O devir catastrófico da tecnociência nuclear (paper REACT-2011)

July 24, 2017 | Autor: Suzane Vieira | Categoria: Antropologia Das Ciências, Antropologia Simétrica, Análise E Controvérsia
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O devir catastrófico da tecnociência nuclear

Suzane de Alencar Vieira Doutoranda PPGAS/MN, UFRJ

RESUMO: A recente crise nuclear de Fukushima atualizou de modo dramático o debate público sobre energia nuclear no país e tensionou o campo de saberes da engenharia e da física nuclear. Apresento alguns pontos da abordagem cosmopolítica das práticas e saberes da tecnociência nuclear sob o signo da catástrofe. Nos debates e notas explicativas produzidas durante a crise nuclear, travaram-se lutas simbólicas entre forças do caos e leis da ordem. Engenheiros e cientistas ganharam espaço nos meios de comunicação para controlar no plano discursivo as fissuras no cosmos provocadas pelos acontecimentos. Os pronunciamentos vindos do campo científico sobre a catástrofe foram conduzidos por um esforço enunciativo de estabilizar e reduzir a catástrofe a sistemas de segurança e reinseri-la em um quadro estável. Controle numérico, escalas logarítmicas, mapas da contaminação mobilizados para cercar e dimensionar a catástrofe constituíram maneiras de domesticá-la como vetor de conhecimento para incrementar novas técnicas de controle e de medida. Porém, a catástrofe, enquanto vetor de risco e centro dinâmico da cosmopolítica nuclear, tende a ameaçar a razão científica e desestabilizar a segurança ontológica das práticas e saberes nucleares. ABSTRACT: The nuclear crisis of Fukushima has updated dramatically the public debate on nuclear power in the country and has strained the field of knowledge of nuclear engineering and physics. I present some points of cosmopolitical approach regarding the nuclear catastrophe. Symbolic battles were enacted between the forces of chaos and order laws at public debates and notes produced during the nuclear crisis. In the Brazilian press, engineers and scientists were recruited to control discursively the fissures in the cosmos caused by events. The scientific talks about the catastrophe were driven by an effort to stabilize and reduce the disaster to safety system and reinsert it into a cosmos. Numerical control, logarithmic scales, maps of contamination mobilized to surround the disaster were ways to frame the event as a vector of knowledge to implement new techniques of control and measurement. The catastrophe, as a vector of risk and dynamic center of cosmopolitics nuclear, threats and destabilizes the cosmological order that bestow ontological security to nuclear practices and knowledge. This presentation aims to follow the discursive construction of ontological realities associated with nuclear power.

Ponto de partida Quando decidi esboçar uma pesquisa etnográfica sobre a tecnociência nuclear quis procurar um laboratório, um grupo de pesquisa, mas a temática nuclear me reconduzia à história e aos arquivos. Por mais que caminhasse pela COPPE (Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia), pelo CBPF (Centro Brasileiro de Pesquisa Física) e visitasse a CNEN (Comissão Nacional de Energia Nuclear) lugares inequívocos da rede nuclear no Rio de Janeiro, quase sempre voltava para a história.

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O saber nuclear era conjugado no tempo passado: tinha sido uma grande ciência nos anos 40 e 50. A criação de institutos militares e acadêmicos1 e a trajetória de físicos eminentes passaram pelo campo da tecnociência nuclear2. A assim reputada “questão nuclear” conduziu a física à dianteira das ciências e a posicionou como o centro dinâmico que protagonizaria o desenvolvimento científico nacional na década de 50. O ponto de partida de minha pesquisa, que ainda está no início, foi então a física nuclear e comecei o percurso pelo CBPF (Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas). Mas ali, inquirir sobre física nuclear acionava um circuito memorialista que recobrava projetos dos anos 50. O nuclear que sobrava à física, eu o encontrava na biblioteca e mais especificamente na seção de ensino. A física nuclear teria sido incorporada em centros dinâmicos de pesquisa em física como as assim denominadas “física de neutrino ou léptons”, “física de átomos e moléculas”, “física de partículas”, “astrofísica” e “cosmologia”. A designação “nuclear” da ciência física era suprimida e substituída por outras classificações. Situação muito distinta do prestígio que tinha a física nuclear, quando, na década de 50, todos esses campos estavam orgulhosamente reunidos sob a égide da grande “questão nuclear”. Parecia que a matéria nuclear já havia sido suficientemente explorada: a composição do núcleo e a natureza das interações em seu interior estavam esclarecidas. O modelo Padrão da Teoria de Partículas aproximava-se de seu acabamento final com a identificação de mésons, píons, hádrons e bósons3. Desde os primeiros modelos atômicos, a detecção dessas partículas complexificaram o núcleo atômico. Como várias vezes me explicaram alguns físicos, a física nuclear não estaria mais na “fronteira” da física. Seria, então, um campo de saberes conquistado pela física e que migrara do pólo dinâmico da pesquisa experimental e teórica para o ensino? O físico Ramiro Muniz, com que mantive diálogo mais estreito, chegou a me advertir: “a física nuclear nunca existiu no CBPF”. Com esta frase impactante, ele sugeria que o nuclear 1 IME (Instituto Militar de Engenharia), CBPF e mesmo o prestigioso IMPA (Instituto de Matemática Pura e Aplicada) (Andrade). 2 O CNPq foi gerido no início de sua história pela força da “questão nuclear” e suas demandas desenvolvimentistas. Um dos primeiros projetos do CNPq foi a coordenação da prospecção de mineral radioativo no Brasil em colaboração com o Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) e a empresa CPRM, em 1952. Dois anos depois, o CNPq delegou a atividade de prospecção para a recémcriada CNEN, Comissão Nacional de Energia Nuclear (ANDRADE, 1999; BURGOS, 1999). 3 Há expectativas com relação à detecção do Bóson de Higgs também chamado de “partícula de Deus”. Prevista teoricamente na década de 60, essa partícula constituiria a chave para a coerência do modelo padrão de física de partículas. Espera-se que, com os grandes aceleradores de partículas, ela esteja prestes a ser detectada. Em 2010, um acelerador da Califórnia anunciou a detecção do Bóson de Higgs que dias depois foi contraditada pelo CERN (The European Organization for Nuclear Research) como um alarme falso.

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não foi tomado como objeto de pesquisa, mas consagrado como uma questão política sobre a qual a ciência física imprimira suas demandas e com a qual interessara o governo brasileiro, no período de institucionalização da ciência no país entre as décadas de 50 e 70. Naquele ponto da pesquisa, “física nuclear” surgiu como um domínio inalcançável, não apenas por se dispor em uma linguagem que eu ainda não conhecia, mas principalmente por ter ficado no passado da evolução da física que atualmente elegia novas “fronteiras”. Até aquele momento, a física nuclear apresentava-se como um domínio seguramente conquistado e estabilizado.

“Nuclear para Poetas” Bem antes da crise nuclear instaurada em março de 2011, a opção nuclear despertava, no Brasil, o entusiasmo de engenheiros diretamente envolvidos com o novo Plano Nuclear Nacional. Além da propalada construção de novas usinas nucleares, a expansão da mineração, o plano de novas prospecções e o projeto de irradiação de alimentos ampliavam as frentes dos apologistas da tecnologia nuclear vindos das engenharias, órgãos governamentais e setores militares. Em 2010, pude notar esse entusiasmo, durante uma série de palestras promovidas pela Casa da Ciência da UFRJ4. O evento recebia o sugestivo nome Nuclear para Poetas e destinava-se ao “público leigo” no qual me incluía. Aquela foi uma das primeiras ocasiões em que me acercava do tema da energia nuclear. Assisti a palestras de vários profissionais da engenharia e medicina nuclear de órgãos governamentais vinculados aos institutos5 da CNEN6, do departamento de engenharia nuclear da COPPE/UFRJ e do INCA7. Suas falas foram consagradas à tarefa de quebrar a resistência do “público leigo” às tecnologias nucleares. Até aquela ocasião, os discursos não tinham um apelo direto à controvertida opção energética do país. Um dos temas de maior visibilidade nas palestras foi a aplicação da energia nuclear à indústria de 4

A Casa da Ciência está localizada no Bairro de Botafogo, na cidade do Rio de Janeiro. As palestras aconteceram nas noites de terças-feiras, nos meses de maio e junho daquele ano. A Casa da Ciência da UFRJ em parceria com a CNEN promoveu então um circuito de palestras acompanhado por uma exposição temporária homônima. O objetivo dos organizadores seria promover uma aproximação do público leigo com o tema da energia nuclear. 5 Instituto de Pesquisa em Engenharia Nuclear, Instituto de Radioproteção e Dosimetria e Centro de Desenvolvimento de Tecnologia Nuclear. 6 Comissão Nacional de Energia Nuclear. 7 Instituto Nacional do Câncer.

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alimentos como a mais eficiente tecnologia de conservação dos alimentos irradiados. A irradiação de alimentos estava em fase experimental no país e era necessário buscar alianças com a indústria e razoável aceitação popular Os palestrantes se esforçavam em expurgar a energia nuclear da nódoa das bombas atômicas, armas nucleares e dos desastres nucleares. A tradução da “questão nuclear” “em termos técnicos” também visava afugentar os medos e ansiedades que esses eventos trágicos pudessem suscitar. Assim, conduziam o público exíguo que frequentava as palestras a se livrarem de crenças e suspeitas que poderiam ter com relação a essa tecnologia. A defesa calorosa do “nuclear”, que estaria a serviço das demandas de consumo de energia elétrica e da cura de doenças como o câncer em suas aplicações na medicina nuclear, sensibilizava a audiência formada, na sua maioria, por idosos e jovens estudantes. O modelo energético baseado na energia nuclear deixava de ser uma questão de “opinião” para se tornar uma questão de “compreensão”. Os engenheiros que estão diretamente engajados com esse modelo energético clamavam por nossa “compreensão” que mobilizava dois sentidos. Em primeiro lugar, uma “compreensão” compassiva que sensibilizaria o público para aceitar as aplicações nucleares como uma “necessidade” inelutável que transcenderia interesses e opiniões particulares. Em segundo lugar, a “compreensão” objetiva que convidava o público a aprender as coordenadas elementares do núcleo atômico e suas instrumentações para a produção de energia. Nos slides apresentados no projetor data show, o “nuclear” era sintetizado pela representação tridimensional de partículas coloridas. De um lado, a “necessidade” exigente, e de outro, o saber inabalável eram os aspectos visíveis da “compreensão”. Como essa última função do “compreender” não poderia ser alcançada num simples curso introdutório do “Nuclear para Poetas”, restarnos-ia confiar finalmente no conhecimento daqueles especialistas que são capazes de controlar e interpretar os números, ler e entender escalas e equações. Naquela ocasião, a energia nuclear era defendida como matéria do desenvolvimento tecnológico. Alijada de controvérsias internas à tecnociência nuclear e da referência funesta de guerras e catástrofes, o tema era positivado como uma convenção consensual. As catástrofes eram remotas e discretamente mobilizadas em evocações sobre o acidente desencadeado em 1987 na cidade de Goiânia, que era tão logo apropriado e reabsorvido como vetor de conhecimento.

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Naquelas noites de terça-feira da Casa da Ciência, alguns dos engenheiros confidenciava ao público sua participação nas equipes da Operação Césio8 que descontaminou bairros inteiros da cidade de Goiânia. O evento era relembrado como um desafio superado e uma oportunidade de aprendizado singular tanto do ponto de vista profissional dos engenheiros quanto do ponto de vista dos órgãos governamentais que puderam aprimorar as medidas de segurança e ações de emergência. Do acidente, sobrava sempre um saldo positivo, naquelas falas: o conhecimento de novas técnicas de descontaminação, novas modalidades de tratamento e a normatização mais acurada das técnicas de radioproteção. Supunha-se que, a cada acidente, as medidas de segurança seriam aprimoradas. No caminho do conhecimento acumulativo da série de acidentes no mundo, acreditava-se que seria cada vez menos provável a ocorrência de novos eventos catastróficos. Havia apenas três meses, eu tinha defendido minha dissertação de mestrado sobre o acidente radiológico de Goiânia, naquela ocasião, eu via o drama das vítimas totalmente despersonalizado e despido de qualquer envolvimento emocional. Surpreendeu-me ver aquela catástrofe representada pelos engenheiros como um “importante aprendizado”. Até aquele momento, explanar e ilustrar os usos da energia nuclear bastaria para assegurar um lugar de legitimidade para a tecnociência nuclear. As práticas e os saberes daquela tecnociência eram mostrados com uma precisão inequívoca. Suas controvérsias9 eram prescindíveis e a energia nuclear poderia ser apresentada como um ponto pacífico da tecnociência. Se, do ponto de vista da física nuclear, o núcleo atômico era um domínio de conhecimento relativamente estável, do ponto de vista de engenharia, o plano de segurança dentro do qual arrolavam as práticas nucleares parecia tecnicamente estabilizado. Enquanto me distraía colhendo relatórios que descreviam o mundo equilibrado das usinas e do ciclo do combustível nuclear, a crise nuclear japonesa foi deflagrada e a questão nuclear foi atualizada dramaticamente. A crise de Fukushima passou a enfeixar o fluxo de enunciados sobre o tema conferindo-lhes um novo dinamismo.

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A Operação Césio foi uma violenta operação de descontaminação que retirou as vítimas à força de suas casas e destruiu todos seus bens. Cf. minha dissertação de mestrado (VIEIRA, 2010). 9 Controvérsias internas ao campo de especialistas como os debates entre Luiz Pinguelli (COPPE da UFRJ) e José Goldemberg (USP) (SIMON, D. et ali. 1981).

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O epicentro da crise

Quando fomos avisados pelos jornais de que ocorrera um tsunami no Japão, no dia 11 de março de 2011, a perplexidade das primeiras imagens de Fukushima devastada pelas ondas gigantes não antecipavam acontecimentos mais graves que estavam por vir. E desde que foi anunciada a crise nuclear com o superaquecimento dos quatro reatores, a catástrofe se alongou por sucessivos vazamentos, incêndios e novos abalos sísmicos. Primeiro estremeceu a terra do pequeno país, depois o mar ergueu-se em uma onda violenta que varreu a costa de Sendai e Fukushima, no nordeste japonês. Quando o mundo estava perplexo diante da aniquilação das cidades pela força descomunal dos abalos sísmicos, começou uma crise nuclear de proporções ainda incógnitas. Uma falha nos sistemas de refrigeração dos reatores provocou o superaquecimento do núcleo de quatro reatores dos seis reatores da central nuclear. Algumas horas depois da falha, ocorreram explosões nas instalações dos reatores que lançaram na atmosfera os subprodutos do combustível nuclear e expuseram o núcleo dos reatores. A cada novo relatório da empresa Tepco (Tokyo Electric Power Company) responsável pela Central Nuclear de Fukushima I, novos valores dos níveis de radiação eram divulgados e as dimensões da área de evacuação aumentavam. O controle dos números constituía uma tentativa de impor medidas a um acontecimento sem limites que não se restringe a um tempo e espaço definidos. Esse acontecimento no Japão abalou um quadro que se julgava estável e passou a concentrar e movimentar o debate público sobre energia nuclear. Fukushima foi o centro irradiador da crise cosmopolítica (STENGERS, 2001a, 2001b) que tanto ameaçou os mares da China com a dispersão de partículas de Césio e Tório radioativo e quanto colocou em risco as políticas energéticas de países como Suíça e Alemanha que determinaram um prazo para o fim da geração de energia elétrica por usinas nucleares. A catástrofe desencadeou a constituição de uma cosmopolítica nuclear e representou um vetor de risco (STENGERS, 2001a) que foi sendo continuamente convertido pelas práticas discursivas tecno-científicas em enunciados que encerram a catástrofe em esquemas explanatórios, quantificam suas consequências e extraem “lições” dos acontecimentos.

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Nas forças de autodefesa, os engenheiros comparecem no debate público com uma dupla missão de defesa: proteger o nosso mundo da radiação ionizante e proteger o cosmos quântico e suas garantias ontológicas da comoção da política. É com essas “lições” que os tecnocientistas tentam superar a catástrofe e recobrar a eficiência de suas práticas e acrescentar novas práticas de segurança. Os acontecimentos de Fukushima, que ultrapassam a explosão dos reatores e a contaminação, submeteram os especialistas brasileiros a uma prova extrema de suas capacidades e recursos técnicos, persuasivos e político. Também constituiu a ocasião para realinhar e fortalecer o plano de expansão das aplicações da energia nuclear no país. Na imprensa brasileira, a perplexidade dos acontecimentos de Fukushima era respondida por engenheiros brasileiros que interpretavam o acontecimento no Japão paralelamente a afirmações que garantiam a integridade do projeto de segurança técnica das plantas das usinas de Angra dos Reis e às perspectivas mais inovadoras do novo programa nuclear nacional. Alemanha, França e Japão presenciaram várias e persistentes manifestações públicas contra a energia nuclear. Em contraste a esse refreamento nos investimentos no setor energético nuclear, Índia, China e Brasil anunciaram a construção de mais usinas nucleares10. No Brasil, já se encontrava em projeto a expansão da linha energética nuclear. Todavia, o acontecimento em Fukushima infligiu uma prova de força ao projeto brasileiro de expansão energética11. Em termos de redirecionamento político ou de redistribuição de forças entre agentes políticos de orientações ambientalistas e desenvolvimentistas, o “efeito Fukushima” (a fórmula que os ambientalistas acolheram como um forte apoio às lutas contra a energia nuclear) teve um espelhamento invertido no Brasil. Os ambientalistas brasileiros tiveram uma aparição modesta nos noticiários enquanto que as figuras que mais frequentavam os debates na imprensa foram engenheiros de variadas nominações e instituições associadas à energia nuclear. Nos pronunciamentos dos engenheiros, a palavra de ordem mais vibrante era a “necessidade” em torno da qual todos deveriam se curvar: Mais energia para crescer 10

Até 2030, o governo brasileiro pretende construir quatro usinas nucleares: duas no Nordeste e duas no Sudeste. 11 Desde o ano 2008, o governo brasileiro voltara a investir maciçamente no programa nuclear.

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economicamente e sem devastar o meio ambiente. E a energia nuclear parecia responder a essa promessa que era contraposta aos impactos deletérios das usinas hidrelétricas. A alternativa infernal “ou hidrelétrica ou nuclear” deixou muita gente confusa e talvez, por isso, os ambientalistas se dividissem entre a oposição à usina hidrelétrica de Belo Monte (cuja concessão ocorreu quando o desastre de Fukushima ainda ressoava nos jornais) e o embate contra a energia nuclear. Por fim, o governo brasileiro reforçou sua aposta no nuclear como alternativa energética.

O paradigma do cálculo Como espectadores da catástrofe, vimos os níveis de radiação no mar japonês escalonarem vertiginosamente: de trezentos, mil, três mil, quatro mil vezes os “níveis permitidos”, até que os limites permitidos fossem drasticamente flexibilizados. É com base em novas medidas que o governo japonês autorizou e a Tepco determinou que trabalhadores continuassem em área com altos índices de radiação. Vislumbramos a pequena ponta calculável de uma situação em que se perdeu o controle. Ao invés de atenderem aos anseios de precisão, os números devam pistas do quão descontrolada e imprevisível foi a crise nuclear japonesa. As informações sobre a radiação em Fukushima eram totalmente mediadas pelo paradigma do cálculo. Cintilômetros e contadores Geiger, aparelhos usados para medir radiações ionizantes, detectavam a presença de substâncias radioativas e os sinais elétricos eram traduzidos pelos especialistas em unidades de medida. Mas esses números produzidos pelos aparelhos e sua variação escalonar não demonstrava ao público uma capacidade precisa de medir, mas o caráter provisório e precário das medidas e controles. Fukushima nos fez lembrar do quanto estamos à mercê do saber técnico mesmo em momentos em que ele mostra seus limites e hesitações. Os engenheiros brasileiros responderam à emergência atordoante do acidente com escalonamento da dosimetria de Fukushima comparando-a com níveis de radiação atmosférica. A construção de escalas fornecia-lhes os parâmetros para interpretar os estonteantes números correspondentes aos níveis de radioatividade no Japão e, ao mesmo tempo, servia para inseri-los em um quadro mais estável. Esquemas da planta da central nuclear e dos reatores atingidos foram revistos e analisados em detalhe na busca por esclarecer os processos químicos e físicos que desencadearam a explosão. 8

Discutiram alternativas de sistemas de resfriamento e as vantagens e desvantagens do PWR (reator de água pressurizada), utilizado nos reatores de Angra e do BWR (reator de água fervente) modelo dos reatores da central de Fukushima. Nas apresentações públicas na imprensa, o acontecimento catastrófico era decomposto esquemática e didaticamente em fases e séries causais e, desse modo, recolocado no domínio do inteligível. As explicações, esquemas e escalas que os engenheiros da tecnociência nuclear brasileira mobilizavam em suas apresentações visavam recobrir as fissuras, que o acontecimento em Fukushima provocou na ontologia da tecnociência nuclear. O paradigma do cálculo era acionado, em suas exposições, para lutar contra um mundo nuclear descontrolado. A paixão pelo cálculo desses engenheiros era motivada pela ânsia de controlar e de purificar as incertezas. Essa matematização do fenômeno visava imprimir formas e limites aos acontecimentos e torná-los previsíveis.

Discurso de contenção Nos dias imediatamente posteriores à divulgação do desastre nuclear japonês, a imprensa brasileira retransmitiu um excesso de dados recolhido de agências de notícias internacionais.12 O alarde com que os dados foram divulgados na imprensa provocou um desabafo irritado de professores de departamento de Engenharia Nuclear13. Mostravam-se indignados com as intromissões do que denominaram “ignorância técnica” dos jornalistas e internautas das redes sociais que atropelavam o esclarecimento tecnocientífico sobre o “caso”. Além disso, incomodava-os o tom dramático que as notícias e comentários “leigos” conferiam ao acontecimento que, para eles, era uma questão de controle técnico. Nessa reação contra a imprensa, os professores pretendiam redefinir os termos do debate para uma tradução técnica e objetiva do evento. As falhas nos sistemas dos reatores de Fukushima são redefinidas como obstáculos que precisam ser superados para garantir a segurança das usinas nucleares. A catástrofe é delimitada por eles como um problema político que concerne às decisões 12

A exposição de séries informações flutuantes que cansa e aturde o público é uma demonstração de força muito comum tanto nos debates públicos sobre Fukushima quanto aqueles sobre o acidente em Goiânia (como mostrei em outro trabalho, VIEIRA, 2010). 13 Um desabafo reproduzido no artigo assinado pelos professores Antonio Carlos Alvim e Paulo Fernando Melo (Ver ALVIM & MELLO, 2011).

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sobre os investimentos em caras tecnologias de segurança das usinas e depósitos de rejeitos radioativos. Parecia-lhes escandalosa e perigosa a aproximação, efetuada no espaço do noticiário, entre ciência e senso comum, que turvava o julgamento científico sobre os fatos. O caso de Fukushima foi insistentemente explicado e detalhado nos principais eventos científicos brasileiros ocorridos neste ano. Em julho de 2011, a 63ª Reunião Anual da SBPC14 realizada na cidade de Goiânia reservou um de suas conferências ao tema da catástrofe de Fukushima. Naquela conferência, pude ver aquela a catástrofe japonesa estabilizada em uma colorida apresentação de Power Point. A série de slides partia de explicações sobre os erros dos japoneses para, na sequência, reforçar o caráter inovador das instalações nucleares brasileiras e dar provas da capacidade técnica nacional para a execução do Plano Nuclear Nacional. O recente acidente era encarado como uma oportunidade dos brasileiros “aprenderem” com os erros dos japoneses e seguir sem obstáculos a curva ascendente do desenvolvimento técnico nacional. As defesas do conferencista contra as notícias que irradiavam de Fukushima tinham uma inspiração nacionalista. No departamento de Engenharia Nuclear da COPPE, UFRJ, o acidente em Fukushima foi insistentemente explanado e discutido ao longo de vários eventos científicos. Na aula inaugural do programa de pós-graduação em engenharia nuclear e na Semana de Engenharia Nuclear, palestras e mesas-redondas foram dedicadas a “tirar lições de Fukushima”. A segurança nuclear foi um tema reiterativo e a crise nuclear tornou indispensável à revisão das bases dos projetos de segurança da central de Angra dos Reis a cada palestra da I Semana de Energia Nuclear promovida pelo mesmo departamento. As resoluções e informações da missão da IAEA às instalações de Fukushima foram acompanhadas e postadas continuamente no site daquele departamento. Uma das “lições” mais claras identificadas e transmitidas pela IAEA (Agência Internacional de Energia Atômica) para as agências e operadoras de centrais nucleares no mundo foi à recomendação da adição de mais uma fonte de alimentação de energia das usinas. A falha mais visível do sistema de segurança de Fukushima foi o problema no sistema de resfriamento dos reatores quando a atividade da usina foi bruscamente 14

A conferência intitulada Olhando para o futuro após o acidente de Fukushima foi proferida por Odilon Antonio Marcuzzo do Canto, presidente da Seção Latino-Americana da Sociedade Americana de Energia Nuclear (LAS/ANS).

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interrompida. Mais uma exigência de segurança é acrescentada nos termos de licenciamento e de operação de usinas nucleares emitidos pela CNEN. Prontamente, a nova exigência foi inserida no plano de atividade das usinas de Angra dos Reis. Repassar as normas e prescrições de segurança se tornou um procedimento de princípio de qualquer evento sobre o tema. As ameaças à segurança ontológica da tecnociência nuclear brasileira eram convertidas em vetores de conhecimento, como mais um caso particular que quando bem estudado e analisado poderá estimular o aprimoramento de técnicas de segurança. Mas acontecimento de Fukushima não é fácil de ser estabilizado sob a forma de “lições”. As questões técnicas sob as quais a questão nuclear é reduzida no cotidiano das usinas sempre pode ser traduzida em questões políticas, sobretudo, no tempo turbulento e incerto da catástrofe. Dentro de um discurso técnico cotidianamente estruturado, o acontecimento no Japão provocou um abalo que tornou visíveis as hesitações dos saberes e práticas técnicas e a aflitiva possibilidade de ocorrências catastróficas discretamente aventadas nas práticas de segurança. Vale lembrar que a possibilidade de pequenos incidentes e de ocorrências catastróficas está sempre implícita nas recomendações de segurança no cotidiano das usinas. A coordenação de comunicação e segurança da Eletronuclear da Eletrobrás15 chegou a propor programas para “criar uma cultura de segurança” nas usinas de modo que as normas e exigências de segurança fossem incorporadas pelos trabalhadores como se fossem uma segunda natureza. No licenciamento das usinas (CNEN, 2002), imaginar ocorrências aberrantes constitui uma das técnicas recomendadas para se estabelecerem as condições de segurança. As simulações de acidentes também submetem os planos de segurança a testes. A iminência da catástrofe está sempre presente e atravessa as conjecturas em torno da proteção do núcleo dos reatores e dos cuidados no manuseio da substância radioativa no cotidiano. A “Segurança Técnica Nuclear”, como é definida pela CNEN, tem em vista acidentes plausíveis e, a partir do “acidente postulado”, define medidas para evitá-los. Mas são os tempos de emergência da catástrofe que desnudam a vulnerabilidade das construções que pareciam rigidamente seguras. A catástrofe quebrou ordenamentos 15

Em palestra de José Manuel Diaz Francisco, no dia 16 de agosto de 2011, durante a Semana de Engenharia Nuclear da COPPE, UFRJ.

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que conferiam segurança ontológica às práticas e saberes nucleares. Nessas situações excepcionais, as práticas de segurança cedem lugar às práticas de defesa na guerra cosmopolítica. Nessa guerra cosmopolítica, os especialistas são recrutados para controlar as fissuras no cosmos provocadas pelos acontecimentos. Buscam explicações que estabilizem os acontecimentos e tentam reduzir o potencial de ameaça da catástrofe e recobrar a linearidade da evolução das práticas tecno-científicas. Os acidentes anteriores não são negados inteiramente ou omitidos, mas sim formulados como problema para o conhecimento e superados como tal. A frente de defesa se mantém coesa até mesmo quando todos assistem a IAEA reposicionar o acidente de Fukushima entre os mais graves já ocorridos, ao lado de Chernobyl, no nível 7 da escala dos acidentes nucleares. Ao tentar discutir esse tema com especialistas, logo se interpõe uma barreira de defesa quase impenetrável. Uma cortina densa que protege o conhecimento técnico e científico que não deixaria opção, a quem quisesse entrar no jogo, a não ser reproduzi-lo com maior ou menor competência. Trazem o suposto de que a definição da realidade da energia nuclear é prerrogativa da tecnociência e todos os outros agentes leigos apenas emitiriam representações incertas e subjetivas sobre a realidade. Os engenheiros se encarregavam da tarefa de conter a contaminação radioativa no discurso e manter o tema longe da política. Em sua defesa garantia, seu pleno domínio sobre a agência e as propriedades dos isótopos radioativos. Os discursos esboçaram uma engenharia da contenção que se esforçava para recompor a ordem. Também manifesta a paixão de defender e controlar durante os eventos culminantes da catástrofe: defender a “humanidade” da ameaça radioativa não controlada, defender o mundo quântico da “sociedade” irascível em desforra, proteger o cosmos da política, o mundo físico do mundo moral, os fatos dos valores. Um regime de controle e defesa técnicos que sai dos domínios fortificados do saber-poder tecnocientífico para arbitrar e representar a “necessidade” incontornável de produtivismo energético de toda a humanidade. Quando esse pensamento é ameaçado pelos acontecimentos, ele recobra seus fortes e bunker tecnológicos para a guerra cosmopolítica.

A gênese catastrófica da energia nuclear

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A política impregnou uma área da física quando ainda estava em gestação e cujo marco trágico é o lançamento das bombas nas cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki. Com as bombas atômicas, a fissão nuclear mostrou-se apta a não só desintegrar a matéria, mas afetar milhares de pessoas e por várias gerações. O impacto das bombas também provocou uma vigilância imperativa para evitar catástrofes nucleares maiores. O devir catastrófico da energia nuclear se manifesta em sua gênese, tal como é concebida por Simondon (1969, 2005 [1958]). A gênese, no sentido simondoniano, não é apenas uma fase primitiva da evolução do objeto técnico, ela persiste em potência como um devir ao longo do processo de individuação.

Nesse sentido, o devir

catastrófico se anuncia desde a primordial liberação da energia do núcleo atômico, a descoberta da fissão nuclear do urânio pelo químico alemão Otto Hahn. A reação em cadeia é o movimento propiciatório do devir catastrófico. Por sua gênese artificial, a energia nuclear exige a ação reguladora humana para trazê-la à existência, controlar sua potência aniquiladora e conter sua ação contaminante e um meio associado regulador como as instalações de uma usina. A liberação de energia radiológica da proteção dos reatores, que constitui a catástrofe nuclear, manifesta e revisita a invenção da fissão nuclear. O perigo, contudo, reside na liberação da potência contaminante em um novo meio associado externo à usina que propicia associações e composições descontroladas com o novo meio. O que está em risco nesse embate é a capacidade da tecnociência atuar em uma situação de emergência cosmopolítica em que o mundo das coisas e o mundo da política são misturados e suas fronteiras suspensas. Essa turbulenta gênese da energia nuclear inaugura alianças do conhecimento atômico-nuclear com a política e com o militarismo que, no segundo ato da história da energia nuclear no pós-guerra, parece desaparecer nos reatores civis. Da gestação quântica até o desenlace escatológico da catástrofe radiológica, enlaçam-se movimentos de ordenamento e de descontinuidade no processo de evolução técnica. Mas a tecnociência nem sempre tem total controle sobre os modos de existência da energia nuclear. Por mais que enunciados sobre “segurança” e “controle” das instalações nucleares tentem garantir o domínio sobre o tema e cercar um território existencial inviolável, esse controle enunciativo é rompido e fissurado por discursos dissidentes. Os saberes sobre os fenômenos da matéria que se organizam na expressão “energia nuclear” se arriscam continuamente ao circular nos debates políticos. Procurei, 13

neste texto, mobilizar a catástrofe não como uma ocorrência concreta localizável, mas como um devir imanente à energia nuclear. As práticas dos engenheiros são ambientadas em uma luta, simultânea e indistintamente cósmica e política, na qual os atores buscam estabilizar em pólos opostos natureza e sociedade, o cosmos e as paixões humanas.

Catástrofe cosmopolítica O acidente de Fukushima representa uma ameaça preocupante para os japoneses e um risco para a tecnociência nuclear. Mas de onde vem esse vetor de risco? Esse risco não é a antecipação de uma ameaça futura sobre a qual especulava Ulrich Beck (2007). Não se trata de um risco extrínseco, mas do ponto em que a tecnociência se arrisca e é submetida à prova. A catástrofe leva a tecnociência aos seus próprios limites, constitui um teste extremo. O acidente pode ter surpreendido a todos e mesmo não ter sido rigorosamente previsto, mas isso não lhe confere um caráter extrínseco em relação à energia nuclear. Ele não é, de modo algum, alheio à tecnociência e tampouco a isenta de responsabilidades. Uma das saídas apressadas ao dilema da catástrofe seria identificar suas causas em erros operacionais ou “falhas humanas”. Mas a catástrofe não institui o perigo em sua ocorrência. O perigo é imanente à energia nuclear e remete à gênese de fissão nuclear. A catástrofe em sua drástica emergência coloca perigosamente em relação o mundo do cosmos e o mundo da política. Nesta configuração, a ameaça não mais provém de uma causa exterior à energia nuclear. É importante lembrar que a referência ao exterior é sempre relativa a cada um desses mundos supostos: a política seria exterior ao cosmos e o cosmos seria exterior à política. Enquanto a experiência do risco global, tal como Beck (2007) supõe, uniria os seres humanos em um mundo comum cosmopolita, a catástrofe faz divergir e produz diferenças. A noção sociológica de cosmopolitismo de Beck abriu um flanco para a crítica de Latour (2004) segundo a qual Beck negligenciaria o cosmos ao mobilizar o sentido diplomático da noção de cosmopolitismo. Para Latour, o cosmopolitismo de Beck salta precocemente para o interesse geral da paz global e revalida a tendência sociológica de instituir representantes cada vez mais gerais para alcançar o interesse coletivo global. 14

Ao contrário do cosmopolitismo, a noção de cosmopolítica não denota paz global, mas um mundo comum habitado por diferenças. O cosmos que compõe a noção de cosmopolítica16 de Isabelle Stengers sugere o desconhecido e irrepresentável. O cosmos (universo de coisas) e a política (domínio das atividades humanas) permaneceram separados desde o pensamento filosófico grego: enquanto a política celebrava a liberdade e as ilusões humanas, o cosmos descrevia o mundo indiferente às nossas ilusões e valores. Política e cosmos compostos na noção de cosmopolítica (STENGERS, 2001a, 2005 e 2006) mobilizam um modo de fazer política capaz de integrar assuntos humanos (práxis) e produção de coisas (téchne). Sob esse novo enquadramento, a catástrofe nuclear aparece como uma emergência cosmopolítica que reconecta de modo drástico a vida humana e a agência dos seres técnicos. Manifesta a insistência do cosmos sobre a política que perturba e desorganiza o mundo político e o mundo das coisas. Nesse movimento, ela faz aparecer divergências e fissuras na ordem do cosmos e a ação de novos coletivos em que engenheiros, radioisótopos, vítimas e dissidentes enfrentam o desafio de coexistir. O cosmos imiscuise na política e a política permeia o cosmos.

Considerações finais Catástrofe não se refere unicamente a ameaças que vêm da natureza ou àquelas vindas da sociedade e da política. Talvez, ela nos pareça tão obscura por nos perdermos continuamente no mundo das representações ou nos confrontos de opiniões “contra” e “a favor” nos debates públicos sobre energia nuclear. A catástrofe não é simplesmente a resultante do encontro fatídico entre uma política negligente e uma ciência incauta, da convergência do perigo técnico e da falha humana, ou da coincidência infeliz do cataclismo natural e da imprevidência humana. O perigo e o potencial destrutivo não são inaugurados nesse encontro. Nesta encruzilhada, é preciso dispensar mais atenção à energia nuclear enquanto objeto técnico.

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A proposta cosmopolítica se baseia no modelo ecológico-político extraído da arte química do século XVIII (STENGERS, 2002) que recomenda o tratamento de todos os agentes como ativos e a avaliação em termos de eficácia.

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A fissão nuclear é aqui tomada como uma invenção intelectual humana que libera energia e gera átomos instáveis. Busquei a singularidade deste objeto técnico em sua gênese e não em seus usos, tal como sugerira Simondon (1969). A fissão nuclear artificial e controlada, portanto, pode ser identificada como a gênese da energia nuclear. O aspecto ameaçador e catastrófico da energia nuclear não diz respeito simplesmente às representações das pessoas não versadas na linguagem e no razão científica. É como uma potência catastrófica que o objeto técnico é incluído no mundo das significações. A catástrofe me parece estreitamente imbricada na evolução técnica da energia nuclear. No projeto abstrato que lhe deu origem, a bomba atômica sempre esteve presente. A função bélica da fissão nuclear é anterior à função civil de geração de energia elétrica. Como podemos notar na história do físico francês Joliot (Latour, 2003), a descoberta da fissão nuclear é indissociável da guerra. Até a o início da década de 1930, a fissão nuclear havia sido elucidada pelo químico alemão Otto Hahn, mas ainda não era um processo descontrolado. Faltava reproduzir em laboratório a fissão infringida ao núcleo do átomo, ação que institui a instabilidade, cria radioisótopos e libera radioatividade. O físico Joliot da história contada por Latour seria o autor de uma nova invenção17, a água pesada, que tornou a fissão controlável e permitiu sua aplicação da reação em cadeia para a produção de bomba atômica e de energia elétrica. Naquela história (Ibid), dois interesses animavam os esforços do físico Frédéric Joliot e do ministro do armamento Raoul Dautry: “fazer a guerra” e “retardar nêutrons” (nas reações em cadeia) no projeto de fabricação da bomba atômica e do reator civil. Mas essa tarefa também oferece muitos riscos. Nas controvérsias sobre o bombardeio de nêutrons, a hipótese de Joliot segundo a qual a reação em cadeia seria possível foi vista como perigosa porque tornava mais plausível a construção da bomba atômica. Hoje, há tantos anos depois que as controvérsias sobre a fissão nuclear foram encerradas, o reator civil e a bomba atômica não nos parecem mais tão perigosamente próximos. A individuação dos reatores nucleares teriam tornado esse perigo algo cada vez mais concreto, embora o processo de concretização não tenha se encerrado. Mas a guerra permanece como um aspecto residual. Além de deixar traços no vocabulário nuclear de “bombardeio de nêutrons”, “aniquilação do núcleo”, 17

A adição de um moderador, a água pesada, para regular a liberação e nêutrons, partícula subatômica que fissionava o núcleo atômico.

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“decaimento”, a “guerra” se conserva no horizonte de precauções da fiscalização e vigilância da IAEA e do interesse dos governos sobre as jazidas de minérios radioativos e sobre o domínio técnico de todo ciclo do combustível nuclear. Os procedimentos de produção de combustível para reatores se distinguem daqueles destinados à fabricação de bombas apenas pela diferença na concentração do urânio radioativo no processo de enriquecimento. O que a catástrofe faria com essas controvérsias precipitadas e estabilizadas ao longo dos anos? Ninguém mais duvida que a reação em cadeia seja possível ou que a fissão nuclear possa ser controlada. A construção e o lançamento das bombas atômicas nas cidades japonesas constituíram a prova drástica para muitos dilemas e controvérsias. O núcleo atômico reaparece como um ponto pacífico da física nuclear, um objeto concreto sobre o qual atua a tecnociência nuclear. A materialidade através da qual o núcleo atômico se apresenta com suas subpartículas minuciosamente identificadas nos daria a impressão de que tudo estaria esclarecido. O objeto técnico simondoniano apresentou-se para mim como uma produtiva saída às reiterativas auto-defesas da tecnociência nuclear e à tradução da crise nuclear pela semântica do risco, no sentido de Beck. Permitiu atingir o núcleo do tema da catástrofe sem reduzi-lo exclusivamente às diligências políticas ou às causas técnicas. A catástrofe faz aparecer os detalhes do cenário da cosmopolítica nuclear e os pontos de divergência que são suprimidos no cotidiano das práticas de segurança das usinas. Meu interesse em etnografar uma série de temas que se enfeixam sob a designação “energia nuclear” provêm do embaraço em localizá-lo em um campo ou divisão específica, esferas, domínios, compartimentos da experiência e do saber. Na emergência cosmopolítica, a anergia nuclear é, ao mesmo tempo, temível, defensável, suspeita, indeterminável. A catástrofe como devir torna manifesta potencialidades contidas no modelo abstrato do objeto técnico. Sua ocorrência resiste à concretização integral do objeto técnico e insiste em mostrar que nem tudo foi totalmente conhecido em termos de energia nuclear e que existem associações e agenciamentos técnicos imprevistos. Ela se alimenta da margem de indeterminação do objeto técnico, atenta contra a continuidade do progresso técnico e científico e reage contra o fundamento tecnocrático da política. Além disso, abre espaço para outras possibilidades de associações em torno da energia nuclear que, além do operante exército de auto-defesa técnico-científico, inclua também os grupos que contestem e resistam à tecnologia nuclear. 17

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