizendo que o juiz exerce uma atividade criadora, complemento indispensável à atuação do legislador ordinário. Assim, ao tornar concreta a norma específica, age como político, pesando critérios de conveniência (proporcionalidade), provenientes de sua sensibilidade e humanidade, atuando dentro do ordenamento jurídico existente. 51 A motivação não é requisito apenas da sentença, mas também das decisões interlocutórias, ainda que, por sua natureza, essas possam ter fundamentação concisa, o que, entretanto, não se confunde com ausência daquela. Na sentença, o juiz deve apreciar todos os pedidos das partes, assim como eventuais questões preliminares tidas como prejudiciais ao exame do mérito. Isso não significa, todavia, que deva examinar todas as alegações das partes, pois a necessidade de ser completa a fundamentação da sentença não implica que o juiz deva apreciar minudentemente todas aquelas, até mesmo as sem nenhuma ou com pouca relevância. Importa é que o juiz decline as razões pelas

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Taruffo sustenta o equívoco da teoria do silogismo judicial, com base na negação da natureza lógico-racional da atividade do juiz, porque tal modelo não exprime a inteireza da atividade criativa do juiz, em vista de que representa tão-somente a sua estrutura lógica, além de não levar em conta o elemento da vontade do juiz, mas somente o aspecto cognoscitivo. Também refuta as outras teorias sobre o assunto: a do raciocínio jurídico, especialmente porque essa não se apresenta como um modelo de juízo, mas sim como a indicação de um procedimento de escolha das premissas e dos critérios naquele empregados; e a da argumentação jurídica, primeiro, porque ela identifica-se muito com a teoria do raciocínio jurídico; segundo, porque tal teoria, definindo raciocínio como argumentação, pressupõe uma homogeneidade interna que na verdade inexiste. (La Motivazione della Sentenza Civile, Ed. CEDAM, Padova, 1975, págs. 151/152, 172 e 197/198). Ob. Cit., págs. 458, 464 e 466. Ob. Cit., págs. 73/74. Processo Constitucional: Relações entre Processo e Constituição, Revista da AJURIS, nº 94, 2004, págs. 120/121.

quais chegou às suas conclusões. 52

2.2. Devido processo legal em sentido substancial

A cláusula substantive due process of law tem origem, como já se viu, no Direito norte-americano, caracterizando-se pela necessidade de que as leis obedeçam à Constituição, devendo ser elaboradas com senso de justiça, regular e adequadamente. Trata-se a cláusula, conforme José Rodrigues Arimatéia, de limitação material à atuação legislativa do Estado, pois a lei terá de ser, necessariamente, razoável. Não se pode olvidar que a atividade legislativa é uma classificação jurídica de fatos, pessoas e bens, segundo critérios razoáveis, para o fim de lhes atribuir determinado efeito. Esta classificação deve ser feita com a observância de critérios previstos na Constituição, especialmente os princípios da igualdade, da razoabilidade e da proporcionalidade. 53 Dinamarco refere que a cláusula é, essencialmente, um vínculo que autolimita o poder estatal em sua totalidade, proporcionando instrumentos de censurar a própria legislação e proclamar a ilegitimidade de leis que afrontem as grandes bases do regime democrático (substantive due process of law). 54 Conforme Roberto Rosas, Santiago Dantas já havia elaborado profundo estudo sobre a aproximação do due process of law entre os sistemas americano e brasileiro, especialmente na aplicação da isonomia segundo a lei, ressaltando que O Poder Legislativo, em tal regime, não escapa à limitação constitucional, e os atos que pratica, embora tenham sempre forma de lei, nem sempre são leis, por lhes faltarem requisitos substanciais, deduzidos da própria Constituição. Esses requisitos se deduzem de um princípio, que é o centro fiscal do regime jurídico político: o princípio da igualdade. Graças a ele, podemos atingir, no direito constitucional brasileiro, o que nos Estados Unidos, a Corte Suprema construiu, partindo do due process of law. 55 O mesmo jurista distingue os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, que diz serem os norteadores do due process of law. Razoável seria aquilo que está de acordo com a razão e, citando Aristóteles, afirma que um julgamento é razoável na medida em que usados critérios de discernimento, equidade e inteligência. Quanto à proporcionalidade, diz respeito à liberdade do legislador, que não pode editar qualquer diploma legal, sem confrontar os meios e fins.

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Ob. Cit., p. 242. Aliás, é isso que tem dito a jurisprudência: EMBARGOS DE DECLARAÇÃO Nº 70006589642 (SEGUNDA CÂMARA ESPECIAL CÍVEL, TJ-RS, RELATOR: ÍCARO CARVALHO DE BEM OSÓRIO, JULGADO EM 01/08/2003) e Embargos de declaração nº 70006436620 (Nona Câmara Cível do TJ-RS, relator o Des. Adão Sergio do Nascimento Cassiano, julgados em 18/06/2003). O devido processo legal em sentido material, in Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 5, nº 1, p. 76. Ob. Cit., p. 245. Devido Processo legal: a inserção no Brasil, Revista do Advogado AASP, nº 73, 2003, p. 176.

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Humberto Ávila faz análise mais profunda sobre o assunto. Distingue três espécies do gênero razoabilidade: como equidade, congruência e equivalência. 57 A primeira (equidade) exige harmonização da norma geral com o caso individual, levando-se em conta o que normalmente acontece. Por isso, o caso concreto deve moldar-se à generalização da norma geral para que essa seja aplicável. Em caso julgado pelo STF, presumiu-se que quem se apresentava como Procurador do Estado detinha, realmente, essa condição, não havendo necessidade de que a demonstrasse. 58 A segunda impõe a necessidade de adequação das normas com suas condições externas de aplicação, seja recorrendo a um suporte empírico existente, seja exigindo congruência entre o critério de distinção eleito e a medida adotada. Por isso, o STF disse não ser razoável um servidor público aposentado perceber adicional de férias. 59 A terceira diz respeito à equivalência entre a medida adotada e o critério que a dimensiona. Assim, por exemplo, o valor de uma taxa cobrada pelo poder público deve ser equivalente ao serviço prestado; e uma pena criminal deve corresponder à culpabilidade do agente. 60

Acerca da proporcionalidade, o eminente jurista diz que tal postulado impõe ao Poder Legislativo e Executivo a escolha de meios adequados, necessários e proporcionais à consecução de seus objetivos. Adequado é o meio que alcança o fim; necessário é aquele meio que, dentre os vários igualmente adequados, tiver menos restrições relativamente aos direitos fundamentais; e a proporcionalidade estará respeitada se as vantagens de que resulta determinado meio suplantam suas desvantagens. Exige-se, pois, relação de causalidade entre o meio e o fim, de tal sorte que, adotando-se o meio, promove-se o fim. 61 O STF tem aplicado em inúmeros casos a cláusula do substantive due process of law. Vejamos: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – LEI ESTADUAL QUE CONCEDE GRATIFICAÇÃO DE FÉRIAS (1/3 DA REMUNERAÇÃO A SERVIDORES INATIVOS – VANTAGEM PECUNIÁRIA IRRAZOÁVEL E DESTITUÍDA DE CAUSA – LIMINAR DEFERIDA. – A norma legal que concede a servidor inativo gratificação de férias correspondente a um terço (1/3) do valor da remuneração mensal, ofende o critério razoabilidade que atua, enquanto projeção concretizadora da cláusula do substantive due process of law, como 56 57

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Devido Processo Legal: Proporcionalidade e Razoabilidade, Revista dos Tribunais nº 783, janeiro de 2001, p. 12. Teoria dos Princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos, Malheiros Editores, 1ª ed., São Paulo, 2003, págs. 94/95. Ob. Cit., págs. 95/96. Idem, págs. 98/100. Idem, p. 101. Idem, págs. 101/102.

insuperável limitação ao poder normativo do Estado. Incide o legislador comum em desvio ético-jurídico, quando concede a agentes estatais determinada vantagem pecuniária cuja razão de ser se revela absolutamente destituída de causa. ADI/MC 1158-AM, Tribunal Pleno, Relator o Ministro Celso de Mello, julgado em 19.12.94, in DJU 26.5.95. 62 Em julgamento mais recente, a posição do STF foi ratificada, ocasião em que se decidiu que fere o princípio da razoabilidade, configurando, pois, abuso no poder de legislar, sem eco no sistema constitucional vigente, a norma municipal que estabelece o número de vereadores sem observância da relação cogente de proporção com a respectiva população (RE 266994 / SP, Tribunal Pleno, Relator o Min. Maurício Corrêa, julgado em 31.03.04, DJ 21-05-2004, pág. 34). 63

3. ESPECIFICAMENTE SOBRE A CLÁUSULA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL EM SENTIDO PROCESSUAL 3.1. Impossibilidade de fixação a priori (Carlos Alberto Alvaro de Oliveira) – sentido organizatório (Cândido Rangel Dinamarco)

Carlos Alberto Alvaro de Oliveira sustenta que os direitos fundamentais e princípios são concretizados cabalmente pelo juiz quando da apreciação judiciária do caso concreto. Ou seja, seu conteúdo só pode ser determinado diante de fatos específicos, considerando-se ainda que para essa aplicação são estabelecidos poucos limites, a não ser a coerência com os fundamentos constitucionais, o sistema jurídico e a linguagem interna do direito. 64 Impõe-se, assim, que o aplicador da norma opte pela interpretação que leve à sua constitucionalidade, ainda que possa, por outro caminho, chegar à sua inconstitucionalidade. Em casos mais graves, o Poder Judiciário deverá corrigir a lei para resguardar o valor do direito fundamental no caso em apreço, fazendo valer a interpretação que menos restrinja aquele, dê-lhe 62

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No mesmo sentido: ADI 2579 / ES, Tribunal Pleno, Relator o Min. CARLOS VELLOSO, julgado em 21/08/2003, DJ-26-09-2003, p. 5. Cumpre referir parte do voto do relator, quando trata do princípio da proporcionalidade: “31. Analisando a projeção material do due process of law, ressaltou, com propriedade, o Ministro Celso de Mello que dentro da perspectiva da extensão da teoria do desvio atividades legislativas do Estado, este não dispõe de competência para legislar ilimitadamente, de forma imoderada e irresponsável, gerando, com seu comportamento institucional, distorção e, até mesmo, de subversão dos fins que regem o desempenho da função estatal” (ADI 1063, DJ de 27/04/01). 32. A atuação legislativa deve realizar-se em harmonia com o interesse público, não se admitindo a Edição de leis destituídas de certa razoabilidade, sob pena de caracterizar-se excesso do poder de legislar, hipótese que, a meu ver, exemplificativamente ocorre com os Municípios que aprovam suas Leis Orgânicas com numero de Vereadores incompatível com a proporção ditada pela Constituição Federal. 33. Conclui-se, à evidência, tanto sob a ótica da interpretação teleológica quanto da literal ou histórica da norma constitucional, que a proporção reclama observância dos princípios da razoabilidade e da isonomia”. “O Processo Civil na Perspectiva dos Direitos Fundamentais”. In: ALVARO DE OLIVEIRA, Carlos Alberto (org.), Processo e Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 8.

maior proteção, amplie mais o seu âmbito, realize-o em maior extensão. 65 No plano processual, aspecto importante a ser enfatizado é que a participação no processo para a formação da decisão constitui, de forma imediata, uma posição subjetiva inerente aos direitos fundamentais, portanto, é ela mesma o exercício de um direito fundamental, a ser qualificada substancialmente, e de cujo direito pode-se retirar o suporte constitucional para o princípio da colaboração, vez que as partes e o órgão judicial, assim como todos os demais que interagem no processo, devem fazê-lo com boa-fé e lealdade. Dever esse que, no dizer do Tribunal Constitucional espanhol, não é de simples caráter moral, mas jurídico-constitucional. 66 Necessário, ainda, que se atente a dois grupos de direitos fundamentais, pertinentes aos valores da efetividade e da segurança jurídica, instrumentos do fim último do processo, que é a realização da justiça no caso concreto, destacando-se, no primeiro deles, a garantia de acesso à jurisdição, sem esquecer, porém, não ser suficiente abrir a porta de entrada do Poder Judiciário, mas prestar jurisdição tanto quanto possível eficiente, efetiva e justa, mediante um processo sem dilações ou formalismos excessivos. 67 Acerca do formalismo excessivo, sua análise deve ser pautada em vista do conflito existente e o desejo a um processo ao qual sejam asseguradas garantias formais e, do outro lado, a ânsia de ter-se à mão um instrumento processual eficiente e funcional. Nesse sentido, a Corte Européia dos Direitos do Homem vem decidindo que um processo efetivo pressupõe a ausência de obstáculos decorrentes da complexidade ou do custo do procedimento,

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vedando-se aos Estados

que compõem a comunidade européia a imposição de restrições do acesso de alguém à justiça de tal modo que seu direito a um juízo seja afetado em sua essência, assim como não pode aquele ser impedido de valer-se de um recurso previsto e colocado à sua disposição. O mesmo é o entendimento do Tribunal Constitucional espanhol, no sentido de que o formalismo em excesso não se pode transformar em meros obstáculos processuais e fonte de incerteza e imprevisibilidade para a sorte das pretensões em jogo. 69 Passa a ser fator importante, do mesmo modo, o fator tempo, especialmente em vista da massificação das lides trazidas ao Poder Judiciário, carecendo todos de soluções mais rápidas dos litígios, com o uso cada vez maior da tutela de urgência. Impõe-se, também, a fixação de instrumentos que visem à duração razoável do processo e efetiva realização do direito 65 66 67 68

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Idem, p. 9. Idem, p. 11. Idem, p. 12. Sobre o custo do acesso à justiça, aliás, o STF já decidiu pela inconstitucionalidade de leis estaduais que impõem valores excessivos para as custas processuais e taxas judiciárias por constituírem uma forma de inviabilizar que muitos acorram ao Poder Judiciário. Veja-se, a propósito, os acórdãos proferidos nas Rp 1.077-RJ, 28.3.84, Moreira, RTJ 112/34; Rp 1.074-, 15.8.84, Falcão, RTJ 112/499; ADIn 948-GO, 9.11.95, Rezek; ADIn MC 1.378-5, 30.11.95, Celso, DJ 30.5.97; ADIn MC 1.651-PB, Sanches, DJ 11.9.98; ADIn MC 1.772-MG, 15.4.98, Velloso. O Processo Civil na Perspectiva dos Direitos Fundamentais”. In: ALVARO DE OLIVEIRA, Carlos Alberto (org.), Processo e Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 8.

agasalhado pelo Poder Judiciário, sem demoras. 70 Até para tornar efetiva a nova norma do inc. LXXVIII do art. 5º da Constituição Federal, introduzida pela EC 45/2004, dispositivo que já consta há muitos anos da Convenção Européia para a Proteção dos Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos e das Constituições das Repúblicas Portuguesa e Italiana. Segundo Mauro Cappelletti e Bryant Garth “em muitos países, as partes que buscam uma solução judicial precisam esperar dois ou três anos, ou mais, por uma decisão exeqüível. Os efeitos dessa delonga, especialmente se considerados os índices de inflação, podem ser devastadores. Ela aumenta os custos para as partes e pressiona os economicamente fracos a abandonar suas causas ou a aceitar acordos por valores muito inferiores àqueles a que teriam direito. A Convenção Européia dos Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais reconhece explicitamente, no artigo 6º, parágrafo 1º que a Justiça que não cumpre suas funções dentro de ‘um prazo razoável’ é, para muitas pessoas, uma Justiça inacessível”. 71 J. J. Gomes Canotilho refere que “Uma das mais importantes inovações introduzidas pela LC 1/97 (4ª Revisão) consistiu na criação de procedimentos judiciais céleres e prioritários (CRP, art. 20º/4) de modo a obter tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações de direitos, liberdades e garantias. Não é fácil delimitar o sentido do direito a um processo célere e prioritário. Deve reter-se, numa primeira aproximação, alguns tópicos: a) o preceito constitucional (art. 20º/4) constitui, desde logo, uma imposição constitucional no sentido de o legislador ordinário conformar os vários processos (penal, civil e administrativo) no sentido de assegurar por via preferente e sumária a protecção de direitos, liberdades e garantias; b) a consagração de procedimentos judiciais céleres e prioritários não significa a introdução de uma acção ou recurso de amparo especificamente dirigida à tutela de direitos, liberdades e garantias, mas de um direito constitucional de amparo de direitos a efectivar através das vias judiciais normais; c) a efectivação deste direito pressupõe uma nova formatação processual tendente a responder às exigências de celeridade e prioridade (assim, por exemplo, redução de prazos, eliminação de eventuais recursos hierárquicos necessários no contencioso administrativo)”. 72 A Constituição Italiana, em seu art. 111, §§ 1º e 2º, introduzidos pela Lei Constitucional de 23.11.99, n° 2, bem como o DL, de 07.01.00, n° 2, convertido com modificações na Lei de 25.02.00, n° 35, e os arts. 2 e segs. da Lei de 24.03.01, n° 891, dispõe que A lei deve assegurar ao processo uma duração razoável. 73 70 71 72 73

Idem, p. 13. Acesso à Justiça, tradução de Ellen Gracie Northfleet, Sergio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre, 1988, p. 20/21). Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina, 4ª ed., Coimbra, 2000, págs. 492/493. DIAS, Luciana Crimel, “Dossiê Itália: a grave e profunda crise da duração dos processos/alerta e subsídio”, GÊNESIS, Revista de Direito Processual Civil, vol. 26, ano VII, outubro-dezembro/2002, p. 802). O dispositivo constitucional em questão tem a seguinte redação original: La giurisdizione si attua mediante il giusto processo

Na Itália, o problema da lentidão da justiça já preocupa os juristas há muito tempo. Nicolò Trocker

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já referia, em 1974, que por ser dinâmico, o processo encontra no fator

tempo um dos seus elementos característicos e naturais, e que desde o momento da propositura da demanda em juízo deve passar por várias fases intermediárias ligadas estrutural e funcionalmente, necessitando certo lapso de tempo antes de chegar a seu final natural, que é a sentença. E justamente em sua duração parece estar sua face mais problemática e vulnerável. Aliás, não é à toa, conforme refere Luciana Crimel Dias, que em janeiro de 2000, a Corte Européia de Direitos Humanos colecionava 20.400 processos italianos, a sua maioria (90%) relativos à duração dos procedimentos penais, civis e administrativos, do que resultaram condenações do erário italiano, em 1999, de cerca de 12,7 bilhões de liras (cerca de 14 milhões de reais); e que, até fevereiro de 2000, já superavam 4 bilhões de liras (em torno de 4,5 milhões de reais). 75 Problemas que já eram diagnosticados pelas Cortes Constitucionais Italianas e alemãs há mais de três décadas, pois, conforme Nicolò Trocker

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, a despeito de ambas

preocuparem-se em assegurar aos direitos de ação e de defesa uma dimensão e conteúdo de efetividade também no sentido temporal, deixavam entrever que uma pressa excessiva ou um atraso irrazoável da solução judicial podia equivaler a uma violação do direito à tutela jurisdicional. Mesma posição, aliás, da doutrina mais avançada e sensível. Todavia, diz que importa mesmo é que os cidadãos, aqueles que recorrem ao Poder Judiciário, e que são os interessados diretos em uma prestação jurisdicional rápida, advertem que a duração irrazoável das soluções judiciais é, em verdade, verdadeira denegação de justiça. Sobre uma das alternativas para a morosidade da justiça brasileira já tivemos oportunidade de, na seara doutrinária, sustentar que o legislador brasileiro, por ocasião da mais recente reforma do CPC (Lei nº 10.444/02), foi muito tímido, pois deveria ter permitido que, na hipótese de incontrovérsia em relação aos fatos que embasam um ou mais pedidos, o julgamento antecipado da lide, fazendo-se uma espécie de cisão do processo, prosseguindo a instrução da lide apenas quanto à matéria controvertida. 77 Essa é, também, a posição de Fredie Didier Jr

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, ao discorrer sobre “a melhor

alteração legislativa operada pela nova reforma processual, que somente atingirá os almejados

74 75 76 77

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regolato dalla legge. Ogni processo si svolge nel contradditorio tra le parti, in condizione di paritá, davanti a giudice terzo e imparziale. La legge ne assicura la ragionevole durata – grifamos. Processo Civile e Costituizione – Problemi di Diritto Tedesco e Italiano, Giuffrè Editore, Milano, 1974, p. 271. Artigo citado, p. 780. Ob. Cit., p. 278/279. As Novas Regras dos Recursos no Processo Civil e outras Alterações – Leis nº 10.352, 10.358/01 e 10.444/02, Forense, Rio de Janeiro, 2003, p. 98/100. Inovações na Antecipação dos Efeitos da Tutela e a Resolução Parcial do Mérito, in GÊNESIS – Revista de Direito Processual Civil, vol. 26, outubro-dezembro/2002, p. 714 e segs.

resultados se os operadores do Direito atentarem para o erro topográfico e passarem a aplicar o instituto de acordo com sua finalidade: fracionar a resolução do mérito”. 79 Sobre a resolução parcial do mérito, Daniel Francisco Mitidiero refere: Cuida-se, em realidade, de mera explicitação positiva, uma vez que autorizadas vozes já se inclinavam a admitir tal expediente em nosso ordenamento antes mesmo da promulgação da referida legislação. [...] trata-se de verdadeira resolução do mérito, configurando uma nova modalidade de julgamento conforme o estado do processo, consoante observa ainda Fredie Didier JÚNIOR. Se quiséssemos insistir na terminologia legal, poderíamos referir que o art. 273, § 6º, do CPC, limita-se a antecipar o “momento do julgamento” de um dos pedidos cumulados ou de parcela deles, tal como parece preferir Luiz Guilherme Marinoni, adequando a marcha procedimental às especificidades do caso concreto. 80 Diga-se de passagem, tal entendimento vem tendo guarida em alguns julgados do Tribunal de Justiça gaúcho. 81 De tudo isso, pode-se afirmar que garantismo e eficiência devem ser postos em relação de adequada proporcionalidade, por meio de uma delicada escolha dos fins a atingir e uma atenta valoração dos interesses a tutelar. Importa é que um processo seja justo, à disposição dos que pedem justiça, o que só poderá ser determinado ponderando-se as circunstâncias do caso posto em julgamento. 82 Dinamarco refere que os princípios e garantias constitucionais do processo civil convergem para o devido processo legal, significando o fechamento de um círculo de garantias e 79

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Artigo citado, p. 716. Discordamos, todavia, da posição do articulista quanto à natureza jurídica do ato judicial que decide parcialmente o mérito, na forma do art. 273, § 6º, do CPC, pois enquanto aquele sustenta tratar-se de decisão interlocutória, por isso passível de recurso de agravo, o signatário entende que se trata de verdadeira sentença. Questão que deverá ser oportunamente analisada. MITIDIERO, Daniel Francisco e ZANETI, Hermes JÚNIOR, “Sentenças Parciais de Mérito e Resolução Definitiva Fracionada da Causa”, in Introdução ao Estudo do Processo Civil, Primeiras Linhas de um Paradigma Emergente, Sergio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre, 2004, págs. 173/174. CONDOMÍNIO. SÍNDICO. TRANSAÇÃO. ÁREA COMUM. AUSÊNCIA DE AUTORIZAÇÃO DA ASSEMBLÉIA. NULIDADE. RESOLUÇÃO PARCIAL DO MÉRITO. ART. 273, § 6º, DO CPC. PROCEDÊNCIA. COISA JULGADA AFASTADA. REMESSA À INSTRUÇÃO. Hipótese em que a inicial formula pedidos cominatórios e de desconstituição de transação judicial, pedido esse prejudicial ao primeiro. Sentença que repeliu os defeitos da transação e, via de conseqüência, extinguiu o pedido cominatório, em vista do reconhecimento da coisa julgada. Convenção condominial registrada antes da escritura que outorgou o domínio da unidade condominial à apelada, na qual constou claramente que a garagem é coletiva e, pois, de uso comum, pelo que prevalece sobre o ato notarial que, equivocadamente, fez constar a parte ideal da condômina na garagem como se fosse área privativa. Transação nula, ainda que homologada em juízo, vez que o síndico, sem autorização da assembléia geral de condôminos, não pode transigir acerca de área de uso comum. Apelo visando à desconstituição do acordo acolhido, via resolução parcial do mérito, nos termos do art. 273, § 6º, do CPC. Procedência do pedido prejudicial com conseqüente afastamento da coisa julgada em relação ao pedido cominatório, a ser resolvido oportunamente pelo juiz a quo, após ampla dilação probatória, especialmente prova pericial, em vista da controvérsia fática existente. RECURSO PROVIDO EM PARTE. UNÂNIME. (APELAÇÃO CÍVEL Nº 70006762470, DÉCIMA OITAVA CÂMARA CÍVEL, RELATOR: PEDRO LUIZ POZZA, JULGADO EM 04/03/2004). No mesmo sentido: APELAÇÃO CÍVEL Nº 70004553954, DÉCIMA OITAVA CÂMARA CÍVEL, RELATOR: PEDRO LUIZ POZZA, JULGADO EM 03/06/2004). O Processo Civil na Perspectiva dos Direitos Fundamentais”. In: ALVARO DE OLIVEIRA, Carlos Alberto (org.), Processo e Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 15.

exigências relativas ao processo, numa fórmula sintética destinada a afirmar a indispensabilidade de todas e reafirmar a autoridade de cada uma, valendo ainda como norma de encerramento portadora de outras exigências não tipificadas em fórmulas mas igualmente associadas à idéia democrática que deve prevalecer na ordem processual (art. 5º, § 2º). 83 A despeito da dificuldade de conceituação do devido processo legal, constituindose num mandamento genérico o art. 5º, LIV, da Constituição Federal, pretendeu o constituinte entregar valores contidos no dispositivo à guarda dos juízes, colocando-os a salvo dos atos nãojurisdicionais do Estado, além de autolimitar esse no exercício da jurisdição, pelo que o poder estatal do juiz também está sujeito aos lindes das outras garantias e exigências, vedando ao próprio juiz avançar sobre a competência de outros, além de ser-lhe vedado exercer seu poder moldes a atingir os direitos dos jurisdicionados ultrapassando o que a própria Constituição admite, salvo hipóteses expressamente previstas no ordenamento jurídico. 84 Assim, tem-se a inadmissão de técnicas e práticas contrárias à tendência da universalização da tutela jurisdicional, porque negariam a garantia da inafastabilidade do controle jurisdicional. Reafirma-se a asseguração da igualdade entre as partes, mantendo a imparcialidade do juiz designado pela Constituição Federal e leis processuais (juiz natural). Assegura-se, ainda, o contraditório, que impõe oportunizar igualdades no processo com projeção de participação efetiva das partes e do juiz. Ainda, impõe-se observar a necessidade de motivação das decisões judiciárias, assegurada a publicidade dos atos processuais, salvo hipóteses excepcionais. 85 Tais afirmações seriam despiciendas, pois bastaria recorrer ao conteúdo da cláusula genérica do devido processual legal, que tem o mérito de esboçar o perfil democrático do processo. Por isso, também estão incluídas naquela outras garantias que não são verdadeiros princípios do processo mas com ele pertinentes, como a inadmissibilidade das provas obtidas por meios ilícitos, a inviolabilidade do domicilio e o sigilo das comunicações e dados. E mesmo não infringidas quaisquer dessas garantias, mas violadas as premissas do Estado liberal democrático pela legislação infraconstitucional ou até mesmo por decisão judicial, estar-se-á afrontando o due process of law. 86 Tudo isso constitui, finaliza Dinamarco, o caráter organizatório da cláusula, que em alguns modelos constitucionais menos claros do que o nosso, contentam-se os juízes a se referir ao due process of law quando se defrontem com hipótese que atinge o espírito democrático da nação e os grandes pilares político-liberais plantados na Constituição. 87

83 84 85 86 87

Ob. Cit., p. 245. Ob. Cit., págs. 245/246. Ob. Cit., p. 246. Obra e loc. citados. Ob. Cit., p. 247.

3.2. Conteúdo mínimo essencial (Luigi Paolo Comoglio)

Em sua célebre obra, Luigi Paolo Comoglio enumera o que Dinamarco

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chama

de garantias mínimas de meios e de resultado do processo, com vistas a alcançar uma tutela adequada e efetiva, e que consistem em: (1) igualdade e contraditório das partes perante o juiz; (2) pré-constituição pela lei do juiz natural; (3) sujeição do juiz somente à lei; (4) proibição de instituição de juízos extraordinários ou especiais e (5) independência e imparcialidade dos órgãos jurisdicionais.

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O jurista italiano diz que tais são os elementos que compõem o complexo dos

princípios enunciados pelos arts. 3, 24, 25, inc. 1º, 101 a 104, 107 a 108, 111 e 113 e que permite delinear, de fato, um esquema fundamental de justo processo. 90 Acerca da igualdade, Comoglio refere que se trata de princípio decorrente da interpretação conjunta do art. 24, inc. 1º, e 3º, ambos da Constituição Italiana. Do art. 3º, inc. 1º, consta que todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei, sem qualquer distinção (sexo, raça, língua, religião, opinião política e condições pessoais e sociais; já o inc. 2º expressa uma necessidade de o Estado remover os obstáculos de ordem econômica e social que, limitando de fato a liberdade e a igualdade dos cidadãos, impedem o pleno desenvolvimento da pessoa humana e a efetiva participação de todos os trabalhadores na organização política, econômica e social do país. E o art. 24, inc. 1º, assegura a todos agir em juízo para tutelar os próprios direitos e interesses legítimos. 91 Funda-se tal princípio na garantia de democraticidade das estruturas processuais, ou seja, o princípio do processo para todos como possibilidade de agir em juízo assegurada em abstrato a todos, não se admitindo formas processuais diferenciadas de tutela em vista de privilégios de classe social ou prerrogativas pessoais. Isso, entretanto, diz respeito apenas à igualdade formal, não substancial, vez que a garantia do art. 24, inc. 1º, não assegura igualdade no ponto de partida, missão do art. 3º, inc. 1º, da carta italiana, conjugado com o inc. 3º do art. 24, que dispõe sobre a assistência judiciária aos carentes, e que relativizam de certo modo a idéia de que a exigência de efetividade da igualdade seja substancialmente estranha à garantia constitucional de ação. 92 No tocante ao contraditório, Comoglio diz que, em sua concepção tradicional, consiste na exigência de equilíbrio das forças que no processo estão em conflito, ou seja, a igualdade formal das partes diante do juiz, traduzindo-se na necessidade de assegurar a possibilidade de desenvolver plenamente a defesa das próprias razões. Sustenta, porém, uma visão menos individualista e mais dinâmica, na qual o princípio de neutralidade ou de eqüidistância do 88 89 90 91 92

Ob. Cit., p. 247. La Garanzia Costituzionale dell’Azione ed il Processo Civile. Padova: Cedam, 1970, p. 156. Idem, págs. 155/156. Idem, p. 131. Idem, p. 134/135.

juiz, típico do sistema adversarista anglo-saxão, permite atribuir ao juiz alguns poderes de condução material do processo, visando a favorecer a efetiva participação dos sujeitos do processo e, consequentemente, sua colaboração ou cooperação, conforme critérios de publicização e moralização do processo. 93 A intenção do constituinte italiano foi de assegurar a defesa em sentido técnico. Porém, tal aspecto, como sucede com o due process of law, não esgota o sentido da garantia, mas atribui à parte um direito substancial, qual seja, a possibilidade de tutelar em juízo as próprias razões, com as formas e meios que asseguram a instituição e desenvolvimento do contraditório. Como, aliás, tem interpretado tal garantia a Corte Constitucional italiana. Isso significa também que às partes seja permitido dialogar, preventiva e tempestivamente, acerca de qualquer questão (de fato ou de direito, preliminar ou prejudicial, de rito ou de mérito) cuja solução possa influenciar de qualquer modo a decisão judicial. Do contrário, estariam as partes sujeitas a serem surpreendidas com uma sentença baseada em argumentos por elas não discutidos antecipadamente, violando, assim, o direito de defesa. 94 Os demais elementos citados por Comoglio, que caracterizam o conteúdo mínimo essencial do due process of law, estão previstos no art. 25, inc. 1º, da Constituição Italiana, que assegura o princípio do juiz natural pré-constituído por lei, que é inafastável. O art. 101, inc. 2º, dispõe sobre a sujeição do juiz somente à lei. O art. 102, inc 2º, proíbe a instituição de juízos extraordinários ou especiais, ou seja, os tribunais de exceção, o que não afasta, todavia, a possibilidade de especialização por matéria dos órgãos judiciários assim como a participação de cidadãos estranhos à magistratura, regulando a lei a sua participação na administração da justiça. Por fim, o art. 104, inc. 1º, assegura à magistratura autonomia e independência em relação aos demais poderes do Estado italiano, do que decorre a independência e imparcialidade dos próprios juízes.

93 94

COMOGLIO, Luigi Paolo, Ob. Cit., págs. 141/142. Idem, págs. 143/146.

CONCLUSÃO

Em conclusão, podemos dizer que o devido processo legal pode ser visto sob dois prismas: substancial e processual. No primeiro, exige do legislador a observância de princípios de razoabilidade e proporcionalidade, respeitadas as disposições constitucionais expressas e os valores que decorrem implicitamente da Carta Magna, não sendo ilimitados os seus poderes. No plano processual, somente será observado o princípio quando qualquer causa possa ser submetida ao Poder Judiciário, salvo as hipóteses previstas excepcionalmente na Constituição Federal, for julgada por juiz imparcial, independente e pré-constituído, vedada a instituição de juízes de exceção, que trate as partes com igualdade, respeitando o contraditório, dando-lhes ampla oportunidade de produção probatória, ressalvadas as provas ilícitas intrinsecamente ou obtidas por meios ilícitos, cuja solução decorra de decisões fundamentadas, proferidas dentro de um prazo razoável.

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