O direito administrativo no ano de 2011

September 11, 2017 | Autor: F. de Melo Fonte | Categoria: Review, Direito Administrativo
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RETROSPECTIVA DE DIREITO ADMINISTRATIVO DE 2011 – MENOS DISCRICIONARIEDADE, MAIS CONSTITUIÇÃO.

Felipe de Melo Fonte1 I. Introdução. II. Supremo Tribunal Federal. a) Inviabilidade de adoção de modo de citação ficta como regra geral no processo administrativo – Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 4.264/PE. b) Decadência e devido processo legal nos registros de aposentadoria junto aos Tribunais de Contas – Mandado de Segurança nº 24.781/DF. c) Princípio da transparência: direito ao conhecimento dos vencimentos brutos dos servidores públicos – Segundo Agravo Regimental na Suspensão de Segurança nº 3.902/SP. d) Sociedades de economia mista e submissão ao regime de precatórios – Recurso Extraordinário nº 599.628/DF. e) Concurso público: expectativa legítima e direito à nomeação – Recurso Extraordinário nº 598.099. III. Superior Tribunal de Justiça. IV. Inovações legislativas. V. Conclusão. I. Introdução Em prosseguimento à louvável tradição inaugurada pela Revista de Direito do Estado em edições precedentes, o presente trabalho destina-se à revisão da jurisprudência oriunda dos Tribunais Superiores a respeito de temas de direito administrativo, assim como à breve análise das inovações legislativas surgidas ao longo do ano de 2011. De modo geral, abundaram questões de enorme relevância social no Poder Judiciário, dentre as quais podem ser destacadas o reconhecimento das uniões estáveis e casamentos entre pessoas do mesmo sexo2, a criminalização da marcha da maconha3, a constitucionalidade do exame de suficiência da Ordem dos Advogados do Brasil4, a legalidade da negativa de extradição do italiano Cesare Battisti5 e, ainda, a higidez da Lei da Ficha Limpa6. Ao longo de todo o ano, a agenda do Supremo esteve presente nos noticiários nacionais, o que denota a importância do Judiciário na dinâmica                                                                                                                         1

Doutorando e Mestre em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Assessor de Ministro no Supremo Tribunal Federal. Procurador do Estado do Rio de Janeiro (licenciado). Contato: [email protected] 2

ADI n° 4.277 e ADPF n° 132/RJ, rel. Min. Ayres Britto, DJe 14.10.2011. REsp n° 1.183.378/RS, rel. Min. Luís Felipe Salomão, j. 25.10.2011. 3

ADPF n° 187/DF, rel. Min. Celso de Mello, j. 15.06.2011.

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RE 603.883/RS, rel. Min. Marco Aurélio, j. 26.10.2011.

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Ext n° 1.085, rel. Min. Gilmar Mendes, red. p/ acórdão Min. Luiz Fux, j. 08.06.2011.

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ADC n° 29, 30 e ADI n° 4.578, rel. Min. Luiz Fux, pendente de julgamento.

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do país. Não é desnecessário dizer que a solução jurisdicional de controvérsias de alta reatividade política e social sem traumas revela importante conquista civilizatória brasileira. No campo das relações entre a Administração Pública e os cidadãos, objeto do direito administrativo, também houve importantes avanços. Estiveram presentes questões relativas aos concursos públicos, registros de aposentadoria, princípios, contratos, processos e atos administrativos. Algumas decisões reviram jurisprudência assentada de longa data; outras marcaram importantes inovações em searas ainda inexploradas. Se pudesse resumir tudo em uma frase, seria essa: menos discricionariedade, mais Constituição. A tendência geral é de desaparecimento dos espaços de liberdade do administrador público insulados do Direito. Os juízes passaram a exigir que o administrador motive seus atos e – mais do que isso – que apresente razões conformes à juridicidade constitucional para que sejam aceitas. Em matéria legislativa, foram editados diversos diplomas voltados à área de infraestrutura, certamente a maior preocupação do Estado brasileiro, tendo em vista a proximidade da Copa das Confederações de 2013, Copa do Mundo de 2014 e das Olimpíadas de 2016, eventos que terão atenção global. A mais importante, sem dúvida alguma, foi o regime diferenciado de licitação e contratação pública para as mencionadas competições. Sem embargo, modificou-se o sistema brasileiro de proteção à concorrência. Esses temas serão objeto de considerações mais adiante. Parece importante destacar ainda que o mecanismo da repercussão geral, criado pela Emenda Constitucional nº 45/2004, vem apresentando um efeito imprevisto. A pretexto de assentar o entendimento do Tribunal sob a nova sistemática e assim gerar o precedente sobre certo tema, o que se percebe é que a realização dos julgamentos submetidos à sistemática da repercussão geral ou dos recursos repetitivos tem gerado a rediscussão aprofundada de teses outrora pacificadas, que às vezes resultam em superação da antiga jurisprudência. Com mais de setecentos temas afetados à repercussão geral, o momento do Supremo, em particular, será de reflexão sobre o trabalho assentado nas últimas décadas. Longe de ser algo indesejável, a revisão das

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razões jurídicas que serviram ao acolhimento de certo entendimento é algo relevante para que os tribunais se mantenham em compasso com a sociedade7. II. Supremo Tribunal Federal No ano judiciário de 2011, o Supremo Tribunal Federal prosseguiu na tarefa de reler os institutos clássicos de direito administrativo à luz das garantias constitucionais previstas na Carta de 1988. Foram destacados cinco acórdãos para comentário, com julgamentos concluídos e publicados ao longo do ano. a) Inviabilidade de adoção de modo de citação ficta como regra geral no processo

administrativo



Medida

Cautelar

na

Ação

Direta

de

Inconstitucionalidade n° 4.264/PE No julgamento da medida cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 4.264, ajuizada pelo Estado de Pernambuco, da relatoria do Ministro Ricardo Lewandowski, estava em discussão a suspensão da eficácia do artigo 11 do Decreto-Lei n° 9.760/468, na redação que lhe foi atribuída pelo artigo 5° da Lei n° 11.481/2007. O ponto central do debate consistiu na compatibilidade entre a Constituição Federal e a permissão, conferida pela norma impugnada, para que os interessados nos processos de demarcação de terreno de marinha9 – bens de propriedade da União Federal, consoante previsão do artigo 20, inciso VII da Carta Federal10 – fossem convidados a participar do procedimento pela via editalícia, isto é, um meio de ciência ficta. A redação anterior do artigo impugnado previa o convite pessoal para os interessados certos, permitindo a intimação por edital apenas daqueles incertos.                                                                                                                         7

Sobre o tema, v. Patrícia Perrone Campos Mello, Precedentes, 2008, pp. 307 a 314.

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DL 9.760/46: “Art. 11. Para a realização da demarcação, a SPU convidará os interessados, por edital, para que no prazo de 60 (sessenta) dias ofereçam a estudo plantas, documentos e outros esclarecimentos concernentes aos terrenos compreendidos no trecho demarcando”. 9

Consoante esclarece Maria Sylvia Zanella Di Pietro, “Terrenos de marinha são os que, banhados pelas águas do mar ou dos rios navegáveis, vão até a distância de 15 braças craveiras (33 metros), para a parte da terra, contadas desde o ponto em chega o preamar médio (art. 13 do Código de Águas). Nos termos do mesmo dispositivo, esse ponto refere-se ao estado do lugar no tempo da execução do artigo 15, § 4º, da Lei de 15-11-1831”. (Direito administrativo, 2009, p. 709) 10

CF88: Art. 20. São bens da União: (…) VII - os terrenos de marinha e seus acrescidos;”

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É importante precisar que o artigo 11, questionado na ação direta, está relacionado à primeira fase do procedimento, que consiste na fixação da linha do preamar médio de 1831. Na segunda fase, o artigo 13 do diploma prevê a subsequente intimação dos afetados, também por edital, para a apresentação de impugnação à demarcação administrativa. A inovação, portanto, consistiu na possibilidade de utilização do edital como regra geral para que os administrados fossem convidados a participar do primeiro momento do processo demarcatório. Cabe destacar que a União não dispõe de elementos exatos a respeito da linha imaginária fixada no ano de 1831, o que tem gerado incertezas quanto aos imóveis que lhe pertencem. Assim, a fixação da linha demarcatória pode fazer com que certos imóveis, antes privados, passem a ser considerados públicos, tornando-os insuscetíveis de usucapião e gerando para o possuidor a obrigação de remunerar a União pelo uso. Como se vê, cuida-se de decisão com graves consequências práticas. O Ministro relator votou pela denegação da cautelar. Segundo ele, na primeira fase do procedimento não está em jogo qualquer interesse privado, mas tão-somente o da própria Administração. Isso porque a fixação da linha não teria por conseqüência imediata a desconstituição dos títulos de propriedade. Somente após esse momento é que os potenciais afetados devem ser chamados para participar do processo administrativo, quando então caberá a observância do contraditório e da ampla defesa, consoante determina a Carta Federal. Aludiu, ainda, ao entendimento do Supremo no sentido de que a citação por edital é compatível com o texto constitucional. A Ministra Cármen Lúcia acompanhou tal entendimento integralmente. O mesmo fizeram os Ministros Joaquim Barbosa e Ellen Gracie, esta última acrescentando ainda a inviabilidade fática de promover a intimação pessoal de todos os interessados na questão. A divergência foi iniciada pelo Ministro Ayres Britto. Ele inicialmente externou a preocupação com o problema alusivo aos terrenos de marinha, hoje um instituto obsoleto em razão da crescente urbanização do litoral brasileiro. No mais, desqualificou a alegação de se tratar de um “pré-processo” administrativo, como se não tivesse o condão de afetar direitos subjetivos dos administrados. Como bem frisou o Ministro Cezar Peluso, “não é pré-processo, porque não é para preparar nada”. Aquilatou, por fim, que os princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa asseguram a 4    

notificação de caráter pessoal. O entendimento foi seguido pelos Ministros Gilmar Mendes, Marco Aurélio e Celso de Mello. Com a impossibilidade de alcançar o quórum previsto no artigo 10 da Lei n° 9.868/9911, resultante do impedimento do Ministro Dias Tofolli, o julgamento foi suspenso para aguardar o voto do Ministro a ser empossado. Finalmente, com a posse do Ministro Luiz Fux, a questão retornou ao plenário para ser decidida. O Ministro optou por seguir a divergência instaurada pelo Ministro Ayres Britto. Salientou que o conflito entre a observância ao devido processo legal e a celeridade na demarcação da área de terreno de marinha há de ser resolvido em favor do primeiro. Rejeitou a alegação de que a participação na primeira fase do processo demarcatório seria uma espécie de “audiência pública”, do que decorreria a desnecessidade de chamamento individual. Sopesando a gravidade do ato demarcatório e as exigências de participação no processo administrativo, o Ministro averbou: “Não se trata de suscitar genericamente que a citação por edital prevista em diversos dispositivos de nosso ordenamento represente uma medida inconstitucional. O que se nos revela incompatível com a axiologia constitucional é a previsão legal de convite por edital como medida ordinária, como instrumento a ser empregado quando outros meios poderiam viabilizar o exercício do direito de ampla defesa. O dispositivo, com a sua nova redação de 2007, está eivado de inconstitucionalidade, à medida que possibilita o emprego do edital ainda que os interessados possam ser facilmente identificados, previsão esta que afronta as garantias processuais constitucionais” (negrito acrescentado). Finalmente, eis a ementa do acórdão12: “AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. MEDIDA CAUTELAR. ART. 11 DO DECRETO-LEI 9.760/1946, NA REDAÇÃO DADA PELA LEI 11.481/2007. VIOLAÇÃO AOS PRINCÍPIOS DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA. OCORRÊNCIA. MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA. I – Ofende as garantias do contraditório e da ampla defesa o convite aos interessados, por meio de edital, para subsidiar a Administração                                                                                                                         11

Lei n° 9.868/99: “Art. 10. Salvo no período de recesso, a medida cautelar na ação direta será concedida por decisão da maioria absoluta dos membros do Tribunal, observado o disposto no art. 22, após a audiência dos órgãos ou autoridades dos quais emanou a lei ou ato normativo impugnado, que deverão pronunciar-se no prazo de cinco dias”. 12

Publicado no Diário da Justiça em 23 de fevereiro de 2011.

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na demarcação da posição das linhas do preamar médio do ano de 1831, uma vez que o cumprimento do devido processo legal pressupõe a intimação pessoal. II – Medida cautelar deferida, vencido o Relator”. Com a suspensão cautelar da eficácia do artigo 11 do Decreto-Lei nº. 9.760/46, na redação dada pela Lei nº 11.481/2007, a redação anterior foi restaurada, que previa a intimação pessoal dos interessados conhecidos e a editalícia somente daqueles desconhecidos, como já assinalado. Se considerada em perspectiva mais ampla, a concessão da cautelar pleiteada pelo Estado de Pernambuco significa a tendência de o Supremo não admitir a adoção dos métodos de citação ficta como regra geral em processos administrativos, sem que ao menos seja tentada a intimação pessoal dos potenciais interessados. E mais: elasteceu o horizonte de proteção das garantias constitucionais da ampla defesa e do contraditório, ao assegurar a oitiva de todos os eventuais interessados mesmo no procedimento prévio de demarcação dos limites dos terrenos de marinha. b) Decadência e devido processo legal nos registros de aposentadoria junto aos Tribunais de Contas – Mandado de Segurança nº 24.781/DF O espectro de competências das Cortes de Contas, previsto no artigo 71 e incisos da Lei Maior, tem gerado volume substancial de processos administrativos submetidos ao referido órgão, impedindo que a atividade seja desenvolvida com a almejável celeridade. Não raro os processos são apreciados em prazos excessivamente dilatados, que por vezes ultrapassam uma década após a prática do ato submetido à fiscalização. Quando se tratam de atos de inativação, a situação é especialmente dramática, pois a glosa da concessão inicial tem por conseqüência a determinação de imediato retorno à atividade. A medida atinge servidores com idades avançadas, desatualizados em relação às tarefas as quais costumavam executar, muitas vezes domiciliados em locais distantes do último posto de trabalho, e que, ao cabo, planejaram a vida confiando no ato estatal que lhes concedeu a aposentação. Por essas particularidades, a acomodação prática entre a regra de decadência prevista no artigo 54 da Lei nº. 9.784/9913 e o registro de                                                                                                                         13

Lei nº 9.784/99: “Art. 54. O direito da Administração de anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários decai em cinco anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé”.

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aposentadoria efetuado pelos Tribunais de Contas da União, Estados e Municípios, por expresso mandamento constitucional – artigo 71, inciso III – é uma matéria que vem causando nítido desconforto aos Ministros do Supremo. Do ponto de vista da juridicidade administrativa, o problema tem gerado duas ordens de questionamento. O primeiro, como já adiantado, diz respeito à compatibilidade entre o prazo decadencial previsto na legislação disciplinadora do processo administrativo e o termo final para o registro de aposentadoria. Essa dificuldade o Supremo resolvera no Mandado de Segurança nº 24.268/MG, da relatoria da Ministra Ellen Gracie, redator para acórdão o Ministro Gilmar Mendes, no qual afirmou a inaplicabilidade de prazo ao registro inicial do ato de inativação, fixando, todavia, a incidência dele quando se tratar de revisão, por exercício da autotutela administrativa, de ato já previamente homologado pela Corte de Contas

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Posteriormente, o Supremo aprimorou a justificativa jurídica da tese, ao fundamento de que a aposentadoria é um ato administrativo complexo15, dependente da manifestação de vontade de dois órgãos distintos para se aperfeiçoar. Por isso não haveria de se cogitar da fluência de prazo decadencial antes de estar juridicamente formado16. O segundo problema é atinente à necessidade de observância do devido processo legal e seus corolários, o contraditório e a ampla defesa, aos mesmos processos administrativos, consoante previsto pelo artigo 5º, incisos LIV e LV da Constituição da República. O leading case sobre o tema é o Agravo Regimental na Suspensão de Segurança nº 541/AM, da relatoria do Ministro Octavio Gallotti, ocasião que o Supremo assentou a desnecessidade de oitiva do interessado nos processos em tramitação nos Tribunais de Contas, sob pena de enfraquecer-se a missão constitucional dos referidos                                                                                                                         14

Esse precedente, ao lado dos MS nº 24.728, rel. Min. Gilmar Mendes, MS 24.754, rel. Min. Marco Aurélio, e MS 24.742, rel. Min. Marco Aurélio, deram origem à Súmula Vinculante nº 3 do Supremo, com o seguinte teor: “Nos processos perante o Tribunal de Contas da União asseguram-se o contraditório e a ampla defesa quando da decisão puder resultar anulação ou revogação de ato administrativo que beneficie o interessado, excetuada a apreciação da legalidade do ato de concessão inicial de aposentadoria, reforma e pensão”. 15

Segundo Hely Lopes Meirelles, ato complexo “é o que se forma pela conjugação de vontades de mais de um órgão administrativo". Pontua o autor que o ato administrativo formado é único. (Direito administrativo brasileiro, 2010, p. 175). 16

A propósito, MS nº 24.728/RJ, rel. Min. Gilmar Mendes, j. 3.8.2005; MS nº 25.440/DF, rel. Min. Carlos Velloso, j. 15.12.2005; MS nº 24.754/DF, rel. Min. Marco Aurélio, j. 18.2.2005; MS nº 24.997/DF, rel. Min. Eros Grau, j. 1.4.2005.

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órgãos17. No Mandado de Segurança nº 24.268/MG, o tema voltou à discussão, ocasião em que a jurisprudência foi reafirmada, em parte. O critério distintivo utilizado foi o mesmo da decadência: quando se tratar de revisão de ato anterior do próprio Tribunal de Contas, impõe-se a observância do contraditório; mas, em se tratando de registro, despicienda a oitiva dos interessados. Pois bem. No Mandado de Segurança nº 24.781, relatado pela Ministra Ellen Gracie, mais uma vez estava em causa a prerrogativa do Tribunal de Contas da União de negar registro a aposentadoria e determinar o retorno à atividade. Na espécie, o impetrante gozava de três aposentadorias, decorrentes de três diferentes vínculos com a Administração Pública, deferidas há treze anos na data do julgamento pela Corte de Contas. Em razão da impossibilidade de acumulação, o Tribunal negara o registro e ainda determinara a devolução dos valores recebidos, reputando inexistir boa-fé por parte do servidor. Fizera-o sem ouvir o interessado, fiando-se na jurisprudência do Supremo. A questão é tão polêmica que o Plenário do Supremo se dividiu em quatro diferentes correntes. A Ministra Ellen Gracie, relatora do caso, entendeu conceder a segurança apenas para assegurar a não-devolução das parcelas percebidas pelo impetrante, reconhecendo-lhe a boa-fé. Manteve, assim, a jurisprudência assentada, no sentido de que o registro inicial de aposentadoria não está sujeito a prazo decadencial e/ou observância aos princípios constitucionais do contraditório e ampla defesa. Foi seguida unicamente pelo Ministro Dias Toffolli. O Ministro Marco Aurélio asseverou que o inciso LV do artigo 5º da Constituição Federal menciona apenas “litigantes ou acusados”, logo, inexistindo tais figuras nos processos administrativos de registro, indeferiu integralmente a segurança. Reputou, ainda, presente a má-fé. De outro lado, o Ministro Cezar Peluso, concedia integralmente a segurança, reconhecendo a decadência                                                                                                                         17

A passagem relevante para a decisão é a seguinte: “Considerar que o Tribunal de Contas, quer no exercício da atividade administrativa de rever os atos de seu Presidente, quer no desempenho da competência constitucional para o julgamento da legalidade da concessão de aposentadorias, (ou ainda na aferição da regularidade de outras despesas), esteja jungido a um processo contraditório ou contencioso, é submeter o controle externo, a cargo daquela Corte, a um enfraquecimento absolutamente incompatível com o papel que vem sendo historicamente desempenhado pela Instituição, desde os albores da República”. O trecho, produzido já sob a égide da Constituição de 1988, revela a radical mudança de visão da Corte Constitucional brasileira a respeito das garantias do direito administrativo, as quais não podem ser anuladas em razão da conveniência operacional de órgãos do Estado.

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integral do poder de revisão do ato concessório pelo Tribunal de Contas, com fundamento no artigo 54 da Lei nº 9.784/99. Prevaleceu, ao fim, o voto médio proferido pelo Ministro Gilmar Mendes, acompanhado pelos Ministros Ayres Britto, Joaquim Barbosa, Ricardo Lewandowski e Cármen Lúcia. O voto significou avanço em relação à jurisprudência assentada do Tribunal, daí a importância. Destaque-se que no Mandado de Segurança nº 25.116/DF, relatado pelo Ministro Ayres Britto, julgado em setembro de 2010, o Supremo já havia modificado parcialmente a jurisprudência, adotando a tese de que o decurso de cinco anos após a aposentadoria seria suficiente a atrair a aplicação do princípio da confiança legítima, exigindo ao Tribunal de Contas, ao menos, que oferecesse o contraditório e ampla defesa aos interessados no registro do ato. O Ministro Gilmar Mendes, em longo voto doutrinário, destacou a importância da proteção às expectativas legítimas para a manutenção do Estado de Direito. Aludiu à passagem do tempo como elemento de criação de presunção de legitimidade e legalidade das posições jurídicas geradas por ato do próprio poder público. Asseverou que o prazo decadencial quinquenal previsto na legislação federal é manifestação da prevalência do princípio da segurança jurídica sobre o princípio da legalidade. Com base nesse entendimento, argumentou: “Na linha do que foi defendido pelo Ministro Ayres Britto, entendo que esse prazo de cinco anos deve ser aplicado ao processo de julgamento e registro de aposentadorias e pensões pelo Tribunal de Contas. Trata-se de fixar a prevalência do princípio da segurança jurídica no sentido de se proteger a estabilidade das situações jurídicas criadas pelo Poder Público, dotadas de aparência de legalidade e legitimidade perante os administrados. A confiança depositada pelo servidor público, na maioria das vezes imbuído de boa-fé, no ato formal da Administração que lhe concede a aposentadoria ou pensão, impõe limites ao poder-dever do Tribunal de Contas de anulá-la a qualquer tempo. O transcurso do prazo razoável para registro da aposentadoria ou pensão faz surgir, para o Tribunal de Contas, o dever de garantir ao interessado a ampla defesa, o contraditório e o devido processo legal no processo administrativo”. (negrito acrescentado)

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O Ministro fez questão de aclarar não ter criado um novo prazo decadencial, de natureza intercorrente. O registro de aposentadoria, reforma ou pensão pelo Tribunal de Contas segue insuscetível de decadência. Todavia, passados cinco anos do recebimento do processo administrativo pelo referido órgão, surge o dever de intimar o interessado e oportunizá-lo a ampla defesa como condição inafastável para que seja possível a negativa de registro. O julgado modifica o entendimento cristalizado na Súmula Vinculante nº 3 do Supremo18, estabelecendo novas balizas para o devido processo legal no âmbito das Cortes de Contas. Quanto à alegada má-fé, o Ministro Gilmar Mendes argumentou que a passagem do tempo acaba por esmaecer eventuais dúvidas quanto à legalidade do ato, robustecendo a confiança da sua permanência por parte do administrado. Essa circunstância permitiria afastar a obrigação de repetir as parcelas indevidamente recebidas. Eis a ementa do acórdão19, no essencial: (...) 4. Negativa de registro de aposentadoria julgada ilegal pelo TCU. Decisão proferida após mais de 5 (cinco) anos da chegada do processo administrativo ao TCU e após mais de 10 (dez) anos da concessão da aposentadoria pelo órgão de origem. Princípio da segurança jurídica (confiança legítima). Garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa. Exigência. 5. Concessão parcial da segurança. I – Nos termos dos precedentes firmados pelo Plenário desta Corte, não se opera a decadência prevista no art. 54 da Lei 9.784/99 no período compreendido entre o ato administrativo concessivo de aposentadoria ou pensão e o posterior julgamento de sua legalidade e registro pelo Tribunal de Contas da União – que consubstancia o exercício da competência constitucional de controle externo (art. 71, III, CF). II – A recente jurisprudência consolidada do STF passou a se manifestar no sentido de exigir que o TCU assegure a ampla defesa e o contraditório nos casos em que o controle externo de legalidade exercido pela Corte de Contas, para registro de aposentadorias e pensões, ultrapassar o prazo de cinco anos, sob pena de ofensa ao princípio da confiança – face subjetiva do princípio da segurança jurídica. Precedentes. III – Nesses casos, conforme o entendimento fixado no presente julgado, o prazo de                                                                                                                         18

Súmula Vinculante nº 3: “Nos processos perante o Tribunal de Contas da União asseguramse o contraditório e a ampla defesa quando da decisão puder resultar anulação ou revogação de ato administrativo que beneficie o interessado, excetuada a apreciação da legalidade do ato de concessão inicial de aposentadoria, reforma e pensão”. 19

Publicado no Diário da Justiça eletrônico de 09 de junho de 2011.

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5 (cinco) anos deve ser contado a partir da data de chegada ao TCU do processo administrativo de aposentadoria ou pensão encaminhado pelo órgão de origem para julgamento da legalidade do ato concessivo de aposentadoria ou pensão e posterior registro pela Corte de Contas. IV – Concessão parcial da segurança para anular o acórdão impugnado e determinar ao TCU que assegure ao impetrante o direito ao contraditório e à ampla defesa no processo administrativo de julgamento da legalidade e registro de sua aposentadoria, assim como para determinar a não devolução das quantias já recebidas. V – Vencidas (i) a tese que concedia integralmente a segurança (por reconhecer a decadência) e (ii) a tese que concedia parcialmente a segurança apenas para dispensar a devolução das importâncias pretéritas recebidas, na forma do que dispõe a Súmula 106 do TCU. O Supremo avança no entendimento relativo à aplicação do prazo decadencial previsto no artigo 54 da Lei nº 9.784/99 na seara dos atos complexos, como é o caso do registro de aposentadorias, reformas e pensões, apontando no sentido de restringir a liberdade decisória dos Tribunais de Contas. Na realidade, a Súmula Vinculante n° 3 já está relativizada e não será surpreendente se o Supremo superá-la em breve, pois parece absolutamente irrazoável glosar atos de aposentadoria uma década (ou mais) após sua prolação. De todo modo, mesmo quanto aos referidos atos, se passados cinco anos desde o recebimento do ato inicial, descabe rejeitá-lo sem oitiva do eventual prejudicado com a decisão administrativa. Por fim, também é relevante o entendimento de que a passagem do tempo tem o condão de apagar os efeitos da má-fé, questão que deverá ser melhor elucidada pela casuística do Tribunal. c) Princípio da transparência: direito ao conhecimento dos vencimentos brutos dos servidores públicos – Segundo Agravo Regimental na Suspensão de Segurança nº 3.902/SP Em outro importante leading case, o Supremo foi chamado a resolver a colisão entre o direito à intimidade e à vida privada e o princípio da transparência na Administração Pública. Na espécie, sobreveio a edição da Lei nº 14.720/2008, oriunda do Município de São Paulo, e do respectivo decreto de regulamentação, que determinou a divulgação, em página eletrônica na internet denominada “De Olho nas Contas”, da remuneração bruta mensal de todos os servidores municipais, incluindo ainda os nomes completos, unidade de lotação, endereço funcional e jornada de trabalho. A lei foi 11    

cumprida pelo ente federativo e contra ela insurgiram-se entidades associativas de servidores municipais, por meio de mandados de segurança, julgados procedentes pelo Tribunal de Justiça de São Paulo. Foi precisamente para suspender os efeitos jurídicos das referidas decisões que o Município de São Paulo dirigiu-se ao Supremo, valendo-se da Suspensão de Segurança nº 3.902/SP. O Presidente do Supremo à época, Ministro Gilmar Mendes, deferiu a suspensão pretendida. Na sucinta decisão, o Ministro reconheceu a presença da colisão entre o direito à privacidade – especialmente porque os nomes dos servidores são divulgados ao lado dos vencimentos – e o dever de transparência, e sugeriu eventualmente a possibilidade de substituir os patronímicos pelas respectivas matrículas. Todavia, asseverou que o impedimento à publicidade relativa aos gastos estatais relacionados à remuneração dos servidores, geraria, sim, grave lesão à ordem pública, em razão das consequências negativas para o controle oficial e social. Entendeu presente também a possibilidade de concretização do denominado “efeito multiplicador” – que consiste na replicação da decisão ilegal –, argumento que, na jurisprudência do Supremo, tem servido de fundamento em incidentes semelhantes. O processo foi relatado pelo Ministro Ayres Britto e julgado em 9 de junho de 2011. Os servidores, devidamente representados, alegavam ser um risco a eles e aos respectivos familiares a divulgação dos vencimentos brutos na internet, ainda mais porque acompanhada do respectivo endereço profissional. Os Ministros, de maneira unânime, rejeitaram o argumento. Segundo o relator, sequer há colisão de princípios constitucionais. A Constituição simplesmente não albergaria a proteção almejada pelos servidores públicos. Ayres Britto ocupou-se de excluir a intimidade e a privacidade dos servidores relacionada aos respectivos estipêndios da exceção aludida pelo inciso XXXIII do artigo 5º da Constituição da República20. Nos termos do Ministro: “No tema, sinta-se que não cabe sequer falar de intimidade ou de vida privada, pois os dados objeto da divulgação em causa dizem respeito a agentes públicos enquanto agentes públicos mesmo; ou, na linguagem da própria                                                                                                                         20

CF88: “Art. 5º. (...) XXXIII - todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado;”.

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Constituição, agentes estatais agindo ‘nessa qualidade’ (§6º do art. 37). E quanto à segurança física ou corporal dos servidores, seja pessoal, seja familiarmente, claro que ela resultará um tanto ou quanto fragilizada com a divulgação nominalizada dos dados em debate, mas é um tipo de risco pessoal e familiar que se atenua com a proibição de se revelar o endereço residencial, o CPF e a CI de cada servidor. No mais, é o preço que se paga pela opção por uma carreira pública no seio de um Estado republicano”. Os Ministros Fux e Marco Aurélio acompanharam o relator com brevíssimas considerações. O Ministro Gilmar Mendes apresentou-se, mais uma vez, sensível ao excesso de publicidade, mas acabou por concordar com o relator em razão das “práticas não muito convencionais” que a Administração adota na política remuneratória. É o que o Ministro Marco Aurélio rotulou de “penduricalhos escamoteados”, os quais seriam evitados com a regra de visibilidade trazida pela norma municipal. Vale lembrar que foi justamente em razão dessas práticas que se adotou o regime de subsídios para certas carreiras, inovação trazida pela Emenda Constitucional nº 19/1998. Eis a ementa do acórdão21: “SUSPENSÃO DE SEGURANÇA. ACÓRDÃOS QUE IMPEDIAM A DIVULGAÇÃO, EM SÍTIO ELETRÔNICO OFICIAL, DE INFORMAÇÕES FUNCIONAIS DE SERVIDORES PÚBLICOS, INCLUSIVE A RESPECTIVA REMUNERAÇÃO. DEFERIMENTO DA MEDIDA DE SUSPENSÃO PELO PRESIDENTE DO STF. AGRAVO REGIMENTAL. CONFLITO APARENTE DE NORMAS CONSTITUCIONAIS. DIREITO À INFORMAÇÃO DE ATOS ESTATAIS, NELES EMBUTIDA A FOLHA DE PAGAMENTO DE ÓRGÃOS E ENTIDADES PÚBLICAS. PRINCÍPIO DA PUBLICIDADE ADMINISTRATIVA. NÃO RECONHECIMENTO DE VIOLAÇÃO À PRIVACIDADE, INTIMIDADE E SEGURANÇA DE SERVIDOR PÚBLICO. AGRAVOS DESPROVIDOS. 1. Caso em que a situação específica dos servidores públicos é regida pela 1ª parte do inciso XXXIII do art. 5º da Constituição. Sua remuneração bruta, cargos e funções por eles titularizados, órgãos de sua formal lotação, tudo é constitutivo de informação de interesse coletivo ou geral. Expondo-se, portanto, a divulgação oficial. Sem que a intimidade deles, vida privada e segurança pessoal e familiar se encaixem nas exceções de que trata a parte derradeira do mesmo dispositivo constitucional (inciso XXXIII do art. 5º), pois o fato é que não estão em jogo nem a segurança do Estado nem do conjunto da sociedade. 2.                                                                                                                         21

Publicado no Diário da Justiça eletrônico de 3 de outubro de 2011.

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Não cabe, no caso, falar de intimidade ou de vida privada, pois os dados objeto da divulgação em causa dizem respeito a agentes públicos enquanto agentes públicos mesmos; ou, na linguagem da própria Constituição, agentes estatais agindo “nessa qualidade” (§6º do art. 37). E quanto à segurança física ou corporal dos servidores, seja pessoal, seja familiarmente, claro que ela resultará um tanto ou quanto fragilizada com a divulgação nominalizada dos dados em debate, mas é um tipo de risco pessoal e familiar que se atenua com a proibição de se revelar o endereço residencial, o CPF e a CI de cada servidor. No mais, é o preço que se paga pela opção por uma carreira pública no seio de um Estado republicano. 3. A prevalência do princípio da publicidade administrativa outra coisa não é senão um dos mais altaneiros modos de concretizar a República enquanto forma de governo. Se, por um lado, há um necessário modo republicano de administrar o Estado brasileiro, de outra parte é a cidadania mesma que tem o direito de ver o seu Estado republicanamente administrado. O “como” se administra a coisa pública a preponderar sobre o “quem” administra – falaria Norberto Bobbio -, e o fato é que esse modo público de gerir a máquina estatal é elemento conceitual da nossa República. O olho e a pálpebra da nossa fisionomia constitucional republicana. 4. A negativa de prevalência do princípio da publicidade administrativa implicaria, no caso, inadmissível situação de grave lesão à ordem pública. 5. Agravos Regimentais desprovidos”. Oportuno dizer que a matéria será reapreciada no julgamento do Agravo em Recurso Extraordinário nº 652.777, também sob a relatoria do Ministro Ayres Britto, cuja repercussão geral já foi reconhecida, em que se discute a responsabilidade civil do Estado por dano moral decorrente da publicação dos vencimentos de servidor na internet, proveniente do Estado de São Paulo. Observa-se que na decisão não se discutiu a aplicação do artigo 5º, inciso X, da Constituição, o qual assegura o direito fundamental à intimidade e à vida privada, e que poderia eventualmente fundamentar decisão oposta, como ocorre na discussão atinente à presença ou não do dano moral. A veemência do precedente, contudo, aponta no sentido de manutenção do entendimento no julgamento vindouro. d) Sociedades de economia mista e submissão ao regime de precatórios – Recurso Extraordinário nº 599.628/DF

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Sempre se entendeu que as prerrogativas materiais e processuais da Fazenda Pública são aplicáveis aos próprios entes federativos, às autarquias e às fundações de natureza autárquica – em suma, pessoas jurídicas de direito público22. O mesmo não ocorria quanto aos entes privados da Administração Pública, tais como sociedades de economia mista e empresas públicas, os quais, embora às vezes praticassem atividades tipicamente estatais, como a contratação por licitação e a realização de concurso público para a escolha de pessoal, eram tratados em regime semelhante às empresas privadas – consoante determinação do artigo 173, § 1º da Constituição da República, na redação original. Essa lógica foi mantida até o julgamento conjunto dos Recursos Extraordinários nº 220.906/DF, nº 225.011/MG e nº 229.696/PE, ocasião em que o Tribunal estendeu à Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos a garantia de impenhorabilidade dos bens, reconhecendo a compatibilidade do artigo 12 do Decreto-Lei nº. 509/6923 com a Carta de 1988. Prevalecera a tese de que a natureza da atividade desempenhada pela ECT – prestadora de serviço público em regime monopolístico – deveria sobrepor-se à forma societária adotada (empresa pública), para o fim específico de lhe reconhecer as garantias próprias da Fazenda Pública. A mesma lógica prevaleceu quando o Tribunal decidiu estender à Infraero a imunidade tributária recíproca prevista no artigo 150, inciso VI, alínea “a”, da Carta da República24. Pois bem. Seguindo tal linha jurisprudencial, o Supremo foi chamado a examinar a possibilidade de extensão do mesmo regime às sociedades de economia mista prestadoras de serviços públicos. No caso concreto, a Centrais Elétricas do Norte do Brasil S/A postulava o reconhecimento do direito à submissão ao regime de pagamento por precatórios, e, por consequência, a impenhorabilidade de seus bens, em razão de ser coordenadora dos programas de energia elétrica na Amazônia Legal, serviço público atribuído à União Federal em conformidade com o artigo 21, inciso XII, alínea “b”, da                                                                                                                         22

A propósito, confira o RE 222.041-5/RS, rel. Min. Ilmar Galvão, DJ 31.05.2002.

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DL 509/69: “Art. 12 - A ECT gozará de isenção de direitos de importação de materiais e equipamentos destinados aos seus serviços, dos privilégios concedidos à Fazenda Pública, quer em relação a imunidade tributária, direta ou indireta, impenhorabilidade de seus bens, rendas e serviços, quer no concernente a foro, prazos e custas processuais”. 24

AgR no RE nº 363.712/BA, rel. Min. Celso de Mello, DJ 19.09.2008.

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Constituição25. O benefício lhe fora negado pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios. O relator, Ministro Ayres Britto, fixou-se na jurisprudência do Supremo que reconheceu a possibilidade de extensão das prerrogativas da Fazenda aos entes da Administração Pública indireta prestadores de serviços públicos, afirmando não estarem sujeitos aos ditames do artigo 173, § 1º, inciso II, da Carta Federal26. O Ministro salientou a importância dos serviços públicos, em especial para os indivíduos menos afortunados, bem como da utilização da técnica do precatório para equacionar os pagamentos devidos pelo Estado. Frisou que o Supremo, no julgamento da Ação Cautelar nº 669, formalizada pela Companhia do Metropolitano de São Paulo, também uma sociedade de economia mista, assentou a impenhorabilidade de quantia depositada em conta bancária em deferência ao princípio da continuidade do serviço público. Na opinião do relator, o pagamento por intermédio de precatórios tem por objetivo “impedir o risco de uma súbita paralisia nas atividades de senhorio estatal”. E arrematou: “sem o regime de precatório seria absolutamente impossível o Estado se reprogramar para prosseguir sem trégua no desempenho dos misteres que dão substância e propósito à sua concepção como realidade jurídica universalmente consagrada”. Segundo o relator, houve muita imprecisão técnica na constituição dessas pessoas estatais, acontecendo com frequência que entidades revestidas de personalidade jurídica de direito privado fossem “autarquias de fato”. Daí o precedente em favor da ECT. Argumentou que a delegatária de serviço público insere-se sob a rubrica maior de entidade do setor público, embora constituída sob a forma de sociedade anônima, razão pela qual ela é o próprio Estado para fins de prestação de serviço público, nos termos                                                                                                                         25

CF88: “Art. 21. Compete à União: (...) XII - explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão: (...) b) os serviços e instalações de energia elétrica e o aproveitamento energético dos cursos de água, em articulação com os Estados onde se situam os potenciais hidroenergéticos;”. 26

CF88: “Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei. (...) § 1º A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre: (...) II - a sujeição ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários;”.

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dos artigos 175 e 21, inciso XII, da Constituição. Em razão disso, mesmo sendo pessoa jurídica de direito privado, ela é regida por um regime jurídico diferente daquele que é típico das empresas particulares. Salientou que a participação de acionistas privados é quase insignificante. Por fim, quanto à problemática da previsão orçamentária para o pagamento das dívidas, apontou para a previsão contida no artigo 165, § 5º, inciso II, da Carta, concluindo que a realidade financeira das estatais é contemplada no orçamento da União Federal. Inclusive, há previsão da Lei de Diretrizes Orçamentárias para 2011 – Lei nº 12.309/10 – de que devem constar na lei orçamentária as dotações para pagamentos de condenações das empresas estatais dependentes. Concluiu pelo provimento do extraordinário. Em seguida, o Ministro Joaquim Barbosa proferiu voto-vista desprovendo o recurso das Centrais Elétricas do Norte do Brasil S/A. Segundo ele, duas razões preponderantes afastam a pretensão da recorrente. Primeiro, o modelo de geração e fornecimento de energia elétrica está aberto à livre iniciativa e concorrência, consoante prevêem os artigos 15, 16 e 26, § 5º da Lei nº 9.074/95. Assim, o reconhecimento do direito de pagamento por precatórios poderá desequilibrar artificialmente as condições de concorrência no mercado, em desacordo com os artigos 173, § 1º, inciso II e § 2º da Constituição. Segundo, ao ingressar no mercado com o objetivo de auferir lucros, o Estado não poderia fazê-lo com as garantias que lhe são próprias, mas deve atuar como um agente privado. O Ministro suscitou que a Eletrobras, controladora da recorrente, possui até ações negociadas em bolsas de valores estrangeiras. As duas visões, nitidamente antagônicas, dividiram o Plenário do Supremo. O relator foi acompanhado pelo Ministro Dias Toffoli e Gilmar Mendes. Os Ministros Cármen Lúcia, Ellen Gracie, Luiz Fux, Ricardo Lewandowski, Marco Aurélio e Cezar Peluzo acompanharam a divergência. Interessante notar que o Ministro Dias Toffoli insistiu na replicação da lógica adotada para o caso da ECT, ao que se opôs o Ministro Joaquim Barbosa com uma distinção: no serviço de geração de energia elétrica há concorrência, ao passo que as atividades da ECT são exercidas em monopólio. De fato, como já suscitado no leading case a respeito do tema, o exercício em monopólio de certa atividade, por si só, não é razão para lhe estender regime de privilégio, pois fosse assim a Petrobras teria idêntico 17    

direito. Na verdade, o cerne da questão é que o regime de atividades da empresa é híbrido: ela exerce serviço público e, ao mesmo tempo, também concorre com outras empresas de produção de energia elétrica. Contudo, é de se observar que os Correios também exercem atividades tipicamente privadas em regime concorrencial. A questão, portanto, era de prevalência de um ou outro. Sobre o caso da ECT, salientou o Ministro Gilmar Mendes, “a lei estabelecia in genere um plexo de monopólio muito mais amplo”. Daí ter prevalecido o privilégio. Objetivamente posta a questão, se dificilmente se vê estatais dedicadas exclusivamente a uma atividade considerada serviço público, como então definir se há a incidência do artigo 100 da Constituição Federal com base puramente nesse critério? A combinação entre o elemento objetivo e a exclusividade no exercício da atividade pode ser a chave para a resposta para os casos futuros. Todavia, fica desde logo afastada a ideia de que o simples fato de a estatal prestar serviço público seria suficiente para lhe assegurar as prerrogativas fazendárias, entendimento assentado antes do julgamento deste extraordinário27. O acórdão restou assim ementado28: “FINANCEIRO. SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA. PAGAMENTO DE VALORES POR FORÇA DE DECISÃO JUDICIAL. INAPLICABILIDADE DO REGIME DE PRECATÓRIO. ART. 100 DA CONSTITUIÇÃO. CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL CIVIL. MATÉRIA CONSTITUCIONAL CUJA REPERCUSSÃO GERAL FOI RECONHECIDA. Os privilégios da Fazenda Pública são inextensíveis às sociedades de economia mista que executam atividades em regime de concorrência ou que tenham como objetivo distribuir lucros aos seus acionistas. Portanto, a empresa Centrais Elétricas do Norte do Brasil S.A. - Eletronorte não pode se beneficiar do sistema de pagamento por precatório de dívidas decorrentes de decisões judiciais (art. 100 da Constituição). Recurso extraordinário ao qual se nega provimento”.                                                                                                                         27

O problema foi antevisto Marçal Justen Filho, que averbou: “Produz-se, então, a acumulação de atividades de distinta natureza por uma única e mesma entidade. Torna-se problemático afirmar que a sociedade estatal desempenha apenas serviço público ou somente atividade econômica em sentido estrito. É difícil uma entidade exploradora de atividade econômica assumir a prestação de serviço público. Mas a situação inversa não é tão rara, uma vez que a liberdade de empresa dá oportunidade a ampliação da atuação estatal, fundamentada no art. 11 da Lei Geral de Concessões (Lei n. 8.987/95)”. (Curso de direito administrativo, 2009, p. 205) 28

Publicado no Diário da Justiça eletrônico de 17 de outubro de 2011.

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O julgado, sem dúvida alguma, aponta para uma releitura da jurisprudência da Corte constitucional, daí sua importância. Com efeito, o critério que vinha sendo empregado como essencial para a extensão das prerrogativas da Fazenda – qual seja, o exercício do serviço público – já não mais se pode afirmar absoluto. Resta saber qual será o critério distintivo que o Tribunal utilizará para estender às pessoas jurídicas de direito privado tais privilégios. Frise-se que, após a publicação do acórdão, houve a oposição de embargos declaratórios, ainda pendentes de julgamento pelo Supremo. e) Concurso público: expectativa legítima e direito à nomeação – Recurso Extraordinário nº 598.099 No julgamento do Recurso Extraordinário nº 598.099, da relatoria do Ministro Gilmar Mendes, o Supremo reviu jurisprudência anterior do próprio Tribunal, no sentido de que os candidatos aprovados em concurso público têm mera expectativa de direito à nomeação para o cargo público. Inicialmente, a única exceção admitida a essa regra era o caso de preterição na ordem de classificação, hipótese que gerava para o candidato preterido o direito subjetivo à nomeação, consoante estampado na Súmula nº 15 do Supremo29. Posteriormente, a Corte reconheceu que o preenchimento da vaga, ainda que em caráter precário, configuraria desvio de poder, ensejando, de igual modo, o direito à nomeação30. Esse entendimento vinha sendo aplicado correntemente pelos Ministros, em decisões coletivas e singulares31. Mas o Tribunal já havia dado sinais de que reveria o entendimento assentado sobre o tema. No Mandado de Segurança nº 24.660, da relatoria da Ministra Ellen Gracie, redatora para acórdão Ministra Cármen Lúcia, discutia-se o direito à nomeação de candidata aprovada para o concurso público para o cargo de Promotor de Justiça militar, para vaga criada ainda dentro do prazo de validade do certame. Iniciado em                                                                                                                         29

Eis o texto da Súmula nº 15, aprovada em 13 de dezembro de 1963: “Dentro do prazo de validade do concurso, o candidato aprovado tem o direito à nomeação, quando o cargo for preenchido sem observância da classificação”. 30

RE nº 273.605, rel. Min. Gilmar Mendes, DJ 28.06.2002. AgR no AI nº 381.529, rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 02.06.2003. 31

AgR no RE n° 306.938, rel. Min. Cezar Peluso, DJ 11.10.2007, AgR no RE n° 421.938, rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 02.06.2006.

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2006, o julgamento foi concluído em 3 de fevereiro de 2011, em razão de sucessivos pedidos de vista. Embora a discussão relativa ao direito à nomeação tenha sido suscitada, prevaleceu, ao final, a aplicação da conhecida teoria dos motivos determinantes. Isso porque, no caso concreto, a autoridade pública responsável por efetuar a nomeação teria deixado de fazê-lo ao fundamento singelo de que a candidata era a última colocada do certame, sendo preferível abrir outro concurso. Ao fazer prevalecer o subjetivismo, sem que que tenha apresentado qualquer razão de interesse público para fundamentar a decisão, entendeu-se caracterizado o abuso de poder e a violação ao princípio da impessoalidade. A conclusão foi o reconhecimento do direito à nomeação em tal situação. Posteriormente, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 581.113/SC, da relatoria do Ministro Dias Toffoli, em 5 de abril de 2011, pela Primeira Turma do Tribunal, novamente se fez presente a criação de cargos ao longo do prazo de validade do concurso, acrescido da decisão administrativa de não renová-lo, optando por abrir novo certame para preenchê-los. O Tribunal Superior Eleitoral havia proferido acórdão confirmando o ato administrativo que decidira pela não-nomeação dos aprovados, fundamentando-o na citada jurisprudência do Supremo no sentido de ser discricionária a decisão relativa à prorrogação de concurso público e ao aproveitamento dos candidatos aprovados. No voto proferido, seguido à unanimidade, o Ministro relator averbou: “Se é certo que não se pode compelir a Administração a prorrogar, obrigatoriamente, o prazo de todo e qualquer concurso público que venha a realizar, uma vez que tal faculdade se insere no poder discricionário que lhe é inerente, não é menos certo que, se, ainda durante o prazo de validade do concurso, novos cargos da mesma natureza desses que deram causa à abertura do certame foram criados, parece inegável o direito dos aprovados em serem nomeados e, para tanto, pertinente se mostrava a prorrogação do prazo de validade do concurso”. Nas duas decisões, os Ministros salientaram o grave impacto do concurso público na vida pessoal dos candidatos – frise-se que a maior parte deles submeteu-se a certame para lograr ingresso em carreiras públicas antes de ascenderem ao Supremo – a contrastar com o direito conferido à Administração, de natureza praticamente absoluta, de nomear os aprovados e/ou prorrogar a validade do certame, sem que esteja obrigada a apresentar qualquer justificativa para tais decisões. Os prenúncios da revisão geral da 20    

jurisprudência

foram

finalmente

concretizados

no

julgamento

do

Recurso

Extraordinário nº 598.099/MS, da relatoria do Ministro Gilmar Mendes, ocorrido em 10 de agosto de 2011, afetado à sistemática da repercussão geral. No caso concreto, houve a interposição de extraordinário contra acórdão do Superior Tribunal de Justiça que reconhecera o direito à nomeação de candidato aprovado e classificado em concurso público para o cargo de agente auxiliar de perícias do Estado do Mato Grosso do Sul, mas que deixara de ser aproveitado dentro do prazo de validade do certame sem qualquer justificativa32. O Ministro Gilmar decidiu, então, inverter a lógica que tem prevalecido na questão e confirmar o acórdão do Superior. Asseverou descaber ao candidato demonstrar ter sido preterido na convocação para o exercício da função pública, mas sim à Administração apresentar as razões excepcionais que conduziram à decisão de não nomear os candidatos aprovados dentro das vagas previstas no edital. Isso porque a publicação do edital contemplando certo número de cargos em disputa gera nos administrados a expectativa de respeito àquela previsão, sendo esta digna de tutela em razão do princípio da segurança jurídica. O Ministro alude ao princípio da proteção da confiança, decorrente da cláusula do Estado de Direito, expressão de um componente de ética a permear as relações jurídicas. Ao cabo, o descumprimento injustificado da promessa administrativa acaba por ensejar violação à boa-fé dos candidatos. Nas palavras dele: “Quando a Administração Pública torna público um edital de concurso, convocando todos os cidadãos a participarem de seleção para o preenchimento de determinadas vagas no serviço público, ela impreterivelmente gera uma expectativa quanto ao seu comportamento segundo as regras previstas nesse edital. Aqueles cidadãos que decidem se inscrever e participar do certame público depositam sua confiança no Estado administrador, que deve atuar de forma responsável quanto às normas do edital e observar o princípio da segurança jurídica como guia de comportamento. Isso quer dizer, em outros termos, que o comportamento da Administração Pública no decorrer do                                                                                                                         32

Merece registro o fato de que o Superior Tribunal de Justiça reviu a própria jurisprudência antes do Supremo Tribunal Federal. Com a subida dos extraordinários, havia dúvida quanto à manutenção ou revisão da jurisprudência deste último Tribunal. A propósito, v. RMS 31.611SP, DJ 17.5.2010, e AgRg no RMS 30.308-MS, DJ 15.3.2010.

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concurso público deve-se pautar pela boa-fé, tanto no sentido objetivo, quanto no aspecto subjetivo de respeito à confiança nela depositada por todos os cidadãos”. Segundo o Ministro, dentro do prazo de validade do certame, pode o administrador escolher quando se dará a nomeação para as vagas previstas no edital, mas não poderá dispor a respeito do próprio ato, ao qual estará obrigado. Excepcionalmente, o relator admitiu a possibilidade de não cumprimento do dever de nomeação. Para ser legítimo, o motivo deve atender aos seguintes requisitos, segundo sistematização proposta pelo Ministro Gilmar Mendes: (i) superveniência em relação à publicação do edital; (ii) imprevisibilidade; (iii) considerável gravidade; e (iv) inexistência de solução alternativa menos gravosa (subprincípio da necessidade). Em qualquer caso, a decisão administrativa há de ser sempre motivada, a fim de possibilitar o controle judicial dos motivos determinantes. Assim, e.g., a superveniência de grave crise econômica, guerras, modificações normativas consideráveis – como a Emenda Constitucional n° 14/96, que atribuiu aos Municípios a atuação nos setores de ensino fundamental e educação infantil, citada pela Ministra Cármen Lúcia – são razões que justificariam a atitude da Administração Pública. Os vetores hermenêuticos propostos pelo relator foram acatados unanimemente pelo Tribunal. A Ministra Cármen Lúcia foi ainda mais longe. Para ela, já não se pode mais falar em discricionariedade administrativa na perspectiva clássica, considerada um poder para que o administrador aja livremente. Pelo contrário, impõe-se que as decisões administrativas sejam fundamentadas e respeitem a ordem jurídica. A discricionariedade “antiga”, diz ela, confunde-se com o arbítrio. Para a Ministra, o respeito à confiança faz parte do exercício ético da atividade administrativa. Na oportunidade, teceu ainda críticas a entendimento semelhante no campo das contratações públicas, em que se confere liberdade ao administrador para decidir quanto à confecção ou não do contrato ao término do procedimento licitatório. Asseverou: “Isto é paralelo ao que se passa numa licitação em que se diz que ao licitante vencedor não se reconhece direito algum. Isto é uma porta aberta para que este convencimento se passe procurando-se não adequar o que foi comprovado, mas, de alguma forma, demonstrar que nós somos aptos, e que isto é bom. Enfim, eu acho que isso é uma porta aberta até para a corrupção: de que se vai agradar, de que se vai poder fazer. 22    

Então, hoje, eu centro esse direito subjetivo no cidadão, e não no concursado, porque acho que é uma questão de moralidade administrativa. A Administração tem que ser moral, ética em todos os seus comportamentos, e não acredito em uma democracia que não viva do princípio da confiança do cidadão na Administração”. O acórdão ficou assim ementado33: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPERCUSSÃO GERAL. CONCURSO PÚBLICO. PREVISÃO DE VAGAS EM EDITAL. DIREITO À NOMEAÇÃO DOS CANDIDATOS APROVADOS. I. DIREITO À NOMEAÇÃO. CANDIDATO APROVADO DENTRO DO NÚMERO DE VAGAS PREVISTAS NO EDITAL. Dentro do prazo de validade do concurso, a Administração poderá escolher o momento no qual se realizará a nomeação, mas não poderá dispor sobre a própria nomeação, a qual, de acordo com o edital, passa a constituir um direito do concursando aprovado e, dessa forma, um dever imposto ao poder público. Uma vez publicado o edital do concurso com número específico de vagas, o ato da Administração que declara os candidatos aprovados no certame cria um dever de nomeação para a própria Administração e, portanto, um direito à nomeação titularizado pelo candidato aprovado dentro desse número de vagas. II. ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA. BOA-FÉ. PROTEÇÃO À CONFIANÇA. O dever de boa-fé da Administração Pública exige o respeito incondicional às regras do edital, inclusive quanto à previsão das vagas do concurso público. Isso igualmente decorre de um necessário e incondicional respeito à segurança jurídica como princípio do Estado de Direito. Tem-se, aqui, o princípio da segurança jurídica como princípio de proteção à confiança. Quando a Administração torna público um edital de concurso, convocando todos os cidadãos a participarem de seleção para o preenchimento de determinadas vagas no serviço público, ela impreterivelmente gera uma expectativa quanto ao seu comportamento segundo as regras previstas nesse edital. Aqueles cidadãos que decidem se inscrever e participar do certame público depositam sua confiança no Estado administrador, que deve atuar de forma responsável quanto às normas do edital e observar o princípio da segurança jurídica como guia de comportamento. Isso quer dizer, em outros termos, que o comportamento da Administração Pública no decorrer do concurso público deve se pautar pela boa-fé, tanto no sentido objetivo quanto no aspecto subjetivo de respeito à confiança nela depositada por todos os cidadãos. III. SITUAÇÕES EXCEPCIONAIS. NECESSIDADE DE MOTIVAÇÃO.                                                                                                                         33

Publicado no Diário da Justiça eletrônico de 3 de outubro de 2011.

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CONTROLE PELO PODER JUDICIÁRIO. Quando se afirma que a Administração Pública tem a obrigação de nomear os aprovados dentro do número de vagas previsto no edital, deve-se levar em consideração a possibilidade de situações excepcionalíssimas que justifiquem soluções diferenciadas, devidamente motivadas de acordo com o interesse público. Não se pode ignorar que determinadas situações excepcionais podem exigir a recusa da Administração Pública de nomear novos servidores. Para justificar o excepcionalíssimo não cumprimento do dever de nomeação por parte da Administração Pública, é necessário que a situação justificadora seja dotada das seguintes características: a) Superveniência: os eventuais fatos ensejadores de uma situação excepcional devem ser necessariamente posteriores à publicação do edital do certame público; b) Imprevisibilidade: a situação deve ser determinada por circunstâncias extraordinárias, imprevisíveis à época da publicação do edital; c) Gravidade: os acontecimentos extraordinários e imprevisíveis devem ser extremamente graves, implicando onerosidade excessiva, dificuldade ou mesmo impossibilidade de cumprimento efetivo das regras do edital; d) Necessidade: a solução drástica e excepcional de não cumprimento do dever de nomeação deve ser extremamente necessária, de forma que a Administração somente pode adotar tal medida quando absolutamente não existirem outros meios menos gravosos para lidar com a situação excepcional e imprevisível. De toda forma, a recusa de nomear candidato aprovado dentro do número de vagas deve ser devidamente motivada e, dessa forma, passível de controle pelo Poder Judiciário. IV. FORÇA NORMATIVA DO PRINCÍPIO DO CONCURSO PÚBLICO. Esse entendimento, na medida em que atesta a existência de um direito subjetivo à nomeação, reconhece e preserva da melhor forma a força normativa do princípio do concurso público, que vincula diretamente a Administração. É preciso reconhecer que a efetividade da exigência constitucional do concurso público, como uma incomensurável conquista da cidadania no Brasil, permanece condicionada à observância, pelo Poder Público, de normas de organização e procedimento e, principalmente, de garantias fundamentais que possibilitem o seu pleno exercício pelos cidadãos. O reconhecimento de um direito subjetivo à nomeação deve passar a impor limites à atuação da Administração Pública e dela exigir o estrito cumprimento das normas que regem os certames, com especial observância dos deveres de boa-fé e incondicional respeito à confiança dos cidadãos. O princípio constitucional do concurso público é fortalecido quando o Poder Público assegura e observa as garantias fundamentais que viabilizam a efetividade desse princípio. Ao lado das garantias de publicidade, isonomia, transparência, impessoalidade, entre outras, o direito à nomeação representa também uma garantia fundamental da

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plena efetividade do princípio do concurso público. V. NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. No campo do direito administrativo, é seguramente a decisão mais importante do ano. Joga novas luzes sobre o tema do concurso público, além de ter reflexos em matérias como licitações e contratos administrativos e na própria teoria do ato administrativo. II. Superior Tribunal de Justiça Atuando na interpretação e uniformização da legislação infraconstitucional federal, o Superior enfrentou diversas questões relacionadas ao direito administrativo ao longo do ano. Muitos foram os casos de mera reiteração da jurisprudência já assentada pelo Tribunal, mas, mesmo nestes, eventualmente surgiram discussões interessantes. Os casos selecionados, comentados brevemente a seguir, buscaram refletir não apenas a inovação, mas igualmente a relevância da questão solucionada. No início do ano, no julgamento do Recurso Especial n° 950.489/DF34, relator Ministro Luiz Fux, a Segunda Turma do Superior enfrentou questão relativa à nulidade de contratação administrativa por inobservância parcial do edital do certame. No caso, a empresa vencedora, com quem o contrato fora efetivamente celebrado, somente cumpriu o requisito de valor mínimo de capital social após a efetiva contratação e quando já havia iniciado a prestação dos serviços pactuados. O vício gerou o ajuizamento de ação civil pública objetivando a declaração de nulidade do contrato, o que foi rejeitado pela Corte. No caso, prevaleceu o interesse público na manutenção do contrato quando ponderado com a observância da legalidade estrita, presente a circunstância de que a Administração se desmobilizara para a prestação daquele serviço público específico (administração de cemitérios). No caso, averbou o Ministro Fux: “no balanceamento dos interesses em jogo, entre anular o contrato firmado para a prestação de serviço (...) ou admitir o saneamento de uma irregularidade contratual, para possibilitar a continuidade dos referidos serviços, in casu, essenciais à população, a última opção conspira em prol do interesse público”.                                                                                                                         34

Publicado no Diário da Justiça eletrônico de 23 de fevereiro de 2011.

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No Recurso em Mandado de Segurança n° 27.42835, relatado pelo Ministro Jorge Mussi, julgado em março de 2011, a Quinta Turma do Superior analisou se o servidor público tem direito de escolher a instituição financeira para depósito dos respectivos vencimentos.

No

caso

concreto,

o

impetrante

requereu

a

providência

administrativamente, alegando ter sofrido dissabores com o banco, e o pedido fora indeferido pelo órgão ao qual vinculado. O relator reconheceu inexistir norma legal que confira direito ao servidor de fazer tal escolha. Asseverou, por outro lado, que a liberdade de seleção do banco poderia causar problemas práticos à Administração Pública, inviabilizando a emissão tempestiva das ordens de pagamento. Disse: “inserese no âmbito de autonomia administrativa de cada órgão público a opção pela instituição financeira que receberá os créditos salariais dos servidores a ela vinculadas, desde que observadas as disposições normativas sobre a matéria”. No voto, o relator admite a contratação por licitação ou a celebração de convênio para tal finalidade. Cuida-se de uma importante tese em favor dos interesses da Administração Pública, pois a escolha da instituição de gestão da massa de vencimentos permite à Administração auferir benefícios financeiros, como faz, por exemplo, o Estado do Rio de Janeiro. No Recurso Especial n° 1.092.010/SC 36 , relator Ministro Castro Meira, o Tribunal enfrentou a questão alusiva à possibilidade de compensação da valorização da área remanescente decorrente da execução de obra na área desapropriada, a se realizar no cálculo do valor da indenização, consoante previsão do artigo 27 do Decreto-Lei n° 3.365/41 37 . O Superior tem jurisprudência pacífica no sentido de que somente a valorização específica, isto é, aquela que está limitada à área remanescente do imóvel, justifica a redução equitativa do valor devido pela expropriação. Quando, ao contrário, a valorização é geral, o instrumento que o Estado deve utilizar para evitar o enriquecimento sem causa é a contribuição de melhoria ou a desapropriação por zona. Esse entendimento foi reiterado pelo Superior. Contudo, nesse caso específico, houve                                                                                                                         35

Publicado no Diário da Justiça eletrônico de 14 de março de 2011.

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Publicado no Diário da Justiça eletrônico de 21 de outubro de 2011.

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DL 3.365/41: “Art. 27. O juiz indicará na sentença os fatos que motivaram o seu convencimento e deverá atender, especialmente, à estimação dos bens para efeitos fiscais; ao preço de aquisição e interesse que deles aufere o proprietário; à sua situação, estado de conservação e segurança; ao valor venal dos da mesma espécie, nos últimos cinco anos, e à valorização ou depreciação de área remanescente, pertencente ao réu”.

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voto divergente do Ministro Herman Benjamim. Para o Ministro, na literalidade da regra não há a restrição criada pela jurisprudência. Ele tampouco consegue vislumbrar hipótese em que ocorra valorização de um só imóvel sem que haja, por consequência, desvio de finalidade na execução da obra pública. Portanto, conclui: “a interpretação agora dada ao art. 27 do DL 3.365/1941 pelo voto do eminente relator simplesmente despe-o de aplicabilidade prática, o que viola princípio hermenêutico básico”. Os demais Ministros componentes da Segunda Turma acompanharam o relator, mas a provocação do Ministro Benjamim suscitou o debate quanto à jurisprudência já assentada há décadas, e que tem resultado, de fato, no esvaziamento prático da regra legal. No Mandado de Segurança n° 15.054/DF38, relator Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, redator para acórdão Ministro Gilson Dipp, julgado pela Terceira Seção do Superior em 25 de maio de 2011, discutiu-se a possibilidade de a Administração Pública federal promover a demissão de servidor pela prática de ato de improbidade, consoante previsão do artigo 132, inciso IV, da Lei n° 8.112/9039, sem observância do rito da Lei n° 8.429/92. A matéria é controvertida. Como é sabido, a Lei n° 8.429/92 buscou especificar os comportamentos que devem ser tipificados como improbidade administrativo (artigos 9°, 10 e 11), estabelecendo ainda certo procedimento para a aplicação das penalidades nela previstas (que incluem perda da função pública, suspensão de direitos políticos, dentre outras). De outro lado, remanesce na Lei n° 8.112/90 a previsão genérica de que a prática de atos de improbidade administrativa podem ensejar a aplicação da pena de demissão. O relator entendeu que a Lei n° 8.429/92 subtraiu ao administrador a possibilidade de aplicar a pena de demissão, porquanto agora submetida à reserva de jurisdição. Mais do que isso, externou opinião de que “a permanência, no âmbito administrativo, de potestade sancionadora é sobrevivência exótica do período em que a função de julgar e punir estava inserida no âmago das funções executivas”. Para o Ministro, a flexibilidade da previsão genérica contida na legislação de pessoal do serviço público federal permite a ocorrência de equívocos e arbitrariedades. Daí ter                                                                                                                         38

Publicado no Diário da Justiça eletrônico de 19 de dezembro de 2011.

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L. 8112/90: Art. 132. A demissão será aplicada nos seguintes casos: (…) IV - improbidade administrativa;

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votado no sentido de conceder a ordem, para cassar a portaria demissional, facultando à Administração o ingresso em juízo para ver reconhecida a improbidade, se for o caso. O Ministro Gilson Dipp proferiu voto-vista em sentido diametralmente oposto. Baseou-se na antiga jurisprudência do Supremo no sentido da independência entre as esferas administrativa, civil e penal de responsabilidade. Delimitou o alcance da Lei n° 8.429/92 aos atos de improbidade previstos nos artigos 9°, 10 e 11, sendo que as improbidades não previstas ou fora dos limites dos referidos dispositivos ficam sujeitas à disciplina da legislação estatutária. Asseverou que “o entendimento de que as infrações disciplinares de improbidade, em qualquer caso, estariam sujeitas à ação judicial implica manifesta desatenção ao texto constitucional e aniquilação do poder de autotutela da administração”. Esse entendimento restou vencedor, embora revele incongruência sistêmica e certo anacronismo, porquanto já se caminha para a aplicação do princípio da tipicidade no âmbito do direito administrativo punitivo. A matéria, consoante exposto pelo relator, foi objeto de apreciação pela Primeira Turma do Supremo, no julgamento do Recurso em Mandado de Segurança n° 24.699/DF, relator Ministro Eros Grau, com diferente conclusão, e deve seguir ao Supremo onde será reavaliada. Na sessão de 7 de junho, a Segunda Turma analisou se eleitor residente no Município de Itaquaíra, em Mato Grosso do Sul, poderia ajuizar ação popular em razão de fatos ocorridos no Município de Eldorado, no mesmo Estado. A discussão foi suscitada no Recurso Especial n° 1.242.800/MS40, relator Ministro Mauro Campbell Marques. Segundo o relator, a legitimidade ativa para a ação popular é reconhecida ao cidadão – e não ao eleitor, como queria a recorrente –, daí que a condição de eleitor é mera prova da cidadania, pouco importando o domicílio do autor para a viabilidade da ação popular. Fez referência ao artigo 5°, inciso LXXIII, da Constituição da República, qualificando a referida ação como importante instrumento de participação democrática. O acórdão foi unânime.

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Publicado no Diário da Justiça eletrônico de 14 de junho de 2011.

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A Primeira Seção julgou, em agosto, dois casos submetidos à sistemática dos recursos repetitivos. No primeiro – Recurso Especial n° 1.244.632/CE41, rel. Min. Castro Meira –, assentou o direito à equiparação entre inativos do antigo Departamento Nacional de Estradas e Rodagens – DNER e ativos do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes – Dnit, estes últimos aproveitados do DNER. No julgamento do Recurso Especial n° 1.150.579/SC42, relator Ministro Mauro Campbell Marques, estava em questão a necessidade de intimação dos interessados quando da atualização da taxa de ocupação incidente sobre os terrenos de marinha – atribuição conferida à Secretaria de Patrimônio da União, consoante previsão do artigo 1° do Decreto n° 2.398/8743. O argumento central do recorrente era violação ao artigo 28 da Lei n° 9.784/99, que impõe o dever de intimação do interessado nos atos que lhe causarem ônus44. O Superior assentou ser desnecessária a intimação, porquanto “a atualização das taxas de ocupação – que se dá com a atualização do valor venal do imóvel – não se configura como imposição ou mesmo agravamento de um dever, mas sim recomposição de patrimônio, devida na forma da lei. Daí porque inaplicável o dispositivo mencionado”. Argumentou ainda que o mesmo raciocínio tem sido empregado para atualização do imposto incidente sobre a propriedade imobiliária, embora a taxa de ocupação não possua natureza jurídico-tributária. No Agravo Regimental no Recurso em Mandado de Segurança n° 33.426/RS45, relator Ministro Hamilton Carvalhido, redator para acórdão Min. Teori Albino Zavascki, o Superior avançou na matéria atinente aos direitos dos candidatos em concursos públicos. Na espécie, candidata aprovada em primeiro lugar em concurso cujo edital não previra expressamente a quantidade de vagas em disputa buscava o direito de ser nomeada para o cargo público. Prevaleceu a tese de que, uma vez aberto o                                                                                                                         41

Publicado no Diário da Justiça eletrônico de 13 de setembro de 2011.

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Publicado no Diário da Justiça eletrônico de 17 de agosto de 2011.

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D. 2.398/87: Art. 1° A taxa de ocupação de terrenos da União, calculada sobre o valor do domínio pleno d”o terreno, anualmente atualizado pelo Serviço do Patrimônio da União (SPU), será, a partir do exercício de 1988, de: I - 2% (dois por cento) para as ocupações já inscritas e para aquelas cuja inscrição seja requerida, ao SPU, até 30 de setembro de 1988; e II - 5% (cinco por cento) para as ocupações cuja inscrição seja requerida ou promovida ex officio , a partir de 1° de outubro de 1988. 44

Lei n° 9.78/99: “Art. 28. Devem ser objeto de intimação os atos do processo que resultem para o interessado em imposição de deveres, ônus, sanções ou restrição ao exercício de direitos e atividades e os atos de outra natureza, de seu interesse”. 45

Publicado no Diário da Justiça eletrônico de 30 de agosto de 2011.

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concurso, é de se presumir que pelo menos uma vaga esteja disponível para preenchimento e, assim, reconheceram o direito à nomeação da candidata. Em outubro, no julgamento do Recurso Especial n° 1.021.113/RJ46, o Superior manteve acórdão oriundo do Tribunal Regional Federal da 2a Região que reconhecera a responsabilidade civil da Caixa Econômica Federal em razão da revogação unilateral de permissão concedida a pessoa jurídica que mobilizara vultosos recursos para a prestação do serviço público. O Tribunal Superior assentou que as permissões administrativas são marcadas pela discricionariedade, unilateralidade e precariedade, características das quais se extrai a possibilidade de rescisão unilateral. Todavia, esclareceu ser possível o reconhecimento do direito à indenização em casos específicos, nos quais o permissionário realiza significativos investimentos para a execução do serviço. Isso porque “os particulares que travam contratos com a Administração Pública devem ser vistos como parceiros, devendo o princípio da boa-fé objetiva (e seus corolários relativos à tutela da legítima expectativa) reger as relações entre os contratantes público e privado”. O acórdão, proferido pela Segunda Turma em 11 de outubro de 2011, foi unânime. No Recurso em Mandado de Segurança n° 34.270/MG47, relator Ministro Teori Albino Zavascki, julgado pela Primeira Turma em 25 de outubro de 2011, a Associação dos Municípios da Microrregião do Vale do Parnaíba – AMVAP pretendia o reconhecimento da legitimidade para postular em juízo em substituição processual de diversos Municípios, o que lhe teria sido negado pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais. O relator inicialmente destacou que a participação processual de pessoas jurídicas de direito público é revestida de regime próprio, cercado de garantias e privilégios, os quais não seriam passíveis de delegação a pessoa jurídica de direito privado ou mesmo renúncia. Apontou, por outro lado, que a decisão poderia inclusive vincular os referidos entes à coisa julgada material proferida no mandado de segurança coletivo, consoante artigo 21 e 22 da Lei n° 12.016/2009, o que reforça a tese do descabimento da medida. Assim, a Turma concluiu por negar provimento ao recurso, fixando a tese de ser inviável a substituição processual de entes de natureza pública.                                                                                                                         46

Publicado no Diário da Justiça eletrônico de 18 de outubro de 2011.

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Publicado no Diário da Justiça eletrônico de 28 de outubro de 2011.

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No Recuso Especial n° 1.223.306/PR 48 , relator Ministro Mauro Campbell Marques, redator para acórdão Ministro Cesar Asfor Rocha, julgado em 8 de novembro de 2011 pela Segunda Turma, estava em debate a necessidade de se observar os princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa quando em causa rescisão de contrato administrativo com fundamento no artigo 78, inciso XII, da Lei n° 8.666/93. As instâncias inferiores haviam respondido afirmativamente ao questionamento. O relator negou provimento aos recursos, valendo-se da jurisprudência assentada do Tribunal no sentido de que a rescisão unilateral “reclama o regular desenvolvimento do procedimento administrativo, no qual deve sempre ser observado o postulado da garantia de defesa”. Todavia, o Ministro Cesar Asfor Rocha entendeu que o prévio procedimento é incompatível com a rescisão unilateral por interesse público. Primeiro, porque a rescisão por interesse público pode exigir urgência. No caso concreto, havia o benefício financeiro da ordem de três milhões de reais a ser auferido pelo Município com a possibilidade de nova contratação do mesmo objeto. Além disso, averbou que a concessão de ampla defesa, neste caso específico, seria providência inócua, eis que não tem o condão de impedir a rescisão diante do interesse público. Disse, por fim, que a legislação assegura indenização pelos danos decorrentes da rescisão, consoante artigo 79, § 2° da Lei n° 8.666/93, o que seria suficiente para resguardar a posição do contratado. Assim, concluiu a Turma, por maioria, por reformar o acórdão recorrido, a fim de assegurar ao Município o direito de rescindir o contrato sem estabelecer o prévio contraditório. Ainda no âmbito do Superior, após decidir Questão de Ordem no Agravo Regimental no Agravo n° 1.364.269/PR, relator Ministro Arnaldo Esteves Lima, em 14 de junho de 2011, a Primeira Turma decidiu submeter à Primeira Seção o julgamento da questão relativa ao prazo prescricional aplicável às ações de indenização em face da Fazenda Pública, se quinquenal ou trienal, dada a divergência existente entre os órgãos fracionários do Tribunal. Com o advento do Código Civil de 2002, que previu o prazo prescricional trienal para a reparação civil (artigo 206, § 3°, inciso V), diversos                                                                                                                         48

Publicado no Diário da Justiça eletrônico de 2 de dezembro de 2011.

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doutrinadores começaram a postular pela derrogação do Decreto n° 20.910/32, que prevê o prazo quinquenal para a prescrição. A partir de 2009, a Segunda Turma do Superior passou a acolher o prazo trienal49, daí a divergência apontada, ainda pendente de solução. III. Novidades legislativas Em 6 de janeiro de 2011, foi aprovada a Lei n° 12.379, que reformulou o sistema nacional de viação – SNV, dividindo-o em subsistemas rodoviário, ferroviário, aquático e aeroviário. A lei prevê o exercício das competências da União por meio de delegação à iniciativa privada, inclusive por parceira público-privada, e vem para organizar esse importante setor da infraestrutura brasileira. Infelizmente, foram vetados os anexos que discriminavam importantes pontos, como as rodovias que compõem a Rede de Integração Nacional - Rinter. A Medida Provisória n° 527, editada em 18 de março, criou a Secretaria de Aviação Civil, vinculada à Presidência, com a atribuição principal de supervisionar as políticas para a aviação civil e infraestrutura aeroportuária. Posteriormente, o Decreto n° 7.624, de 22 de novembro, estabeleceu as regras de concessão dos aeroportos à iniciativa privada. No campo das licitações e contratos, a grande inovação é a Lei n° 12.462/2011, que instituiu o regime diferenciado de contratações públicas especialmente para a Copa das Confederações em 2013, Copa do Mundo de 2014, Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de 2016, além de contratação de serviços para aeroportos de cidades até 350 quilômetros distantes das sedes. A lei foi regulamentada pelo Decreto n° 7.581, de 11 de outubro. São muitas as novidades, tais como a possibilidade de inversão das fases do procedimento, contratação conjunta dos projetos básico e executivo (artigos 8°, inciso V e 9°, § 1°), preocupação com o impacto ambiental do objeto contratado (artigos 4°, § 1°, incisos I a IV e 14, parágrafo único, inciso II), adoção do sistema de remuneração variável (artigo 11), etc.. De todas as invocações, aquela que rende maior

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REsp n° 1.137.354/RJ, rel. Min. Castro Meira, DJ 18.9.2009.

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polêmica é o sigilo do orçamento da contratação (artigo 6°, §3º), que poderá ser publicado apenas após o encerramento do procedimento. Vale mencionar que a constitucionalidade da lei já foi impugnada perante o Supremo pelo Procurador-Geral da República (Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 4.655) e por partidos políticos de oposição (Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 4.645). O relator das ações é o Ministro Luiz Fux. O pedido liminar ainda não foi apreciado, mas o Ministro adotou o rito abreviado previsto no artigo 12 da Lei n° 9.868/99. A Lei n° 12.527, de 18 de novembro de 2011, veio à lume para regulamentar o inciso XXXIII do artigo 5° da Constituição, em substituição à Lei n° 11.111/2005. O novo diploma é muito mais minucioso que o anterior. Fez-se presente a preocupação em definir expressamente os direitos decorrentes da garantia geral de acesso à informação pública (artigo 7°), bem como dos correlatos deveres dos administradores (artigo 8°), dentre os quais se inclui a obrigatória disponibilização delas por meio da internet (artigo 8°, § 2°). O artigo 24 disciplinou os prazos máximos de restrição no acesso à informação, a depender da classificação do documento, sendo que o maior é de vinte e cinco anos, ressalvadas informações pessoais que poderão remanescer em sigilo por até cem anos (artigo 31, §1°, inciso I). A lei previu ainda a imposição de penalidades aos agentes públicos que impedirem a divulgação de informações ou as deturparem (artigo 32). Finalmente, a Lei n° 12.529, editada em 30 de novembro de 2011, reestruturou o sistema brasileiro de defesa da concorrência e criou o que vem sendo apelidado de “supercade”, em razão da expansão do número de cargos e criação de um Superintendência com expressivos poderes investigatórios (artigos 12 a 14). Além de mudanças estruturais significativas, a nova lei determinou que as fusões e aquisições só poderão ser implementadas com a prévia aprovação do órgão de proteção da concorrência (artigo 88, § 4°), diferentemente do que acontecia sob a égide da Lei n° 8.884/94, evitando-se assim a criação do “fato consumado”. A submissão dos atos de concentração somente é obrigatória para as empresas com faturamento anual bruto de 400 milhões ou mais, para a primeira, e 30 milhões, para a segunda (artigo 88, incisos I e II), o que deverá racionalizar o trabalho do órgão. 33    

IV. Conclusão Com essas breves linhas, espera-se ter apresentado ao leitor as principais decisões e novas normas jurídicas vindas à lume no ano de 2011. É um fragmento perto do volume caudaloso de decisões e acórdãos provenientes do labor dos Tribunais Superiores. Sobre esta questão, é sabido que o excesso de demandas continua sendo o grande tormento do Poder Judiciário, em especial das Cortes de cúpula, as quais, incapazes de responder ao acúmulo de processos, acabam compelidas a priorizar o urgente à custa do importante. Os novos mecanismos para lidar com os processos de massa, todavia, têm se mostrado cruciais na redução do volume de trabalho. Com o tempo, espera-se que os referidos Tribunais possam lidar prioritariamente com temas relevantes para a sociedade brasileira. No domínio legislativo, a passos lentos o Congresso Nacional vem aprovando reformas que livram o Estado brasileiro das amarras do arcaísmo burocrático e dotam o administrador, mais e mais, de instrumentos de atuação mais adequados aos tempos vividos, marcados pela flexibilidade e dinamismo. O cenário, portanto, é de otimismo. No mais, o ano de 2012 promete ser bastante profícuo para a disciplina. Deve retornar à pauta do Supremo a Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 1.923, em que se discute a constitucionalidade da Lei n° 9.637/98, que disciplina as relações do poder público com as organizações sociais, em vista com o Ministro Marco Aurélio, após os votos dos Ministros Ayres Britto e Luiz Fux, que preservaram a lei no essencial. O voto do Ministro Fux, em particular, é especialmente importante para a disciplina. No âmbito legislativo, o ano deve iniciar com as discussões relativas à instituição do regime de previdência complementar do servidor público (Funpresp), consoante previsão da Emenda Constitucionalidade n° 41/2003, hoje em tramitação na Câmara dos Deputados (Projeto de Lei n° 1.992/2007). O discurso oficial assevera ser uma reforma absolutamente necessária para a solvabilidade do Estado brasileiro no futuro. É aguardar os próximos capítulos.  

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