O devir-pagão e o regresso aos deuses

June 4, 2017 | Autor: Antonio Cardiello | Categoria: Aesthetics, Friedrich Nietzsche, Fernando Pessoa, Neopaganism
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O DEVIR­‑ PAGÃO E O REGRESSO AOS DEUSES a ntonio ca rd ie llo Para o Edoardo Riccio

N

a tentativa de cumprir o seu sonho juvenil de ser criador de mitos, Fernando Pessoa, na sua fase artística mais inovadora e experimental (1913­‑1918), dedicou­‑se a uma densa produção de «ismos» literários e filosóficos. Em contraste com outros, como o atlantismo, o paulismo, o interseccionismo e o sensacionismo, enquadráveis numa conjuntura predominantemente modernista, o neopaganismo pes‑ soano correspondeu à resolução teórica de restaurar o culto politeísta sob o modelo civilizacional helénico. Exaltando a dimensão pluralista das forças da Natureza, responsáveis pelo equilíbrio do mundo e pelas acções humanas, ostenta alguma continuidade com a época da nostal‑ gia dos deuses pagãos exilados e o desejo do seu retorno, que flores‑ ceu na literatura alemã dos séculos xviii e xix, com Goethe, Schiller, Heine e Hölderlin, e foi revitalizada por Nietzsche. De acordo com esses gigantes do romantismo alemão, os deuses olímpicos e de outras remotas civilizações não eram simples categorias mágicas, mas sim seres vivos que, outrora, praticamente dominavam a vida humana em todas as situações e acontecimentos, previsíveis ou imprevisíveis. Em Nietzsche, nomeadamente, a Grécia homérica, do tempo das epopeias e das tragédias, que se estende de Tales a Ésquilo, foi o momento em que predominaram o que para ele eram os verdadeiros valores aristocráticos, quando a virtude residia na força e na potên‑ cia, como atributo do guerreiro favorito dos deuses. [105]

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O desmantelamento da Razão categorial, em defesa de uma racionalidade vital, poética e paradoxal, reviveu também em Pessoa e nos textos redigidos, ora em seu próprio nome, ora nos de Alberto Caeiro, Ricardo Reis, António Mora ou Álvaro de Campos, na sua adesão ao paganismo como formulação mítica, conscientemente assumida, da crença na existência real e materialmente superior dos deuses, isto é, a aceitação da materialidade do divino e do inefável: ambos fazem parte da vida e se ligam a ela, ao ponto de afirmar que a própria vida, e tudo o que permite amá­‑la, se torna a manifestação de algo indecifrável. Este ponto de vista tem a ver, essencialmente, com não confundir a vida com a procura da sua incontornável explicação, inclinando­ ‑se para um novo primitivismo que não procura causas, que recusa ideais como salvação, santidade, transcendência e mistério da fé, por lhe serem completamente alheios, que se engendra como processo libertador da sensibilidade poética e como meio de redescobrir a Natureza de que o homem se afastara, rejeitando o sensualismo. Escreve Pessoa, pelo punho de António Mora, em jeito de provo‑ cação: Não somos, na verdade, neo­‑pagãos, nem pagãos novos. Neo­‑pagão, ou pagão novo, não é termo que tenha sentido. O paganismo é a religião que nasce da terra, da natureza directamente — que nasce da atribuição a cada objecto da sua realidade verdadeira. Por sua própria natureza de natural, pode aparecer e desaparecer, mas não mudar de qualidade. «Neo­ ‑pagão» é um termo que tem tanto sentido como «neo­‑pedra» ou «neo­ ‑flor». […] Um estudioso do paganismo não é um pagão. Um pagão não é um humanista: é humano. (Pessoa, 2013: 81)

O fragmento, se por um lado condensa em poucas linhas o eixo conceptual sobre o qual assenta o movimento estético­‑religioso proposto por Pessoa, por outro lado consolida o parentesco com Nietzsche, enquanto o tema da «fidelidade à terra», como é notó‑ rio, é um elemento­‑chave da filosofia nietzschiana. A manifesta [106]

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carga simbólica da expressão designa, em Nietzsche, a fidelidade à vida e ao viver com plenitude, abrindo caminho a uma vontade criadora que institui e executa valores opostos aos da moral tra‑ dicional dominante. Esta fidelidade à terra não deve ser enten‑ dida como forma de optimismo ingénuo e passivo. Pelo contrário, detém uma conotação polémica e libertadora, como no seguinte e emblemático passo do Zaratustra: Suplico­‑vos, meus irmãos! Permanecei fiéis à terra e não acrediteis naqueles que vos falam de esperanças extraterrestres! Envenenadores, eis o que eles são, quer saibam, quer não. Desdenhadores da vida é o que eles são, uns moribundos, eles pró‑ prios envenenados, de quem a terra está farta: pois desapareçam! Outrora, a ofensa a Deus era o maior ultraje, mas Deus morreu, e, com ele, morreram também esses sacrílegos. Agora, o que há de mais ter‑ rível é ultrajar a terra e dar mais apreço às entranhas do inescrutável do que ao sentido da terra! (Za, Prólogo, 3)

As esperanças extraterrestres, que Nietzsche refere não são ape‑ nas crenças religiosas, mas toda a gama dos valores que dominam o Homem e o separam das suas verdadeiras raízes. Logo, a polémica surge não só como crítica anti­‑religiosa, mas também como subver‑ são da moral, e ainda como rejeição duma verdade absoluta. A liber‑ tação proclamada por Nietzsche subentende não só os valores que transcendem o Homem mas também aqueles que o Homem cons‑ truiu: a fé nas ciências exactas com todas as certezas objectivas e indubitáveis, e a submissão a um sentido histórico. Estes revelam­ ‑se, perante a sua crítica, como preconceitos de que o Homem deve libertar­‑se. Como tal, e em conjunto com outros valores, desabam a religião, a moral e a verdade. Para Nietzsche, o apelo à terra não tem só um significado negativo, mas contém, de facto, o desejo de uma nova fundação: o apelo às raízes. Coerentemente com o intento de eliminar qualquer finalidade externa ao Homem, Nietzsche descortinou a radical ausência de [107]

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valor de um mundo ideal. A fidelidade à terra vai à procura de raízes mais profundas, que ligam a uma vontade autenticamente criadora, capaz de rir e de dançar, de relativizar, de fazer acontecer. A reivindi‑ cação da natureza terrestre do Homem está implícita na aceitação da vida, na sua inesgotabilidade, própria do espírito dionisíaco. Em vir‑ tude desta aceitação, a terra e o corpo do Homem transfiguram­‑se: a terra cessa de ser o deserto em que o Homem está exilado e torna­ ‑se o seu lugar feliz; o corpo cessa de ser prisioneiro ou túmulo do Homem e torna­‑se o seu verdadeiro Ser. No plano ontognosiológico, a transmutação dos valores é encarada por Nietzsche como anula‑ ção dos limites, como conquista de um domínio autoconsciente do Homem sobre a terra e o corpo, como eliminação do carácter problemático da vida e de cada perda ou desaparecimento a que o Homem possa estar sujeito. Este Homem que ultrapassa os seus limites é aquele que com‑ preendeu que é ele próprio a dar significado à vida, aquele que faz sua a chamada «moral aristocrática», que diz «Sim» à vida e ao mundo. O sobre­‑humano (Übermensch) é discípulo do deus Dionísio por aceitar a vida em todas as suas manifestações, no prazer de se transformar­, encarado como alternância de vida e morte. Enfrenta a vida com um «pessimismo corajoso», une o fatalismo à confiança, e liberta­‑se dos velhos conceitos do Bem e do Mal com uma nobre indiferença a valores éticos que considera extintos. «[…] [P]agãos são todos os que dizem sim à Vida, para os quais a palavra ‘Deus’ é sinónimo do grande ‘Sim’ a todas as coisas» (AC, 55), anota Nietzsche em 1988, ano do nascimento de Fernando Pessoa. O sobre­‑humano, para Nietzsche, é o homem dionisíaco que segue os seus instintos, as suas paixões; é, portanto, espontâneo, pulsio‑ nal, não tem medo da existência no seu aspecto trágico e enfren‑ ta­‑a, luta, atira­‑se para dentro deste vórtice da vida, ao invés de se refugiar, como sugere Schopenhauer, na ascese. É detentor de uma radical aceitação da realidade, da natureza tal como ela é, e almeja uma plena realização de si, um desenvolvimento extremo da própria individualidade. O sobre­‑humano nietzschiano é ainda aquele que [108]

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quebra as correntes da moral para afirmar um novo tipo de «Além­ ‑Homem» projectado para o futuro que deve tornar­‑se deus de si próprio, enquanto o Deus dos cristãos, a declaração de guerra con‑ tra a vida, contra a natureza, a deificação do nada considerado santo, está morto para a humanidade moderna. Relativamente à natureza dos deuses da Grécia pagã, Nietzsche não está distante de Pessoa «quando lançamos um olhar sobre os deuses gregos, sobre essas imagens que reflectem homens aristocrá‑ ticos e soberanos, e nas quais o animal que há dentro do homem se sente divinizado, em vez de se dilacerar a si mesmo, em vez de lan‑ çar a sua raiva sobre si próprio» (GM, II, 23)1. No paganismo de Pessoa, cumpre­‑se de facto a aproximação máxima e harmoniosa entre a raça dos homens e a dos deuses, sendo o homem o animal humano que assume a sacralidade da vida orgânica como prerro‑ gativa da sua condição de semideus ou, se se preferir, de Deus de alma mortal. No seguimento de Píndaro, que julga a raça dos deuses e dos homens «uma só», Pessoa define os deuses do mundo material dos gre‑ gos e dos romanos como «homens aperfeiçoados ou perfeitos, homens maiores» (Pessoa, 1966: 263), por uma questão de grau, acima dos quais apenas se encontra o Fado que tudo submete; seres eleitos pela desme‑ sura, pela excedência da sua mesma humanidade, enquanto «objecti‑ vações formais dos instintos humanos» (Pessoa,1966: 247). Em alguma medida, ao falar de «homens aperfeiçoados ou perfeitos, homens maio‑ res», Pessoa está a propor, no âmbito do seu paganismo, uma versão de homem superior: a ascensão ao lugar de Deus do homem que afirma a vida. O homem superior do neopaganismo será o criador de valores e mitos que Mora relaciona directamente com Nietzsche quando 1  «Mesmo em baixos níveis de cultura, o homem não se acha frente à natureza como um escravo impotente, não é necessariamente o seu servo desprovido de vontade: no nível religioso dos gregos, sobretudo na relação com os deuses olímpicos, deve­‑se mesmo pensar na convivência de duas castas, uma mais nobre, mais poderosa, e outra menos nobre; mas elas de algum modo estão ligadas por sua origem e são de uma única espécie; não precisam se envergonhar uma da outra. Eis o que há de nobre na religiosidade grega» (HH I, 111).

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afirma: «O conceito de super­‑homem de Nietzsche é um conceito pagão» (Pessoa, 2013: 150). Por detrás desta perspectiva há um plano de resgate e moderni‑ zação do panteão grego e latino e, ao mesmo tempo, uma superação quer do racionalismo iluminista, quer do romantismo, ou melhor, uma fusão dos dois «ismos» transmutados em desejos conscientes, e não em crenças cegas, dogmáticas e monolíticas. Essa fusão é o ponto de partida para compreender a pluralidade de estilos, mundi‑ vidências e filosofias que interagem em Pessoa, bem como a plurali‑ dade da sua consciência, cindida nas suas «ficções de interlúdios» de inspiração pagã e nos textos que lhes podemos atribuir. Uma contagem aproximativa, mas fiável, aponta para cerca de 300 papéis (maioritariamente folhas soltas ou páginas de cadernos ainda intactos), cuja maioria ficou inédita em vida, não tendo Pessoa che‑ gado a concluir programas, livros ou opúsculos (como O Regresso dos Deuses, Os Fundamentos do Paganismo, o Paganismo Superior e as Obras de Alberto Caeiro) que, de acordo com as suas expectativas, deviam pro‑ mover e exaltar: 1) a assunção da «pluralidade dos deuses como essen‑ cia da mythologia»2; 2) a «adopção da creação como ideal humano»3; e 3) a «concepção do universo essencial como phenomeno essencial‑ 2  «A religião pagan é polyteista. Ora a natureza é plural. A natureza, naturalmente, não nos surge como um conjuncto, mas como «muitas cousas», como pluralidade de cousas. Não podemos affirmar positivamente, sem o auxilio de um raciocínio interveniente, sem a intervenção da intelligencia na experiência directa, que exista, deveras, um conjuncto cha‑ mado Universo, que haja uma unidade, uma cousa que seja uma, designavel por natureza. A realidade, para nós, surge­‑nos directamente plural. O facto de referirmos todas as nossas sensações á nossa consciencia individual é que impõe uma unificação falsa (experimental‑ mente falsa) á pluralidade com que as cousas nos apparecem. Ora a religião apparece­‑nos, apresenta­‑se­‑nos como realidade exterior. Deve portanto corresponder ao characteristico fundamental da realidade exterior. Esse characteristico é a pluralidade de cousas. A plura‑ lidade de deuses, portanto, o primeiro characteristico distinctivo de uma religião que seja natural» (BNP/E3, 21­‑13r; cf. Pessoa, 2002: 179­‑180). 3  «O homem criou a obra de arte. Depois reparou que a obra de arte é uma cousa exterior. Depois observou que as cousas exteriores tinham certos característicos, a que era forçoso que obedecessem. A sua perfeição, isto é, a perfeição da sua estrutura e do seu funciona‑ mento dependia do grau em que possuíam esses característicos. Como a obra de arte é uma cousa exterior, urgia aperfeiçoar essa obra de arte, dar­‑lhe a perfeição das cousas exteriores. Fazer trabalho de perfeito operário. De aí a arte grega» (Pessoa, 2013: 55).

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mente objectivo»4 (BNP/E3, 24­‑ 65v; cf. Pessoa, 1968: 88). A estes três pilares, temos de acrescentar um quarto, menos explícito, que não se insinua apenas na chancela neopagã da obra de Pessoa, constituindo um aspecto nuclear de toda a sua estética: o sentimento do trágico que se liga aos três pressupostos, influenciando especialmente o segundo. O paganismo revisitado por Pessoa sacraliza e exalta um mundo de elementos telúricos, exuberantes e trágicos. Aspira a uma apro‑ priação legítima do processo inventivo para aperfeiçoar a existência, pois a vida não basta para consagrar o indivíduo a algo suprapessoal, precisamente como acontecia nas tragédias gregas. A esse respeito, as palavras de Nietzsche, na quarta «Consideração Extemporânea», são uma síntese magistral ainda insuperada: O indivíduo deve ser consagrado a algo suprapessoal — é isto que a tra‑ gédia quer dizer; deve desaprender a terrível angústia que a morte e o tempo lhe causam enquanto indivíduo: pois mesmo no mais curto da sua vida pode aparecer­‑lhe algo sagrado que tenha mais peso do que toda a sua luta e carência — é a isso que se chama o sentido trágico da vida. (CE, IV, 4 cit. in Constâncio, 2013: 359)

Como argumenta João Constâncio, Nietzsche defende que: a tragédia não reduz a natureza, o mundo, a existência, a vida a um nada. A tragédia cria admiração pela consagração da individualidade ao todo, cria até o desejo do sacrifício da individualidade pelo todo, e com isso faz 4  «O que distingue o paganismo greco­‑romano é o carácter firmemente objectivo que nele transparece, efeito de uma mentalidade, que, embora diferente nos dois povos, tinha de comum a tendência para colocar na Natureza exterior, ou num princípio, embora abstracto, derivado dela, o critério da Realidade, o ponto da Verdade, a base para a espe‑ culação e para a interpretação da vida. […] Este objectivismo absoluto dos gregos e dos romanos, que nos primeiros principalmente floriu na especulação e na interpretação da vida, e nos segundos na segura experiência e compreensão prática, ou, como diria um sinté‑ tico excessivo, que nos primeiros era inteligência e emoção, e vontade nos segundos — este objectivismo, digo, é que constitui a essência do paganismo» (Pessoa, 2003: 78).

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desejar viver em função de todo, faz desejar a vida, comunica e promove a desejabilidade da vida. (Constâncio, 2013: 361)

Assumindo, como faz Pessoa, que a vida não basta, torna­‑se neces‑ sário procurar «outras vidas» em «outros mundos». É a apoteose da conversão do irracional em arte modulada, a transfiguração em receptáculo alegórico de um Absoluto que ganha forma sensível, e por isso plural, através dos contos fantásticos que narram a exis‑ tência. Tal como Nietzsche, Pessoa serve­‑se da imaginação para implantar, com o seu neopaganismo, uma refundação mitológica da existência. O objectivo não é denegrir a realidade mediante a criação de um mundo alternativo mais congenial. Ao contrário, visa expan‑ dir e harmonizar a própria realidade com o auxílio do valor adapta‑ tivo da imaginação em voga na Grécia clássica. É ainda na senda de Nietzsche que os conceitos de amor fati, artecracia, aristocratismo intelectual, estética vitalista, moral da força e da saúde, reavaliação de valores e a morte das principais categorias da modernidade se inter‑ calam em abundância nas obras em prosa e poesia de algumas das vozes ficcionais mais conhecidas de Fernando Pessoa. O homem neopagão que Pessoa enaltece, solucionando a purifi‑ cação das relações entre sujeito e objecto, segue o simples curso da natureza, que vê na irredutibilidade de sujeito e objecto, contrapos‑ tos como consciência e matéria, um dos seus pilares. Mas como se chega a tal resultado? A resposta talvez esteja num imprescindível fragmento dos Prolegomenos a uma recontrucção do Paganismo: Um neo­‑pagão […] admite todas as metaphysicas como acceitaveis, exac‑ tamente como o pagão acceitava todos os deuses na larga capacidade do seu pantheon. Elle não procura unificar numa metaphysica as suas idéas philosophicas, mas realizar um eclecticismo que não procura saber a ver‑ dade, por crer que todas as philosophias são egualmente verdadeiras. O neo­‑pagão convencer­‑se­‑ha de que, escrevendo, realisa o seu senti‑ mento da Natureza. (BNP/E3, 24­‑ 59v; cf. Pessoa, 2002: 250)

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O homem ocidental moderno, cuja mentalidade está presa a dois mil anos de monoteísmo judaico­‑cristão, já não consegue aceitar a natureza como uma pluralidade, pois há um pensamento racio‑ nal que interliga a recepção visual e o entendimento das coisas. Ao fazê­‑lo, obriga o homem dos nossos tempos a reconhecer a natu‑ reza como um «todo», em vez de encarar a mesma como uma mul‑ tiplicidade interminável de pedras, rios ou árvores. Na perspectiva pessoana, este esquema racional impede também que esta seja designada como habitat privilegiado para uma pluralidade infinita de seres divinos. Para a implementação e continuação de um movi‑ mento de combate à confusão, ao misticismo triste, ao excesso do universalismo dominante, ao estado da decadência humana, intro‑ duzido por tradições racionalistas e humanitaristas, era funda‑ mental aderir a uma religião mais lúdica do que lógica e andrógina, como o próprio Quinto Império cultural, tantas vezes idealizado por Pessoa. Era imprescindível, como em Nietzsche, recuperar o Mito e a Poesia, a superfície das coisas, a vontade de aparência5, inver‑ tendo o platonismo e as suas formas puras, os arquétipos, a sua von‑ tade de verdade inatural6, com uma premissa incontornável: evitar os 5  «Ah, estes gregos! Eles sabiam o que é viver: para tal, é preciso permanecer corajosa‑ mente à superfície, na dobra, na pele, adorar a aparência [Schein], acreditar em formas, sons, palavras, em todo o Olimpo da aparência! Os gregos eram superficiais — por serem profundos! E não é precisamente aí que nós estamos a regressar, nós, temerários do espírito, nós que escalámos até o cume mais elevado e mais perigoso do pensamento contemporâneo e que, aí cima, olhámos em volta e para baixo? Nisso não somos precisamente — gregos? Adora‑ dores de formas, sons, palavras? Precisamente por isso — artistas?» (GC, Prefácio, 4, cit. in Constâncio, 2013: 232­‑233). 6  «Na Grécia a ciência não estava desenvolvida ao ponto de permitir à arte grega toda a expansão que estava latente na lógica dos seus íntimos princípios. O fim da arte é imitar perfeitamente a Natureza. Este princípio elementar é justo, se não esquecermos que imitar a Natureza não quer dizer copiá­‑la, mas sim imitar os seus pro‑ cessos.  […] Demais sabe, e contra seu agrado, o criador de arte que a sua obra qualquer não pode ter a perfeição da Natureza, de um ser dos que a Natureza produz. Ele, porém, busca aproximar­‑se o mais possível. O mito de Pigmalião e Galateia mostra que o grego com‑ preendeu a dor de a arte nunca poder chegar à vida, por não poder criar a vida verdadeira‑ mente. O conceito, em aparência inferior, dos deuses pagãos semelhantes aos homens, é, em verdade, superior ao conceito platónico e depois cristão, mas já antes vindo de civiliza‑ ções inferiores e orientais, de que Deus o criador é uma entidade abstracta. O politeísmo

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erros de todos os reformadores do paganismo e as pretensões uni‑ formizantes e excludentes dos sistemas passados. Um pressuposto crucial no neopaganismo pessoano consiste no reconhecimento da impossibilidade moderna de regressar a um universo habitado por uma pluralidade de deuses. Assim, Pessoa sublinhou que um simples retorno aos pés do Olimpo está fora de alcance para seres humanos cuja mentalidade já só funciona de maneira racional­‑abstracta. Antes de estabelecer uma nova ligação entre os deuses e os homens, era preciso «que começasse por appa‑ recer um pagão» (BNP/E3, 12A­‑12r; cf. Pessoa, 1994: 263). Tornava­ ‑se necessário o regresso da (ou à) essência que faculta um sistema politeísta. No neopaganismo de Pessoa, esta essência é represen‑ tada por Alberto Caeiro, que não se apoia em qualquer filosofia pagã conhecida e, por isso mesmo, se poderá chamar o paganismo no seu estado químico puro ou absoluto. Numa nota concebida como prefácio ao corpus da produção caeiriana, podemos ler: A obra de Caeiro representa a reconstrucção integral do paganismo, na sua essencia absoluta, tal como nem os gregos nem os romanos, que vive‑ ram nelle e por isso o não pensaram, o puderam fazer. A obra, porém, e o seu paganismo, não foram nem pensados nem sentidos: foram vividos com o que quer que seja que é em nós mais profundo que o sentimento ou a razão» (BNP/E3, 21­‑ 73r; cf. Pessoa, 2003: 46).

Por outras palavras, vale para Caeiro a mesma definição que já serviu para qualificar o olhar retrospectivo de Nietzsche sobre a civilização helénico é o reconhecimento de que os seres são semelhantes a obras de arte, de que toda a criação é do mesmo género, e só a diferença enorme que vai de homens para deuses marca a diferença enorme que vai de só poder criar morte e poder criar vida. No fundo, ambos os fenómenos são erros, ingenuidades, como todos os fenómenos religiosos; mas o politeísmo grego é um avanço sobre o grosseiro espiritualismo, idealismo, transcenden‑ talismo, ocultismo, dos índios e dos judeus, que Platão, na hora de decadência da Grécia, havia de reconstituir desnacionalizadamente aliás. Platão foi um dos grandes inimigos da Grécia. Aristóteles não pôde destruir o mal que ele fez. No próprio peripatético há laivos da corrupção espiritualista e idealista do que, afinal, foi seu mestre» (Pessoa, 2013: 190­‑191).

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homérica: «aquilo que os gregos eram, mas não podiam eles próprios compreender» (Constâncio, 2013: 239). Ao percorrer o espólio pessoano, deparamo­‑nos com vários pro‑ gramas de reimplantação do paganismo em que Alberto Caeiro foi pensado como peça central, incumbido de trazer a nova revelação, o que esclarece os motivos da denominação de Mestre com que um número restrito de figuras pessoanas a ele se refere. Junto de Álvaro de Campos, Ricardo Reis e António Mora, Thomas Crosse e Fernando Pessoa ortónimo completam a lista dos sequazes: comentadores, tra‑ dutores, editores, exploradores da sua postura contemplativa perante o mundo e a Natureza, são responsáveis por um aparato teórico desenvolvido cada qual à sua maneira. Os três conjuntos de poemas versilibristas constituintes do corpus da obra caeiriana, O Guardador de Rebanhos (1911­‑1912), O Pastor Amoroso e Poemas Inconjuntos (1913­‑1915), apresentam­‑no como poeta da sabedoria selvagem, primitiva, infan‑ til e antimetafísica. Anterior à Civilização e às suas maleitas, Caeiro encarna a alvorada de um novo materialismo, hostil a qualquer idea‑ lismo subjectivista. Apela, como na arte grega, para que a relação entre sensação e objecto se instaure sem mediação do eu. Enquanto António de Pina Coelho, já em 1968, trazia a público que «como F[rancis] Bacon, Caeiro aspira a uma libertação interior de todos os preconceitos, de tudo o que impeça uma visão nítida e gratuita das coisas» (Coelho, 1971: 294), Patricio Ferrari, num artigo muito mais recente (cf. Ferrari, 2011: 23­‑ 71), vinca os estreitos nexos entre os dois, chamando a atenção para o detalhe da contracapa do livro The Baconian Heresy, de John Mackinnon Robertson, com assento na biblioteca particular de Fernando Pessoa e válido como suporte de escrita plural: no rosto e na parte superior do verso apa‑ rece o pré­‑heterónimo Thomas Crosse para aclarar sinteticamente, em inglês, o que traz de novo e de inaudito Caeiro: Caeiro has created (1) a new sentiment of Nature (2) a new mysticism

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(3) a new simplicity, which is neither a simplicity of faith, nor a simpli‑ city of sadness (as in Verlaine’s case) nor a simplicity of abdication from thought and ◊. Much as he likes to prove his irrationalism, he is a thinker and a very great thinker. Nothing is so ennobling as this faith that declares the senses superior to the intellect, that speaks of intellect as of a Disease. (BNP/E3, 14B­‑15r; cf. Lopes, 1990: 439)

O que Caeiro faz, aquilo que o torna mestre, é mais do que poesia. Caeiro é o «descobridor» da Natureza que está de acordo com ela e a descreve sem filtros, na sua constante renovação. Caeiro recusa o pensamento metafísico, afirmando que «pensar é não compreender», é «estar doente dos olhos». Aquilo que em Alberto Caeiro é trans‑ formador, único e libertador, para ele e para todos os discípulos, é a sua aprendizagem de ver, isto é, de usar a inteligência dos seus olhos. Conforme indica António Azevedo, a fim de traçar um paralelo: O «esquecer o esquecimento» de Nietzsche e a «aprendizagem de desa‑ prender» de Caeiro têm o mesmo fito: ver o original. Ambos pretendem regressar a um «estado natureza» estético: Nietzsche quer o reencontro com a pureza linguística das metáforas intuitivo­‑originárias […], a criança caeiriana, por sua vez, é «o deus que faltava» o «humano natural» porque sem o cerebralismo civilizacional doentio, e onde a lógica é substituída pela direcção do olhar e pelo «dedo apontado». A tese de Caeiro é a de que toda a mediação — religiosa ou racional — entre a realidade e a sensação traz consigo sacrifício e perdas para a poesia. (Azevedo, 2005: 84)

Muito longe de ser contemplação simples da natureza, ou um modo de sensação elementar: Olhar não é o mesmo que ver. Olhar implica actividade, ver implica receptividade. «Olhar» significa perscrutar, tactear, sondar enquanto «ver» significa compreender, integrar receber. Por isso, em Alberto

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Caeiro, o verbo empregue é ver — a «ciência de ver» — porque ver é uma compreensão e não apenas uma contemplação ou uma viagem. Em mais ainda, o ver resolve a interferência dos dois campos, o interior e o exte‑ rior, manifestando a preponderância do exterior. (Martins, 2014: 116)

Não aceitando o infinito no seu anseio profundo de contingência, não distinguindo substância e atributos, e em ruptura com o espi‑ ritualismo próprio da Renascença Portuguesa e Teixeira de Pascoaes, Caeiro propõe um outro tipo de panteísmo materialista onde filo‑ sofia e metafísica são substituídas pelo simples acto espontâneo do puro ver e do captar as coisas tais como são, na sua objectividade clara. Caeiro, voz das origens do ser e do sentir, também chamado «grande Pã», «Grande Libertador», «Argonauta das sensações verda‑ deiras», «primitivo contemporâneo», tinha de ser a «consubstancia‑ ção» do paganismo, uma revisitação contemporânea de Palladas de Alexandria7, para varrer a visão cristã da Natureza, votada à trans‑ cendência, e reimplantar a pagã, fundamentalmente encerrada na imanência. Um neopaganismo que «nem os gregos nem os roma‑ nos, que viveram nelle e porisso o não pensaram, o puderam fazer» (BNP/E3, 21­‑ 73r; cf. Pessoa 1966: 330) porque «nasce da attribuição a cada objecto da sua realidade verdadeira» (BNP/E3, 21­‑43r; cf. Pessoa, 1966: 286) e da convicção de que a poesia e estar no mundo são uma e a mesma coisa. 7  Um dia antes de morrer, isto é, a 29 de Novembro de 1935, Pessoa redigiu as suas últi‑ mas palavras conhecidas no Hospital de S. Luís dos Franceses, em Lisboa: «I know not what to­‑morrow will bring». Lidas, durante décadas, segundo registos hermenêuticos ocul‑ tistas, são, na verdade, eco evidente de um epigrama de Palladas de Alexandria («To­‑day let me live well; none knows what may be to­‑morrow»), publicado no primeiro volume da Greek Anthology (1916), e também conservado nas prateleiras de Pessoa até ao fim da sua vida. Este livro é um dos mais decisivos para o poeta, entre os mais de 1300 títulos digita‑ lizados a partir de Abril de 2008. Publicado em quatro volumes bilingues pelos editores William Heinemann e G. P. Putman’s Son, fornece uma preciosa noção do vasto conheci‑ mento que Pessoa tinha da poesia epigramática da cultura clássica grega e surpreende pela influência que alguns dos seus maiores representantes tiveram sobre ele. É o caso do refe‑ rido Palladas de Alexandria, que, segundo muitos estudiosos, é considerado o último poeta grego defensor do paganismo num mundo já profundamente cristianizado. 

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Não são uma e a mesma coisa, porém, o mundo exterior e a cons‑ ciência, nem podem ser reduzidos à unidade, pois se o fossem, have‑ ria uma perda dos caracteres de ambos numa mistura antinatural, negadora da sua origem: o dualismo absoluto ou, por outras palavras, o insolúvel paralelismo de sujeito e objecto, desenvolvimento orgâ‑ nico, radical e aporético do objectivismo absoluto de Caeiro: Para Caeiro, objectivista absoluto, os proprios deuses pagãos eram uma deformação do paganismo. Objectivista abstracto, os deuses já eram a mais no seu objectivismo. Elle bem via que elles eram feitos á imagem e similhança das cousas materiaes; mas não eram as cousas materiaes, e isso lhe bastava para que nada fôssem. (BNP/E3, 21­‑116r; cf. Pessoa, 1966: 399)

O lema caeiriano segundo o qual a «Natureza é partes sem um todo» (Poema XLVII de O Guardador de Rebanhos), sintetiza admi‑ ravelmente o que será o denso programa de doutrinação cultural e criação poética a delinear­‑se conforme as divisões internas aos mesmos heterónimos, organizados em dois ramos: o ortodoxo, com os expoentes António Mora (teórico em prosa e sistemati‑ zador filosófico da doutrina de Caeiro) e Ricardo Reis (poeta do classicismo erudito e aristocrata); e o heterodoxo, tendo Fernando Pessoa como único representante. Ainda que sem se preocupar muito com qualquer crença religiosa ou deuses clássicos, poderia ser considerado um heterodoxo também Álvaro de Campos, por ter celebrado modernamente o regresso da antiguidade nas turbu‑ lências, no ruído do progresso e na era industrial, e por ter estabe‑ lecido uma conexão precisa entre heteronímia e neopaganismo nas suas Notas para a recordação do meu mestre Caeiro: O meu mestre Caeiro não era um pagão: era o paganismo. O Ricardo Reis é um pagão, o António Mora é um pagão, eu sou um pagão; o próprio Fer‑ nando Pessoa seria um pagão, se não fosse um novelo embrulhado para o lado de dentro. Mas o Ricardo Reis é um pagão por carácter, o António Mora é um pagão por inteligência, eu sou um pagão por revolta, isto é,

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por temperamento. Em Caeiro não havia explicação para o paganismo; havia consubstanciação. (Campos, 2014: 455)

Delinear a essência do neopaganismo e os diferentes ramos que o compõem foi uma tarefa a que Fernando Pessoa se entregou com entusiasmo. Em sucessivos ensaios, quase todos inacabados, em constantes apostilas, desbrava a questão de diversos ângulos com o habitual coro polifónico. Abordar a distinção programática, vigente na escola neopagã descendente de Caeiro, indicando as peculiares posições ontológicas, gnosiológicas e estéticas dos heterónimos em jogo, exige, antes de tudo, lembrar o elo que os une. Os dois ramos do paganismo aqui enumerados, «concordam em uma attitude essen‑ cial, sendo porisso que podem constituir uma corrente que, embora pequena, é definida» (BNP/E3, 21­‑4r; cf. Pessoa, 1995: 5). Coaliza­ ‑os «um inimigo commum a combater, da comum aversão, porven‑ tura, em que a specificidade da corrente assenta» (BNP/E3, 21­‑4r; cf. Pessoa, 1995: 5). Quem será esse inimigo que se opõe à religião natu‑ ral do paganismo? Por conta de todos, responde Pessoa proper: «é a religião de Christo, e os resultados que d’ella provieram, porque por ella representados, á civilização a que pertencemos» (BNP/E3, 21­‑4r; cf. Pessoa, 1995: 6). Com a promessa metafísica de outros mundos melhores do que este, isto é, o objectivo de preservar a vida já como antivida, ou como deslocamento da vida para um ideal alheio às verdadeiras condi‑ ções de existência, o cristianismo revela­‑se, de modo absolutamente coincidente em Nietzsche e Pessoa, uma religião da recusa, da com‑ paixão, e da solidariedade passiva entre fracos e fracassados. Uma forma de auto­‑escravização e de automutilação, responsável pela inversão dos valores políticos, religiosos, morais e estéticos clássi‑ cos, incapaz de criar valores próprios e propositivos: Os gregos não viam os deuses homéricos como senhores acima deles, nem a si mesmos como servos abaixo dos deuses, como faziam os judeus. Eles viam apenas o reflexo, por assim dizer, dos exemplares mais

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bem­‑sucedidos de sua própria casta, um ideal, portanto, e não um oposto de seu próprio ser. Sentiam­‑se aparentados uns aos outros, havia um inte‑ resse mútuo, uma espécie de simaquia. O homem faz uma ideia nobre de si, quando dá a si mesmo deuses assim, e se coloca numa relação como aquela entre a baixa e a alta nobreza; enquanto os povos itálicos têm uma verdadeira religião de camponeses, com um medo permanente de poderosos malvados e caprichosos. Onde os deuses olímpicos não esta‑ vam presentes, a vida grega era também mais sombria e medrosa. — Já o cristianismo esmagou e despedaçou o homem por completo, e o mer‑ gulhou como num lodaçal profundo: então, nesse sentimento de total abjecção, de repente fez brilhar o esplendor de uma misericórdia divina, de modo que o homem surpreendido, aturdido pela graça, soltou um grito de êxtase e por um momento acreditou carregar o céu dentro de si. Sobre este excesso doentio do sentimento, sobre a profunda corrupção de mente e coração que lhe é necessária, agem todas as invenções psico‑ lógicas do cristianismo: ele quer negar, despedaçar, aturdir, embriagar, e só uma coisa não quer: a medida; por isso é, no sentido mais profundo, bárbaro, asiático, pouco nobre e nada helénico. (HH, 1, 114) Para ser pagão, o essencial é ter­‑se nascido pagão, sem que para o caso importe muito a erudição classica que se possue. A nossa epoca tem muita pressa, se bem que não saiba para chegar aonde. Perdemos de todo a visão concisa e lucida das cousas. O que era essencial no mundo pagão, não era, como é costume pensar­‑se, a alegria da vida, nem a simplicidade dos instinctos. Era a lucidez da percepção das cousas, a noção instin‑ tiva dos equilibrios e das realidades. Com o christianismo perturbou­ ‑se toda essa noção. Perdeu­‑se tudo. Passámos a ser, todos nós; escravos; enraizou­‑se na nossa alma a mentalidade do escravo. Pensamos muito em viver e pouco em contemplar, a vida. E, para o pagão, a vida é mais para ser comtemplada do que para ser vivida. O Christianismo foi tão dam‑ ninho pelos principios que trouxe, como pelas reacções que provocou. O seu terrivel defeito foi que polluiu as almas não só como que o produ‑ ziu directamente, como com o que produziu por reacção. (BNP/E3, 26­‑ 9; cf. Pessoa apud Pérez López, 2012: 339)

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A luta contra o cristianismo, a que vários autores fictícios pessoanos chamam com desprezo «cristismo», destaca­‑se como elemento de coesão pagã no drama em gente, apesar de ser mais correcto comen‑ tar que a unidade transparece só na luta contra os efeitos do cris‑ tianismo sobre a sociedade contemporânea: o critério subjectivo, excedente, extra­‑humano, na interpretação das coisas que avalia como «diversas» daquilo que na realidade parecem; a prática censó‑ ria e do que na natureza humana há de mais natural e a presunção de querer salvar a física pela metafísica; a substituição do princípio aris‑ tocrático do poder e da desigualdade natural entre os homens pela igualdade de todos os homens perante Deus. Entre os dois grupos há divergência na avaliação religiosa e antro‑ pológica do cristismo e nas propostas que atentam à sua derrota. Fernando Pessoa proper admite que, em relação aos outros interlo‑ cutores, a sua «verdade do paganismo se baseia em argumentos de especie quase contraria» (BNP/E3, 21­‑ 7r; cf. Pessoa, 1995: 5) por con‑ ferir ao «paganismo uma interpretação diversa da maioria d’elles; mais lata, […] mais doentia»8. (BNP/E3, 21­‑ 5r; cf. Pessoa, 1995: 4) e «como producto de uma degenerescencia nas idéas e nos sentimen‑ tos de onde deriva o stado perpetuamente morbido da nossa civili‑ zação» (BNP/E3, 21­‑4r; cf. Pessoa, 1966: 225). A maior radicalidade do ramo ortodoxo vem do considerar a religião cristã: como um producto da decadencia romana, que se fixou, porque representa um stado social continuo [...] o christismo em parte como uma mera heresia pagan, heresia que attinge a essencia e não a fórma, da fé; [...] uma violação das leis de equilibrio que regem, ou devem reger, a nossa civilização [...] (BNP/E3, 21­‑4r; cf. Pessoa, 1966: 225)

8  O ramo ortodoxo considera o christismo: como um producto da decadencia romana, que se fixou, porque representa um stado social continuo [...] em parte como uma mera heresia pagan, heresia que attinge a essencia e não a fórma, da fé; [...] uma violação das leis de equilibrio que regem, ou devem reger, a nossa civilização [...] (BNP/E3, 21­‑4r; cf. Pessoa, 1966: 225)

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e, enfim, «como producto de uma degenerescencia nas idéas e nos sentimentos de onde deriva o stado perpetuamente morbido da nossa civilização» (BNP/E3, 21­‑4r; cf. Pessoa, 1966: 225). Das personalidades autorais que nunca chegaram a atingir esta‑ tuto de heterónimo, António Mora é talvez aquela com a obra mais original e conceptualmente mais apurada acerca da contundente que‑ relle Paganismo Vs Cristismo. Antes de se estrear como responsável de uma criação literária autónoma, nasce como protagonista, em «coabitação» com o Dr. Gama Nobre, do texto ficcional Na Casa de Saude de Cascaes. A datação mais provável é de 1911, apesar de estarem presentes, no espólio de Pessoa, vestígios de uma sua preparação um pouco anterior, com o título bastante vago de «Contos Intelectuais»9. Alto, austero, de barba branca, o residente do sanatório psiquiátrico aparece vestido de toga enquanto declama o princípio da lamen‑ tação do Prometeu Agrilhoado, de Ésquilo. O mito prometeico está demasiado repleto de significados simbólicos para que tenha sido escolhido ao acaso. Atrás de um jogo metafórico, Pessoa esconde um juízo de valor sobre o futuro papel de Mora dentro da obra heteroní‑ mica e, em geral, sobre  o seu impacto na humanidade. Com a evocação do titã da mitologia grega, doador do fogo e da téc‑ nica aos seres humanos a fim de os resgatar de um estado de barbárie ori‑ ginal, Pessoa visa, em certa medida, estabelecer uma equação com Mora e a sua missão portadora de luz, em prol de uma civilização novamente sem rumo nas trevas após o desaparecimento do paganismo helénico. A sua produção doutrinária desenha então um retorno à Grécia, de repaganização do mundo, quer delineando o diagnóstico da sua deca‑ dência, quer procurando a terapia conveniente contra o «morbo men‑ tal» do homem moderno, negador da humanidade e da afirmação de si no mundo, que trouxe à civilização ocidental a necessidade de substituir o universo, ou seja, o cristianismo. Um retorno à Grécia, berço da civili‑ zação ocidental, seria, para António Mora, a única solução, a única tera‑ pia capaz de proporcionar a cura para a «doença cristista»: 9  Cf. Lopes, 1990: 190.

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Deve doer­‑nos de­‑veras a degeneração e a torpeza em que a humanidade cahiu, com o christismo; não devemos ser indifferentes a que ella seja assim, ou de outra maneira. De outro modo não seremos dignos da estatura de pagãos, nem do nome, que devemos merecer, de servos dos Deuses, de escravos sub‑ missos do universal Destino. Seremos apenas homens de um periodo da decadência, superiores pelo instincto da libertação, mas não pela prac‑ tica, dentro em nós, desse instincto. […] Que os Deuses nos concedam o auxilio — salvo o Fado, todo poderoso — para que, guiados por elle, não nos percamos no labyrinto das nossas falsas emoções, nem no abysmo do excesso dos nossos amores, que é o fanatismo. Pode haver um fanatismo da indifferença, e um ardor em não sentir. Pagãos conscientes e pios, homens portanto de harmonia e de moderação, esquivemo­‑nos a esses morbos mentaes, frutos mais d’aquelle desequilibrio nado da falsa fé, que combatemos, do que da nossa clara religião, cujo corpo immortal é a har‑ monia e a plenitude. (BNP/E3, 12A-16v a 17v; cf. Pessoa, 2002: 243­‑244)

Na medida em que todo o ciclo civilizacional é um recomeço a par‑ tir da Grécia, Pessoa defende o «regresso» para sair da decadência e do niilismo civilizacionais, dando também a palavra a Ricardo Reis: A mais antiga tradição da nossa civilização é a tradição grega. Devemos reatá­‑la. Temos que nos crear uma alma grega, para podermos continuar a obra da Grecia. Tudo posterior á Grecia tem sido um erro e um desvio. […] Não ha arte senão a arte grega. Não ha beleza senão como a Gre‑ cia a creou. Reconhecemos isto — muitos de nós — obscuramente. Na realidade, a nossa alma anda tão longe d’isso que todos os dias trahimos a nossa longinqua mãe, a Grecia Antiga. (BNP/E3, 21­‑53av; cf. Pessoa, 2003: 182)

De um ponto de vista temático, o retrocesso a modelos clássicos leva o «latinista por educação alheia» e «semi­‑helenista por educa‑ ção própria» Ricardo Reis a uma assunção simultânea, sui generis, de duas soteriologias historicamente opostas: a do epicurismo e a do [123]

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estoicismo. De Epicuro, Ovídio e Lucrécio, Reis vai absorver a apo‑ logia de uma vida simples com o aproveitamento do instante pre‑ sente em virtude da efemeridade da vida; a necessidade de procurar a imperturbabilidade (ataraxia) com a auto­‑suficiência (autarkéia) que vem do domínio dos prazeres e da interpretação dos deuses como «abstracções concretizadas». De Epicteto, Marco Aurélio e Séneca retira a rejeição de todas as paixões (apatheia) e a aceitação da dor quotidiana de maneira inteira, isto é encontrando a nobreza no pró‑ prio sofrimento. Perante o inexorável determinismo que o Destino encarna, Reis sente que tem de viver, como os estóicos, em confor‑ midade com as suas leis, sem mágoa, num acto de consciente resigna‑ ção e abdicação de todo o carácter ilusório da experiência humana, excepto da ilusão de liberdade. Em Ricardo Reis materializa­‑se um «fakirismo da sensibilidade» (Pessoa, 2014: 499) baseado em «fitar o Nada, em sorrir e pedir vinho», que, todavia, não lhe permite livrar­ ‑se, como ambiciona, do medo da morte e do peso metafísico da vida. Junto à bastante prolífica produção poética ricardiana, imbuída de quietismo e pessimismo, existe um número menos vasto de frag‑ mentos em prosa, indicadores de um temperamento completamente diferente. Aí, a veemente propugnação do helenismo como lei do desenvolvimento humano, mediante a divisa «tudo posterior à Grécia tem sido um erro e um desvio» (BNP/E3, 21­‑ 53av; cf. Pessoa, 1994: 263), fomenta um firme ataque ideológico à degeneração dos valores e dos costumes, coincidente com o enraizamento do cristianismo na socie‑ dade e nas «suas formas directas e indirectas»: o humanitarismo, a democracia e as demais formas de governo antiaristocrático. Ricardo Reis, que adquiriu, talvez como ninguém, a lição de paga‑ nismo espontâneo de Caeiro, é também quem se encarrega de pau‑ tar o distanciamento, próprio e de Mora, da heterodoxia neopagã: O ramo representado apenas por Fernando Pessoa crê que assim, como, no fundo, o movimento christista não foi senão uma interiorização do paganismo, assim no fundo o neopaganismo deve seguir a esteira do chris‑ tismo, mas no verdadeiro sentido. (BNP/E3, 21­‑4r; cf. Pessoa, 1966: 266)

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O oportuno acrescento de Reis dialoga idealmente com quanto Fernando Pessoa ortónimo proclama no seu opúsculo incompleto, cujo título devia ser Paganismo Superior. Theoria do Paganismo: o hete‑ rodoxo Paganismo Superior, diferentemente dos ortodoxos «filhos da primitividade grega», ao combater o cristianismo, não quer a sua total eliminação. Até julga positivas algumas instâncias que lhe pertencem, mostrando­‑se assim favorável a preservá­‑las: é o caso da sensibilidade, isto é, da faculdade de sentir que o homem her‑ dou do cristianismo. Com fortes referências ao neoplatonismo e ao imperador romano Juliano o Apóstata, que tentou travar, numa derradeira tentativa, a difusão do cristianismo no século IV d.C., em nome dum paganismo «não só admissor dos deuses de todas as crenças, mas aperfeiçoador de todas as crenças» (Pessoa, 1968: 94), o Paganismo Superior aparece como uma espécie de paganismo para os tempos modernos, ou seja, uma moderna pluralidade religiosa onde «todos os protestantismos, todos os credos orientais, todos os paga‑ nismos mortos e vivos — fundem­‑se portuguesmente no paganismo Superior […]. Não queiramos que fora de nós fique um único Deus! Absorvamos os Deuses todos» (Pessoa, 1980: 136). Transcendendo todas as Igrejas, todos os sistemas, todas as cren‑ ças, na aceitação superior das diversas verdades em que se possa indagar a Verdade, o neopagão admitiria então, segundo a variante perspectivada pelo ortónimo, todos os deuses na larga capacidade do seu panteão. O Paganismo Superior ou paganismo transcen‑ dental, para Fernando Pessoa, seria ainda uma forma de politeísmo supremo, já que, na eterna mentira de todos os deuses, de todas as doxas e de todas as aparências, as várias religiões e metafísicas mais não seriam do que frutos mitológicos da Verdade, perspectivas do mistério a haver. É nesse contexto teórico que os conceitos de drama heteronímico sensacionista e de neopaganismo se sobrepõem sem equacionar ou sintetizar os pontos de vista particulares descritos: ambos os con‑ ceitos são a explicitação de contos e mitos de uma consciência frag‑ mentada em busca perene de uma recodificação que, à semelhança [125]

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de Nietzsche, desenvolveu um «ideal de uma espiritualização do humano que, à partida, só é acessível, num plano estritamente espi‑ ritual, a uma pequena elite, mas que pretende provocar, num longo prazo indeterminado, toda uma revolução cultural e civilizacional» (Constâncio, 2013: 368).

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