O diário de bordo de Hélio Miramar

June 19, 2017 | Autor: Frederico Coelho | Categoria: Hélio Oiticica, Literture
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Helio Miramar: Diário de bordo _______________________________________________________

12/2004

Hélio Miramar: diário de bordo. “Nostalgias brasileiras são moscas na sopa de meus itinerários”. João Miramar. “Por todo canto levamos o mesmo choque: esses espetáculos evocam outros, essas ruas são ruas, essas montanhas são montanhas, esses rios são rios: de onde vem a sensação de terra estrangeira? Simplesmente de que o tamanho do homem e das coisas destendeu-se a ponto de se excluir qualquer termo de comparação” Claude Lévi-Strauss “Não deixe que a tragédia o consuma, ela já existe todo dia – ela passa e está presente – ela é só – é o colapso sobre o colapso – é o ir e vir – é a conquista de se agüentar o dia que nasce, não se querer que a noite termine e que venha o cansaço – escrevo, leio, estou cansado – O Brasil é triste como a idéia de trópico, mas sou eu – aqui, sou o desafio de mim mesmo”. Hélio Oiticica

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Caixas dentro de caixas. Eu dentro de Helio. Helio dentro de Oswald. Oswald dentro de Miramar. Miramar dentro de Oswald. Oswald dentro de Helio. Helio dentro de mim.

Nos Tristes Trópicos de Pindorama.

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DIÁRIO – RIO/LONDON Dezembro 1968 HO Rio de Janeiro 1 de dezembro, 1968 Fazer um diário da viagem para Londres. A escrita e a poesia estão atualmente ocupando um espaço grande dentre meus interesses. Não quero perder a oportunidade de poder ficar uma semana dedicado a não fazer mais nada a não ser ler e escrever. Viver e registrar (não são afinal ambas as mesmas ações?) a experiência de uma viagem de barco para a Europa. A idéia do diário, comum para mim que fiz durante anos na minha juventude, me atrai e nesse momento pode ser a base para novas reflexões e projetos. Escrevi muito esse ano. O escrito que mais gostei foi justamente um poema para ser publicado na matéria de Mariza, que vai sair essa semana na revista O Cruzeiro. Um dia ela me ligou para dizer que meu texto será censurado. Não escreverei nada no lugar. Deixarei a palavra Blank como forma de protesto e denúncia. Reescrevo aqui o poema – uma das coisas mais fortes que já fiz em matéria de poesia – para registrá-lo e leva-lo para a viagem comigo: Supra (aboutissement) – a chegada ao supra-sensorial é a tomada definitiva de posição à margem. Supramarginalidade – la vita, mallindavita, o prazer como realização, vitocopuplacer. Obra? Que é senão gozar? Gostozar. Cair de boca no mundo. Cannabilibidinar. Hummm... Sei que estou vivo – é só o que resta – o sabor, salabor, salibidor. A nova era chegou: marginalibidocannabianismo: l’opera morreu. Morra a mão de ferro; sentir para o gozo. A palavra, o que se vê, ouve-se, grita-se, canta-se, catarsis-se; o mundo quer respirar. MARGINetical. A nova cara se descobre, é linda, é o que há séculos estava escondido, sai, ergue-se phalluvaginamente, supuxadamente, ergue-se a fumaça, sauna do novo mundo. A rataria de cima corre – liberta tá tá tá tiro, tara, a bichalouca mexe, mexe, ato gozo termal, sob a saraivada 22, 32, 38, 45, sete meia cinco da noite que chega. Está quente. A mulher se lava. O Homem se despe e recomeça. 20.8.68

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Rio, 3 de dezembro Quase tudo pronto para a viagem. Guy está mais ansioso que eu. Será que eles irão entender minha proposta? Não abro mão de um milímetro: ou tudo ou nada! A exposição na Whitechapell deve obedecer ao espaço ambiental proposto ou então perde sua força e impacto. Quero ver a cara de toda aquela vanguarda inglesa! Vou botar pra quebrar! Ficamos noite e dia, em junho e julho, eu e Rogério Duarte, aqui em casa, planejando, fazendo desenhos de precisão do que seria construído e do ambiente geral com a colocação, é claro, das coisas maiores. Mesmo assim, demarquei elevações no chão de diversas alturas para colocar: Bólides (são 50 ao todo); Capas (26); grandes Cabines já prontas (5); os grandes Núcleos; peças suspensas; projeto Cães de caça etc. Nunca trabalhei tanto em tão pouco tempo: depois de semanas montando e empacotando com Rogério, saíram 18 caixotões e 22 volumes, para uma exposição que é eternamente adiada e creio que nem vai acontecer. Mas vale a pena ir para Londres mesmo assim. No mínimo, permaneço um tempo trabalhando. Estou louco para me mandar: quero ver como é a barra por aquelas bandas, pois cada pessoa me descreve tudo superficialmente para que possa medir. Rogério irá pra Paris e depois, pra lá; Gerchman também, depois de passar por New York. Consegui do Itamaraty a garantia de receber cerca de setecentos dólares de ajuda de custo da Embaixada brasileira quando chegar lá em Londres, e gasto apenas cem dólares para viajar em um cargueiro italiano, com cabine dupla. Uma companhia de navegação de Gênova, com um diretor Holandês, num porto brasileiro! Foi Nilza, uma amiga de César e Roberta, esposa do Gilberto Macedo, um cineasta ótimo do novíssimo cinema brasileiro, que apresentou-me à companhia de cargueiros. Se eu conseguir não gastar muito com hospedagem lá, dará para viver tranqüilo um bom tempo. Torquato está excitado com a viagem a Europa e ainda mais em ir comigo. Nossa amizade nunca esteve tão sólida. Acho seu trabalho genial como compositor e disse isso em carta para Lygia e para todos que converso sobre música popular. Nos conhecemos há pouco tempo, mas as afinidades entre nós são evidentes, para além de qualquer papo furado tropicalista. Cada dia mais eu creio ter sido acertada a decisão de levá-lo comigo.

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4 de dezembro Passagens na mão. Ir para a Europa num cargueiro italiano foi perfeito. Com o dinheiro que economizei, ainda sobrou para um fumo que Miro me passou. Deve ter arrumado a mutuca com o pessoal da Manga. Eu e Torquato estamos zarpando! Chegar a Europa de cabeça feita, conquistar o velho mundo! E, principalmente, sair daqui! Não agüento mais o clima sufocante da ditadura. Rogério e Ronaldo que o digam! Não interessou se ele era “O” Rogério Duarte amigo de Caetano Veloso e Glauber Rocha, de família conhecida na Bahia (sobrinho de Anísio Teixeira!), artista plástico etc. Foi preso com o irmão e torturado brutalmente, durante o mês de abril. Na sua saída, na primeira noite em que nos encontramos, achei-o até sereno. Mas obviamente perturbado. Ninguém esquece uma experiência dessa. Eu e Rogério esse ano superamos essas adversidades com muitos trabalhos coletivos, o que mostra que mesmo com a prisão, não nos destroem. Fizemos os eventos APOCALIPOPÓTESE e CULTURA E LOUCURA no MAM, filmamos CÂNCER com Glauber, debatemos bastante – daí surgiu o conceito de PROBJETO de Rogério – e montamos todas as minhas peças e ambientes para a exposição de Londres. Estamos planejando de nos encontrarmos na Europa em janeiro. Espero que ele se agüente enquanto não saltam fora como nós. Caetano e Gil deveriam fazer a mesma coisa. O clima está ficando péssimo. Desde o Divino, Maravilhoso exibido na Tv Tupi, Gil me disse que tem recebido telefonemas anônimos violentos, que começa a ficar paranóico... Sinto a barra pesar desde a confusão entorno da reportagem de Mariza. Também, nessa altura do campeonato, em que a blitz fascista está afiando as garras, com os CCCs da vida espancando atores em teatros, intitular uma reportagem com fotos coloridas de “Marginalia” é muito risco. A censura ao meu texto é só um pedaço do que está por vir. Não sei como não censuraram minha foto, vestido de passista da Mangueira com a bandeira do Guevara feita pelo Tozi. Caetano já disse que pretende gravar mais um disco para cumprir o contrato com a gravadora e dará um tempo dessa superexposição, talvez tentando filmar algo. E Gil tem dito que pretende ir para Europa tocar no MIDEN desse ano, em Paris, ou tentar uma turnê por lá. Tomara! Eu, Gil e Torquato formaríamos um trio da pesada pelas ruas européias!

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6 de Dezembro Um dia perdido. E quase toda a viagem. A três dias de viajar, com passagens compradas, a intriga de uma pessoa mesquinha quase põe tudo a perder! Informada – mal-informada! – por Jackson, que sinceramente passou dos limites dessa vez, não entendo o que acontece com ele se somos tão amigos (devo a Jackson a descoberta da Mangueira em 64!), Vera, “Dona Vera Sauer”, como ela gosta de ser chamada, ameaçou prender o envio do dinheiro do Itamaraty para a embaixada de Londres, alegando que eu estou querendo ir antes da hora, o que não tem sentido. Por ela, só me dariam o dinheiro uma semana antes da exposição. Diz que eu quero passear na Europa, como se eu precisasse disso! Se não fosse a ajuda decisiva de Sonia, com seus telefonemas influentes, eu estaria na merda. Não é à toa que ela é uma legítima Clark. Como Lygia, pode ter todos os defeitos, mas é de uma honestidade e integridade ímpares. Agiu sem pensar duas vezes, numa época em que interceder a favor de alguém em um local como o Itamaraty pode criar problemas, inquéritos, perguntas, constrangimentos. A solução foi enviar o dinheiro relativo à passagem de avião agora (adeus setecentos dólares!!) para eu retirar quando chegar lá e, com a data da exposição marcada, me liberarem a outra parte. Consegui juntar oitenta dólares. Espero que dê para me manter lá um tempo, sem me preocupar de fazer dinheiro com alguma coisa. Ontem fui na Mangueira me despedir do pessoal da pesada. Miro e Nildo, meu irmãos, me trataram como rei. Deixarão saudades. Sentirei sem dúvida mais falta da Mangueira do que do Jardim Botânico e mais saudade das pessoas de lá do que do “meio artístico” carioca! Desde 64 que viver a Mangueira é, para mim, viver minha obra, minhas referências éticas e estéticas. Foi lá que revi uma série de posições e idéias sobre arte, criação e, por que não, engajamento do artista. Se não fosse a Mangueira, não estaria indo expor em Londres o tipo de espaço e obras que preparei. Deixo lá amizades, deixo amores, mas disse a todos que um dia volto porque meu lugar é na quadra, na escola, ao lado de Rose, Maria Helena e Tineca, com a rapaziada da ala “Vê se entende”. Cantei, dancei, bebi, fumei, amei até o sol raiar! Me impregnei do mito e do Rio de Janeiro – do meu Rio de Janeiro, deixo claro! – e agora estou pronto para o mistério da viagem. A hora de encarar o mundo.

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7 de dezembro Penúltimo dia antes do embarque. Tensão e excitação começam a aumentar. Tive que tomar uma série de providências desde que a confusão com o dinheiro do Itamaraty ocorreu. Ligar para as redações dos jornais e perguntar se não querem um “correspondente” foi uma idéia que me ocupou boa parte do dia. E me mostrou que realmente tenho que partir, porque com minhas declarações – e as distorções que a imprensa carioca fofoqueira faz – sobre temas como marginalidade e arte, sobre a favela, sobre política etc. estão me transformando em persona non grata no Rio. Creio que a confusão envolvendo o show de Caetano, Gil e os Mutantes na boate Sucata e minha bandeira “Seja Marginal, Seja Herói”, foi a gota d’água para minha “imagem pública”. Só aqui nesse regime repressor é que um radialista de São Paulo consegue inventar uma história nacional. Dizer que Caetano – mais “brasileiro” que ele impossível – cuspia na bandeira brasileira, sendo que nem há tal bandeira no espetáculo, e isso virar manchete de jornal, criar problemas pros músicos, fecharem a boate, é o fim! Parece que querem nos asfixiar aos poucos. Só consegui um aval d’O Jornal para mandar para eles algumas matérias que eu esteja interessado em fazer por lá. Disseram que se gostarem, pagam sessenta dólares por matéria. É uma grana que ajuda. Torquato também está preocupado com dinheiro. Temos medo de chegar na Europa e não conseguirmos nada. Mas vai dar tudo certo!! Por que não daria conosco? Nessas horas, a malandragem carioca tem que funcionar! Não podemos dar sopa com os gringos!! Eles estão mortos e nós somos vivíssimos!!!!!!

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8 de dezembro Como será viver sem a Mangueira depois desse quatro anos intensos? Sem o samba, sem Rose, a quadra da escola? Na Europa, será só trabalho. Será? Planos e planos sendo feitos e – contradição suprema – eu não queria TER QUE ir embora pra lá. Eles estão mortos. O novo nascerá aqui, no terceiro mundo, no Brasil. Mas não tenho mais condições de realizar qualquer trabalho minimamente inovador, libertário. A censura ao meu texto na reportagem de Mariza mostrou-me isso de forma definitiva. E a Mangueira irá comigo, para onde eu for. Ela está no meu corpo, na minha ginga, no meu plá, no meu trabalho e na minha memória. É o meu território e mito de origem. Amanhã embarco com Torquato. Reafirmo que não irei a Londres apenas para a exposição. É pouco pra mim. Pretendo ficar pelo menos um ano lá, tentar trabalhar, não sei. Tenho bons contatos, e quem sabe eu e Torquato não conseguimos nos inserir em outros grupos, outras transas de lá? Afinal, os Beatles, os Rolling Stones, estão na cidade. Nunca se sabe!! Caetano nos deu o endereço de um amigo que procuraremos quando chegarmos, que nos apresentará John Lennon. Tudo é possível! Leituras: Estou levando dois livros para a viagem. “Tristes Trópicos”, de Leví-Strauss, que Mario Pedrosa me indicou enfaticamente para ler, e “Memórias Sentimentais de João Miramar”, do grande Oswald, numa nova edição feita pelos Irmãos Campos. Dois livros que escolhi dentre os outros que estava querendo ler (Franz Fanon é o próximo da fila) porque falam de viagens, e do Brasil. De Brasis, aliás. Mergulharei em ambos e no diário. Que zarpe a barca dos loucos, Navilouca no coração choroso do terceiro mundo. Torquato já disse tudo numas das letras mais lindas: Mamãe mamãe não chore, a vida é assim mesmo eu vou me embora. Um grito preso na garganta. Um jeito de quem não se espanta.

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9 de dezembro Embarque na Praça Mauá. As despedidas foram breves, sem muitos passageiros para dizerem adeus. Me despedi da família em casa mesmo, não quis que ninguém viesse me trazer até o píer. Odeio melodramas. Torquato é que ficou mais triste, por deixar Ana aqui no Brasil com o país nessa situação caótica. Mas ela estará indo para Londres em breve para nos encontrar. Não tive problema nenhum em embarcar com a mutocona de maconha. Não revistaram nossas malas. Como fomos apresentados como artistas famosos, a tripulação nos trata muito bem. Estamos agora esperando o almoço servido no restaurante do navio. Estou escrevendo na nossa cabine, que é confortável no limite do que pode ser pela passagem que pagamos num cargueiro. Torquato está deitado na cama, folheando o “Miramar” de Oswald. Quando pegou o livro para ver, me confessou que sua poética fora diretamente influenciada pela leitura de Oswald durante esse ano. Não só nas citações explícitas nas letras tropicalistas – como “A alegria é a prova dos nove” / “brutalidade jardim” – como também na sua forma de enxergar o Brasil e a cultura brasileira. Disse que muitas idéias novas surgiram, o que aliás ocorreu também comigo. Apesar de já ter lido os seus manifestos modernistas quando jovem, só com a retomada de seus textos a partir dos irmãos Campos e da montagem de “O Rei da Vela” em 1967 é que realmente fui ler Oswald e fiquei assombrado com sua atualidade e com o encontro de forças com meus questionamentos. Não foi à toa que o invoquei no texto-manifesto da Nova Objetividade. Creio que tanto a mim quanto a Torquato – e muitos outros, principalmente os ligados ao grupo dos músicos tropicalistas – os textos de Oswald causaram um repensar profundo sobre a relação de nossa arte com o país. No meio de todo esse oba-oba e palhaçada de bananas e araras ao redor do tropicalismo, despertamos forças profundas de transformação na consciência brasileira. O tropicalismo, principalmente nas músicas e figuras performáticas de Gil e Caetano, conseguiu romper a camada de mediocridade que aprisiona a cultura brasileira frente ao mundo. A informação que produzimos é UNIVERSAL e nesse sentido pode ser lida/ouvida/vista (o verbovoco-visual dos irmãos campos!) por qualquer público. O sino toca no convés. O almoço está servido. → Volta do almoço com pequeno registro: conhecemos Gina, uma belga filha de embaixadores, que já quis ir logo sabendo se tínhamos algum “barato” a bordo conosco, já que éramos “artistas de vanguarda”! Hahahahaha! A viagem promete!

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10 de dezembro Estamos costeando o Brasil. Não há litoral mais lindo. Viajar de navio pelo oceano, ver o Rio de Janeiro, o país e sua costa se distanciando, rumo ao mar, é indescritível. A sensação de estar “indo embora” não seria a mesma em um avião, trancado num compartimento, sentado numa poltrona. No navio posso andar, circular, comer, conversar com as pessoas e, o melhor, ver o céu e o mar. Ontem à noite, junto com Torqua, Gina (uma figura!) e três marinheiros e oficiais subversivos (um deles lindíssimo, mas não estou aqui para isso! Guardarei energias para o que me espera na swinging London!!), fumamos um charro no depósito de limpeza e ficamos a noite toda no convés vendo um céu lindo e o mar escuro, falando as maiores maluquices, sobre assuntos típicos de pessoas que acabaram de se conhecer em tal circunstância. Fico cada dia mais surpreendido com o humor ferino de Torquato, que consegue fazer piada de quase tudo! Uma onda ótima. Foi uma decisão mais do que acertada viajar de navio. MIRAMAR: Ao voltarmos à cabine, Torquato dormiu e eu comecei a ler o “Miramar”. Não me lembrava da incrível agilidade e densidade do texto fragmentado de Oswald. Sinto que minha poética caminha muito para essa direção, da condensação de palavras, dos fragmentos, da escrita espacial. Nisso, é inegável a permanência dos meus anos de aprendizado concreto e neoconcreto. O construtivismo – ou ao menos seu princípio inventivo e utópico – é um dos meus nortes criativos até hoje, e creio que ele aparece na minha escrita. É irônico como tivemos que romper com os concretos de São Paulo para descobrirmos nossas aproximações anos depois. Como o interesse por Oswald, por exemplo. Se não fosse o tropicalismo, os trabalhos de Caetano e Gil e a confusão do nome da minha obra com esses trabalhos, talvez não voltasse tão cedo a ter contato com eles. Seus artigos sobre a obra de Oswald são certeiros, provocadores. É via a antropofagia e a invenção da linguagem moderna brasileira promovida por Oswald que todo o tropicalismo – o que eu entendo como Tropicália, pelo menos – se encontra, se condensa. Caetano e Gil, Glauber, Zé Celso, Torquato, Rogério, os irmãos Campos e Décio Pignatari, meu trabalho, todos tem como ponto em comum a radicalidade da linguagem, a invenção, a abertura de um novo campo de ação e consciência cultural no Brasil → Uma NOVA IMAGEM. Oswald nos protege, como a sua mãe o protegeu enviando ele para a Europa ao invés de assistir à sua morte no Brasil.

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11 de dezembro DIA Conversas com Torquato: Nesse marasmo da viagem de navio, eu e Torquato passamos tardes inteiras conversando sobre nossos trabalhos e perspectivas. Ainda mais frente ao que está acontecendo no Brasil e nosso futuro incerto na Europa. Ele me diz que não vê mais como investir na idéia de movimento tropicalista em 1969, o que eu concordo plenamente. Acha que o que poderia ser feito de experimentação no campo da música popular já foi executado durante esse ano que passou e que não tem composto mais nada com Gil e Caetano – tanto que os novos discos deles já têm algumas composições encaminhadas e Torquato não é parceiro de nenhuma. Aliás, Gil e Caetano eram os grandes parceiros dele e, sem ser cantor, Torquato ficou numa situação complicada, já que após as rupturas e brigas que o tropicalismo desencadeou, seus antigos parceiros como Edu Lobo, Vandré e outros não o procuram mais para compor (e nem ele aceitaria, segundo diz). Como os baianos já estão mergulhando em um trabalho cada vez mais autoral e menos coletivo, fica sem muitas opções de parceria. Crê ser inevitável uma dispersão do grupo – pelo menos de trabalhos em comum. Ele diz que há algum tempo – aliás desde sempre – pensa em fazer um filme. Que o cinema – ao lado da poesia – é que sempre foi sua grande meta de ação. Uma de suas idéias de roteiro é sobre uma história de amor em São Paulo, mas algo completamente inovador, com uma montagem que obedece a um ritmo de adição e não de linearidade, como ele estava tentando me explicar. Conversando sobre as últimas confusões que nos envolvemos no Rio, que foram desde a matéria de Mariza n’O Cruzeiro até o show na boate Sucata, vimos que estávamos sendo engolidos pelo “tropicalismo” que, ironicamente, foi transformado em “ismo” pelo Nelsinho Motta em um artigo que só o pessoal de Ipanema achou graça. Quando Torquato escreveu em outubro “Torquatália III” para o jornal do pessoal do Ivanzinho no colégio São Fernando, ele me disse que estava imbuído de negar completamente qualquer relação com esse “ismo” aprisionador e superficial, modista ao extremo. Era por isso que usou a minha expressão “Virar a mesa”, que escrevi no texto “Trama da terra que Treme”, publicado setembro passado no Correio da Manhã (o artigo falava sobre

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os compositores baianos). Pensamos a mesma coisa e não foi à toa que um pouco antes escrevi também “Tropicália”. Os dois textos são bastante similares na força e na radicalidade com que nos colocamos à margem desse modismo e das conversinhas “de vanguarda” do Rio de Janeiro. Agora – e sempre – nosso plá é outro. Penso em escrever quando chegar em Londres uma série de textos críticos sobre a Tropicália na música e nas artes plásticas. Torquato pode escrever sobre cinema. Quem sabe isso não dá um belo livro? NOITE Leituras: Minha leitura das memórias sentimentais de João Miramar está voando e ao mesmo tempo me deixando atordoado. Não consigo ler o livro e não querer escrever logo em seguida. Nisso o diário tem me servido bastante. A força do livro me absorve e o personagem me deixa atraído a INVENTAR. Li hoje os trechos da viagem para a Europa. O impacto foi imediato: me pensei MIRAMAR no MARTA navegando rumo a Tenerife→Barcelona→Paris. As descrições do litoral e do Rio de Janeiro são primorosas, um quadro cubista, fragmentado e veloz, com movimento e placidez simultâneos. Texto onde se enxerga COR nas palavras-paisagem. Transcrevo o trecho MANHÃ NO RIO: O furo do ambiente calmo da cabina cosmoramava pedaços de distância no litoral. O Pão de Açúcar era um teorema geométrico. Passageiros tombadilhavam o êxtase oficial da cidade encravada de crateras. O Marta ia cortar a Ilha Fiscal porque era um cromo branco mas piratas atracaram-no para carga e descarga. O que me impressiona nessa passagem da viagem de Miramar para a Europa é o grau de biografia que Oswald insere nesse trecho. Na introdução da edição que leio, está escrito que ele viajou em 1912, isto é, com 22 anos, para a Europa a bordo do navio Martha Washington. E que sua mãe morreu no período da viagem – em Miramar é o pai que falece. Não quero dizer

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claramente que MIRAMAR/OSWALD são a mesma personagem, ficção e vida real se misturando banalmente. Mas percebo que sua VIDA/OBRA são indissociáveis. A experiência de Oswald, suas próprias viagens, referências, visões, tudo isso é deglutido na sua escrita literária, criando um jogo complexo entre memória pessoal e memória ficcional. Quem viveu o que? O que foi vivido e o que foi criado? Que memórias são essas, de uma pessoa que nunca existiu → MIRAMAR? Creio que não importam mais tais fronteiras estáticas. VIDA/OBRA são ações contínuas, sem intervalos. Liame em que se estruturam passado presente futuro. MIRAMAR, assim como NIETSZCHE em ECCE HOMO, “conta sua vida a si mesmo” (o que faço nesse diário não é isso também?). Sua escrita é feita justamente na tensão dessa fronteira – como minha obra, de certo modo. Tanto na escrita de Oswald quanto nos meus trabalhos e escritos, existe uma busca sistemática de novas informações, de novas experiências, de destruição/proposição permanentes. Essas experiências na vida e na escrita podem ser fruto de comparações com o já visto e vivido, numa reflexão sempre projetada em direção a uma visão integradora e esclarecedora de seu EU e de sua TERRA. A impressão que tenho é que para OSWALD/MIRAMAR era necessário sair do Brasil para trazê-lo de volta. Será que é isso que ocorrerá comigo? Não sei. Cada dia mais vejo, literalmente, o Brasil distante. A época de Oswald, apesar de todas as guerras, não tinha o fascismo dos generais no poder como temos hoje. Por enquanto, essa viagem de navio é uma ida. Sem plano prévio de volta. MADRUGADA Depois de mais uma madrugada de fumaças e fumaças com os “subversivos” do barco, ao voltar à cabine para dormir me ocorreu um início de texto poético me apropriando/recriando MIRAMAR. A costa Brasileira depois de um TIRO DE CANHÃO caiu como um feixe cuja cor de sangue jorrava das ruas Presidente Vargas do Brasil. O mar oleoso era enlameado de corpos torturados cujo vermelho queimava os arranha-céus e as nuvens negras que nasciam no verde-oliva dos quartéis.

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OSWALD/MIRAMAR/OITICICA navegando vidaobramemória em um BRASIL que nos expulsa e nos atrai em linguagem do terceiro primeiro quarto quinto mundo que se esvai frente ao painel caleidoscópico móvel e fragmentado de uma eterna viagem. MIRAMAR vive o tempo do Eu-Afeto, um AFETOTEMPO descritivo apenas no tempo presente do narrador. Tudo no livro se passa através dos seus olhos, da sua boca. Os outros personagens não agem. Não há ação propriamente dita. Apenas escrevem cartas pra serem lidas, fazem discursos para serem ouvidos. Ele está sempre presente; lembrando. Um tempo que une o agora e o afeto sobre essas memórias → um TEMPO MIRAMAR. Os Portos de meu país são bananas negras Sob palmeiras Os poetas de meu país são negros Sob bananeiras As bananeiras de meu país São palmas calmas Braços de abraços desterrados que assobiam E saias engomadas O ring das riquezas Brutalidade jardim Aclimatação João Miramar. Minha terra tem palmeiras Onde sopra o vento forte Da fome do medo e muito Principalmente da morte. Torquato

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12 de Dezembro DIA Terceiro dia embarcado. Já faz um tempo que vemos apenas mar. Uma sensação de liberdade e ao mesmo tempo de abandono. Penso em todos que estão no Brasil, aquela ilha que ficou pra trás, ao menos temporariamente. Hoje de manhã conversei com Torquato e, em meio às brincadeiras de sempre sobre os outros passageiros do navio, ele me disse algo que fiquei pensando e registro aqui: Torquato acha que o Brasil é um país sentimental. Que a ditadura militar é uma doença que quer matar esse país sentimental. Sua prova para a afirmação é a verdadeira religião que é a música popular dentre a população brasileira. Todos ouvem música popular, o cancioneiro mais triste e denso das Américas, quiçá do mundo. A idéia do Brasil como país sentimental, para mim, é um pouco distante. Os quatro anos que passei na Mangueira e nos outros morros e subúrbios do Rio me mostraram que o Brasil é um país do individualismo. O burguês jamais se dignará a ir a uma favela, a conferir as condições em que os mais pobres moram. E isso na sua própria cidade! (Um dia, a divisão social radical que cresce na cidade se tornará endêmica. Pobre e ricos se verão imersos em meio a uma guerra violenta sem fim. Será o início de uma revolução social?) O sentimentalismo que Torquato enxerga nas músicas e na cultura popular brasileira vem muito mais de uma condição de lamentação do que de algo positivo, compreensivo. Repito o que tenho dito: após 64, após ver aquelas pessoas aos milhares nas ruas para defender “a moral e os bons costumes” e um golpe militar, cheguei à conclusão que o Brasil é um país bem fascista. NOITE Após três dias lendo intensamente Oswald, resolvi folhear os “Tristes Trópicos” de LeviStrauss. Li seu capítulo “Como se faz um etnógrafo”, em que LS narra sua formação entre a geologia, o marxismo e a psicanálise até atingir a etnografia. Indo fazer essa exposição em Londres – a maior e talvez a última de minha vida – me pergunto qual foi minha trajetória até aqui. O que tive pelo caminho, quais são minhas bases formadoras. Os anos neoconcretos, a libertação do quadro, a subida à Mangueira, PARANGOLÉ, a Nova Objetividade,

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TROPICÁLIA, Supra-sensorial, ÉDEN, são pontos decisivos de formação da minha trajetória artística e criadora. Ainda em LS, sua defesa da etnografia me atrai, dentre diversas questões, no sentido em que sua postura ética oferece a possibilidade de reflexão sobre o outro, preocupação central na minha obra desde o desenvolvimento dos PARANGOLÉS. Mas não o outro senso comum, em que a simples alteridade entre autor/espectador crie um pseudo-estranhamento em uma obra “participativa”. Disso está cheio por aí. O outro em minha reflexão é parte estrutural da obra. Sem ele, não há obra. Ela é um “vir a ser”, em que só se constitui enquanto ATO no momento em que há a intervenção do espectador. A ação é a pura manifestação expressiva da obra. A obra requer aí, a participação corporal direta; além de revestir o corpo, pede que esse se movimente. O próprio “ato de vestir” as capas dos PARANGOLÉS, por exemplo, já implica uma transmutação expressivo-corporal do espectador. Os PARANGOLÉS, parados, no chão ou na parede, não são nada, são pedaços de pano e plástico → OBRA-FETO. Tornam-se OBRAVIDA apenas com a inserção do outro, daquele que lhe devora enquanto criador já que tira de você o dom iluminado da autoria absoluta. É esse outro – cuja função é me arrancar do papel de criador, me deflorar enquanto “dono” da obra – que busco em meu trabalho. Esses deslocamentos, minha vida na Mangueira e meus trabalhos que colocam o homem e sua relação estrutural com questões relacionadas à experiência e ao sensível no mundo – Mangueira/London – me aproximam da descrição do ofício do etnógrafo feita por LS: “Suas condições de vida e de trabalho o isolam fisicamente de seu grupo por longos períodos; pela brutalidade das mudanças a que se expõe, ele adquire uma espécie de desarraigamento crônico: nunca mais se sentirá em casa, em lugar nenhum, permanecerá psicologicamente mutilado”. Sou esse etnógrafo. Sou aquele que, pelas condições de vida e trabalho, me isolei fisicamente de um grupo. Sou quem se expôs a mudanças brutais. Agora, navegando nesse barco rumo ao velho mundo, me jogo no desarraigamento crônico. Tenho consciência da morte lenta do “Nacional” em mim e na minha arte. Sem pátria-mãe ou escolas, sou psicologicamente mutilado. Dentro dessa cabine, nessa cama beliche, de cuecas entre os cobertores, indo embora do meu país e querendo chegar em outro para viver uma nova vida, afirmo que o mundo me parece pequeno e feio. Onde está o sonho do novo mundo? Do 3°, 4°, 5° ou dessa obsessão infantil? O mundo é maior do que se pensa, mais perdido, é 2/3 de mar, animal e só, vazio de humano.

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13 de dezembro O dia amanheceu terrível. O mar revolto e o tempo cinza fez com que encarássemos nossa primeira tempestade. Eu e Torquato, marinheiros de primeira viagem, ficamos tensos com ondas, barulhos, desequilíbrios dos objetos. Após um café da manhã péssimo pelas náuseas, voltamos à cabine e tentamos ler, cada qual quieto em sua cama, mas até isso era difícil. Nossas conversas, cada vez mais escassas porém mais profundas, tem girado muito ao redor da questão dos nossos trabalhos e dos trabalhos dos que ficaram no Brasil. Uma espécie de balanço do ano mais intenso de nossas vidas: 1968. E não há lugar melhor para isso que um navio no mar em meio ao nada. Falamos bastante hoje sobre a questão do sucesso popular que engoliu Caetano e Gil e também do papel que Rogério – o único preso e torturado de todos nós – ocupou nessa história toda, nossa aproximação gradual com a idéia de marginalidade etc. Ele foi o primeiro de nós a deixar clara a diferença entre os trabalhos dele, meus, de Torquato, de Wally, em relação aos trabalhos de Caetano, Gil e Gal, capitaneados por Guilherme Araújo. Esse, aliás, tem uma personalidade realmente complicada. Não afirmo aqui que seja um mau-caráter, nunca foi comigo, mas sim que sabe muito bem o que quer e não mede esforços para atingir seu objetivo. Não foi à toa que modernizou completamente o papel do empresário musical no Brasil. Acabou com o amadorismo e implementou um modelo que cuida do artista full time, de suas declarações, repertório, capas, roupas, aparições públicas etc. O que acho brilhante, pois conduz os trabalhos de Caetano e Gil para um patamar de OBRA-TOTAL que se torna OBRAABERTA de significados quando entra em contato com o público. Mas essa postura profissional de Guilherme acabou isolando um pouco os dois do resto do grupo (que eu aliás nem fazia parte em seu começo de formação no Rio e em São Paulo), principalmente quando nós, eu e Rogério, investimos pesadamente na questão da marginalidade carioca, não só do ponto de vista estético, como existencial. Rogério me disse uma vez que tão doloroso quanto a prisão e as sessões de tortura foi quando, na sua saída, as pessoas “cultas e elegantes” da cidade lhe deram as costas. Ele tinha se tornado “sujeira” para a rapaziada do Jangadeiros e do Zepellin e para as moças de família “liberadas” que, antes, amigo pessoal de Vinícius de Moraes, Caetano Veloso, Glauber Rocha etc., davam para ele facilmente nas noitadas cariocas. Assim, com minha acolhida, ele acabou encontrando mais solidariedade – mais humanidade, eu digo – nos meus amigos da Mangueira, Cancela, Mangue etc. Nesses seis meses em que ele ficou

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morando lá em casa, aprendi muito com Rogério – principalmente em minhas leituras e escrita – e ele teve em troca amizade, afeto, alegria – e loucura – de um grupo de amigos. Nunca mais me esqueço de uma frase que ele me disse, numa discussão sobre os nossos trabalhos e o papel de vanguarda que poderíamos estar exercendo naquele momento: “A essência do tropicalismo é um desejo amoroso de modernidade para o Brasil”. Era como se todos nossos esforços em prol de uma arte brasileira e universal, transgressora e propositiva, desarticuladora e construtora, fosse uma prova de amor profundo ao país (o Brasil sentimental de Torquato?). Como OSWALD/MIRAMAR, a prova dos nove, a alegria de estar à margem e enxergar melhor o centro estético/estático da cultura brasileira. Uma postura, antes de tudo, filosófica sobre a modernidade brasileira e seus dilemas. Em apenas um ano e meio, dois anos, a reunião de trabalhos em torno do tema da INVENÇÃO = (TROPICÁLIA) configurou um dos movimentos mais modernos do país porque veio no bojo da inteligência brasileira e não de ideologias de A, B ou C. Não era de esquerda nem de direita, era libertário. E num país como o Brasil de hoje, isso foi a atitude mais revolucionária que poderia ser tomada. Rogério, ainda, e foi Torquato quem lembrou isso, sempre falava que o “tropicalismo”, a massa disforme que nos fagocitou, explode no país através da cultura de massa, isto é, dos festivais. Foram Caetano, Gil, os Mutantes etc, que cristalizaram no imaginário do brasileiro a referência estética do tropicalismo. Referência essa que muitas vezes eu, ele ou Torquato não compartilhamos. Mas a emergência desse processo via cultura de massas é mais importante do que os problemas que ela traz. Ela mostra que, de alguma forma, as ações dos músicos tocaram o coração dessa cultura de massas brasileira. E aí vem o principal ponto levantado por Torquato, que realmente eu nunca tinha pensado com tanta clareza, e que Rogério dizia para ele num papo no Solar da Fossa no começo do ano: nós, os “tropicalistas”, ocupamos todos os níveis de produção cultural de uma cidade “feudal” como o Rio de Janeiro. Como “movimento”, o tropicalismo se espraiou pela música, pelo cinema, artes plásticas, imprensa, moda, televisão, propaganda, teatro. Foi um dos primeiros movimentos de massa no país com uma proposta de quebra do cerco de bom gosto que os intelectuais cariocas detinham, ao determinarem a qualidade do sambista do morro, mas querendo distancia da realidade social do mesmo, desprezando os fenômenos populares como Chacrinha, Roberto Carlos etc – tudo isso estrategicamente incorporado e valorizado pelo tropicalismo. Além disso, uma forte referência teórica e criativa surgia nas nossas declarações, tínhamos escritores de mão cheia como os próprios Rogério e Torquato, os irmãos Campos

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dando respaldo e seriedade frente aos críticos. Ou seja, quebrou-se também um certo funcionamento em equilíbrio da divisão intelectual do trabalho na cidade. Com isso, tropicalistas tornaram-se vítimas de ataques diários na imprensa. Stanislaw Ponte-Preta, vulgo Sérgio Porto, por exemplo, comprometido com uma visão estática de estética, de feio e bonito, de certo e errado, bateu burra e sistematicamente no tropicalismo. E com o apoio de muitos outros que se mordiam com as “ousadias” dos Baianos. “Porque nós já chegamos com a equipe completa”, dizia Rogério sorrindo triunfante para a irritação dos outros nas mesas de bar quando perguntavam, sacanamente, por que trabalhávamos em bando. NOITE A tempestade permanece. Um dia praticamente negro nos deixou presos na cabine. Leituras leituras leituras. Os textos de Lévi-Strauss me entorpecem de imagens fantásticas. Fico impressionado com os dois livros MIRAMAR/TRISTES TRÓPIQUES porque são literaturas visuais, quadros pintados em cores ora vivas, ora mortas, ora traços geométricos, ora cores impressionistas. Engraçado como, sem trabalhar com o quadro na minha obra plástica, enxergo quadros nos textos que leio. Mas não são quadros propriamente ditos. São as cores. Com Paul Klee aprendi que a arte não reproduz o visível, mas torna visível. As cores já estão nas coisas. Basta darmos vida a elas, o sopro do criador. As cores estão no mundo, só é preciso vê-las – cores do mundo minha nega, como diria Paulinho da Viola. Há no livro de LS uma longa passagem primorosa, em que ele, no navio que o levava ao Brasil, descreve numa explosão de visualidade o momento de um pôr-do-sol. Sua forma me remeteu aos meus escritos antigos sobre cor e estrutura na pintura e nas artes plásticas. É quase um tratado sensitivo sobre a cor. Reproduzo um dos trechos de LS: “Inúmeras redes vaporosas surgiram no céu; pareciam estendidas em todos os sentidos: horizontal, oblíquo, perpendicular, e inclusive espiral. Os raios do sol, à medida que iam declinando (qual um arco de violino inclinado ou reto para tocar cordas diferentes), estouravamnas sucessivamente, uma, depois outra, numa gama de cores que pareciam propriedade exclusiva e arbitrária de cada uma. Ao final houve apenas tonalidades confusas e misturando-se umas às outras, tal como, numa taça, lentamente a se fundir apesar de sua aparente estabilidade”. (sublinho meu)

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→ as cores com “propriedade exclusiva e arbitrária de cada uma” é a definição perfeita para minha idéia de cor no espaço-tempo. Minha crise com o quadro nunca envolveu uma crise com a cor, ao contrário. Em toda minha obra, COR é o elemento central da sua reflexão estética. Nos METAESQUEMAS a cor transbordou pelo quadrado, paras as bordas, molduras. Tornou-se depois uma cor só, MONOCROMÁTICOS Vermelho/Vermelho → a obsessão pelo BRANCO SOBRE BRANCO de MALEVITCH. Amplio o raio de ação: descubro os BÓLIDES e dou forma a cor-essência, com suas propriedades exclusivas e arbitrárias em cada compartimento inusitado. Nos BÓLIDES se pegava a cor, se tocava a cor, manuseava-se a cor, ela era um fenômeno físico, e não meramente visual. Ao mesmo tempo, parti radicalmente para a cor no espaço: Relevos, Núcleos, PENETRÁVEIS, PARANGOLÉS davam outra forma estrutural para a cor, cada vez mais movimento, cada vez mais MUSICAL. Para mim, a cor tem que se estruturar assim como o som na música. Ela é veículo da própria cosmicidade do criador em diálogo com seu elemento → o elemento primordial do músico é o som; do pintor a cor – não a cor alusiva, “vista”, mas a cor-estrutura, cósmica. Mas o diálogo entre o pintor e a cor cria sua ordem, que não é unidade, mas pluralidade – o exclusivo e o arbitrário simultâneos de LS. Esse caráter da cor nasce de uma necessidade existencial, que, por ser existencial, supera ou se eleva acima do cotidiano, para emprestar à vida existencial um clímax, um sopro de vida. O artista deve, assim como LS fez ao observar um banal por do sol, brincar com a cor. É justamente desse brincar, fora das estruturas rígidas do mero contemplar visual, da busca da espacialidade da cor na sua própria estrutura (o BRANCO SOBRE BRANCO) que surgirá uma nova ordem desconhecida, uma ordem plural → A COR e sua duração ESPAÇOTEMPO. Noite breu e silenciosa. Queimo uma ponta antes de tentar dormir. O dia inteiro passou como se estivéssemos sozinhos no mundo. O que nos espera do outro lado do mar?

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14 de Dezembro DIA Ao estarmos embarcados, sem alternação de referências no cotidiano a não ser o prato do almoço e o clima atmosférico, somos arremessados a um processo constante de autoreflexão. Um fluxo interminável de MEMÓRIA/PROJEÇÃO. A introspecção que eu e Torquato estamos passando por aqui é às vezes sufocante. Pensamos e falamos muito sobre o Brasil, o fim do mundo, a geléia geral que suas letras tão bem traduziram. Torquato diz que era só pensar nas ruas do Rio, nas misérias do Piauí, nesses contrastes gritantes que formam o país e saíam as letras. Os extremos do tropicalismo traziam uma espécie de síntese das contradições de se criar uma cultura moderna e autônoma no terceiro mundo. O Brasil é de certa forma essa síntese de povos, raças, costumes, onde o europeu fala mas não fala tão alto, a não ser nos meios universalistas acadêmicos, que já não são “criação cultural”, mas sim arremedo. A criação, já mesmo em Tarsila e principalmente em Oswald de Andrade, possui uma carga subjetiva que muito difere do racionalismo europeu, é o nosso “plá”, que os europeus vão ter que engolir, aliás com gosto porque estão cheios de tudo e parece que a civilização saturada está secando a imaginação deles. Em MIRAMAR, Oswald nos mostra isso de forma astuciosa, invertendo o quadro do deslumbramento acadêmico aos cânones europeus, para narrar de forma vanguardista radical as histórias mais prosaicas possíveis de um jovem burguês no Brasil. A fazenda, os grêmios literários medíocres, a vida tacanha de uma cidade que ainda não era metrópole, os intelectuais vazios, as empresas falidas, um casamento infeliz, um amor vulgar e adúltero – tudo filtrado no mais alto e elaborado estilo modernista, numa escrita fotográfica e fragmentada. Ir até a Europa para seus personagens era como ir na esquina. Todos falam francês, lêem latim, todos são cultos, porém profundamente brasileiros, caricatos, provincianos. As MEMÓRIAS SENTIMENTAIS são memórias de quem? De MIRAMAR/OSWALD? Tudo acontece no tempo presente ao longo no livro. A memória ali é recusada como fluxo linear e historiográfico, abrindo a fenda de um tempo permanente, uma espécie de bruma em que MIRAMAR se vê envolto, contando para si mesmo suas “memórias”, realizando uma espécie de arquivo sentimental de si mesmo → ARQUIVO COMO AFETO, organizando numa narrativa de flashes sua ascensão e queda até a morte de sua ex-esposa e a entrevista final,

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anunciando sua impossibilidade de continuar narrando por “razões de estado”. Porque não vai continuar vivendo. Ou porque o passado deu a volta completa e atingiu o momento presente do relato memorial. MEMÓRIAS SENTIMENTAIS como um balanço da vida. A memória e a sentimentalidade, o eu e a lembrança bloqueiam o discurso: MIRAMAR não vai mais continuar suas memórias. A afirmação do silêncio rompe com a busca de uma história pessoal e assim se desvencilha definitivamente da vontade incontrolável de memorialismo. → Leví-Strauss em TRISTES TROPIQUES também escreve, de certa forma, uma memória. Ou melhor, o relato (auto)biográfico de um corpo em viagem, um corpo em movimento pelo mundo – como MIRAMAR/OSWALD/(HO?) – narrando o que viu fez e ouviu. Mesmo colocando em dúvida o valor de suas memórias – “uma recordação tão pobre merece que eu erga a pena para fixa-la?” – LS faz um minucioso relato de MEMÓRIAS-SENSAÇÕES → os cheiros, as cores, os sons, detalhes de uma tempestade ou de um pôr do sol, recordações ficcionais de afetos que são impossíveis de serem narrados sem a fabulação, devido ao seu alto grau fugaz de EXPERIÊNCIA: um tempo em que a vida “não interessa”, mas sim o que contamos dela. MIRAMAR conta sua trajetória entre mortes – a da mãe, a do pai e a de Célia. LS contra sua trajetória a partir de descobertas – do novo mundo, dos trópicos, dos povos. Um, sai do Brasil para a Europa para tornar-se mais brasileiro que nunca. O outro, sai da Europa para o Brasil para tornar-se mais europeu que nunca. Nesse navio, saio do Brasil para Europa como MIRAMAR, mas não busco ser mais brasileiro. O mito da nação morre lentamente dentro de mim. NOITE - hoje um dos oficiais “subversivos” que fumam conosco de vez em quando nos disse que chegaram pelo rádio do navio notícias do Brasil da qual os seus superiores não os permitiram ter acesso. Disseram que deve ser coisa grossa. Será que seqüestraram outro embaixador no país? O crescimento da guerrilha urbana pode ser a salvação da esquerda – só uma revolução violenta salvaria aquela bosta! – mas ao mesmo tempo pode ser a pá de cal na classe artística e nos intelectuais, cada vez mais acuada por supostamente serem “colaboradores do terrorismo” tupiniquim. Torquato, que está cada dia mais estranho, calado, ficando pensativo com a proximidade da chegada, disse que pode ser alguma coisa pior do que um seqüestro. Vamos ter que esperar chegar a Londres para ter notícias do que acontece no Brasil.

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15 de Dezembro DIA A Europa cada dia mais próxima. Mais dois dias (ou duas noites?) e desembarcamos em Gênova para pegarmos o trem rumo a Londres. Passei o dia pensando na exposição da Whitechapel. Em como tudo teve início na experiência decisiva de APOCALIPOPÓTESE, Aterro do Flamengo, agosto de 1968. Torquato, que estava lá vestindo o PARANGOLÉ CAPA-1, disse pra mim que esse foi o evento que mostrou para ele os caminhos diversos que o grupo do tropicalismo ia seguir. Caetano e Gil, Guilherme Araújo, o povo da música, não compareceram ao evento organizado por Rogério e por mim. A Mangueira e Jards Macalé – um pouco ressabiado, mas que adoro – estavam lá. E John Cage, levado por Esther Stockler, dava o toque alucinado ao que nos propúnhamos. A exposição/experiência que estou indo montar em Whitechapel decorre do evento no aterro do Flamengo, da criação de liberdade no espaço dentro-determinado, intencionalmente “naturalista”, aberto como o campo natural para todas as descobertas: o comportamento que se recria, que nasce absoluto: na APOCALIPOPÓTESE as estruturas tornavam-se gerais, dadas serem abertas ao comportamento coletivo-casual-momentâneo. Em Londres vou propor que o próprio comportamento seja constituído na experiência do momento do contato com a obra. A REINVENÇÃO de um estado de sensibilidade – pisar na terra, tocar na palha, cheirar incenso, mexer na água, deitar num Ninho. Na montagem da exposição, ainda no Rio, a idéia do CRELAZER e do ÉDEN me tomaram de assalto, na medida em que as obras são a busca desses estados sensitivos de não-separação entre obra-criação-lazer-prazer. Não ocupar um lugar específico no espaço ou no tempo, assim como viver o prazer ou não saber a hora da preguiça, é e pode ser a atividade na qual se entrega o “criador”. E todos nós somos, no ÉDEN, criadores em potencial. A criação de um estado de sensibilidade é em si um processo de criação artística, de fruição estética. Sem “obra” para ser vista ou para “participar”. O espectador e seu prazer são os pólos de construção do evento estético. Ninhos, Capas, Penetráveis, Núcleos, todos são plataformas de lançamento do estado CRELAZER → é o criar do lazer ou crer no lazer? Talvez os dois, talvez nenhum. A burrice que predomina na crítica da arte nunca compreende isso, porque foram fulminados pela indiferença do prazer, do lazer ou dos supra-estados cannabianos. CRELAZER é a sensibilidade aberta e visceral do fumo, do

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tato-toque na pele sensível, das sensações de preguiça e prazer que permanecemos em estado cannabiano. Para além disso, o PRAZER-LAZER é lícito como ler um jornal deitado ou beijar meu amor na boca com sofreguidão. Mas a meditação do lazer é muito mais que isso, porque talvez seja a onda, como a do mar, desse mesmo mar que navego e me arrasto pra dentro do mistério, para fora do medíocre. A meditação do lazer é criada pelos ventos sobre ela, que são vistas-vividas em tantos modos quantos os que nascem de mim, de você e do mundo grande de gente que não vemos, mas que existe. Quero viver, mas não quero somente crer! Todos precisamos do prazer no nosso cotidiano. Não quero que a vida me faça de otário! Prefiro a salada da vida, o esfregar dos corpos, O LAZER e o PRAZER de estar vivo. A exposição de Londres será definitiva. Creio que depois dela não terei mais como propor ou montar outra. Whitechapel pode ser minha última aventura no campo das galerias. A aventura final do começo de uma nova era, fora dos muros, fora da critica, fora do Brasil. NOITE Sentirei saudades de Gina e da rapaziada “subversiva” do navio. Em meio a tantas dúvidas e constatações de que o Brasil é, por enquanto, um país sofrendo de um câncer (Glauber visionário) degenerativo, conheci pessoas que ainda estão vivas, abertas, sorridentes. E isso não é uma constatação feliz de um “maconheiro” com “os seus” num grupo fechado. Não! As conversas que tivemos foram importantes no clima de relaxamento que a cannabis proporciona. Um estado-prazer que deixa os afetos mais aguçados, pela irmandade que se cria momentaneamente após seu uso. É impossível não associar essa sensação aos meus Ninhos e Tendas, o CRELAZER que falei ontem. Gina é uma típica burguesa da Zona Sul, filha de embaixadores, fala francês e inglês fluentes, mas foi a primeira a querer se aproximar de nós, mesmo que fosse com a desculpa do “barato”. Mesmo assim, posso dizer que “nos conhecemos” nessas noites e tardes que conversamos bastante. Todos dizem seus planos e o que ficou para trás numa viagem de navio. É porque você está indo. Já saiu de um lugar e ainda não chegou a lugar nenhum. Então, sua vida está em suspenso. MIRAMAR e TRISTES TROPIQUES mostram isso. O mar como figura constante das suspensões, dos planos feitos e desfeitos, das relações fortuitas ou duradouras. Os marinheiros que ficaram conosco mais tempo – Sérgio e Mauro – são brasileiros que têm constantemente a oportunidade de viajar pelo mundo, achando

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a sorte grande aquele emprego relativamente estável e tranqüilo. Fora os esporros que precisam ouvir dos superiores, podem circular e conhecer pessoas e conversas novas – como nosso caso. Acho que Gina se interessou por um deles, mas não vi nada acontecendo. Torquato ficava bem relaxado nesses momentos de papo coletivo. Mas aos poucos ele está ficando sisudo, mais sério. Nem foi comigo encontra-los da última vez. Prefere agora ficar na cabine lendo – “pela enésima vez”, como ele mesmo diz – os livros de poesia de Drummond. Tem estado obcecado com o “Poema de sete faces”. Reescreve o poema mudando os versos, inserindo outros... Torquato talvez sofra com o fim de suas parcerias na música, mas na Europa ele tem a possibilidade de mergulhar de vez na escrita, principalmente na Poesia. De todos nós, creio ser realmente o único poeta, no sentido literário do termo. MADRUGADA A escrita constante do diário me deixa vazio. Guardo todas as conversas e reflexões para o papel do caderno vermelho que carrego. Como MIRAMAR, escrevo minhas memórias? Ou anoto o tempo presente que, em um futuro breve, torna-se mais um caderno guardado em meu arquivo de tantos outros cadernos, papéis e recortes? Minha relação com a memória é complexa. Já pensei algumas vezes nisso, nessa minha pulsão para o arquivamento sistemático de tudo que leio-escrevo, cópias de cartas, papéis carbonos. Como agora, nesse diário. Um cotidiano sem graça forneceu o tempo-espaço ideal para um aprofundamento de certas questões que venho elaborando há alguns anos. Escrever diariamente é escrever sobre você mesmo, mesmo que fale dos outros. E mais: um diário como esse não é para ser lido por ninguém durante minha vida. Escrevo exclusivamente para mim → para minha memória e posteridade; fixar o fugaz, registrar o pensamento ao ler um livro, um trecho, ouvir um som, ver o tempo virar. As MEMÓRIAS SENTIMENTAIS de um homem que abandona os TRISTES TRÓPICOS. E assim, vou me dobrando pelo mundo, costurando no mesmo processo vida/obra minhas experiências históricas e minhas experiências de afeto. O AFETOTEMPO que descubro no dia-a-dia e que me alimenta no ímpeto de ser fluxo e arquivo, caos e cosmo. Amanhã avistaremos o continente europeu. Saudades da Mangueira. O Brasil sou eu.

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16 de Dezembro (último dia de viagem) DIA Avistamos a Europa, via o sul da Espanha. Lembro MIRAMAR avistando as luzes de Tenerife. São oito dias de viagem contando com hoje. Adentraremos o Mediterrâneo em direção à Gênova. Não passaremos nem uma noite lá, porque quanto mais rápido chegar à Londres, mais rápido marco a data da exposição e libero meu dinheiro na Embaixada. Os oficiais continuam dizendo que algo aconteceu no Brasil em relação ao governo militar, mas que eles ainda não foram prontamente informados. Ficamos tensos, claro. Todos os “nossos” estão lá. Fico pensando o que acharei de Londres. Será que terei a mesma decepção que Leví-Strauss teve com o Rio de Janeiro, a Baia de Guanabara como boca banguela? Ou verei a Londres de MIRAMAR, com “Elevadores klaxons cabs tubes”? Tenho absoluta segurança de que, no mínimo, serei mais livre e feliz do que estava no Brasil. Em pouco tempo, muitos irão para lá e a chance de produzirmos algo realmente vigoroso fora do país é grande. Lygia em Paris sempre me passa em suas cartas uma dupla impressão: solidão da vida no exterior compensada pela explosão do trabalho concentrado. É isso que busco. Há dezenas de Universidades que posso tentar obter bolsas de apoio, vamos ver. E além de tudo, a Europa é mínima – perto do tamanho do Brasil. Circular por ela não será problema. Chegamos a um consenso: não agüentamos mais a comida do Navio. A terra firme é, ao menos para os nossos estômagos, mais que esperada. NOITE O diário tornou-se vício e prisão. Percebo que sua escrita – fato que não atingia na adolescência – não é controlada por mim, mas pelas circunstâncias do registro, do vivido. Não são “memórias”, pois as anoto logo após o fato, ou então nem as vivi. São mais reflexões sobre o que pensei, o que penso, o que quero pensar. Temporalidades simultâneas em fluxo fragmentado e sensorial constante. Quanto mais falei de mim, nesse caderno, mas me esvaziei, mais deixei nele o que não preciso mais “carregar”. Essa viagem de navio para Europa “está aqui”, na escrita. Não preciso mais dela para nada, apenas para manter-me eternamente informado de que

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registrei, de que ela está “sob meu controle”. Controlar a memória para descontrolar a vida. Registrar para experimentar livremente. Meu arquivo é um afeto por mim mesmo. Esse diário é uma prova de amor e um espaço de embate. MIARAMAR perdeu a batalha para sua memória sentimental e ficou mudo com a morte de Célia. Minha mudez está dobrada e retorcida. O diário permitiu que eu escrevesse e falasse minhas memórias sentimentais dessa viagem, mesmo com a morte do Brasil. Quero inventar um novo mundo, e para isso preciso das memórias desse mundo que ao mesmo tempo deixo pra trás e que nunca sairá de mim. TRATADO SOBRE O DESTERRO Eu vim? Eu fui? Eu vou? Eu sinto saudades de onde não pisei Pois sei do mar que leva A vida como Embarcação Cara vela Eu sou óbvio viajante De mão dadas com SÃO SEBASTIÃO O desterro + a solidão → o colono português / fruto podre brasileiro na batida de um violão. A busca pela vida de costas pro mar: porto de um eterno navegar Que OSWALD/MIRAMAR de tantas formas amarram em poesia que um dia, Ouvi assoviada no ar. Desterro: saudade do que não vi inteiro.

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17 de Dezembro NOITE Chegada à Gênova. Fim da viagem. Nos despedimos de Gina e dos outros prometendo encontros e loucuras pela Europa, assim que pudermos. No desembarque, lembrei da maconha, porém mais uma vez não nos revistaram. Perfeito. Pedimos informações, comemos finalmente uma refeição decente – porém cara! Dois estrangeiros otários! – e partimos para a estação de trem. Estamos no trem para Paris. Lá, pegaremos um barco e atravessaremos o canal da Mancha. Torquato, para variar, dorme ao meu lado no vagão. Começo a ficar preocupado com nossa convivência em Londres. Ele parece ainda muito apegado ao Rio, a Ana, ao Brasil etc. E eu já estou em outra. Quero mais é me desapegar de tudo. Espero não termos problemas mais sérios nessa temporada juntos. A Europa é limpa, calma, clara, e velha. Mesmo vendo apenas sua noite e madrugada, não há como não notar os cheiros, palavras e sons novos que invadem meu universo. A primeira coisa que pensei, ao perceber o que é estar aqui no velho mundo (foi quando andávamos pela rua em Gênova e vimos casas e pontes do século XII!), é que o mundo é tudo uma coisa só, pequena, e o terceiro mundo é mais uma coisa dentre tantas, e a América Latina dentro do terceiro mundo e o Brasil dentro da América Latina e do terceiro mundo é menor ainda. Caixas dentro de caixas dentro de caixas que ninguém quer abrir. E mesmo assim, é tudo o que nos resta, tudo o que podemos aspirar, nosso labirinto histórico que, um dia, teremos que enfrentar. Nosso “Tristes Trópicos” particular. Encerro esse diário. A escrita me envenenou. Por que não ser um artista plástico e um escritor? Algo me move para além do meu controle na hora da escrita, até uma região criativa que não atinjo de forma simples, mas que me leva a uma ação permanente de invenção através da linguagem. Sinto vontade de escrever sobre tudo, a Tropicália, a Mangueira, minha infância, meu pai. No diário, vivi a possibilidade do balanço, das memórias que não eram um passado → memórias sentimentais de CORPO PRESENTE. Como Oswald; como Miramar; como LevíStrauss; como EU. Nunca mais vou parar de escrever.

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sub sub solo sub terra sub mundo o subdesenvolvido embaixo da terra como rato a sub América sub terrâneo desconhecido terra sub fraseado sub mar sub ir ou descer no hemisférico sul sub liminar desejo de vencer e construir sub alterno que faz sua tarefa de cobrir de terra o presente sub térmico termômetro sub altura sub estatuto sub status sub erguer sub mergir pelas matas ou nas ondas do mar sub lime a tua música escondida sob o sub véu sub way

Hélio Oiticica Rio-Gênova-Paris-Londres 17 de Dezembro de 1968.

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Post scriptum ou Carta para Gaspar (conversações sobre literatura e posse) Salve mestre: FATO: Em 1968 Hélio Oiticica foi convidado pelo crítico de arte inglês Guy Brett para expor seu trabalho na Whitechapel Gallery, em Londres, durante o verão de 1969. Convite aceito, Hélio viaja no dia 9 de dezembro ao lado de Torquato Neto em um cargueiro italiano para a Europa. Na viagem, pode ter escrito um diário. Um poema. Um rabisco que seja. Ou nada. → A partir desse dado vago, dessa brecha aberta pela dúvida, nessa piscada de olhos do arquivista, entrei. O diário aqui escrito engole o mundo de Oiticica. Suas leituras cotidianas, as falas de Torquato Neto, de Rogério Duarte, as cartas trocadas com Lygia Clark, os pensamentos esparsos de tempos distintos de uma vida intelectual, todos elementos em ação, em circulação constante e fluida (em mixagem?) criando um texto novo e único por ser fruto de todos os outros: o diário. Obra dada, obra re-vista, obra re-concebida: surge um espaço discursivo em que vários “autores” se manifestam através da escrita aberta e faminta: só interessando o que é do outro, a posse do alheio, a literatura dissimulada, o recorte-e-cola, os SAMPLES dos textos somados no mesmo tempo de um novo texto criado (seu papo sobre a literatura-sampler), poemas que escritos agora flutuam juntos com originais e distorções numa outra narrativa. O triângulo posse-citação-criação como força motriz de um pensamento crítico atual que não só lê, como cria. Hélio Miramar é Texto-Olhos-Livres como Oswald, escrito com os olhos coloridos e épicos do etnólogo de Leví-Strauss, cujas mãos de cientista-poeta-ladrão (todo etnólogo rouba uma cultura, ou ao menos a captura em seu discurso) descrevem certeiramente esse trabalho. → A tensão permanente entre ficcional e biográfico, entre invenção e inventado. Mão nervosa: escrever para todos os lados = não ser APENAS Helio Oiticica escrevendo. Mas ser Helio Oiticica tentando escrever sua vida (vale a pena levantar minha pena para fixa-la?). Trabalhar na dúvida de escrever o que não foi escrito. Memórias Sentimentais de Helio Miramar, dois universos poéticos na mesma batida de um diário de memórias do tempo presente de cada um. A astúcia do mentiroso, a apropriação descarada do corpo-fala do outro, comer o antropófago abrindo um jogo permanente e caótico de redirecionamento de vozes – HO como(e) OSWALD, vozes fundadoras dos mentirosos astuciosos desse país. Abraços, Power to the People, Arthur Miró.

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Bibliografia

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Esse texto não é meu. Para uso de todos, em qualquer circunstância.

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