O dinheiro como coração das trevas: nota sobre o último livro de Robert Kurz

July 21, 2017 | Autor: Daniel Cunha | Categoria: Marxismo, Robert Kurz, Crítica Do Valor
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[-] www.sinaldemenos.org Ano 7, n°11, vol. 2, 2015

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[-] Sumário # 11 vol. 2 EDITORIAL

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PAULO ARANTES

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Entrevista com Marcos Barreira e Maurílio Lima Botelho

ARTIGOS SOBRE O LI MITE ABSOLUTO DO CAPITAL

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Especulações acerca de uma hipótese teórica Daniel Feldmann A POTÊNCIA DO ABSTRATO

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Resenha com questões para o livro de Moishe Postone Cláudio R. Duarte A DEMOCRACIA E O SONO DA HISTÓRIA

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Fragmentos Raphael F. Alvarenga DIREITO E INTERCÂMBIO SOCIAL

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Hipóteses sobre a forma e a função do direito à luz do desenho histórico-estrutural de Kojin Karatani Joelton Nascimento ISAAK RUBIN E GYÖRGY LUKÁCS As origens da “leitura crítica” de Marx na década de 1920 Marcos Barreira

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O RENASCIMENTO MILAGROSO DE ANTONIO GRAMSCI

3 214

Robert Bösch FAVELIZAÇÃO MUNDIAL

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O colapso urbano da sociedade capitalista Maurilio Lima Botelho CIBERATIVISMO, O PARADIGMA DO ANTIPODER E

271

AS FISSURAS DO CAPITALISMO A revolução em tempos de internet Sílvia Ramos Bezerra PÓS-NATUREZA

286

Pilhagem ecológica e os monstros do capital André Villar Gomez O CAPITALISMO E A MALDIÇÃO DA

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EFICIÊNCIA ENERGÉTICA John Bellamy Foster, Brett Clark e Richard York A TRANSIÇÃO SOLAR COMO POSSÍVEL-IMPOSSÍVEL

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Daniel Cunha O DINHEIRO COMO CORAÇÃO DAS TREVAS

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Nota sobre o último livro de Robert Kurz Daniel Cunha O QUE FALTA? Francisco C.

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O DINHEIRO COMO CORAÇÃO DAS TREVAS Nota sobre o último livro de Robert Kurz

(KURZ, Robert. Dinheiro sem valor - Linhas gerais para uma transformação da crítica da economia política. Tradução de Lumir Nahodil. Lisboa: Antígona, 2014.)

Daniel Cunha

“O lema é arriscar tudo”. Assim, já no prefácio, Kurz deixa claro que as ambições do seu último livro, lançado postumamente, não são pequenas. Ao contrário do que se pode pensar, o livro póstumo de Kurz não é um fragmento incompleto ou sem importância no conjunto de sua obra, mas marca importantes inflexões teóricas. No todo, trata-se de um programa de desnaturalização total das categorias capitalistas – dinheiro, mercadoria, valor, trabalho abstrato. Para isso, Kurz mergulhará em problemas complexos da teoria marxiana, como a relação entre o lógico e o histórico (o “problema da exposição”), a constituição histórica do capitalismo, o “problema da transformação” dos valores em preços e a teoria da crise. E o faz procurando todo o tempo o “núcleo temporal da verdade” em Marx. Isso tudo é colocado no contexto do debate alemão, tendo de um lado a nova ortodoxia e de outro a Nova Leitura de Marx, representados tipicamente por Wolfgang Fritz Haug e Michael Heinrich, que servem de sacos de pancadas para a exposição. Trata-se, talvez, do livro mais “esotérico” de Kurz. Para o leitor d'O colapso da modernização, há como um afastamento do ponto de vista, de forma que são englobados na perspectiva da crítica do valor tanto o pré-capitalismo e constituição do capital quanto os processos de crise avançada pós queda do Muro. Kurz começa com a determinação do fetichismo pré-capitalista, apoiado em autores como Le Goff, Lahm, Polanyi e Kantorovsky. Dessa análise sai uma das conclusões mais importantes do livro, a de que o dinheiro precede o valor (teoria monetária do valor). O dinheiro em formações pré-capitalistas seria dinheiro sem valor, já que teria determinações completamente diferentes do dinheiro moderno, em relações

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de fetiche de relação com a divindade (sacrifício) e obrigações pessoais. A rigor, portanto, não havia dinheiro anteriormente ao capitalismo – Kurz se apoia em Le Goff, para quem não havia o conceito de dinheiro na Idade Média. O dinheiro teria surgido tão somente com a “revolução das armas de fogo”, quando a fome de riqueza dos estados nacionais em concorrência de morte constituíram a busca por riqueza abstrata e o dinheiro como meio de troca, destacado e autonomizado de suas antigas funções fetichistas e sacrificiais. Somente neste ponto a atividade humano passou a ser explorada para a aquisição de riqueza abstrata – a constituição do valor e do trabalho abstrato. Portanto, o "problema da exposição" em Marx, no que respeita à constituição histórica, implica uma inversão de pressuposto e resultado: primeiro constitui-se o dinheiro, e após o valor e a mercadoria, o que é o inverso da exposição lógica em O capital. A unidade do lógico e do histórico do marxismo de corte engelsiano é criticada impiedosamente. Outro ponto-chave do livro é o conceito de “individualismo metodológico”, a partir do qual Kurz pretende resolver o chamado “problema da transformação”. Aqui o “problema da exposição” (lógico) consiste no fato de que, para determinar o capital, é preciso partir do produtor individual de mercadorias. Kurz o reduz a um pseudoproblema, já que somente no nível do processo global (Gesamtkapital) a massa dos valores e a massa dos preços deve coincidir. Para o produtor individual, o valor e o preço não coincidem, já que as unidades individuais concorrem pela massa total de mais-valia. Não se trata de um erro de Marx, mas simplesmente o fato de que a totalidade sistêmica não pode ser acessada imediatamente gera uma incongruência (real) que é puramente expositiva, e não essencial. Da mesma forma, não exist iria circulação simples, a não ser muito brevemente no período de constituição do capital, já que o valor desde sempre pressuporia o trabalho abstrato, a mais-valia e a acumulação. Aqui se revela a capacidade de Kurz de mergulhar no texto marxiano e extrair as suas mediações e emergências dialéticas. Talvez o mais importante em relação a essa discussão, porém, é que Kurz avança da crítica do valor em direção à crítica do capital como totalidade dialética. Marx fala em “fetiche da mercadoria” em sua exposição inicial, mas esse fetiche se desdobra desde o capital (mais-valia) até o fetichismo em mais alto grau da taxa de juros (volume 3 do Capital) – de forma que o fetiche é a

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totalidade, e não apenas as mercadorias como coágulos de valor. Kurz dedica bastante esforço e agudez argumentativa para defender a teoria marxiana da substância do valor (o trabalho abstrato). Aqui se demonstra que a Nova Leitura de Marx, especialmente Michael Heinrich, ao abandonar a relação substancial, recai no pós-modernismo. Neste ponto também se encontra a raiz da negação da crise do capital - que é novamente retratada como a “contradição em processo” da sociedade do trabalho onde o trabalho se torna supérfluo devido ao superdesenvolvimento das forças produtivas (aqui não há novidade para leitores antigos, mas o conceito é fundamental para leitores novos). A exposição sobre a hipertrofia do sistema de crédito (ainda incipiente nos tempos de Marx) como dialeticamente imbricada no aumento da composição orgânica do capital e, quando esta atinge níveis críticos, com a crise da valorização, é uma demonstração da capacidade do autor de “historicizar a teoria”. Da mesma forma, a revisão das teorias da crise que se limitavam, em parte inclusive em Marx, a crises de distribuição (superprodução, problemas de "realização"), enquanto o que está na ordem do dia é a crise da substância do valor, o trabalho abstrato. Kurz insiste na noção de um "limite absoluto" para a crise, e chega a datá-lo: não passamos dos próximos cinquenta anos. Por fim, Kurz usa Benjamin e seu fragmento sobre o capitalismo como religião para especular sobre os desdobramentos da crise. O dinheiro, que estaria no começo como dinheiro que ainda não é, dinheiro sem valor, retornaria a si após o percurso internamente teleológico do capital. Aqui, o horror: o sacrifício humano para satisfazer o fetiche de acumulação capitalista – na forma de desmantelamento social, guerra de todos contra todos e guerras bélicas literais. A questão que fica em aberto é o que exatamente Kurz chama de “limite absoluto”, a ponto de datá-lo. Seria a capacidade do capital de valorizar-se, de gerar massa de mais-valia, devido ao aumento da composição orgânica do capital? Mas aqui pareceria mais o caso de uma curva declinante que só encosta no seu limite no tempo infinito (o que em matemática se chama de "assintótica") do que um limite fixo. Antes que esse limite absoluto fosse atingido, haveria um colapso "político" do sistema, muito provavelmente regressiv o, ou mesmo um colapso ecológico. Ou seria o ponto de viragem no qual a expansão interna e externa dos mercados não consegue mais compensar os aumentos de produtividade, ou seja, o

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ponto no qual a massa de mais-valia global começa a declinar? Nesse caso, talvez o limite já tenha sido ultrapassado? De qualquer maneira, Kurz está certo ao tematizar os limites internos e externos (ecológicos) do capital. Dinheiro sem valor é um livro sobre as trevas. Na sua crítica puramente negativa não há espaço para a “mão rebelde do trabalho” e para o não-idêntico. Trata-se de um ponto cego na teoria totalizante kurziano. É surpreendente que ao traçar um panorama lógico-histórico tão amplo do capital – da constituição à crise final – Kurz não cite jamais a luta de classes, nem mesmo para encerrá-la como puramente imanente, como o fez em ocasiões anteriores. Quando em uma raríssima ocasião é citada uma possibilidade de transcendência do capitalismo, o é pela via da "consciência". Aqui talvez se tenha algo que remeta, para além do modo de exposição negativo kurziano, a uma visão do desenvolvimento interno capitalista como lógica irrefreável absoluta (a fetichização do fetiche), tendência essa que se intensificou ao longo dos anos nos seus escritos. Isso desemboca na afirmação de que “o fetiche do capital pôs em marcha um movimento de sacrifício reificado cujo resultado acaba por revogar todos os elementos civilizacionais da história anterior”. Que esse processo tenha tornado o comunismo mais possível do que nunca (com automação, telecomunicações, altíssima produtividade, etc.) – essa emancipação como “ainda-não” que também se fortalece no movimento do capital, não aparece nenhum traço no modo de exposição kurziano, que remete à tabula rasa. Isso posto, a força explicativa do livro, tanto no que se refere ao seu projeto de “desnaturalização total” das categorias capitalistas, quanto à fenomenologia da crise capitalista cada vez mais globalizada e intensa, assim como da conceituação do fetiche, torna-o leitura obrigatória. Kurz se reafirma, em sua última publicação, como um dos pensadores marxianos mais prolíficos do final do século XX e início do século XXI, que toma a obra marxiana como um corpo vivo a ter a sua radicalidade permanentemente atualizada, e não como um conjunto de dogmas petrificados. Nesse período no qual muitos abandonaram a crítica na onda da queda do Muro e do “fim da história”, Kurz sempre tentou levá-la ao limite, sem medo de arriscar tudo. Os problemas no caminho enriquecem o debate, a discussão e o esclarecimento crítico em uma época onde predomina a regressão e o ofuscamento.

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