O diabo e o lobisomem

July 25, 2017 | Autor: Danielle Takase | Categoria: Literatura brasileira, João Guimarães Rosa, Graciliano Ramos
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DANIELLE TAKASE QUEIROZ Nº USP: 8571711

O diabo e o lobisomem: relações entre narradores de G. Rosa e G. Ramos

Trabalho final de aproveitamento para a disciplina de Literatura Brasileira II – Prof. Fabio Cesar Alves. Proposta I.

São Paulo 2015

O diabo e o lobisomem: relações entre narradores de G. Rosa e G. Ramos

O diabo na rua, no meio do redemunho... Grande Sertão : Veredas Julgo que delirei e sonhei com atoleiros, rios cheios e uma figura de lobisomem. S. Bernardo O que no narrador-personagem de Graciliano Ramos é subterrâneo, recalcado, originado nas frustrações da relação sujeito-mundo – “e logo planeei adquirir a propriedade São Bernardo, onde trabalhei, no eito, com salário de cinco tostões”1–, no de Guimarães Rosa é dos avessos, onde até mesmo a disposição geográfica parece atuar como projeção da alma do sujeito – “Mas foi nesse lugar, no tempo dito, que meus destinos foram fechados. (...) Aquele lugar, o ar. Primeiro, fiquei sabendo que gostava de Diadorim” ou “Aquela travessia durou um instantezinho enorme”2 –, sendo esses dois termos norteadores na análise de Antonio Candido para estudo das obras.3 Em ambos os narradores é possível constatar que o “contar(-se)” dá-se pela necessidade de entender(-se?), o que é demonstrado metalinguisticamente. Paulo Honório e Riobaldo buscam no presente da enunciação, expondo o sumário de suas vidas, reaver a unidade do todo de sua experiência. Tenciono contar a minha história. Difícil. Talvez deixe de mencionar particularidades úteis, que me pareçam acessórias e dispensáveis. Também pode ser que, habituado a tratar com matutos, não confie suficientemente na compreensão dos leitores e repita passagens insignificantes. De resto isto vai arranjado sem nenhuma ordem, como se vê. Não importa.4 Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo as coisas de rasa importância. De cada vivimento que eu real tive, de alegria forte ou pesar, cada vez daquela hoje vejo que eu era como se fosse diferente pessoa. Sucedido desgovernado. Assim eu acho, assim é que eu conto. O senhor é bondoso de me ouvir. Tem horas antigas que ficaram muito mais perto da gente do que outras, de recente data. O senhor mesmo sabe. 5

Assim, antes de qualquer estudo, é preciso ter em mente que a história passa pelo filtro do olhar desses narradores, os maiores interessados em expor sua própria história segundo seu próprio ponto de vista. 1

RAMOS, G. São Bernardo, 15ª ed., São Paulo: Martins, 1971, p.71. ROSA, JG. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p.114, 409. 3 Ver ensaios de Antonio Candido, Os Bichos do Subterrâneo (Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006) e O homem dos avessos (São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1978). 4 s.b, p. 64. 5 gs:v, p. 114. 2

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A tipicidade de Paulo Honório dá-se principalmente através da encarnação do que Ana Paula Pacheco refere-se como “o pior de dois mundos, o do patriarcalismo tradicionalista e o da modernização atrasada”6, que sintetiza o desenvolvimentismo brasileiro da década de 30, dado pela reposição de atrasos. Uma vez que a personagem “faz-se” – o que era pela primeira vez permitido numa sociedade anteriormente composta apenas por grandes proprietários bem-nascidos, sem possibilidade de mobilidade social das classes baixas –, considera-se progressista e moderno, condenando quem não soube acompanhar os avanços do tempo, como Seu Ribeiro que “deixou as pernas debaixo do automóvel”7 e visando sempre obter mais, o que Candido refere-se como sentimento de propriedade8 que vem a reger a personagem e todo o romance. No entanto, ele continua a utilizar-se de formas arcaicas de dominação – com as quais ele mesmo já fora explorado, enquanto trabalhador do eito na própria fazenda que vem posteriormente a tomar – e mostra-se avesso a determinadas posturas (incomoda-o a irreverência duma mulher intelectual, por exemplo, “Não gosto de mulheres sabidas. chamam-se intelectuais e são horríveis.”9), num retorno ao pensamento de um patriarca latifundiário colonial. Mesmo após ter ascendido socialmente o pensamento é o mesmíssimo. Afinal, com a adesão ao capitalismo no Brasil houve manutenção de zonas de atraso (condições trabalhistas precárias, grandes propriedades, agravamento da desigualdade social...) e não foi consequência do sistema adotado, mas sim uma necessidade para a consolidação de tal sistema. O empreendedorismo de Paulo Honório concentra ao mesmo tempo a força construtiva e destrutiva do capitalismo. Na parte ascendente de sua trajetória – do trabalhador do eito até o fazer-se proprietário –, Paulo Honório, no tempo da enunciação, exercia dominação – sendo ele legítimo ou, na maioria das vezes, violento – sobre todos os âmbitos de sua vida e isso se reflete em aspectos formais da composição: o ritmo célere e a contagem minuciosa e proveitosa do tempo nos primeiros capítulos mimetizam suas sucessivas empreitadas, há excesso de objetividade e consequente falta de subjetividade nesta primeira parte da narração, os diálogos são incisivos, as relações com as demais personagens são puramente utilitárias e objetificantes. O mesmo Paulo Honório que implacavelmente dedica-se a desenvolver melhorias modernizadoras em suas terras é 6

PACHECO, AP. “A subjetividade do Lobisomen (São Bernardo)”. Literatura e Sociedade (USP), v. 13, p. 45-57, 2011, p. 69. 7 s.b, p.94. 8 CANDIDO, A. “Ficção e confissão” (Prefácio). In: RAMOS, Graciliano. São Bernardo. São Paulo: Martins, 1971, p. 18. 9 s.b, p.191.

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aquele cuja reação ao menor atrito com seu empregado é espancá-lo. Voltado para o futuro, o fazendeiro reproduz as relações de trabalho mais precárias, aos moldes da escravidão. Efetuei transações arriscadas, endividei-me, importei maquinismos e não prestei atenção aos que me censuravam por querer abarcar o mundo com as pernas. Iniciei a pomicultura e a avicultura. Para levar os meus produtos ao mercado, comecei uma estrada de rodagem. Azevedo Gondim compôs sobre ela dois artigos, chamou-me patriota, citou Ford e Delmiro Gouveia. Costa Brito também publicou uma nota na Gazeta, elogiandome e elogiando o chefe político local. Em conseqüência mordeu-me cem mil-réis.10 Marciano teve um rompante: – Ainda agorinha os cochos estavam cheios. Nunca vi gado comer tanto. E ninguém agüenta mais viver nesta terra. Não se descansa. Era verdade, mas nenhum morador me havia ainda falado de semelhante modo. – Você está se fazendo besta, seu corno? Mandei-lhe o braço ao pé do ouvido e derrubeio. Levantou-se zonzo, bambeando, recebeu mais uns cinco trompaços e levou outras tantas quedas. A última deixou-o esperneando na poeira. Enfim ergueu-se e saiu de cabeça baixa, trocando os passos e limpando com a manga o nariz, que escorria sangue. 11

Mesmo o casamento tem uma motivação antes funcional do que emocional. Amanheci um dia pensando em casar. Foi uma idéia que me veio sem que nenhum rabo de saia a provocasse. Não me ocupo com amores, devem ter notado, e sempre me pareceu que mulher é um bicho esquisito, difícil de governar. (...) o que sentia era desejo de preparar um herdeiro para as terras de São Bernardo. 12

Madalena é a escolhida, já que “é sisuda, econômica, sabe onde tem as ventas e pode dar uma boa mãe de família”13, no entanto, à primeira insubmissão, à mesa “um bateboca oito dias depois do casamento”14, causa uma reviravolta em toda a composição do livro. Nos episódios posteriores ao enfrentamento, Paulo Honório logo percebe que a sensaboria que idealizava de uma esposa não vai encontrar consonância em Madalena, que é sujeito de si mesma, não uma propriedade dele. Ela demonstra suas vontades através do embate direto com o marido e não o encara como possuidor. Essa insubmissão foge ao controle do narrador-autor e a narrativa é invadida por subjetividade e fantasmagoria (e o vento e o luar e os pios da coruja) que se associa tanto à perda de domínio sobre o mundo quanto à perda do domínio sobre si mesmo. Isso pode ser evidenciado pela marcação do tempo, antes tão precisa, que passa a admitir um caráter simbólico na natureza desde o capítulo dezenove, primeiro com fortes marcações subjetivas (“Há um grande silêncio. Estamos em julho. O nordeste não 10

s.b, p .99. s.b, p. 166. 12 s.b, p. 115. 13 s.b, p. 145. 14 s.b, p. 158. 11

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sopra e os sapos dormem.”), que reaparece furioso no ápice do seu ciúme de Madalena que culmina na cena do suicídio (“O nordeste começou a soprar, e a porta bateu com fúria.(...) o nordeste atirava para dentro da sacristia folhas secas(...). O relógio tinha parado, mas julgo que dormi horas.”) e que nos capítulos finais (“Julgo que delirei e sonhei com cheios e uma figura de lobisomem. Lá fora há uma treva dos diabos, um grande silêncio. Entretanto o luar entra por uma janela fechada e o nordeste furioso espalha folhas secas no chão.”) essa projeção mítica da natureza sombria é consonante com o aniquilamento desse sujeito.15 A trajetória de Paulo Honório não foi apenas de formação, mas de deformação. O mesmo sentimento que impulsiona sua subida resulta em sua ruína, com a subsequente perda do domínio sobre as coisas, originada na insubmissão de Madalena e atingindo o ápice em seu suicídio. É completamente deformado que vislumbra a si mesmo no fim do livro. A monstruosidade transfigurada no delírio do lobisomem é engatilhada pela consciência melancólica16 de que sua vida fora desperdiçada inutilmente – mas que ao mesmo tempo enfatiza: faria tudo novamente. O sentimento de propriedade lhe é imanente. O exercício da dominação simbólica – na impossibilidade de um domínio concreto a ser exercido no tempo da enunciação – é alcançado através da escrita de um livro, no qual, através de sua posição de narrador-autor, recupera o domínio do mundo que se lhe esvaía. As temporalidades misturadas, em Paulo Honório, dão-se tanto pelo contar histórias passadas quanto pela a fantasmagoria que o persegue no presente da enunciação. Já Riobaldo é a própria figura do narrador contador de histórias, que na relação dialógica com seu interlocutor (doutor, citadino) conta os causos de sua vida, colhidos na experiência e na sabedoria popular.17 Complexamente, ele é também o herói problemático dos romances modernos, a todo o momento expondo suas dúvidas, suas reflexões. A subjetividade invade, não só o tempo da enunciação, mas também está presente tempo do enunciado. Nem eu queria me lembrar de pertencências, e mesmo, de quase tudo quanto fosse diverso, eu já estava perdido provisório de lembrança; e da primeira razão, por qual era, que eu tinha comparecido ali. E, o que era que eu queria? Ah, acho que não queria mesmo nada, tanto que eu queria só tudo. Uma coisa, a coisa, esta coisa: eu somente queria era – 15

Trechos utilizados: s.b, p. 161, 218, 222, 248. APP, “A subjetividade do Lobisomen (São Bernardo)”, op. cit., p. 78. 17 Para W. Benjamin “entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos” e constrói dois tipos de narradores cujas maiores virtudes são conhecer através de andanças e contatos e conhecer profundamente sua própria terra e sua gente. Riobaldo pode ser considerado a junção desses dois tipos. Ver: “O Narrador: Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”, In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 197-221. 16

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ficar sendo! (...) O que eu agora queria! Ah, acho que o que era meu, mas que o desconhecido era, duvidável. Eu queria ser mais do que eu. Ah, eu queria, eu podia. Carecia. “Deus ou o demo?” – sofri um velho pensar. 18

Riobaldo não tem plena consciência do que é. O pacto com o diabo em Grande Sertão: Veredas é justamente por um norteamento desse sujeito permanentemente ambivalente – ambivalência esta presente em todas as instâncias do romance, não apenas em Riobaldo, mas também em Diadorim, herdeira transformada homem(mulher?)-livre, no Bem e Mal mistos a todo instante, nas idas e voltas temporais, na configuração espacial confusa, mí(s)tica, fantástica, surreal, épico, lírico, dramático, universal ainda que regional... –, o herói-bandido, o professor-jagunço-poeta, o latifundiário arcaico e moderno que se dirige ao “de fora, amigo mas estranho” e toma voz exclusivamente neste “diálogo”, o homem de ação que só observa, o pactário que deseja vencer o mal em nome do Bem. A dúvida de Riobaldo quanto a sua essência corresponde à dificuldade encontrada na constituição de uma subjetividade num país colonizado como o Brasil. O sertão é tudo, ao mesmo tempo não deixa de ser sertão. Mesmo com essa suspensão da história através do mito, o não-ser-sendo de Riobaldo é a típica personagem “sem caráter” (digamos macunaímica), concentrando as linhas de força da formação do Brasil, afinal “o Cujo(...) é, entre outras coisas e ao pé da letra, a expressão simbólica das forças desagregadoras da personalidade, num contexto social determinado.”.19 Dois excertos da Dialética do Esclarecimento podem ser relacionados com o lado mítico cada personagem. Em Paulo Honório, como já dito, a morte de Madalena coincide (ou é responsável por) uma reviravolta no romance e a fantasmagoria presente na segunda metade do romance deve-se ao seu suicídio, que é na verdade uma válvula de escape sentimento de propriedade do marido. A decadência no plano emocional é também a decadência no plano material e tudo que remete à Madalena é permeado de melancolia e culpa. “As pessoas recalcam a história dentro de si mesmas e dentro das outras, por medo de que ela possa recordar a ruína de sua própria vida, ruína essa que consiste em larga medida no recalcamento da história. (...) Em face dos mortos os homens desabafam o desespero de não serem mais capazes de se lembrarem de si próprios.”20. Após revelar-se consciente de que “a desconfiança também é

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gs:v, pp.436-437. PACHECO, AP. “Jagunços e homens livres pobres: lugar do mito no Grande Sertão”. In: Novos Estudos CEBRAP, v.81, p. 179-188, 2008, p. 182. 20 ADORNO, T., HORKHEIMER, M. Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos(online), p.102 19

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consequência” da postura dominadora necessária à sua empreitada, Paulo Honório devaneia com a figura do lobisomem. Já para Riobaldo, incontáveis vezes nas centenas de páginas de sua fala sem pausas uma figura é como que onipresente (ainda que “não exista”). “O sobrenatural, o espírito e os demônios seriam as imagens especulares dos homens que se deixam amedrontar pelo natural. Todas as figuras míticas podem se reduzir, segundo o esclarecimento, ao mesmo denominador, a saber, ao sujeito.”

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diz o pactário: Não devia de estar relembrando isto, contando assim o sombrio das coisas. Lenga-lenga! Não devia de. O senhor é de fora, meu amigo mas meu estranho. Mas, talvez por isto mesmo. Falar com o estranho assim, que bem ouve e logo longe se vai embora, é um segundo proveito: faz do jeito que eu falasse mais mesmo comigo. Mire veja: o que e ruim, dentro da gente, a gente perverte sempre por arredar mais de si. Para isso é que o muito se fala? E as idéias instruídas do senhor me fornecem paz. Principalmente a confirmação, que me deu, de que o Tal não existe; pois é não? O Arrenegado, o Cão, o Cramulhão, o Indivíduo, o Galhardo, o Pé-de-Pato, o Sujo, o Homem, o Tisnado, o Coxo, o Temba, o Azarape, o Coisa-Ruim, o Mafarro, o Pé-Preto, o Canho, o Duba-Dubá, o Rapaz, o Tristonho, o Não-sei-que-diga, O-que-nunca-se-ri, o Sem-Gracejos... Pois, não existe! E, se não existe, como é que se pode se contratar pacto com ele? E a idéia me retorna. Dum mau imaginado, o senhor me dê o lícito: (...) que, quando um tem noção de resolver a vender a alma sua, que é porque ela já estava dada vendida, sem se saber; e a pessoa sujeita está só é certificando o regular dalgum velho trato– que já se vendeu aos poucos, faz tempo? Deus não queira; Deus que roda tudo! Diga o senhor, sobre mim diga. Até podendo ser, de alguém algum dia ouvir e entender assim: quem sabe, a gente criatura ainda é tão ruim, tão, que Deus só pode às vezes manobrar com os homens é mandando por intermédio do diá? Ou que Deus – quando o projeto que ele começa é para muito adiante, a ruindade nativa do homem só é capaz de ver o aproximo de Deus é em figura do Outro? Que é que de verdade a gente pressente? Dúvido dez anos. Os pobres ventos no burro da noite. Deixa o mundo dar seus giros! Estou de costas guardadas, a poder de minhas rezas. Ahã. Deamar, deamo... Relembro Diadorim. Minha mulher que não me ouça. Moço: toda saudade é uma espécie de velhice. 22

A existência ou não do diabo é de tal modo uma indefinição para esse sujeito que, mesmo quando afirmado que ele não existe, ecoa por todo o livro o reticente “demônio na rua, no meio do redemoinho...” 23, pois a existência dEle justificaria o injustificável no tempo em que as coisas decorreram (o amor por Diadorim era coisa do diabo, a força de Hermógenes que era motivada pelo pacto dele, o ímpeto de líder que Riobaldo assumiu após o episódio do pacto e sua iminente brutalidade): o irracional era automaticamente transposto para a possível existência do demônio. O grande sertão é “o mágico, o lógico, o lendário, o real”

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, onde tudo pode acontecer.

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Ibidem, p. 6. gs:v, pp.55-56. 23 Ver: gs:v, p. 27, 114, 175, 262, 328, 437, 610, 611. 24 AC. “O homem dos avessos”. In: Tese e antitese, São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1978, p. 135. 22

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A existência do diabo condenaria a alma do pactário, que fez sua opção: concluir seus objetivos a qualquer custo. O custo foi Diadorim. A culpa remói este sujeito, tal como a morte de Madalena que revisita Paulo Honório sombriamente. A autonomia relativa que o pacto forneceu a Riobaldo proporcionou-lhe a liderança (chefe da vitória sobre os judas) e ele vem a ser bem-sucedido (herdeiro de terras, bem casado), no entanto, mostra-se reticente ao falar do acontecido com Diadorim, e, principalmente, precisa a todo momento do silêncio confortante (e conformado) de seu interlocutor culto e citadino, numa assertiva à inexistência do diabo. Amável o senhor me ouviu, minha idéia confirmou: que o Diabo não existe. Pois não? O senhor é um homem soberano, circunspecto. Amigos somos. Nonada. O diabo não há! É o que eu digo, se for... Existe é homem humano. Travessia.25

A configuração dos dois sujeitos dá-se pela oscilação, quiasmática na trajetória de Paulo Honório – do aniquilador do mundo ao pelo mundo aniquilado, ascensão e queda motivadas pelo sentimento de propriedade, de obsessão pela dominação – e vorticosa na de Riobaldo – regida pela reversibilidade26 de forças antagônicas que giram em torno desse sujeito. A inquietação de ambos está na incompletude como sujeitos e buscam reaver através do narrar o domínio do todo que lhes escapa. Se em Grande Sertão: Veredas o mito do pacto com o diabo é a transfiguração do desejo desse sujeito informe27 de alcançar sentido em sua vida, em S. Bernardo o mito na figura do lobisomem decorre justamente do lampejo de consciência da inutilidade de sua vida, numa projeção de si mesmo no mito, que Ana P. Pacheco refere-se como esclarecimento “às avessas”

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. Em ambas as obras é trabalhada a conjugação de

modernidade e atraso que os dois sujeitos incorporam em suas trajetórias. O mítico nesses dois sujeitos, portanto, não transfigura somente suas histórias, mas também a inserção histórico-social que transforma esses sujeitos. Afinal, o que “existe é homem humano”.

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gs:v, p. 624. (grifo meu) AC, “O homem dos avessos”, op. cit., p.134. 27 Ademais, “os anseios de Riobaldo parecem ter relação com a historicidade do sujeito no Brasil — com sua não-formação, ligada à não constituição de uma racionalidade burguesa de fato, à auto-imagem de uma subjetividade “que não é ainda”, nem sequer como projeção ideológica — e atualizam-se numa consciência moderna, dividida.” Em: APP, “Jagunços e homens livres pobres: lugar do mito no Grande Sertão”, p. 81. 28 APP, “A subjetividade do Lobisomen (São Bernardo)”, op. cit., p.79. 26

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Referências Bibliográficas

ADORNO, T., HORKHEIMER, M. Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos.

Disponível

em:

. Acesso em: 08/01/2015. BENJAMIN, Walter. “O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 197-221. CANDIDO, Antonio. “Ficção e confissão” (Prefácio). In: RAMOS, Graciliano. São Bernardo. São Paulo: Martins, 1971. _____. “O homem dos avessos”. In: Tese e antitese, São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1978, p.121-139. _____. “Os Bichos do Subterrâneo”. In: Ficção e Confissão: ensaios sobre Graciliano Ramos. 3 ed., Rio de Janeiro, Ouro sobre Azul, 2006. PACHECO, Ana Paula. “A subjetividade do Lobisomen (São Bernardo)”. Literatura e Sociedade (USP), v. 13, p. 45-57, 2011. _____. “Jagunços e homens livres pobres: lugar do mito no Grande Sertão”. In: Novos Estudos CEBRAP, v.81, p. 179-188, 2008. RAMOS, Graciliano. São Bernardo. São Paulo: Martins, 1971. ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

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