O DIREITO À IMAGEM: As Elites nos Museus das Misericórdias de São Paulo e Santos/Brasil

June 5, 2017 | Autor: Mbeatriz B | Categoria: Retratos
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O DIREITO À IMAGEM: As Elites nos Museus das Misericórdias de São Paulo e Santos/Brasil Maria Beatriz Bianchini Bilac Resumo Estudo das relações entre as Misericórdias brasileiras e a história das elites locais, particularmente a elite paulista, com base nos retratos de seus beneméritos, agregados em suas galerias de honra. Os retratos são vistos como documentos que carregam valor histórico e como uma fonte que oferece o significado de sua presença nas Misericórdias de São Paulo e Santos, e que permitem registrar o perfil de parcela representativa da elite paulista e de seu caráter diversificado entre o final do século XIX e início do século XX. Palavras-chave: elites, elites locais, retrato, santa casa de misericórdia, Brasil.

O Direito à Imagem: as galerias de retratos das Misericórdias Ao estudarmos a composição das elites tradicionais brasileiras há que se salientar o grande número dos elementos desse grupo − desde os mais altos escalões, como Ministros do Império até ocupantes de cargos do poder local − que fizeram parte dos quadros das Misericórdias. Os estudos sobre as elites brasileiras mostram a importância do pertencimento desse grupo nas instituições conferidoras de poder e status. No Brasil, no decorrer dos tempos, dentre as estratégias de manutenção do poder local das famílias proprietárias ou de elites destacam-se a grande propriedade de terras, casamentos endogâmicos e prole numerosa, ao lado da ocupação dos cargos chaves nas administrações municipais, regionais e, muitas vezes, nacionais. Esse conjunto de fatores possibilitou a construção de toda uma rede de poder local (Bilac, 2001:42). Desta forma, torna-se importante investigar a questão das elites na Misericórdia, entendendo que o estudo dos retratos deste grupo é uma fonte valiosa para a compreensão desta temática, já que o gênero da retratística na sociedade ocidental teve o papel de destacar indivíduos e distinguir alguns ou procurar chamar a atenção para os dotes pessoais de outros. De um modo geral, não faltam razões para estudar as elites locais, sua emergência e particularmente a sua ligação ao exercício do poder, seja qual for o período histórico e contexto geográfico. Consideremos, dentre tantas variáveis, que a estrutura do Estado deixa particularmente a esses grupos a gestão de seus territórios, ao mesmo tempo em que lhes propicia um poder associado de mediador entre as populações locais e esse mesmo Estado. As elites locais, portanto, tornam-se um dos mais privilegiados atores político-administradores na estrutura social e política de uma determinada conjuntura histórica.

2 Apesar dos estudos já existentes sobre as elites locais no Brasil, pouco se prestou atenção à importância das posições desse exercício de poder no que tange à definição da estratificação social local, regional e até mesmo nacional, possibilitado pela inserção desses grupos nas mais variadas instâncias institucionais, a exemplo das Santas Casas de Misericórdia. Como apontado no resumo acima, procuramos no presente estudo investigar algumas facetas da participação de diferentes grupos sociais em Misericórdias brasileiras, analisando o papel dos retratos na formação da memória histórica de uma elite, particularmente a elite paulista, abarcando as galerias de retratos das Misericórdias das cidades de São Paulo e Santos. A análise foi estruturada em torno de duas ideias centrais. A primeira é analisar a irmandade como parte de um processo de organização e reorganização da sociedade no que tange à formação das elites locais, particularmente a sua ligação ao exercício do poder, na medida em que esse grupo se revela como um dos mais privilegiados atores político-administrativos na estrutura social e política de um dado contexto histórico. Procuramos enfocar a importância das posições do exercício de poder no tocante à estratificação social local, regional e até mesmo nacional, possibilitadas pela inserção desses grupos nas mais variadas instâncias institucionais, especificamente as Misericórdias. A segunda ideia é compreender a questão posta a partir da produção dos retratos dos beneméritos das Santas Casas, considerando o conjunto destes nas Misericórdias das cidades de São Paulo e Santos. Os acervos foram escolhidos pelo prestígio que estas confrarias desfrutaram em determinados momentos da história brasileira. A análise visou avaliar de que maneira estes acervos revelam, por um lado, importantes dados sobre a metamorfose/continuidade da composição social da cidade e de suas estruturas políticas e, por outro, como dão a conhecer, através das imagens de benfeitores, uma sociedade que se aventurou no investimento artístico-visual de sua elite, apesar do fato de que as irmandades de caridade estivessem voltadas aos que não tinham condições de ascensão social. Se por um lado ao longo da história a destinação política do retrato propiciou a manutenção do prestígio de poderosos e governantes, por outro esteve ligada a aspectos dos usos e costumes de particulares períodos históricos. Podemos considerar que, de forma geral, no século XIX, momento em que a retratística se afirma de forma significativa no Brasil, as irmandades leigas destacam-se

3 como grandes consumidoras de retratos, homenageando assim seus fundadores, provedores, grandes beneméritos e outros indivíduos ou grupos de alta consideração em suas sedes. Destas irmandades, as Misericórdias eram sem dúvida as mais poderosas. Os ricos senhores a elas associados destinavam vultosas doações, fato que lhes granjeava o respeito da população local. Por sua vez, também as instituições de caráter público tinham o hábito de homenagear governantes, colocando suas imagens nas paredes de seus salões. As possíveis conclusões apresentadas pelo atual estudo têm um caráter exploratório. As dificuldades de acesso aos dados limitam, de certa maneira, a compreensão de alguns aspectos da investigação. De qualquer modo, essas são limitações nas quais esbarram os pesquisadores de nossa história e memória, pois é sobejamente conhecida a falta de conservação que existe no Brasil com a documentação, tanto a passada quanto a contemporânea. No caso da pesquisa ora apresentada, enfrentamos dificuldades diversas tanto em relação à organização dos acervos e identificação dos retratos como à falta de registro das perdas das obras no decorrer do tempo. Entretanto, o conjunto de informações obtidas sobre os acervos e a abordagem utilizada permite levantar considerações sobre a pertinência desta exploração. O patrimônio simbólico dos acervos de museus e instituições das cidades brasileiras apresenta relevantes conjuntos desses objetos carregados de significações e representam importantes fontes documentais. Como bem assinala Micelli (1996:24), se por um lado os retratos permitem uma compreensão mais nítida das redes informais de poder das elites brasileiras, por outro oferecem um registro e uma representação da autoimagem desse grupo dirigente em fases de afirmação social. As Misericórdias brasileiras seguiram um padrão organizativo derivado de sua matriz portuguesa. Em Portugal, pintar um retrato ou esculpir a imagem de benfeitores das Ordens Religiosas ou das Irmandades foi uma prática comum como reconhecimento dos indivíduos que se distinguiram pelos serviços a elas prestados, e também uma forma de expressar distinção àqueles que prestavam obras de caridade. No Brasil, não foi diferente. Podemos destacar, nas Misericórdias brasileiras,a par dos retratos, a existência de estátuas tanto em Salvador como no Rio de Janeiro. No primeiro caso, a homenagem ao provedor Conde de Pereira Marinho e, no segundo, ao provedor José Clemente Pereira.

4 Os retratos quase sempre eram expostos tanto em galerias especiais, como em distintas repartições das Santas Casas, e esse patrimônio representa aspectos significativos da história destas instituições, bem como dos grupos e indivíduos que delas fizeram parte. Em Portugal, vale ressaltar a Santa Casa de Misericórdia do Porto. Para os séculos XVIII e XIX há aproximadamente trezentos e sessenta e cinco retratos atribuídos a cerca de cinquenta e um artistas, distribuídos em uma galeria no edifício da irmandade e em várias de suas dependências internas e externas. O retrato mais antigo data de 1649, atribuído a Antonio André, artista de formação lisboense (ativo entre 1612 e 1652). O retratado é Manuel Fernando de Calvos, considerado um dos grandes benfeitores da irmandade. O mais recente é de 1949. Nesta coleção, do total de cerca de trezentos quadros, sobressai o número superior de retratos masculinos em relação aos femininos: estes cerca de sessenta (Samagaio; Azevedo; Santos, 2001). Os retratos femininos são feitos a partir do final do século XIX, bem posteriores ao início da produção dos masculinos, o que demonstra o caráter masculino que persistiu por muito tempo nessa irmandade. No Brasil, essa situação se repete nas galerias de retratos das Misericórdias de São Paulo e de Santos. Dos treze retratos pintados no século XIX, no caso de São Paulo, há dois femininos. Em Santos, há somente um retrato feminino, do final do século XIX ou início do XX. Outras personagens femininas aparecem somente após a década de 1940. No Porto, os retratos de meio corpo ou 2/3 de corpo inteiro são a maioria e destinam-se quase sempre à classe eclesiástica e à burguesia. Em menor escala aparece a nobreza. Os de corpo inteiro, que aparecem em pequeno número, são das figuras régias e dos benfeitores que mais legados financeiros deixaram para a irmandade. Os retratos constituem-se como uma das formas de garantia de visibilidade social. Para ter sua imagem na galeria, o elegido era sempre alguém que fazia uma doação ou outro préstimo caritativo relevante e passava, assim, a usufruir do respeito da diretoria e da comunidade local. Também um membro, quando ascendia a um cargo diretivo, recebia a honra de ser retratado. Uma sua imagem seria seu retrato oficial, símbolo de sua imortalidade e garantia de autoafirmação frente à sociedade local. Isso se revela verdadeiro para outros tipos de confrarias ou instituições religiosas ou laicas. No Brasil, como em Portugal, podemos mencionar outras associações que homenageavam as elites locais em suas galerias de retratos. No caso brasileiro temos,

5 como exemplo, as Sociedades Portuguesas de Beneficência do Rio Grande do Sul (Chaves,2008). A Sociedade Portuguesa de Beneficência, instituição hospitalar, tem sua origem em Portugal a partir dos anos 50 do século XIX. No Brasil foi criada por imigrantes portugueses, como instituição privada. Nelas persistem elementos do modelo das Misericórdias Portuguesas, no que diz respeito ao trabalho caritativo. Em território brasileiro, a mais antiga Beneficência é a do Rio de Janeiro (1840). Santos teve a sua fundada em 1859. A de Porto Alegre data de 1854. Essas associações têm em comum, entre outras características, a premiação dos sócios por suas boas ações através da concessão de retratos na sala principal de reuniões.

Em Santos, constam

seis retratos pintados por Benedito Calixto, sendo a maioria deles imagens dos presidentes da entidade. Nas Sociedades de Beneficência de Porto Alegre, Pelotas, Bagé e Rio Grande, com algumas poucas diferenças na composição social de suas diretorias, os presidentes eram portugueses (como previam os estatutos), vindos de Portugal já com situação financeira favorável. Os membros da diretoria tinham projeção social: comendadores, desembargadores, barões, proprietários de terra. O continuísmo dos membros na diretoria e a alta rotatividade dos cargos foi um fator comum entre elas. Como de regra, os salões de honra agregavam os retratos de seus mais eminentes associados. Em Porto Alegre, o retrato real foi colocado na sede recém-inaugurada em 1870, sendo esse evento registrado na solenidade que marcou o início da nova fase na Instituição. Também, em Portugal e no Brasil, procurava-se exaltar a monarquia portuguesa através da exposição de seus retratos nessas instituições. Nas Sociedades de Beneficência, encomendava-se a pintura de um retrato real oficial, que seria colocado no saguão do edifício-sede. A imagem fortaleceria os laços dessas associações com a nobreza em Portugal e funcionaria como um substituto do poder real. O rei aceitava o protetorado da Sociedade e, por sua vez, esta administraria, na sua esfera específica, a reciprocidade à realeza, a sublimação do rei e a perpetuação de sua soberania nas colônias. Para abordar a questão do direito à imagem, reportamo-nos a Édouard Pommier (2003). Ao analisar as relações entre retrato e poder considera ele que estes são dois termos com estreita relação em toda a história da arte moderna. Quando se fala em retrato do poder, fala-se do poder, ou seja, daqueles que devem administrar a sociedade − papa, imperador, rei − e que têm direitos prioritários, entre eles, o direito à imagem.

6 A imagem é, então, privilégio de quem tem direito à história e por consequência à fama, e aquele que conquista um posto na história adquire o direito de ser recordado através de sua efígie: o retrato torna-se o principal veículo de manifestação do poder ganho. O direito à fama está ligado à ideia do justo e só estes merecem a imortalidade recorrendo a um retrato, que evoca características elogiáveis. O retrato tem um poder exemplar, ou seja, ele não é só a pessoa, mas também sua vida gloriosa, uma vida a ser imitada. Assim, o retrato é carregado de exemplo moral e político. E, importante notar, ultrapassa o culto familiar ou de exaltação do sentimento patriótico, dizendo respeito também à transmissão da cultura. Em suma, para o autor, o direito à fama está ligado à ideia do justo e só os justos merecem a imortalidade recorrendo a um retrato. O retrato, portanto, torna-se um constituidor de identidade social. Nesta direção, Shearer West (2004) aponta que os retratos auxiliam a compreender como níveis específicos da sociedade são percebidos em diferentes momentos sociais, através das indicações que eles apresentam em sua composição. Ou seja, através da vestimenta, dos gestos, das propriedades e outros aspectos, os retratos dão sinais das características dos indivíduos que eles representam − se são ricos ou pobres, poderosos ou não − e de elementos indicativos da profissão, classe social ou de grupos, clubes ou instituições e associações a que eles pertencem. Estes indicativos de poder e status, por um lado salientam o valor funcional do retrato e, por outro, influem nas decisões sobre sua compra, disposição e exibição. Tanto Pommier como West ressaltam que os retratos podem também afirmar ou desafiar hierarquias sociais, na medida em que estes se tornam meio para a consolidação do poder de quem já o detém e para a ascensão de quem o está conquistando. Outrossim, a tendência de se considerar o retrato como algo mais que uma obra de arte está reforçada por sua associação com instituições as mais variadas, tais como coleções de retratos de presidentes de companhias, membros destacados de universidades, membros de famílias reais ou nobres etc. Desta forma, tão logo retratos sejam colocados como um grupo de imagens, o espectador é chamado para vê-los como uma coleção de indivíduos, muito mais que uma exibição de obras de arte. No que diz respeito à história da retratística, é importante também destacar as finalidades do gênero, ou seja, os propósitos aos quais os retratos pretendem servir e como eles respondem a esses propósitos em termos de gestos, vestimentas, expressão facial, cenários, estilo, formas e espaços de exposição.

7 West contempla, ainda, que retratos de membros de uma família foram um elemento importante das coleções de arte da antiguidade e que algumas das mais antigas galerias de arte eram galerias de retrato. O mesmo fenômeno acontece na Itália e Europa do norte a partir do século XV, quando se torna comum a exibição de retratos de homens ilustres nas bibliotecas ou estúdios dos príncipes e duques da Renascença, como objetos de emulação e exemplo. Nos dois séculos seguintes, coleções de retratos dinásticos são bastante difundidas entre a nobreza e a aristocracia europeia. No século XVIII, essa característica dinástica das coleções vai sendo abandonada, dando lugar para os retratos familiares e de ancestrais. Já a partir do final deste século e no início do XIX, vai se afirmando outro tipo de retrato enfatizando mais o caráter dos interesses nacionais que os da esfera familiar, tendência que se sobressai na América do Norte. Há que se lembrar também que no final do século XVI, a retratística começa a se expandir a outros setores sociais. O retrato burguês passa a ser alvo de uma produção cada vez mais crescente, demonstrando que esse gênero torna-se meio para a consolidação do poder de quem já o detêm e para a ascensão de quem o está conquistando. Para a nossa análise, no caso brasileiro, podemos apontar, numa perspectiva voltada às galerias de retrato, o estudo de Alberto Cipiniuk, no qual, ao pesquisar o retrato, seu autor e o retratado na pintura fluminense do final do século XVIII ao início do século XIX, destaca as Santas Casas de Misericórdia, ao lado de outras instituições leigas no Brasil, como repositórios privilegiados deste gênero de arte, na medida em que, antes de 1830 não houve no Brasil nenhuma preocupação com a criação de espaços de exibição artísticos, e também nunca houve intenção da criação de um espaço específico para gente ilustre, um museu ou galeria aberta à visitação pública de retratos (...). Precisamos salientar que os primeiros retratos realizados no Brasil pertenceram inicialmente aos espaços públicos das confrarias e irmandades, assim como dos passos municipais (...). Tal como o museu da arte, a ideia da ‘galeria de retratos’ se associa às criações culturais do século XIX e testemunha um desenrolar tridimensional da história. O novo espaço de ambientação dos retratos, os espaços públicos com representações de personalidades cívicas, situa-se nos consistórios das ambiciosas irmandades (Cipiniuk,2003:33-35).

As irmandades financiavam a produção de retratos comemorativos, seguindo a tradição da pintura luso-brasileira do final do século XVIII e de todo o século XIX,

8 período em que o retrato burguês se afirma. Segundo Migliaccio (2000), esta retratística tem um caráter público e documental e volta-se a exaltar o caráter cívico do cristão na construção da cidade, que é sinônimo de civilização. É no século XIX que o retrato passa a ocupar um lugar de destaque no âmbito das artes no Brasil, quando se verifica uma presença maior da pintura erudita ou acadêmica no país. O prestígio social do retrato tanto no âmbito privado como no público tornouse uma importante fonte de sobrevivência para os artistas. Cresciam as encomendas para a execução de retratos das camadas altas das elites da sociedade e pintores, nem sempre retratistas por excelência, dedicavam-se cada vez mais a esse mister. Pedro Alexandrino (1864-1942), mormente um pintor de natureza-morta, aceitava frequentemente encomendas do gênero, como também faziam Almeida Jr., Oscar Pereira da Silva e muitos outros. As gerações posteriores de artistas, a exemplo de Paulo do Valle Jr. (1889-1958) , não abandonaram a prática de fazer retratos. De modo geral, à época, a viabilização de uma carreira artística no Brasil, no âmbito da pintura, dava-se dentro dos marcos institucionais dominantes, ou seja, aqueles veiculados pela Escola Nacional de Belas-Artes e também pela participação regular nos Salões anuais. Prêmios de viagem ao país e ao exterior eram componentes para o reconhecimento de uma carreira bem sucedida. Podemos destacar, neste sentido − dentre os artistas que atuaram nas Misericórdias de São Paulo e de Santos − as trajetórias de José Ferraz de Almeida Jr. e Oscar Pereira da Silva. Almeida Jr. (1850-1899) ingressa na Academia Imperial de Belas Artes do Rio de Janeiro em 1869, onde fica por quatro anos, aí obtendo sete medalhas. Em 1875 é convidado pelo Imperador dom Pedro II para estudar na Europa sob suas expensas. Em 1878 matricula-se na École des Beaux-Arts de Paris. Em 1896 estuda em Paris com bolsa do governo de São Paulo. Participa de várias exposições internacionais e nacionais. Dentre elas: Salões de Paris; Rio de Janeiro, Exposições Gerais de Belas Artes, Escola Nacional de Belas Artes; Chicago, Estados Unidos - Exposição Internacional Colombiana –onde recebe medalha de ouro. Oscar Pereira da Silva (1867-1939) estudou na Academia Imperial de Belas Artes (RJ) entre 1882 e 1887. Obteve o prêmio de viagem à Europa, estabelecendo-se em Paris de 1889 a 1896. De volta ao Brasil, fixa-se em São Paulo onde, em 1897, funda o Núcleo Artístico, origem da Escola de Belas Artes em 1897, no qual viria a lecionar. Também se tornou professor do Liceu de Artes e Ofícios. Participa de várias

9 Exposições Gerais de Belas Artes (RJ) e dos Salões Paulista de Belas Artes, onde obteve em 1933 a grande medalha de ouro. Na Santa Casa de São Paulo, particularmente, muitos pintores que produziram os retratos dos beneméritos enquadram-se na qualidade de retratistas, a exemplo de Almeida Jr., Ernst Papf, Tony Koegl, Carlo de Servi, Oscar Pereira da Silva, Paulo do Valle Jr. No início do século XX, pintores estrangeiros, sobretudo italianos radicados no Brasil, dedicaram-se à pintura de paisagem e produziram uma obra retratística de grande qualidade, como Carlo de Servi e Pietro Spina, ambos presentes na Misericórdia de São Paulo. Artistas franceses, como Gabriel Biessy, também recebiam considerável encomenda de retratos no Brasil. Na Santa Casa de São Paulo, todos os retratos produzidos no século XIX são do tipo 2/3. Estas imagens afirmam o caráter da identidade grupal de uma elite, através de sinais que ligam os representados a seu status social, projetando uma imagem sóbria, com gestos e poses que evidenciam características de seriedade, inteligência, sabedoria, virtudes desejáveis a um grupo dirigente e que podem servir de modelo cívico. São imagens que se distinguem, por exemplo, dos retratos coloniais norteamericanos, os quais se destinam à exaltação das virtudes sociais num contexto familiar e privado. Diferenciam-se também dos retratos produzidos na América do Norte no início do XIX quando emerge, como vimos anteriormente, outro tipo de retrato mais direcionado ao caráter dos interesses nacionais. No Rio de Janeiro, no século XIX, a produção de retratos volta-se também de uma forma moderada para o âmbito social, encomendados por figuras de vulto na hierarquia da corte e grandes fazendeiros do Rio de Janeiro e Vale do Paraíba para ostentar nos salões de suas casas. Em São Paulo, os barões do café passam a encomendar seus retratos para serem colocados na sala de visitas de suas residências, imagens que lhes dariam a visibilidade de sua posição social conquistada. No início do século XX, retratos femininos, com as personagens pintadas em trajes elegantes, são também exibidos nas residências particulares, como é o caso da imagem da Condessa Annie Álvares Penteado, em destaque na sala de sua mansão em São Paulo, da autoria de Jean Denis Maillart. O retrato masculino, por sua vez, começa a assumir um papel mais significativo como registro de personalidades políticas, voltado para repartições, instituições e escritórios.

10 Ao longo do tempo, praticamente todas as casas burguesas ostentavam pinturas: um retrato na sala de visitas, uma natureza-morta na sala de almoço. Muda a função social do retrato e o mercado de arte se alarga, tanto para os artistas brasileiros e estrangeiros, principalmente italianos, que visitam ou se radicam no Brasil. Estes artistas tiveram uma presença marcante no cenário das artes no estado de São Paulo, sobretudo na capital paulista. Realizavam frequentes exposições, recebiam encomendas da elite local, circulavam em suas festas e salões, lograram incluir seus trabalhos nos acervos locais, privados e públicos. E são esses mesmos pintores que também viriam a atuar nas Misericórdias, a exemplo de Karl Ernst Papf, Carlo de Servi, Giuseppe Amisani. Nas Misericórdias de São Paulo e Santos, há obras nas quais se observa a figura do representado sobreposta a um fundo simples ou com representação de ambientes, onde aparecem cortinas, tapetes, mesas, livros, cartas, documentos, em evocação à cultura da personagem, como também objetos de prestígio indicando a profissão ou prestígio social do indivíduo, como medalhas e comendas. Muitas vezes há indicações do empenho do retratado na construção de edifícios ou benfeitorias nas instalações da Santa Casa, a exemplo de cartas de doações e outros símbolos. Os retratos expostos nas Santas Casas de São Paulo e de Santos nos autorizam a esboçar os contornos de uma parcela representativa da elite paulista e o caráter diversificado dos diferentes segmentos desse grupo. No caso de Santos verifica-se que, do total dos retratados, para o período da pesquisa, acham-se, por ordem numérica, os políticos, seguidos de fazendeiros, médicos e empreendedores ligados às atividades do café. Em São Paulo a elite retratada é composta pela aristocracia rural, particularmente grandes fazendeiros de café, grande parte destes exercendo cargos públicos e políticos. Militares, advogados e médicos também fazem parte desse grupo retratado. Poucas mudanças são verificadas neste perfil ao longo do tempo em foco neste trabalho. O Brasil está em um tempo de reconfiguração de poderes, levando a um momento de afirmação de uma elite e de construção de sua autoimagem frente às outras elites que emergem. Lembremos que o período que abarca a metade do século XIX e as primeiras décadas do XX foi um período incontestavelmente caracterizado pelo predomínio e exclusiva representação das elites agrárias. A cena política era uma esfera caracterizada pela participação e competição bastante limitadas.

11 Entretanto, no início do século XX, o país passa por mudanças na economia, aprofundadas pelos processos de industrialização e de urbanização. Novos setores sociais emergem e iniciam um movimento de entrada nas cenas sociais e políticas. É um período de desafio às elites econômicas e políticas que vinham dominando o cenário nacional. A partir de 1930, nos centros urbanos há uma multiplicação dos profissionais liberais, oriundos das famílias de classes médias e da própria burguesia, mas não integram de maneira decisiva os quadros políticos locais e nem mesmo as mesas diretivas da Misericórdia (Bilac,1999). Os princípios hierarquizantes operativos na Misericórdia retratam os valores determinantes nas cidades. Viviam em São Paulo e Santos homens de negócios ricos. Mas não foram admitidos no topo hierárquico da instituição. A sucessão de provedores e beneméritos demonstra que os diferentes grupos que procuravam dominar as cidades ocupam as chefias das Misericórdias locais. Sucedemse ou coabitam-se as elites agrárias, políticos, advogados etc. È um mundo não monolítico, mas sendo que seus provedores são homens frequentemente com títulos de nobreza e trânsito nas mais diversas esferas do poder. Os provedores foram, também, participantes ativos nos diversos acontecimentos e processos políticos de sua época.

Conclusão

Pesquisadores portugueses e brasileiros, em obra publicada em Araújo (2009), destacam a importância do estudo sobre as Santas Casas de Misericórdia das duas margens do Atlântico e enfatizam que embora no Brasil a temática tenha sido menos trabalhada que em Portugal, o assunto vem despertando crescente interesse no país. Daí a pertinência de se aprofundar e alargar o sentido e o papel dessas irmandades nas duas sociedades. A investigação que ora apresentamos surge do interesse em reunir um conjunto de elementos que, embora ainda dispersos, permitam compreender algumas facetas das relações entre as Misericórdias brasileiras e a história das elites locais. A análise orienta-se a partir de duas ideias centrais. Por um lado, analisar a irmandade como parte de um processo de organização e reorganização da sociedade no em respeito à formação das elites locais, particularmente no que tange à sua ligação ao exercício do poder. Por outro lado, procuramos compreender a questão posta a partir da produção dos retratos dos beneméritos das Santas Casas, considerando o conjunto

12 destes nas Misericórdias das cidades de São Paulo e Santos. Para tanto, buscamos entender como estes acervos podem revelar alguns aspectos críticos sobre a metamorfose/continuidade da composição social da cidade e de suas estruturas políticas e também como possibilitam conhecer, através das imagens de benfeitores, uma sociedade que se aventurou no investimento artístico-visual de sua elite. No século XIX, momento em que a retratística se afirma de forma significativa no Brasil, as irmandades leigas destacam-se como grandes consumidoras de retratos, honrando seus fundadores, provedores, grandes beneméritos e outros indivíduos ou grupos de alta consideração em suas sedes. As Misericórdias, dentre todas elas, eram sem dúvida as mais poderosas. Os ricos senhores a elas associados destinavam vultosas doações, fato que lhes granjeava o respeito da população local. Por sua vez, também as instituições de caráter público tinham o hábito de homenagear governantes, colocando suas imagens nas paredes de seus salões. Desta forma, para estabelecer as ligações entre as Misericórdias brasileiras e a história das elites locais, tendo como base a produção de retratos de seus beneméritos, procuramos articular um conjunto de fatores.

De um lado, particularizar as

Misericórdias como componente de um processo mais complexo de organização e reorganização da sociedade no que diz respeito à formação das elites. Por outro, apresentar possibilidades e perspectivas de análise sobre o poder da imagem e investigar nexos entre retrato, poder e direito à imagem como um constituidor de identidade e elemento de visibilidade de determinados grupos em um específico sistema de hierarquia social. As Misericórdias foram essenciais para o estabelecimento de oligarquias relativamente estáveis em um dado território. Constituíram-se também como demarcadoras de fronteiras sociais, de gênero, classe ou grupos étnicos. Elas estão intimamente ligadas à evolução da vila colonial, bem como da cidade imperial e da memória republicana. A fundação destas confrarias nas colônias do Império português foi parte decisiva da política de ocupação de terras exercida pela Coroa real e foram sendo estabelecidas concomitantemente ou logo após o surgimento de um núcleo urbano. De acordo com a literatura sobre o assunto, a exemplo de Sá (1997;2001) podemos considerar que estas irmandades constituíram-se em espaços críticos para as lutas pelo poder local, favorecendo as chances de status, prestígio, distinção e afirmação social. Em geral, como confrarias de elite, abrigavam em seus quadros,

13 principalmente aqueles das mesas administrativas, indivíduos com capacidade econômica e prestígio social reconhecido. As Misericórdias brasileiras seguiram um padrão organizativo derivado da matriz portuguesa. Em Portugal foi uma prática comum pintar retratos ou esculpir imagens de benfeitores das Ordens Religiosas ou das Irmandades, como reconhecimento dos indivíduos que se destacaram pelos serviços a elas prestados ou pelas obras de caridade. Esta prática também se reproduziu no Brasil. Na coleção de retratos da Santa Casa do Porto/Portugal, no total de cerca de 300 obras – datados de 1649 a 1949 – destaca-se o maior número de retratados masculinos. Os femininos chegam ao redor de 60 e são produzidos somente a partir do final do século XIX, demonstrando o caráter masculino que persistiu por muito tempo nessa irmandade. No Brasil, esta situação pode ser constatada no conjunto dos retratos nas Misericórdias de São Paulo e Santos. Na primeira, dentre os 13 retratados no século XIX, há dois femininos. Em Santos, há somente um feminino, da passagem do século XIX para o XX. Outras personagens femininas, em ambos os casos, aparecem apenas a partir da década de 1940. Nos acervos de retratos das Misericórdias, de forma praticamente exclusiva, os retratados pertenciam a seletos grupos das elites e constituem um espaço de reconhecimento e valorização da memória visual de indivíduos que contribuíram para o desenvolvimento e manutenção desta irmandade. Além disso, os provedores, em sua grande maioria, e outros beneméritos que ocuparam os cargos de maior importância nestas irmandades foram também figuras ativas de processos políticos e variados acontecimentos importantes de sua época, possibilitando-lhes trânsito entre os diferentes poderes locais, regionais e até mesmo nacional. Assim que o retrato torna-se um constituidor de identidade social. Os símbolos nele evidenciados dão mostras das características e qualidades dos indivíduos nele representados. As imagens afirmam o caráter da identidade grupal das elites locais e delineiam o perfil do tipo exemplar de uma época. O retrato tem, pois, um poder exemplar, ou seja, ele não é só a pessoa, mas também sua vida gloriosa, uma vida a ser imitada: o retrato é carregado de exemplo moral e político. O conjunto de quadros em questão neste estudo projeta uma imagem sóbria dos retratados, com posturas indicando características de seriedade, sabedoria, inteligência, virtudes desejáveis a um grupo dirigente e que podem servir de modelo cívico.

14 Os princípios hierarquizantes operativos das Misericórdias retratam os valores determinantes nos locais onde elas se estabeleciam. Há que se notar que nem todos os beneméritos que praticaram o ato de caridade tinham seus retratos produzidos. A par dos provedores, somente os grandes doadores recebiam esse mérito, uma vez que o valor da doação estava ligado diretamente à honraria mais que à própria caridade. Destaque-se que, a par das elites tradicionais, o ingresso na confraria não era monolítico. Tornava-se também muito atraente para os grupos ou indivíduos em processo de ascensão porque lhes oferecia o revestimento da consagração social. Entretanto,

os

cargos

mais

importantes

das

mesas

administrativas

eram

majoritariamente preenchidos pelos indivíduos socialmente mais categorizados de cada localidade que, na maioria das vezes, acumulavam com o exercício de outros poderes. Note-se, por exemplo, que viviam em São Paulo e Santos, à época estudada, homens de negócios ricos, mas que não foram admitidos no topo hierárquico dessas irmandades. No caso das diferentes confrarias de origem lusa, como as Misericórdias e as Sociedades Portuguesas de Beneficência, as relações de poder e as ações de caridade estão intrinsecamente interligadas. Estas instituições mantêm ligações com as Câmaras Legislativas, Intendências, partidos políticos, instaurando uma rede de estratégias políticas de alternância do poder, criando também relações de dependência, de concessão e retribuição de favores. Dentre esse conjunto de fatores que possibilitou a construção de toda uma rede de poder local, destaca-se a importância do pertencimento das elites nas instituições conferidoras de poder e status. E indubitavelmente podemos considerar como predominante o papel das Misericórdias enquanto locus privilegiado das estratégias de manutenção do poder das elites locais. No que diz respeito à produção dos retratos, verifica-se que além dos provedores – estes com direito “natural” à imagem – são homenageados, em sua esmagadora maioria, aqueles que prestavam significativas ações filantrópicas e, acima de tudo eram grandes doadores financeiros.

Há que se observar, portanto, as relações entre a

assistência e as relações de poder, considerando que a caridade efetuada por estas instituições afirma e reafirma estratégias de poder. Os retratos são, neste caso, documentos privilegiados para demonstrar, entre outros diversos elementos, espaços de emergência e consolidação de grupos sociais em determinados momentos de uma sociedade Agem, assim, como indicativo do status dos indivíduos que eles representam. E, como indica Shearer West, embora seja importante

15 não ver retratos como mera reflexão das hierarquias sociais, eles podem auxiliar a entender como específicos níveis da sociedade foram percebidos em diferentes períodos da história. A partir dos resultados desta fase da pesquisa – em que investigamos duas Misericórdias entre as mais antigas e importantes do Estado de São Paulo, estendemos o trabalho outras destas instituições, no caso, a do Rio de Janeiro e a de Salvador/Bahia. O intuito é realizar um estudo comparativo deste conjunto de Santas Casas, para compreender as diferenças entre os contextos sociais nos quais estas se inserem e o reflexo destas diferenças na formação das elites locais, a partir da produção de retratos de seus beneméritos.

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