O Dia em Abaetetuba

July 17, 2017 | Autor: Eduardo Pellejero | Categoria: Literatura
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EDUARDO PELLEJERO

O DIA EM ABAETETUBA

Tive este sonho: Estava em Abaetetuba (Grão-Pará). A praça fervia de urubus (como é hábito). Catavam o lixo à procura de restos e eu, provavelmente, era mais um. Aproximei-me de um macho especialmente grande e velho. Algumas penas do pescoço delatavam a sua intimidade com a morte. Comia sem vontade nenhuma, como se já não fosse importante, e talvez não era. Perguntei-lhe: – O que fazemos? – Comemos o que morre – me respondeu –. Vivemos. – Mas não produzimos com isso nenhuma forma de beleza – disse. – Neste mundo – observou – a beleza é comum. *** Novamente acordo em Abaetetuba. A cidade está vazia. Trabalham rio acima, penso. O mato entra nas casas pelas portas, pelas janelas, rebenta com as tubagens de água, floresce nos telhados desfeitos. A terra arde, comovida. Abro as asas sem intenções de levantar voo. Marco o meu território, faço-me ver. Digo (apenas para mim): – Mas ninguém olha. – Não olham o quê?

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Ao meu lado um urubu fita-me com os olhos injetados de sangue. Compreendo que não duvidaria um segundo em atacarme se eu demostrasse o menor sinal de fraqueza. Acordo. *** Começo a temer que já nunca consiga deixar Abaetetuba. Apenas fecho os olhos sou transportado para esse deserto de sol afundado no barro elementar da ribeira. É um sonho agitado, do qual acordo cada vez mais cansado, o que me obriga a dormir cada vez mais, e assim. Ontem, sem ir mais longe, passei quinze horas em Abaetetuba e apenas nove horas aqui (mas onde é aqui?). Não pode surpreender ninguém que comece a sentir que o lado de lá é mais real. Do lado de lá sinto a fome com uma intensidade que nunca antes conhecera, isso é seguro. Arrasto-me no fragor do mercado improvisado sobre o rio, me alimentando de porcarias que nenhuma besta se dignaria considerar. Não conheço o asco, mas sou consciente da minha miséria. As demais bestas não parecem partilhar comigo essa consciência trágica. – Isto se deixa comer – dizem; não querem saber de mais nada. Estes urubus não são bichos de viajar. Não imaginam outros mundos possíveis. São mais felizes assim, acredito. *** Dei por mim entre as entranhas de um jumento em avançado estado de decomposição. Quanto tempo levava aí? Meia centena de urubus disputavam as melhores partes, que já não eram demasiadas. Os desentendimentos proliferavam sem diminuir a excitação. Percebi subitamente o sabor do sangue subindo-me pela goela. É a minha consciência, pensei: aflora. – Onde estamos? – perguntei.

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– Em Abaetetuba – disse o animal que se encontrava mais próximo de mim -. Onde mais? Antes de ser capaz de responder fui arrastrado até fora do círculo. Acreditei reconhecer na brisa do sudeste o inconfundível fedor da feira do peixe. Tinha o estômago cheio, mas perante mim se estendia uma terra de pesadelo. Coisa ruim ter gosto em Abaetetuba. *** Só as moscas ganham aos urubus no domínio de Abaetetuba. As moscas estão por todas as partes. Chegam antes que nós cheguemos, vão embora depois que nós vamos. Duplicam a cidade, conspurcam-na. Tudo passa em Abaetetuba (tudo morre), mas as moscas sempre estão aí. Abaetetuba depende delas para manter-se no seu ser (no meu sonho). Urubusamos suas ruas e a cidade fede, mas as moscas a constroem, a destroem, a fecundam de corrupção. Há qualquer coisa de inumano nelas, qualquer coisa que me faz sentir que ainda não fui totalmente dominado pelos meus novos instintos, e que me reconforta quando sou tomado pela melancolia. A melancolia não é uma disposição estranha na nossa espécie, mas pode ser perigosa. Como adormecer com a boca aberta, havendo tanta mosca. *** Hoje lutei até o limite das minhas forças tentando controlar o sono, mas o sangue me pesava nas veias como chumbo. Levo dias sem deixar a cama. A cama é um deserto. O deserto é Abaetetuba. Aqui não sofro o sono, aqui sou incansável. Só assim se sobrevive nesse lugar. Nem dormindo prego o olho. O cuidado nunca é demais.

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Mesmo assim, pelas noites, quando as ruas desandam, não resisto o impulso de aproximar-me das famílias que se rejuntam nos portais das casas. É a única marca de humanidade que resta em mim, a única fraqueza. Afastam-me com gritos e com pedras, que não poucas vezes me atingem com violência. Lhes digo: – Porque fazem isso comigo? Mas não ouvem, não têm ouvidos para isso. – Bicho nojento – comentam entre si, como se eu não escutasse. É possível que não estejam errados. *** Ninguém escolhe onde nascer, ninguém escolhe nada nunca. Abaetetuba não é nem melhor nem pior que nenhum outro lugar nessa terra. Para um exemplar da minha espécie, para o bicho que sou até pode ser melhor que muito lugar sem sombra. A imaginação é o meu crime e é o meu castigo. Afundado na carne em decomposição, apaga-se e eu sou, por um momento, só um com o meu ser, conheço o significado da beatitude, e poderia morrer sem lamentações nesse instante. Mas as digestões são lentas nestas quenturas e a mente devaneia sem sentido. Sinto que não sou apenas o que sou, que sou o que não sou, o que poderia ser, o que apenas atrevo-me a pensar. Olho e não vejo, cheiro e não sinto. Desfaço-me em imagens impróprias para uma besta bem alimentada. Me urubuso a mim mesmo. E não há beleza nisso. *** Tive este sonho: Estava longe de Abaetetuba (Grão-Pará). A praça estava quase vazia (como é hábito). Os empregados da câmara esvaziavam os caixotes de lixo que reluziam sob o sol do inverno e eu, provavelmente, brilhava também.

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Uma velhota aproximou-se de mim e pediu licença para sentar-se ao meu lado. Vestia um casaco comprido, abotoado até o pescoço, que começava a ficar-lhe grande. Nunca a vira antes aí, e especulei que não a veria muito mais. Ofereceu-me umas castanhas, que já pareciam frias. – Obrigado – disse –. Estou sem fome. – O que faz aqui? – me perguntou. – É uma bela praça – lhe disse –. Gosto vir aqui e ficar a ver morrer o dia. Então sacou uma agulha de tecer da carteira e me furou os olhos.

Eduardo Pellejero, “O dia em Abaetetuba”, em: Augusto Sarmento Pantoja, Élcio Loureiro Cornelsen e Tânia Sarmento Pantoja (organizadores), Literatura e Cinema de Resistência: novos olhares sobre a memória, Rio de Janeiro, Editora Oficina Raquel, 2013.

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