O “Direito ao Conflito” nos Casos de Violência Doméstica

May 27, 2017 | Autor: F. Fonseca Rosenb... | Categoria: Violência Doméstica, Justiça Restaurativa, Lei Maria da Penha, Práticas Restaurativas
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Descrição do Produto

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Gustavo Ferreira Santos João Paulo Allain Teixeira Marcelo Labanca Corrêa de Araújo

DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate.

Recife, 2016

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CRÉDITOS Editora: APPODI Organização: Gustavo Ferreira Santos João Paulo Allain Teixeira Marcelo Labanca Corrêa de Araujo Conselho editorial: Erivaldo Cavalcanti e Silva Filho (UEA) Gustavo Carneiro Leão (UNICAP) Ivone Fernandes Lixa (FURB) Maria Lúcia Barbosa (UFPE) Raquel Fabiana Lopes Sparemberger (FURG / FMP) Design da capa: Ana Catarina Silva Lemos Paz Composição do miolo: Ana Catarina Silva Lemos Paz

As opiniões e posicionamentos contidos nesse livro não, necessiariamente, correpondem às opinões e posicionamentos tomados pelos organizadores.

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APRESENTAÇÃO

O Congresso Publius é evento anual realizado por professores da Universidade Católica de Pernambuco, com o objetivo de discutir temas pertinentes ao direito público, especificamente no que se refere aos vínculos que se estabelecem entre Constituição e Democracia. Na edição 2015 do Publius o tema escolhido como eixo norteador do evento é “Tutela Multinível dos Direitos”, apontando para a necessária percepção de que os direitos apresentam níveis distintos de proteção e promoção, tanto no plano interno como em planos normativos distintos, como acontece com o direito subnacional, o direito supranacional e o direito internacional. O evento teve duração de três dias de debates com a participação de professores e pesquisadores convidados de várias universidades do Brasil, América Latina e Europa e envolvendo estudantes de graduação e pós-graduação stricto sensu de diversas universidades da região. O livro que agora apresentamos é fruto das reflexões que aconteceram nos grupos de trabalho do evento (Direitos Sociais e Judicialização das Políticas Públicas; Justiça Constitucional e Jurisdição Constitucional; (Des)Criminalização de Direitos; Tutela dos Direitos à Liberdade; Hermenêutica, Universalidade e Multiculturalismo dos Direitos; Direitos de Nacionalidade e Estrangeiros; Os Novos Direitos; Diálogo entre Cortes e Proteção Multinível; Constituições Subnacionais e Tutela de Direitos: Controle de Convencionalidade). Para os diversos GTs o evento contou com cento e vinte trabalhos inscritos, resultando em sua configuração final, sessenta e cinco trabalhos enviados para publicação após os debates. Estes trabalhos integram o presente livro eletrônico, juntamente com os trabalhos de autores convidados, mantendo a métrica e a obediência aos temas propostos pelo evento. A todos, desejamos uma boa leitura. E que estes escritos possam servir como leituras seminais para a compreensão dos desafios que uma tutela multinivel de direitos fundamentais exige.

Recife, julho de 2016. Gustavo Ferreira Santos João Paulo Allain Teixeira Marcelo Labanca Corrêa de Araujo

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SUMÁRIO

1.  APRESENTAÇÃO

2.  A FUNÇÃO PUNITIVA NA RESPONSABILIZAÇÃO DO FORNECEDOR EM RELAÇÃO DE CONSUMO: DIÁLOGO DO DIREITO BRASILEIRO COM O SISTEMA COMMON LAW, EM BREVES NOTAS E REFLEXÕES PARA UMA MAIOR PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR

Adriano Barreto Espíndola Santos Aldo César Filgueiras Gaudêncio

16

3.  JUDICIAL DO DIREITO SOB A ÓTICA DA TEORIA ESTRUTURANTE DO DIREITO: IMPLICAÇÕES NO PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA

Alexandre Henrique Tavares Saldanha Victor Rafael Alves de Mattos

24

4.  DIREITOS AUTORAIS E LIBERDADE DE EXPRESSÃO NA INTERNET: NOVOS MODELOS PARA UMA NOVA CULTURA DE PARTICIPAÇÃO

Alexandre Henrique Tavares Saldanha

32

5.  INFRAERO E A ADOÇÃO DO ORÇAMENTO SIGILOSO NO REGIME DIFERENCIADO DE CONTRATAÇÃO PÚBLICA (RDC): UMA ANÁLISE SOBRE A (IN) CONSTITUCIONALIDADE DO INSTITUTO

Alcerlane Silva Lins Roberta Cruz da Silva

41

6.  A EFETIVIDADE DO PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO NOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL Alcerlane Silva Lins Prof. Dr. Luiz Gustavo Simões Valença de Melo (Orientador)

5

51

7.  COTAS RACIAIS: ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO DE FUNDAMENTAÇÃO DO VOTO DE LEWANDOWSKI NA ADPF 186/DF

Ana Caroline Alves Leitão Virginia Colares

60

8.  A PROTEÇÃO JUDICIAL DAS MINORIAS: A UNIÃO HOMOAFETIVA NO STF E NA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

Ana Catarina Silva Lemos Paz Luiz Manoel da Silva Júnior Arthur Albuquerque de Andrade

70

9.  DIREITO AO PROTESTO E SUA TUTELA JUDICIAL: UM ESTUDO DE CASO SOBRE A OCUPAÇÃO DA RUA NETO CAMPELO PELO MOVIMENTO OCUPE ESTELITA

Ana Paula da Silva Azevêdo Letícia Malaquias Mendes Barbosa Vitória Caetano Dreyer Dinu

85

10.  QUEM TEM DIREITO À ÚLTIMA PALAVRA? O INSTITUTO DA REVISÃO JUDICIAL À LUZ DAS TEORIAS DE DWORKIN, DAHL E WALDRON

Ana Tereza Duarte Lima de Barros Mariana Cockles Teixeira

95

11.  A AUTONOMIA DAS ORDENS LOCAIS INDÍGENAS NA AMÉRICA LATINA SOB O PONTO DE VISTA DO TRANSCONSTITUCIONALISMO E DO NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINOAMERICANO Arthur Albuquerque de Andrade Ana Catarina Silva Lemos Paz Luiz Manoel da Silva Júnior

101

12.  ESCRAVISMO CONTEMPORANEO E INTEGRAÇÃO ECONÔMICA: UM ESTUDO ACERCA DOS POSSÍVEIS IMPACTOS DA ADESÃO DA BOLÍVIA AO MERCOSUL

Bruna de Oliveira Maciel Jaqueline Maria de Vasconcelos

107

6

13.  O PODER-DEVER DO ESTADO NA PROTEÇÃO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE NO ÂMBITO FAMILIAR À LUZ DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 Bruna de Oliveira Maciel Jaqueline Maria de Vasconcelos

116

14.  LIBERDADE RELIGIOSA: UMA ABORDAGEM DO PONTO VISTA DAS RELAÇÕES ENTRE OS MODELOS DE ESTADO E IGREJA E O CASO LAUTSI CONTRA ITALIA

Camila Leite Vasconcelos

125

15.  A VEDAÇÃO CONSTITUCIONAL AO OLIGOPÓLIO MIDIÁTICO E O DIREITO À COMUNICAÇÃO: A NECESSIDADE DA SUPERAÇÃO DO DOMÍNIO ECONÔMICO DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO EM MASSA PARA SUA REGULAÇÃO DEMOCRÁTICA

Camila Freire Monteiro de Araújo Izídia Carolina Rodrigues Monteiro Nara Fonseca de Santa Cruz Oliveira

134

16.  REPENSANDO A AUTOTUTELA ADMINISTRATIVA: A (IM)POSSIBILIDADE DE INCIDÊNCIA DO “ABATE-TETO” SOBRE REMUNERAÇÃO, SUBSÍDIO OU PROVENTO DA APOSENTADORIA DE AGENTE PÚBLICO CUMULADOS COM BENEFÍCIO DE PENSÃO POR MORTE DO CÔNJUGE/COMPANHEIRO SERVIDOR DO ESTADO

Carla Cristiane Ramos de Macêdo Roberta Cruz da Silva

145

17.  TRANSEXUALIDADE E DIGNIDADE: OS DESAFIOS JURÍDICOS E SOCIAIS PARA A GARANTIA PLENA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Carlos Henrique Felix Dantas  Raissa Lustosa Coelho Ramos

159

18.  PERSONALIDADE JURÍDICA DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA E TOMADA DE DECISÃO APOIADA: DESAFIOS E PROPOSTAS PARA UM EFETIVO ACESSO À JUSTIÇA

Carlos Henrique Felix Dantas  Raissa Lustosa Coelho Ramos

166

7

19.  LEI MARIA DA PENHA: UMA ANÁLISE SOBRE A EXPANSÃO DO DIREITO PENAL NO ÂMBITO DOS CONFLITOS DOMÉSTICOS

Carolina Salazar l’Armée Queiroga de Medeiros Hallane Raissa dos Santos Cunha Túlio Vinícius Andrade Souza

175

20.  DIÁLOGO INTERJUDICIAL: REALIDADE GLOBAL NO BRASIL E A EXIGÊNCIA DE NOVOS DIREITOS ATRAVÉS DO SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS

Caroline Alves Montenegro Renata Santa Cruz Coelho

185

21.  A CRISE CONTEMPORÂNEA DOS REFUGIADOS, DIREITOS HUMANOS E POLÍTICAS PÚBLICAS David Cavalcante

192

22.  LEI MARIA DA PENHA: UMA ANÁLISE CRÍTICA DA OCORRÊNCIA DE PRISÕES PREVENTIVAS E DAS FORMAS DE RESOLUÇÃO DE CONFLITOS DOMÉSTICOS

Débora de Lima Ferreira Marília Montenegro Pessoa de Mello

201

23.  O DIREITO PENAL SIMBÓLICO: DA PROMESSA DE PROTEÇÃO À EFICÁCIA INVERTIDA – UM OLHAR SOBRE A PROTEÇÃO À VÍTIMA

Érica Babini Lapa do Amaral Machado Andrielly S. Gutierres Silva Willams França Silva

211

24.  ENTRE RETRIBUIÇÃO, NEUTRALIZAÇÃO, SOCIALIZAÇÃO E CONTROLE – A REPRESENTAÇÃO DOS MAGISTRADOS SOBRE A FINALIDADE DA MEDIDA SOCIOEDUCATIVA DE INTERNAÇÃO EM PERNAMBUCO Érica Babini L. do Amaral Machado Maurilo Miranda Sobral Neto Vitória Caetano Dreyer Dinu

221

8

25.  DEMOCRACIA, EFETIVIDADE E DIREITOS SOCIAIS: UM OLHAR SOBRE OS CONSELHOS MUNICIPAIS DE EDUCAÇÃO E A CONSTRUÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS – A PARTICIPAÇÃO COMO CONCRETIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL.

Erika Patrícia Ferreira dos Santos Isabel Cristina Souza Queiroz Marco Aurélio da Silva Freire

234

26.  REAÇÃO LEGISLATIVA FRENTE À JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL NO BRASIL PÓS 88 Eriverton Felipe de Souza

242

27.  NEGOCIADO X LEGISLADO: O DIREITO DO TRABALHO EM PERIGO

Fábio Túlio Barroso

253

28.  NOTAS SOBRE A AUTONOMIA SINDICAL BRASILEIRA Fábio Túlio Barroso

260

29.  O “DIREITO AO CONFLITO” NOS CASOS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA: POTENCIALIDADES E RISCOS

Fernanda Fonseca Rosenblatt João André da Silva Neto Maria Júlia Poletine Advincula Pedro Henrique Ramos Coutinho dos Santos

266

30.  A DESCRIMINALIZAÇÃO DO USO PESSOAL DE DROGAS EM DEBATE NO STF: UM PASSO RUMO À SUPERAÇÃO DA GUERRA ÀS DROGAS?

Fernanda Thaynã Magalhães de Moraes Laís Emanuella da Silva Lima Maria Eduarda Moreira de Medeiros

277

31.  O NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO E SEUS REFLEXOS PARA O PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO Fernando Flávio Garcia da Rocha João Paulo Allain Teixeira

283

9

32.  AS TRANSFORMAÇÕES DO ENSINO JURÍDICO A PARTIR DA UTILIZAÇAO DAS NOVAS TECNOLOGIAS DA INFORMAÇÃO Fernando Flávio Garcia da Rocha Paloma Mendes Saldanha

291

33.  A JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO REAÇÃO AO ILUSÓRIO E ILEGÍTIMO DISCURSO PUNITIVO NA AMÉRICA LATINA Fernando Borba de Castro Lenice Kelner Leonardo Idenio Soares

298

34.  A DIGNIDADE DO TRABALHADOR NO COMBATE AO TRABALHO ANÁLOGO AO DE ESCRAVO AMEAÇAS E RISCOS VINDOS DO PODER LEGISLATIVO

Flora Oliveira da Costa 

310

35.  A COMPLEXIDADE DO TRABALHO ESCRAVO CONTEMPORÂNEO UM OLHAR LUHMANNIANO

Flora Oliveira da Costa

317

36.  A FIGURA DA MULHER FRENTE À POLÍTICA PROIBICIONISTA DO TRÁFICO DE DROGAS: UMA ANÁLISE SOCIO-CRIMINOLÓGICA

Gabriela Parisi de Amorim Gisele Vicente Meneses do Vale Paloma dos Santos Silva

327

37.  A PROTEÇÃO MULTINIVEL E A EFETIVIDADE DA TUTELA JURÍDICA DOS DIREITOS HUMANOS ENQUANTO RESULTADO DO DIÁLOGO ENTRE DIFERENTES CORTES Gabriel Soares Ribeiro Lopes Maria Carolina Oriá Veloso

334

38.  É A PROSTITUIÇÃO UMA PRESTAÇÃO DE SERVIÇO OU A COMPRA DE UMA MERCADORIA? Gabrielle Costa Carvalho de Oliveira  Larissa Brasileiro Malheiro  Vanessa Alexsandra de Melo Pedroso

342

10

39.  LIBERDADE DE EXPRESSÃO E RADIOFUSÃO SOB A ÓTICA DO SISTEMA INTERAMERICANO DE PROTEÇÃO Gessyca Galdino de Souza Gustavo Ferreira Santos

346

40.  ATIVISMO JUDICIAL E O CONTROLE DA PROIBIÇÃO DE PROTEÇÃO DEFICIENTE A DIREITOS FUNDAMENTAIS: ANÁLISE DO PROCESSO DE INCONSTITUCIONALIDADE DO §3º, DO ARTIGO 20, DA LEI Nº 8.742/93 – LEI ORGÂNICA DA ASSISTÊNCIA SOCIAL – LOAS

Glauco Salomão Leite Dyego José Holanda Pessoa Tatyana Paula Cabral De Melo Marcolino

356

41.  O PROTAGONISMO JUDICIAL E A REFORMA POLÍTICA: ANÁLISE DO CASO SOBRE O FINANCIAMENTO PRIVADO DE CAMPANHAS ELEITORAIS

Glauco Salomão Leite Mirella Luiza Monteiro Coimbra Pablo Diego Veras Medeiros

365

42.  ATIVISMO JUDICIAL CONTRAMAJORITÁRIO: O CASO DA DESCRIMINALIZAÇÃO DO PORTE DE DROGAS PARA USO PRÓPRIO.

Glauco Salomão Leite José Raimundo Silva Neto Raphael Crespo Forne

375

43.  ASPECTOS E CONTROVÉRSIAS SOBRE A JUDICIALIZAÇÃO DA PRISÃO NO BRASIL: UMA ANÁLISE DA ADPF 347

Glebson Weslley Bezerra da Silva Mariane Izabel Silva dos Santos Roberta Rayza Silva de Mendonça

383

44.  POLÍTICAS PÚBLICAS, O DIREITO SOCIAL À SAÚDE E A EXTRAFISCALIDADE DA TRIBUTAÇÃO SOBRE O CIGARRO Idalina Cecília Fonseca da Cunha

391

11

45.  MOVIMENTOS SOCIAIS AGRÁRIOS: TEORIA DO ETIQUETAMENTO E CRIMINALIZAÇÃO

Indira Capela Rodrigues Raquel Fabiana Lopes Sparemberger

397

46.  SOLUÇÃO DE VIA ÚNICA: O PUNITIVISMO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS E A IMPOSIÇÃO DA PENA PELO SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

Iricherlly Dayane da Costa Barbosa João André da Silva Neto Marília Montenegro Pessoa de Mello

409

47.  NEOCONSTITUCIONALISMO E NEOPROCESSUALISMO COMO INSTRUMENTOS PARA EFETIVAÇÃO DA JUSTIÇA E FORTALECIMENTO DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO Jaqueline Maria de Vasconcelos Patrícia Freire de Paiva Carvalho

417

48.  JURISDIÇÃO E DESCONSTRUÇÃO: UMA ANÁLISE PROCEDIMENTAL DA ARGUIÇÃO DE DESCUPRIMENTO FUNDAMENTAL NO CONSTITUCIONALISMO BRASILEIRO A PARTIR DE JACQUES DERRIDA

Joyce Batista do Nascimento João Paulo Allain Teixeira

423

49.  DIREITO À MEMÓRIA, À VERDADE E À JUSTIÇA: A PERMANÊNCIA DAS VIOLAÇÕES AOS DIREITOS HUMANOS NA ATUALIDADE

Julia Santa Cruz Gutman Renata Santa Cruz Coelho

438

50.  CARACTERÍSTICAS DOS SISTEMAS DE CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE: BREVE CONSIDERAÇÕES DIDÁTICAS SOBRE ASPECTOS CONCEITUAIS E PROCESSUAIS

Luciano José Pinheiro Barros  Raquel Alves Almeida Silva Ana Beatriz Oliveira de Souza

447

51.  CRISE, JURISDIÇÃO E DEMOCRACIA Luciano José Pinheiro Barros Mateus Siqueira Pacheco

455

12

52.  DIREITOS CONSTITUCIONAIS E INTERNACIONAIS DOS REFUGIADOS Maria Alana Calado Capitó Pedro Victor Montenegro de Albuquerque

464

53.  CRISE FEDERATIVA E FINANÇAS MUNICIPAIS: A PROBLEMÁTICA DA EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS

Maria Raquel Firmino Ramos

470

54.  AS MULHERES DIANTE DA LEI 11.343/2006: A CRIMINALIZAÇÃO DA VULNERABILIDADE SOCIAL.

Marília Montenegro Pessoa de Mello (orientadora) Juliana Gleymir Casanova da Silva 

479

55.  A CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS NO BRASIL PÓS-88: A DEMOCRACIA PARTICIPATIVA COMO INSTRUMENTOS DE EFETIVAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS

Marco Aurélio da Silva Freire João Paulo Rodrigues do Nascimento

487

56.  (IN)CONSTITUCIONALIDADE NA ADOÇÃO DO INSTITUTO DA CONTRATAÇÃO INTEGRADA NOS CONTRATOS DA INFRAERO Marta Rodrigues de Oliveira Roberta Cruz da Silva (orientadora)

496

57.  A EMERGÊNCIA DE DECLARAÇÕES SUBNACIONAIS DE DIREITOS NA ORDEM CONSTITUCIONAL AUSTRALIANA: O PAPEL DO PACTO FEDERATIVO NA FORMATAÇÃO DO REGIME DE PROTEÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS E A ADOÇÃO DE UM CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE FRACO

Mauro La-Salette Costa Lima de Araújo

507

58.  LIBERDADE RELIGIOSA X TRÁFICO DE DROGAS: O CASO DE “RAS GERALDINHO”

Mateus Rafael de Sousa Nunes

514

59.  DIREITO AO ESQUECIMENTO E LIBERDADE DE IMPRENSA. Nara Fonseca de Santa Cruz Oliveira Camila Freire Monteiro de Araújo

521

13

60.  A POLÍTICA DE PRIVACIDADE DO GOOGLE E SUAS INFRAÇÕES AO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR E AO DIREITO CONSTITUCIONAL À PRIVACIDADE: UMA PERSPECTIVA BRASILEIRA

Paloma Mendes Saldanha

528

61.  DIREITOS POLÍTICOS E ESTRANGEIROS Rafael Lima Rangel Vasconcelos

543

62.  A FAMÍLIA BASEADA NO POLIAMOR EM CONSONÂNCIA COM O PRINCÍPIO DA LIBERDADE Silvana Vieira da Silva

553

63.  A CRIMINALIZAÇÃO DO DIREITO À LIBERDADE DE CÁTEDRA NO BRASIL: ANÁLISE DO PROJETO DE LEI Nº 1.411/2015 À LUZ DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988.

Synara Veras de Araújo

562

64.  BREVE ANÁLISE SOBRE O NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINO AMERICANO Renata Santa Cruz Coelho Caroline Alves Montenegro

568

65.  “O ONTEM É HOJE”: SOBRE A TUTELA DOS DIREITOS À LIBERDADE PRESENTE NA OBRA CINEMATOGRÁFICA TATUAGEM

Synara Veras de Araújo

578

66.  ESTUDO IDEOLÓGICO SOBRE O MODELO PROCESSUAL COOPERATIVO DO NOVO CPC Steel Vasconcellos

588

67.  O DISCURSO DO ÓDIO FRENTE ÀS MANIFESTAÇÕES MINORITÁRIAS COMO HIPOTÉSE DE COLISÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS Tieta Tenório de Andrade Bitu

598

68.  CONFLITOS INDÍGENAS E O SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS (SIDH) Valdênia Brito Monteiro Bárbara Raquel da Silva Fonseca

610

14

69.  A GARANTIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS COMO PRESSUPOSTO PARA O COMBATE DO TRÁFICO DE SERES HUMANOS Vanessa Alexsandra de Melo Pedroso Luize Ivila Santos da Rocha Larissa Gabrielle Silva de Andrade

619

70.  CRIMINALIZAÇÃO DA PELE E DA CONDIÇÃO SOCIAL NA GUERRA ÀS DROGAS Victor de Goes Cavalcanti Pena Danyelle do Nascimento Rolim Medeiros Lopes

625

71.  A REGULAMENTAÇÃO BRASILEIRA DAS MIGRAÇÕES E O CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE Victor Scarpa de Albuquerque Maranhão Thiago Oliveira Moreira

630

72.  PRISÕES PREVENTIVAS E PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA: UM DEBATE POSSÍVEL?

Wictor Hugo Alves da Silva

640

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate.

A FUNÇÃO PUNITIVA NA RESPONSABILIZAÇÃO DO FORNECEDOR EM RELAÇÃO DE CONSUMO: DIÁLOGO DO DIREITO BRASILEIRO COM O SISTEMA COMMON LAW, EM BREVES NOTAS E REFLEXÕES PARA UMA MAIOR PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR

Adriano Barreto Espíndola Santos Mestre em Direito Civil pela Universidade de Coimbra - Portugal. Especialista em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC Minas. Especialista em Direito Público Municipal pela Faculdade de Tecnologia Darcy Ribeiro. Graduado em Direito pela Universidade de Fortaleza. Advogado. Aldo César Filgueiras Gaudêncio Mestre em Direito Civil pela Universidade de Coimbra – Portugal. Pós-graduado em direito empresarial pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Pós-graduado em direito dos contratos. Advogado.

SUMÁRIO: Introdução; 1. A proteção do consumidor e sua reparação por eventuais danos como garantias constitucionais; 1.1. Da reparação por danos na sistemática da responsabilidade civil do código de defesa do consumidor; 2. Do dano moral ao social: um quadro de grave comprometimento da vida humana na relação de consumo; 3. O aparelhamento nocivo e sistemático do “dano eficiente”; 4. O diálogo entre sistemas como forma de aplacar diferenças e fomentar ganhos sociais; Conclusão; Referências.

INTRODUÇÃO Diante da permanente necessidade de cuidado ao consumidor, figura, por sua própria condição, frágil na relação de consumo, desenvolver-se-á este estudo com o intuito de, dentre tantas problemáticas sobrevindas, aplacar os enormes prejuízos de ordem moral, em específico, sofrido pelos consumidores nestas últimas décadas. Numa luta até então desigual, atendendo-se à dignidade da pessoa humana, com a expressão de boa parte dos anseios sociais em nossa Constituição Federal de 1988 e, depois, em sede de código de defesa do consumidor – lei n.º 8078/90 -, conseguiu-se estampar o direito à reparação de danos - evidente que se firmou aí grande avanço para uma sociedade consumerista, carente de segurança jurídica. Mas, com as recorrentes constatações de lesões aos consumidores, vê-se que a estrutura jurídica brasileira ainda apresenta lacunas que oferecem espaços às práticas destrutivas operadas pelos lesantes, voltadas tão somente à racionalidade econômica. De modo que, com as experiências exitosas alienígenas, obtém-se, então, base para adequar o modelo da função punitiva da responsabilidade civil ao sistema brasileiro, servindo tal instrumento para se alcançar a função social do mencionado instituto, como, também, travar, ou mesmo, de fato, eliminar o dano social.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate.

1. A PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR E SUA REPARAÇÃO POR EVENTUAIS DANOS COMO GARANTIAS CONSTITUCIONAIS. A Constituição Federal de 1988 garante proteção aos consumidores imputando ao Estado uma obrigação de promoção de sua defesa. Aliado a isso, terão os consumidores a garantia da possiblidade de serem reparados por eventuais danos que venham a suportar nas no mercado de consumo. Especificamente, o legislador constitucional inseriu no texto do artigo 5º, inciso X a reparabilidade por danos morais e materiais, quando garantiu a inviolabilidade dos direitos da personalidade. De sorte que, o que extraímos é que o instituto da responsabilidade civil se vê presente no texto constitucional, agora como uma garantia da ordem jurídica estabelecida a partir de 1988 (MORAES, 2013). Ainda, como direito fundamental, a Constituição Federal de 1988 estabeleceu como a norma imperativa o disposto no artigo 5º, inciso XXXII, que institui que “o Estado promoverá na forma da lei a defesa do consumidor”. Lei esta que deveria ser elaborada dentro de 120 dias a partir da promulgação da Constituição, conforme artigo 48 dos atos das disposições constitucionais transitórias, na mesma Constituição (MIRAGEM, 2002 - Conferir também (CAVALIERI FILHO, 2008); (DUQUE, 2009); (GRAU, 1993)). A inserção do artigo 5°, XXXII, entre os direitos fundamentais coloca os consumidores entre os titulares de direitos constitucionais fundamentais, porque estes não mais se resumem aos direitos de defesa contra interferência estatal na esfera jurídica particular (CANOTILHO, 1993). Atualmente, os direitos fundamentais conferem também aos particulares direitos de proteção, direitos à organização e ao procedimento e direitos as prestações sociais. Entendemos que o Estado tem o dever de proteger os direitos fundamentais e, assim, proteger um cidadão perante o outro. Além disto, o artigo 170, inciso V, da Constituição Federal de 1988, tornou a defesa do consumidor um princípio da ordem econômica constitucional. Estes dois dispositivos – artigo 5º, inciso XXXII, e artigo 170, inciso V – legitimam todas as medidas de intervenção estatal necessárias a assegurar a proteção prevista. A defesa dos consumidores pauta-se, em primeiro, nas razões econômicas derivadas das formas, segundo as quais se desenvolvem, em grande parte, ao atual tráfico mercantil e, em segundo, por critérios que emanam da adaptação da técnica constitucional ao estado de coisas que hoje vivemos imersos – na chamada sociedade de consumo em massa1. O dispositivo constitucional ordena ao Estado Brasileiro o dever de promoção à defesa do consumidor na forma de lei e não mera faculdade, pois se trata de um imperativo constitucional que ordena ao Estado em todas as esferas de poder (união, estado e municípios) e na sua tripartição de poderes (executivo, legislativo e judiciário)2. Foi o constituinte originário que instituiu um direito subjetivo público geral para todos os brasileiros como uma garantia fundamental. Outro imperativo ocorreu nos atos das disposições constitucionais transitórias, em seu artigo 48, que, por sua vez, deu prazo e nomeou a lei de defesa do consumidor como Código de Defesa do Consumidor (CAVALIERI FILHO, 2008)3. Finalmente, a Lei n.º 8078/90, Código de Defesa do Consumidor Brasileiro, foi promulgada em 1990, e acarreta importantes mudanças que, no decorrer dos anos 90 e na primeira década do século XXI, tanto nos 1  NUNES, 2012, p. 52: “No que respeita às normas constitucionais que tratam da questão dos direitos e garantias do consumidor, elas são várias, algumas explícitas, outras implícitas. A rigor, como a figura do consumidor, em larga medida, equipara-se à do cidadão, todos os princípios e normas constitucionais de salvaguarda dos direitos do cidadão são, também, simultaneamente extensivos ao consumidor pessoa física. Dessarte, por exemplo, os princípios fundamentais instituídos no art. 5º da Constituição Federal são, no que forem compatíveis com a figura do consumidor na relação de consumo, aplicáveis como comando normativo constitucional”. 2  BENJAMIN, 2008, p. 68, que afirma: “Se a Constituição Federal de 1988 manda o Estado-juiz, o Estado-executivo, e o Estado-legislativo proteger imperativamente o consumidor em suas relações intrinsicamente desequilibradas com os fornecedores de produtos e serviços, a CF/88 não definiu quem é o consumidor – logo temos que recorrer ao CDC, como base legal especial infraconstitucional para saber quando aplicar o CDC”. 3  Ver também ALMEIDA, 2003; NISHHIYAMA e DENSA, 2011, pp. 432 a 433, que afirmam: “o princípio da proteção do consumidor é norma constitucional”; DUQUE, 2009.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate.

mecanismos de proteção, com o surgimento de novas associações civis voltadas à proteção dos consumidores, como órgãos administrativos também com o mesmo escopo. Além disso, impôs importantes e gradativas mudanças às relações de consumo, perceptível na melhora na qualidade de fabricação dos produtos e na relação das empresas, de um modo geral, frente os consumidores4. 1.1. DA REPARAÇÃO POR DANOS NA SISTEMÁTICA DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR.

A lei n.º 8.078/90 adotou uma sistemática própria para garantir a reparação dos danos oriundos das relações de consumo. Assim, como se percebe claramente da citada lei, a responsabilização dos fornecedores está dividia em duas partes, em primeiro, a responsabilização decorrente dos acidentes de consumo ocorridos por defeitos nos produtos e serviços, tratada entre os artigos 12 a 14, e, em segundo, a responsabilização decorrente dos vícios nos produtos e serviços, previstos nos artigos 18 a 20. A responsabilidade por fato do produto ou do serviço identifica-se pela ocorrência de defeito. O defeito que emerge do produto ou serviço disposto ao consumidor é a consequência de um dano provocado por uma falha no funcionamento regular destes5. Desse modo, o dano moral emerge imediatamente dos acidentes de consumo, haja vista que não há que se falar em acidente de consumo se não ocorrer o dano. Assim, a sistemática aplicada pelo Código de Defesa do Consumidor atribui a quem idealizou e concebeu o produto ou o serviço o dever de repara eventuais danos suportados pelos consumidores. Quando a responsabilidade se trata de vício do produto ou do serviço, regulada pelos artigos 18 e 19, vício de qualidade e quantidade do produto, respectivamente, e artigo 20, vício de qualidade do serviço, a ocorrência de dano seria em razão pela demora na reparação do vício. Em outras palavras, havendo vício no produto ou serviço, há um prazo de 30 dias previsto na lei para resolução da falha, e, em caso de alargamento deste período por retardo do fornecedor em repará-lo, caso haja dano, então pode ser imputado ao fornecedor o dever de pagar indenização, que, repetimos, tem relação a danos gerados pela demora em sanar o vicio (NUNES, 2012). A sistemática prevista na Lei n.º 8078/90, apesar de pautada na divisão a partir do entre defeito e vício, este menos gravoso, intrínseco ao bem ou serviço, com formas de reparação previstas em lei – havendo a possibilidade de a reparação ocorrer por danos morais e matérias -, e aquele, mais gravoso, e que se dá pela ocorrência de dano provocado pela exteriorização vício no bem ou serviço. O consumidor possui um instrumento forte de reparação dos danos que vier a suportar no mercado, no entanto é comum determinadas práticas abusivas ou perigosas, por vezes lesivas, serem recorrentes, o que quer nos mostrar que as indenizações pagas talvez não sejam suficientes para alterar as mesmas práticas empresarias prejudiciais aos consumidores. 2. DO DANO MORAL AO SOCIAL: UM QUADRO DE GRAVE COMPROMETIMENTO DA VIDA HUMANA NA RELAÇÃO DE CONSUMO. Numa perspectiva moderna, nota-se que as relações de consumo tendem a oferecer sempre novas alternativas com o fito principal de promover os ganhos econômicos. E isso corresponde a fato natural, inexorável aos avanços da sociedade, que precisa atender às suas necessidades, amparada, principalmente, pela celeridade e pelo desenvolvimento comum.

4  Sobre relação de consumo Cfr. PASQUALOTTO, 2011; OLIVEIRA, 2002. 5  Cfr. CAVALIERI FILHO, 2008, p. 265: “(...) fato do produto é um acontecimento externo, que ocorre no mundo exterior, que causa dano material ou moral ao consumidor (ou ambos), mas que decorre de um defeito do produto”.

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Não há mal propriamente neste processo. A grande questão que se impõe é saber até que ponto as citadas relações podem estar revestidas da licitude. Se se ultrapassar esta barreira, dos negócios justos, seguramente sobrevirão enormes prejuízos aos consumidores, que se veem fracos perante o insuportável peso do poder socioeconômico exercido pelos fornecedores lesantes. Ou seja, quanto mais lacunas se deixam escapar, mais fortes se tornam os lesantes e, por conseguinte, o controle de seus atos se vislumbra como demasiado frustrante, sobretudo para os consumidores, que, já prejudicados, não têm meios para buscar amparo legal. Fecha-se o seguinte cenário: o consumidor, naturalmente, tem de resolver as questões do dia a dia, quais sejam levar o filho a escola, pagar as contas, ir ao médico, dentre outros afazeres prioritários, assim, vê-se, não tem tempo para buscar amparo no poder judiciário, ainda mais sabendo que tal iniciativa pode não acabar como desejada, resultando tudo num grave transtorno moral. O dano moral, antes analisado sob a feição de um só ente, hoje, com tais problemáticas de ordem consumerista, passa a compreender uma extensão muito maior, às vezes até de difícil avaliação e controle, o denominado dano social. Segundo o idealizador da teoria do dano social, Antonio Junqueira de Azevedo, o dano social é aquele mal impelido em face de muitos indivíduos, de uma parcela considerável da sociedade que se vê achacada em seus elementos mais ínsitos, como a moral, o bem-estar subjetivo, a paz e a segurança, por exemplo6. Nas palavras de Maria Celina Bodin de Moraes (MORAES, 2006, p. 246), o dano moral corresponde à lesão perpetrada em face da dignidade humana7. Pois bem, nada mais elucidativo que trazer à baila tais palavras, as quais confirmam o grave mal do dano social. Como o próprio nome já assim o denota, diz respeito a uma lesão pratica à dignidade de uma infinidade de pessoas, portanto, mais severa, que merece ser combatido de modo eficaz. O dano social subtrai a tranquilidade de toda população8. Deixa-se a impressão que ao lesante é permitido continuar tais atos, ao passo que o lesado se sente atônito e desorientado quanto aos seus direitos. Acaba, então, a aceitar a situação porque não sabe ao certo como, se ou a quem, ao menos, deve recorrer. Para descrever melhor, o estado da população se sintetiza em resignação. Aceitar passiva as adversidades é exatamente o que espera o lesante, tendo como base, tão somente, a sua racionalidade económica, direcionada a compatibilizar, a seu modo, gastos e lucros, sujeitando os consumidores aos mais indignos tratamentos. O dano de esfera social vai implantando, velada e sutilmente, uma sensação progressiva de sujeição aos quadros atuais. Pensa-se: tudo está como deve ser, e pronto. Não se projeta qualquer tipo de solução, restando, especialmente ao mais hipossuficiente, a submissão, o que pode concorrer para o superendividamento. Para melhor confrontar ideias, cumpre apresentar a seguinte situação hipotética: acostumado a realizar seus pagamentos por via bancária, através de débito automático, porque, ocupado, João não tem tempo para realizar tais atividades diretamente em agências, fica surpreso com a cobrança de uma taxa de serviço, quando, à época, ao perguntar ao gerente do banco, fora informado que nada seria acrescido a sua conta 6  AZEVEDO, 2004, p. 376: “Os danos sociais, por sua vez, são lesões à sociedade, no seu nível de vida, tanto por rebaixamento de seu patrimônio moral – principalmente a respeito da segurança – quanto por diminuição de sua qualidade de vida. Os danos sociais são causa, pois, de indenização punitiva por dolo ou culpa grave, especialmente, repetimos, se atos que reduzem as condições coletivas de segurança, e de indenização dissuasória, se atos em geral de pessoa jurídica, que trazem uma diminuição do índice de qualidade de vida da população”. 7  MORAES, 2006, p. 246: “Sob esta perspectiva constitucionalizada, conceitua-se o dano moral como a lesão à dignidade da pessoa humana”. 8  AZEVEDO, 2004, p. 375: “A segurança, nem é preciso salientar, constitui um valor para qualquer sociedade. Quanto mais segurança, melhor a sociedade, quanto menos, pior. Logo, qualquer ato doloso ou gravemente culposo, em que o sujeito ‘A’ lesa o sujeito ‘B’, especialmente em sua vida ou integridade física e psíquica, além dos danos patrimoniais ou morais causados à vítima, é causa também de um dano à sociedade como um todo e, assim, o agente deve responder por isso. [...] A ‘pena’ – agora, entre aspas, porque no fundo, é reposição à sociedade -, visa restaurar o nível social de tranqüilidade diminuída pelo ato ilícito”.

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habitual. Após realizar os cálculos de quanto teria desembolsado em três anos, reparou que os gastos mês a mês não impactavam tanto em seu orçamento – por isso não havia notado a situação velada -, mas que, ao final, isso correspondia à importância significativa, que poderia ser utilizado para cobrir outras obrigações. Sentindo-se fragilizado ante o poderio do banco, mesmo questionando seu gerente, não obteve resposta positiva, restando-lhe o amparo do poder judiciário, que, não se sabe quando, poderá ter tais valores recuperados. Fatos como este supracitado repetem-se diuturnamente, sem controle prévio e apropriado, deixando o consumidor convencido que os esforços empregados para tal fim podem resultar em algo assaz desgastante. Tendo sua esfera existencial já fortemente atingida pelo ato em si, ainda pode se ver mais envolvido em razão das tentativas, digamos, estéreis. 3. O APARELHAMENTO NOCIVO E SISTEMÁTICO DO “DANO EFICIENTE”. Notórios, nos meios midiáticos, os abusos cometidos por empresas de grande poder socioeconômico, como é o caso de companhias aéreas, operadoras de telefones, dentre outras. Mais alarmante que isso é saber que os casos se repetem, que as mesmas empresas mantêm suas atividades desvirtuadas porque não há controle eficaz9. O fato é que, por não haver freios legais, acostumam-se a desempenhar suas atividades sem qualquer apego à vida humana. É dizer que as suas decisões serão sempre orientadas pelos resultados econômicos. Se os ganhos compensam, descarta-se a condições psicofísicas dos indivíduos envolvidos, podendo os lesantes, então, submeterem-se às possíveis ações judiciais – quando algum lesado tiver disposição para tal -, e se for condenado, deverá pagar o quantum arbitrado em juízo, de caráter compensatório. Vislumbrando as quantias de indenização que porventura surjam, os lesantes têm segurança em saber o patamar que irá interferir em seu orçamento. Porque as indenizações compensatórias são antecipadamente cognoscíveis, estes entes, alheios aos resultados que podem ser devastadores, raciocinam que o lucro compensa. É nesse sentido que se opera o “dano eficiente”, na concepção de César Fiúza (FIÚZA apud PIMENTA e LANA, 2010, p. 128)10. O agente lesante encontra campo lacunoso – em legislação – para aplicar o seu intento, sem se ater ao princípio jurídico mais importante, a dignidade da pessoa humana, insculpida no art. 1º, inciso III, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, norma que rege todo o ordenamento brasileiro. Por controlar todo o processo danoso, os custos das operações etc., o lesante chega a tranquila conclusão que os custos com a readequação do produto, em se tratando, por exemplo, do recall, seria muito mais dispendioso que manter a situação como está, sujeitando-se, se for a hipótese, às possíveis indenizações compensatórias, e se condenado for. Pela insignificância, e ante o poderio econômico do lesante, na maioria das vezes estas mesmas empresas pressionam a realização de acordos, e logo no início, sem conferir o potencial lesivo do mérito da questão, já são encerrados inúmeros casos. Restam, portanto, alguns poucos que, ao final, não conseguirão efetivamente exprimir os caráteres dissuasivo, exemplar e punitivo, em face da conduta.

9  FARIAS, ROSENVALD e NETTO, 2014, p. 411: “[...] As estatísticas demonstram que o Poder Judiciário e, especialmente os juizados especiais, converteram-se em repositórios de demandas de responsabilidade civil. Assombra a reiteração de demandas contra os mesmos réus, pelas mesmas práticas reveladoras de um profundo descaso com os seus clientes e a sociedade. Há uma subversão axiológica, haja vista que a lógica puramente patrimonialista e individualista – de uma racionalidade estritamente econômica -, paira sobre situações jurídicas existenciais e metaindividuais. A eventual reparação de danos será um preço previamente conhecido e contabilizado pelo lesante”. 10  FIÚZA apud PIMENTA e LANA, 2010, p. 128: “Fala-se, por fim, em dano eficiente e dano ineficiente. Ocorre dano eficiente, quando for mais compensador para o agente pagar eventuais indenizações do que prevenir o dano. Se uma montadora verificar que uma série de automóveis foi produzida com defeito que pode causar danos aos consumidores, e se esta mesma empresa, após alguns cálculos, concluir ser preferível pagar eventuais indenizações pelos danos ocorridos, do que proceder a um recall, para concertar o defeito de todos os carros vendidos que forem apresentados, estaremos diante do dano eficiente”.

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Para melhor aclarar o tema, vale lembrar o emblemático caso Pinto Case em que a Ford produziu carros em formato de pinto, como o próprio nome sugere, onde o arranjo e qualidade das peças não condiziam com a segurança desejada. Assim, em virtude de acidente no qual houve a morte do condutor, além de graves lesões nos passageiros, chegou-se ao poder judiciário dos EUA a questão, momento em que ficou constatada a má colocação do tanque de combustível, assim como a fragilidade do material empregado, o que ocasionou o evento trágico. Comprovou-se, ademais, inclusive certificado pelo dono da empresa em audiência, que era do conhecimento da Ford o aludido problema, contudo, em razão da alteração do design do produto para a reformulação, seria melhor se submeter às possíveis indenizações, se fosse o caso, pagando as quantias compensatórias. Consternado com a desconsideração à vida, o Tribunal da Califórnia determinou a condenação em indenizações de caráteres compensatório e punitivo, esta muito mais acentuada, com o intuito de provocar verdadeira repressão ao comportamento praticado e aviso aos demais pretensos lesantes (LOURENÇO, 2008, p. 4 e 5). Logo, a lei não pode dispor de espaços que facilitem as citadas manobras. De tal modo que se impõe o auxílio da análise econômica do Direito para dirimir estas falhas, direcionando o estudo, a feitura, e a aplicação da norma para eliminar do lesante a visão restrita da racionalidade econômica. Com isso, as atividades serão enformadas a atingirem a eficiência, sem, contudo, dar margem aos danos11. 4. O DIÁLOGO ENTRE SISTEMAS COMO FORMA DE APLACAR DIFERENÇAS E FOMENTAR GANHOS SOCIAIS. No sistema anglo-saxônico, o common law desenvolveu-se ferramenta a ensejar a responsabilização do agente através de uma pena civil, os designados punitive damages. Tal instrumento, além de vir acompanhado à compensação do lesado, tem por fulcro a penalização à conduta lesiva e servir de exemplo para que os demais desistam de tal iniciativa. Mesmo diante de toda resistência do sistema civil law em acolher tal instrumento, atendendo-se às reservas e adequações pertinentes, frise-se: não há mais razão para o distanciamento entre sistemas, vez que o fim será sempre a proteção humana, através do reconhecimento pleno da dignidade da pessoa humana. Além disso, a função punitiva da responsabilidade civil proporciona o versátil enlace social do instituto, que pode, ao mesmo tempo, servir de controle preventivo e pena civil. Reflexo dessa imprescindível tutela social desponta cada dia mais, sobretudo no poder judiciário brasileiro, soluções voltadas a desestimular tais condutas lesivas, ainda que as condenações hodiernas, nem de perto, possam ser comparadas àquelas aplicadas, mormente, nos EUA12. Por sua relevância, expõe-se o inteiro teor de trecho de recente decisão de primeiro grau de jurisdição, no Estado do Ceará, por meio da qual o magistrado salienta o papel punitivo da indenização pela responsabilidade civil, instrumento regulador da conduta social: “Também, deve a indenização servir de advertência ao ofensor, evitando-se, dessa forma, a reincidência, exteriorizando seu caráter punitivo e preventivo, através da fixação de um valor razoável” 13.

11  PIMENTA, 2006, p. 169: “O que pressupõe a análise econômica do Direito é que a conduta legal ou ilegal de uma pessoa é decidida a partir de seus interesses e dos incentivos que encontra para efetuá-la ou não. Parte-se da premissa que os agentes – sujeitos de direito – irão conduzir-se diante da legislação de forma a fazer a escolha que incorra em uma melhor relação quantitativa entre os custos e riscos envolvidos e os possíveis benefícios (escolha baseada no critério eficiência)”. 12  MINAS GERAIS, 2011: “No que se refere ao quantum indenizatório referente ao dano moral, a despeito de não ser expressamente adotada por nosso ordenamento jurídico a doutrina norte-americana do punitive damages, é lugar comum na doutrina e na jurisprudência que a indenização deve levar em conta o dano, a capacidade econômica da vítima e do agente, bem como o viés pedagógico da indenização, capaz de desestimular a reiteração da conduta social indesejada”. 13  (SENTENÇA, 2015, p. 332).

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CONCLUSÃO Há de se acolher o que de bom se construiu em tradição alienígena, como bem assevera Nelson Rosenvald (ROSENVALD, 2014, p. 165), porque os ganhos sociais serão sempre maiores que a precipitada inobservância14. Guardadas as proporções regionais e culturais, que devem ser respeitadas, a função punitiva atenderá, inclusive, à função social da responsabilidade civil, maior contributo a ensejar que se evitem, preventivamente, a incidência do dano, estando, pois, mais condizente com os ditames da cláusula geral da dignidade da pessoa humana. Com a função punitiva, o sujeito sentir-se-á mais seguro, de que haverá a resposta apropriada do poder judiciário, além disso, os demais entes de poderio econômico e social saberão o revés legal aposto às suas más condutas. Concomitante a isso, também, observe-se: o pretenso lesante não terá como calcular possíveis vantagens econômicas que existiriam se se sujeitasse, eventualmente, às condenações judiciais, como no caso de indenizações compensatórias, ao invés de conferir ao produto ou ao serviço os ajustes necessários à segurança do consumidor, porque as indenizações de caráter punitivo não podem ser avaliadas de modo antecipado. Assim, ficam evidenciadas a eficiência e a segurança jurídica determinadas pela função punitiva da responsabilidade civil, tendo em conta que o dano eficiente não mais poderá se formar, desmontando, com isso, o arranjo perigoso inclinado a causar o dano social, grande mal da atualidade. REFERÊNCIAS ALMEIDA, João Batista de. Manual de direito do consumidor. São Paulo: Saraiva, 2003. AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Por uma nova categoria de dano na responsabilidade civil: o dano social. O Código Civil e sua interdisciplinaridade: os reflexos do Código Civil nos demais ramos do Direito / José Geraldo Brito Filomeno, Luiz Guilherme da Costa Wagner Junior e Renato Afonso Gonçalves, coordenadores. 370-377 p. – Belo Horizonte: Del Rey, 2004. BENJAMIN, Antonio Herman V.; MARQUES, Claudia Lima e BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de direito do consumidor. 2 ed., RT: São Paulo, 2008. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. Coimbra: Almedina: 1993. CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de direito do consumidor. São Paulo: Atlas, 2008. DUQUE, Marecelo Shenk. A proteção ao consumidor como dever de proteção estatal de hierarquia constitucional. Revista de direito do consumidor, n.º 71. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, pp. 143 a 167, 2009. FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson; NETTO, Felipe Peixoto Braga. Curso de direito civil – teoria geral da responsabilidade civil – responsabilidade civil em espécie. – 3. vol. – ed. 2014. 1069 p. Salvador: Editora Jus Podivm, 2014.

14  ROSENVALD, 2014, p. 165: “As fronteiras foram rompidas. Não há como preservar a intransponível dicotomia entre a civil law (romanística, codificada e identificada por um ordenamento legislativo) e a common law (não romanística, não codificada e identificada em um ordenamento judiciário), tal como se fossem universos apartados. A nacionalidade do direito privado se revela um obstáculo às relações econômicas, cada vez mais intensas, entre cidadãos e empresas de países e sistemas jurídicos diversos. Ademais, a pureza metodológica ficou no passado. As nações da common law recorrem à legislação, assim como os Estados filiados ao civil law concedem paulatina importância à construção do direito pelos tribunais e pelos costumes”.

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GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988: interpretação e crítica. 3d., São Paulo, 1997. GRAU, Eros Roberto. Interpretando o Código de Defesa do Consumidor: algumas notas. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, n.º 5, 1993. LOURENÇO, Paula Meira. A indemnização punitiva e os critérios para a sua determinação. Disponível em: < http://www.stj.pt/ficheiros/coloquios/responsabilidadecivil_paulameiralourenco.pdf>. Acesso em: 23 nov. 2015. MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça. Ap. n. 1.0106.09.043091-4/001. Rel. Des. Sebastião Pereira de Souza. Diário de Justiça, Minas Gerais, 25 mar. 2011. MIRAGEM, Bruno. O direito do consumidor como direito fundamental. Revista de direito do Consumidor, n.º 43, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 30ª ed. São Paulo: Atlas, 2013. MORAES, Maria Celina Bodin de. A constitucionalização do direito civil e seus efeitos sobre a responsabilidade civil. Direito, Estado e Sociedade - v.9 - n.29 - p 233 a 258 - jul/dez 2006. NUNES, Rizzatto. Curso de direito do consumidor. 7a ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2012. NISHHIYAMA Adolfo Mamoru e DENSA, Roberto. A proteção dos consumidores hipervulneráveis: os portadores de deficiência, os idosos e as crianças e os adolescentes. In: Claudia Lima Marques; Bruno Miragem. Doutrinas Essenciais Direito do Consumidor: fundamentos do direito do consumidor - (Coleção doutrinas essenciais, v.2), São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. OLIVEIRA, Amanda Flávio de. O sistema nacional de defesa do consumidor. Revista de direito do consumidor, n.º 44, pp. 97 a 105, 2002. PASQUALOTTO, Adalberto. Defesa do consumidor. in: Claudia Lima Marques; Bruno Miragem. Doutrinas Essenciais Direito do Consumidor: fundamentos do direito do consumidor – (Coleção doutrinas essenciais, v.1). São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, pp. 25 a 62, 2011. PIMENTA, Eduardo Goulart. Direito, economia e relações patrimoniais privadas. 159-173 p. Brasília a. 43 n. 170 abr./jun. 2006. PIMENTA, Eduardo Goulart; LANA, Henrique Avelino R. P. Análise econômica do direito e sua relação com o direito civil brasileiro. Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 57, p. 85-138, jul./dez. 2010. ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil: a reparação e a pena civil / Nelson Rosenvald. – 2. ed. – 264 p. São Paulo : Atlas, 2014. SENTENÇA de 1º Grau de Jurisdição. 27ª Vara Cível da Comarca de Fortaleza, Estado do Ceará. Processo nº: 0543433-35.2012.8.06.0001. Classe: Procedimento Ordinário. Requerente: Anadir Espindola Barreto e outro. Requerido: Coelce – Companhia Energética do Ceara. Juiz de Direito Dr. Jose Cavalcante Junior. Decisão datada de 14/09/2015 e publicada em 16/09/15, no Diário da Justiça, em página de n.º 332.

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JUDICIAL DO DIREITO SOB A ÓTICA DA TEORIA ESTRUTURANTE DO DIREITO: IMPLICAÇÕES NO PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA

ALEXANDRE HENRIQUE TAVARES SALDANHA Especialista, Mestre e Doutorando em Direito pela UFPE. Professor da Universidade Católica de Pernambuco e das Faculdades Integradas Barros Melo. Advogado membro da comissão de propriedade intelectual da OAB/PE. VICTOR RAFAEL ALVES DE MATTOS Acadêmico em Direito pela AESO Barros Melo.

SUMÁRIO: Introdução; 1. Hermenêutica filosófica; 2. Müller e a jurisprudência hermenêutica; 3. Pré-Compreensão; 4. Circularidade hermenêutica; 5. Segurança jurídica e metódica. Conclusão. Referências.

INTRODUÇÃO Esta pesquisa tem como objetivo analisar as estruturas motoras da hermenêutica tratada por Müller e a Jurisprudência Hermenêutica para contrastar com o princípio da segurança jurídica. A pergunta norteadora dessa pesquisa é se este recente movimento hermenêutico, baseado nas ideias de Heidegger e Gadamer, oferece segurança jurídica. Esta pergunta, portanto, não pode ser compreendida como se estivéssemos abordando uma proposta política, pois a hermenêutica filosófica não prescreve elementos axiológicos, mas, descritivos. Müller se insere no contexto pós-guerra e toma para si o desafio de indagar e romper1 com o positivismo jurídico, especialmente o kelseniano. Isso faz de Müller, necessariamente, um pós-positivista. A fonte primordial de Müller para desenvolver suas ideias foram bastante profundas, visto que a hermenêutica filosófica em seu tempo estava em processo de transformação paradigmática bastante elementar. Heidegger findou com a hermenêutica ontológica e Gadamer seguiu essa característica. Em uma metáfora simples, diz-se que a hermenêutica sofreu uma mudança instrumental. O sujeito outrora utilizava de uma luneta, necessitava enxergar toda a mínima essência daquele objeto para auferir uma verdade sobre este. Devido às frequentes falhas deste método, a “nova” hermenêutica utiliza espelhos em volta do objeto, pois não há mais dissociação pura entre sujeito e objeto no processo de compreensão. 1. HERMENÊUTICA FILOSÓFICA. O termo “hermenêutica” origina-se do deus grego ‘Hermes’. A este cabia a função de mensageiro dos deuses, interpretando suas mensagens àqueles que não poderiam compreendê-la. Como rotineiramente pontua Lênio Streck, nunca se soube o que os deuses realmente disseram, mas o que Hermes interpretou. Esta alegoria permite-nos concluir a atual função da hermenêutica contemporânea. Sob a ótica desta a ontologia é descartada para dar lugar ao analítico, a ““essência” é apenas, ela própria, uma palavra que ganha sentido num contexto linguístico” (FERRAZ JR., 2015). 1 

Este rompimento não significa total abdicação das ideias contidas na obra Teoria Pura do Direito.

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A hermenêutica “se restringia a tarefa de fornecer às ciências declaradamente interpretativas algumas indicações metodológicas, a fim de prevenir, do melhor modo possível, a arbitrariedade no campo da interpretação” (GRONDIN, 1999). Isto implica em dizer que em todo momento da história em que fora racionalizado metodologias interpretativas pode-se falar em hermenêutica no seu sentido amplo. O caráter usado na antiguidade até o século passado tinha a função basilar de descobrir, pois acreditava-se que havia um significado real e verdadeiro para os componentes da vida, fenômenos e textos. Juridicamente estas ideias extremaram no positivismo clássico, onde a lei seria aplicada à determinado caso através do método dedutivo, sendo a interpretação normativa restrita ao uso de técnicas interpretativas pré-estabelecidas a todo e qualquer processo decisório. Hodiernamente o fator fulcral está centralizado na ‘compreensão’. Schleiermacher pode ser indicado como um daqueles que universalizaram a sistemática elaborada por Lutero, buscando o entendimento do texto com a vinculação do significante para com o respectivo autor. Este encarava como arbritrária o acréscimo de conteúdos próprios ao texto pelo intérprete (GRONDIN, 2002 apud SCHROTH). Há também a colaboração de Dilthey, com seu enfoque psicológico, porém, apenas a partir de Heidegger pode-se falar em compreensão hermenêutica nos moldes desenvolvidos por Gadamer. O desenvolvimento de Gadamer, destacado repetidas vezes por Müller são as condições de possibilidade da compreensão. Para que esta ocorra faz-se necessário haver a pré-compreensão. Isto porque o intérprete, no seu processo interpretativo, atrela-se a um fator orientador, cuja essencialidade é histórica e contextual. Assim, cada interpretação será uma aplicação do estado de consciência do intérprete. Eis porque a compreensão gadamariana não é um processo descritivo e reprodutivo, mas produtivo e criativo. A circularidade hermenêutica se pauta no ‘embate’ transcorrido entre o texto na sua tradição amparado de signos e a contribuição da consciência trazida pelo intérprete. “Portanto, o intérprete tem de saber que a interpretação de um texto é sempre uma aplicação ao presente” (GRONDIN, 2002 apud SCHROTH apud GADAMER). 2. MÜLLER E A JURISPRUDÊNCIA HERMENÊUTICA. Classificar os movimentos contemporâneos hermenêuticos é, além de um árduo trabalho, impossível sistematizar com exatidão em diferentes grupos. Isto se dá pelo fato de não haver escolas, mas movimentos convergentes em determinados aspectos e influências. O autor utilizado como base teórica desta pesquisa enquadra-se na chamada “jurisprudência hermenêutica”. O termo é utilizado por Gustavo Just, em sua obra “interpretando as teorias da interpretação”. O motivo da sua escolha é justificado. “Jurisprudência” relaciona-se com as teorias consagradas “jurisprudência dos conceitos” e “jurisprudências dos valores”. O termo seguinte denota o pensamento influente desta corrente, a filosofia hermenêutica. A jurisprudência hermenêutica surge a partir de um contexto antiformalista trazida pelo pós-positivismo. Nesta esfera são levantadas as bandeiras da práxis decisória e sua axiologia em sentido epistemológico, demonstrando dessa forma um rompimento com as ideias centrais do positivismo. Aquele funda-se na ideia de que a norma e a realidade não podem ser estabelecidas em mundos paralelos. A norma não pode ser fundamentada e racionalizada pura e simplesmente através da subsunção, pois a realidade intervém no processo interpretativo. A partir desse novo paradigma é que a jurisprudência hermenêutica se estabelece pelas suas raízes da hermenêutica filosófica de Gadamer. Noções como “pré-compreensão”, “círculo hermenêutico”, são utilizadas pelos teóricos desse movimento. Apesar disso, esta corrente não promulga uma interpretação filosófica, mas pela práxis e com o uso da dogmática. Não se pode confundir o uso de determinados elementos da filosofia com uma abordagem filosófica. Este movimento visa a metodologia prática da interpretação, sendo assim, o tratamento geral do direito, como encara Dworkin pela sua filosofia analítica, é destoante com a JH.

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Veremos mais adiante que um comportamento comum dos teóricos da JH é a separação hermenêutica em determinadas áreas do direito. Müller, em sua teoria estruturante, evidencia sua canalização na hermenêutica constitucional (Müller, 2007). Para este, a universalização da metodologia interpretativa é um erro, visto que a natureza de um determinado diploma possui características e celeumas próprios. 3. PRÉ-COMPREENSÃO. A verificabilidade objetiva da decisão judicial se perfaz através de um caminho cuja base fulcral é a racionalidade. A visão da JH sobre a determinabilidade dos elementos compositores dessa racionalidade está aportada em um copo estrutural denso mais significativo e concreto do que aspectos mais específicos e divergentes da metódica de cada um dos autores dessa “escola”2. A estrutura elementar da JH é, em primeiro lugar, o “esclarecimento das condições e do potencial de rendimento da objetividade jurídica” (MÜLLER, 2011). O esclarecimento ocorre quando são expostos os fatores que participam da interpretação e concretização normativa, que são mais de um. Porém, primeiramente, iremos tratar da pré-compreensão. A filosofia de Heidegger se pautava, dentre diversos aspectos hermenêuticos e fenomenológicos, a pré-estrutura da compreensão. Segundo Jean Grodin, Heidegger buscou estudar aquilo que estava por detrás da elocução, logo, a pré-compreensão é uma estrutura fundamental do seu pensamento. Pode-se entender esta “que o “Dasein” se configura por uma interpretação que lhe é peculiar e que se encontra antes de qualquer elocução ou enunciado” (GRODIN, 2003). Basicamente, a pré-compreensão está presente em todo agente ao se debruçar sobre um objeto ao estuda-lo. Na ciência não é diferente, especialmente nas ditas humanas e jurídicas. Tomando a pré-compreensão como elemento indissociável de uma relação entre o sujeito e objeto sob a qual ideias pretéritas e específicas de um agente dentro daquilo que se é, aonde é e quando é, a JH adota como imprescindível não apenas a aceitação desta impossibilidade dissociativa, mas a exposição em cada tentativa de compreensão (concretização) normativa, o que Esser vai chamar de “tomada de consciência das condições fundamentais do seu trabalho” (1970). O caráter axiológico da pré-compreensão não pode ser visto como uma contradição às ideias metódicas e racional da interpretação. Parte-se do princípio de que todo intérprete não pode dissociar seu ser dos conhecimentos e valores inerentes à sua formação e visão de mundo. Como alude Gustavo Just: A consciência metodológica deixa patentes os fundamentos verdadeiramente decisivos da interpretação e os torna acessíves à crítica, enquanto a ilusão da suficiência do mero silogismo dos métodos compromete, na realidade, toda possível autonomia jurídica da decisão relativamente às tentativas políticas e ideológicas de usurpação instrumental da norma

A consciência dos elementos axiológicos não entrega o direito à política, pois, como enfatiza Esser, o que causa perigo ao direito é o obscurecimento desse elemento. A partir do momento em que há a tomada de consciência, pode-se exigir maior fundamentação racional do intérprete, levando consequentemente a um maior controle racional da decisão judicial. Não há como falar em método racional sem objetivar a redução da subjetividade do intérprete, e a tomada de consciência é um dos primeiros passos para a compreensão do processo decisório em seu aspecto psicológico e factual. Como bem colocado pelo professor Andreas Krell “o objetivo do método é reduzir a subjetividade do intérprete, possibilitar o seu autocontrole e “direcionar o seu agir para caminhos previsíveis” (2014 apud SCHMITT GLAESER, 2004, p. 139 ss.; STRAUCH, 2001, p. 200 s.).

2  Como já descrito neste artigo, a JH não é considerada como uma escola de pensamento pela ausência de aspectos formadores.

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A dificuldade maior, como aponta Müller: começam quando os preconceitos produtivos, que ensejam materialmente a compreensão, devem ser separados dos que impedem a compreensão correta, a concretização conforme a norma. Essa separação não pode se dar anteriormente; ocorre na própria compreensão. Assim a reflexão e racionalização dos preconceitos tanto produtivos quanto destrutivos – vistos do ângulo da norma – se torna igualmente uma tarefa da teoria estruturante da norma.

Sob esse argumento que Müller enfatiza o aspecto elucidativo e introducionista dos elementos da pré-compreensão na fundamentação do intérprete. 4. CIRCULARIDADE HERMENÊUTICA. Como tratado anteriormente, a pré-compreensão compõe a estrutura da racionalidade do intérprete. A consciência da sua existência é um passo necessário na formulação do pensamento da JH, entretanto, esta por si só não elimina por completo a indeterminação do direito. A doutrina formalista, sobretudo em seu raciocínio de codificação e positivismo3 não obteve êxito ao aplicar medidas de exacerbação de um direito legislado, acreditando na ideia de que poderia complementar e determinar o direito previamente ao juiz. Kelsen, por sua vez, avançou nesta problemática quando aludiu: A ideia de que é possível, através de uma interpretação simplesmente cognoscitiva, obter Direito novo, é o fundamento da chamada jurisprudência dos conceitos, que é repudiada pela Teoria Pura do Direito. A interpretação simplesmente cognoscitiva da ciência jurídica também é, portanto, incapaz de colmatar as pretensas lacunas do Direito (2009).

De fato, a jurisprudência dos conceitos demonstrou exatamente como não há possibilidade de prever com exatidão uma decisão jurídica. Faltou a Kelsen desenvolver o processo decisório hermenêutico. Assim, a proposta da JH se dá em analisar a indeterminação do direito legislado que caminha ao direito aplicado. Busca-se a partir de agora superar o mero preenchimento e enrijecimento do direito legislado, pois, o entendimento da JH se pauta no fato de que, todo esse processo de aplicação4 deve ser pensado sob a circularidade hermenêutica. Isso resulta em um estudo não mais linear e hierárquico, mas simultâneo e dialético. A medida que se examina os pressupostos e enfoque analítico da JH fica mais notório sua influência filosófica. Gadamer esboçou a respeito da circularidade hermenêutica que ocorre nos diversos campos científicos, argumentando acerca da compreensão dialética, formulada pela pergunta e resposta constante no processo interpretativo. O caráter noético da hermenêutica anterior a Heidegger está pautada em um processo linear da interpretação e pela busca ontológica através do método racional. Basicamente o positivismo científico5. O processo dialógico gadameriano opera sob uma perspectiva de questionamento entre o intérprete e o objeto para fins de compreensão. Compreender, para Gadamer, significa aplicar um sentido aos nossos questionamentos. Isso não significa que nossos questionamentos remeterão à uma compreensão objetiva e pura de um

3  Aqui faz-se importante as recomendações de Norberto Bobbio em não confundir positivismo com positivação. Aquele é uma “doutrina jurídica segundo a qual não existe outro direito senão o positivo” (BOBBIO, 2006). Esta significa o direito descrito e posto, particular, temporal e mutável. 4  Nesse caso, a aplicação normativa é chamada por F. Müller de “concretização”. 5  Não confundir o positivismo científico com o jurídico. Apesar de alguns aspectos semelhantes, estes dois movimentos possuíam diferenças significativas não apenas no seu objeto, mas em suas ideias também.

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sentido, pois o ser (intérprete) é o sujeito mediador entre o objeto e a compreensão. E como já mencionado no capítulo anterior, o ser é constituído de uma pré-estrutura compreensiva substancial. Esses elementos sustentam uma posição contrária ao historicismo objetivo sob a ótica aplicacionista. Em épocas diferentes é comum a compreensão diversa das pretéritas sobre um mesmo texto, visto que o processo dialógico e questionador remeterá aos problemas presentes, ocasionando uma dependência rígida entre o significado6 e o tempo em que o sujeito o atribui. Para os juristas é importante uma argumentação neste sentido, ainda que o leitor discorde dessa posição. O argumento historicista causa diversas desconexões sociais entre o texto legal e a composição real dos fatos presentes. Se compreender é questionar-se sobre um problema presente, a partir de um intérprete vivente neste presente, a sua compreensão não será capaz de destoar do entendimento presente. O teor simultâneo trazido por Gadamer revela-se como corolário de uma compreensão formulada essencialmente no questionamento. Um enunciado elocutivo trará pressupostos materiais (conteúdo) insuficientes para uma compreensão participativa. Haverá simultaneidade quando o agente pensar simultaneamente nos pressupostos. A partir deste panorama torna-se mais clarificado as ideias da JH. Sob a ótica do Direito não é necessário nem recomendado seguir puramente o raciocínio de Gadamer, haja vista que esta fora feita dentro do âmbito filosófico. Porém, sem a estrutura filosófica hermenêutica não é possível compreender a JH. Esta, por sua vez, utilizou da circularidade e seus pressupostos para superar o entendimento kelseniano de que norma e realidade residem em esferas intocáveis. Ou seja, a JH não se preocupou apenas em conscientizar os pressupostos do raciocínio jurídico, mas em demonstrar que os dois lados jurídicos se entrelaçam na sua esfera interpretativa. A norma e o fato são, assim, indissociáveis, sendo necessário para uma compreensão racional a influência mútua da realidade e o texto normativo. A simultaneidade ocorre pela análise mútua entre o norma e fato em contraponto a linearidade apresentada por Kelsen. Para ilustrar melhor, Kaufmann trouxe um exemplo dessa simultaneidade e pré-compreensão no direito penal: O ácido clorídrico não é, nem nos termos estritos da letra da lei, nem segundo o sentido possível da palavra [..], uma arma. Por outro lado, o apuramento da matéria de facto sem referência a uma norma não conduz à questão de saber se o ácido clorídrico é uma arma. Só se será confrontado com esta questão, se se ‘pré-compreender’ o acontecimento como um possível caso de roubo qualificado. Se se ‘pré-compreender’ o caso diferentemente, porventura como tentativa de homicídio, não importa saber se o ácido clorídrico é uma tentativa de homicídio, não importa saber se o ácido clorídrico é uma ‘arma’. Vemos que sem pré-compreensões razoáveis nunca se chega aos problemas jurídicos relevantes. Também é fácil de identificar, aqui, o ‘círculo’ do processo de compreensão: só quando eu sei o que é roubo qualificado, posso entender o caso concreto como um caso de roubo qualificado; todavia, não posso saber o que é roubo qualificado sem uma análise correcta do caso concreto (2002). 

Como Gustavo Just bem coloca, esse raciocínio desmonta a ideia de que a norma possa ser determinada abstratamente, sendo toda interpretação é aplicação. Seu sentido será buscado a partir da solução do caso concreto. 5. SEGURANÇA JURÍDICA E METÓDICA. A segurança é um fator almejado pelo ser humano sob um espectro global, dentre os quais inclui-se a modalidade judicial. A estrutura do Estado é articulada sob o enfoque de defender e preservar a segurança dos que o constituem. Avançando para o Estado democrático de direito este princípio, especialmente na sea6  É importante que o leitor tenha sempre em mente a sinonímia entre sentido (compreensão) e aplicação na visão gadermariana. Uma aplicação do sentido é o item finalizador do processo interpretativo.

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ra judicial, recebe espaço ainda maior e efetivo. Um Estado sem insegurança jurídica flerta com o Estado de natureza, haja vista ser o poder judiciário a ultima ratio das soluções de litígios públicos e privados. Encontrar segurança dentro de um Estado para que seu povo possa prosseguir os atos da vida civil e profissional é o caminho da civilidade. Por isto, acerta J. J. Calmon de Passos quando profere: “civilizar-se é colocar imune ao arbítrio e isto só é possível quando deixamos de nos submeter ao governo dos homens e passamos a obedecer a um conjunto de regras” (1999). Nota-se o fator objetivo almejado pelo autor, isto é, a vinculação do dever ao direito previamente determinado. Para fins desta pesquisa, trabalharemos essencialmente com a divisão estabelecida por Tércio Ferraz Jr, dividida em duas formas, sendo a função-certeza “a determinação permanente de efeitos que o ordenamento jurídico atribui a um dado comportamento, de modo que o cidadão saiba ou possa saber de antemão a consequência de suas próprias ações”, e função-igualdade seria “um atributo da segurança que diz respeito não ao seu conteúdo, mas ao destinatário das normas” (1981). Sob o contexto hermenêutico da JH, quando se fala especialmente da circularidade hermenêutica e sua dependência recíproca do caso prático, resulta inevitável cogitar a insegurança que esta conduta tenderá a gerar ainda mais com o fomento dessas ideias. Nesse aspecto não há homogeneidade entre os pensamentos de cada autor. Afinal, como almejar um sistema judicial previsível? Um dos requisitos trazidos por Canotilho é o da exigência da clareza das leis, “pois de uma lei obscura ou contraditória pode não ser possível, através da interpretação, obter um sentido inequívoco, capaz de alicerçar uma solução jurídica para o problema concreto” (1993). Esta é uma visão primária de um constitucionalista. Müller adota a metódica como via racional e passível de maior verificação objetiva da decisão. Como já exposto em capítulos anteriores, a JH não acredita ser possível a total previsão normativa (da mesma forma que pensou Gadamer e Heidegger). Isso seria contrastante com a estrutura do seu pensamento. Todavia, como alertou João Maurício Adeodato e o próprio Müller, na contemporaneidade não é mais cabível a pergunta maniqueísta, respaldada em uma mera afirmação ou negação da previsibilidade. Atualmente discute-se o grau de racionalidade, assim como o grau de previsibilidade normativa. O tracejo da aplicação7 normativa é desenvolvido pela metódica, motivada a “direcionar o seu agir para caminhos previsíveis” (Krell, 2014 apud SCHMITT GLAESER, 2004; STRAUCH, 2001). Dessa forma, o intérprete deve revelar o máximo possível seu processo interpretativo, demonstrando as etapas metodológicas que seguiu. Esse processo interpretativo, para ser válido, deverá demonstrar a vinculação da produção substancial decisória com a norma. A função da metódica é, em essência, de demarcar um caminho verificável do processo de aplicação para reduzir qualquer abuso decisório, ocasionando no ferimento ao princípio da segurança jurídica. Um texto normativo não pode ser interpretado de inúmeras formas, tão somente contraditórias, por uma mesma corte, sob pena de violar a confiança do cidadão8. Na visão de Andreas Kreel (2014), o problema desta interpretação difusa pela corte brasileira está na pré-compreensão individual, que naturalmente varia, sofre pouca orientação e consolidação por parte da doutrina jurídica nacional sobre os métodos interpretativos, em que diferentes escolas se digladiam, sem causar, contudo, maiores efeitos em relação ao trabalho prático da aplicação do Direito.

Esses argumentos demonstram que a interpretação não pode ser inteiramente racionalizada, visto que sempre haverá fatores irracionalizáveis. Porém, como já mencionado, importa saber o grau de racionalidade possível a ser aplicável na metódica.

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Ou concretização, a depender da nomenclatura utilizada pelo autor. Nomenclatura utilizada por Canotilho em seu curso de Direito Constitucional.

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Müller identifica também que a metódica não é capaz de alcançar uma racionalidade universal e absoluta, mas, assim como os cânones da interpretação, sua limitação não deve significar uma postura radical de exclusão, mas, de adotá-lo conhecendo os limites do seu alcance e sua relatividade, pois, segundo o autor, “as figuras de método são indispensáveis como momento da aplicação do direito, que estabilizam, racionalizam e facilitam a verificabilidade” (Müller, 2011). Dessa forma, todos os meios adotados pelo direito, tanto na linguagem quanto nos elementos materiais, este acúmulo, quando utilizado para marcar as etapas em que o intérprete percorre seu raciocínio, é indispensável, pois o grau de racionalidade e verificabilidade tenderá a ser maior. CONCLUSÃO Conclui-se dessa pesquisa que a segurança jurídica pode ser saciada menos em termos herméticos que em graus nivelares. O estudo das estruturas fora imprescindível para o estabelecimento do que se pretende aprofundar. Apesar da concretização hermenêutica lidar com a práxis jurídica, evitando confundir termos jurídicos com conceitos filosóficos, a proposta de Müller está encalcada em uma seara filosófica por demais complexa. Como nosso propósito fora questionar, existiu a necessidade de conhecer e expor as características estruturais da JH. Dessa forma, pode-se defender que sim, existe segurança jurídica neste contexto hermenêutica. Entretanto, esta garantia não ocorrerá de maneira automatizada, mas com demasiado esforço do intérprete e aqueles que cooperam na formação da decisão. REFERÊNCIAS ADEODATO, João Maurício. Ética e Retórica: Para uma teoria da dogmática jurídica. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito. São Paulo: Ícone, 2006. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 6 ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1993 FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 8. ed. São Paulo: Atlas, 2015. ________. Segurança jurídica e normas gerais tributárias. Revista de Direito Tributário, ano V, n. 17-18, jul.-dez, 1981, GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. Petrópolis, RJ : Vozes, 1997. GRONDIN, Jean. Introdução à hermenêutica filosófica. São Leopoldo, RS: Ed. UNISINO, 1999. JUST, Gustavo. Interpretando as teorias da interpretação. São Paulo: Saraiva, 2014. KAUFMANN, A.; HASSEMER, W. (ORG.). Introdução à filosofia do direito e à teoria do direito contemporâneas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 8. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009 KRELL, Andreas. Entre desdém teórico e aprovação na prática: Os métodos clássicos de interpretação jurídica. São Paulo: Revista Direito GV 10 (1), 2014.

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MÜLLER, Friedrich. Teoria Estruturante do Direito. 3. ed. São Paulo: Editora Revista Dos Tribunais, 2011. _________. O novo paradigma do direito: introdução à teoria e metódica estruturantes. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. PASSOS, J. J. Calmon de. Direito, poder, justiça e processo: Julgando os que julgam. Rio de Janeiro: Meridional, 1999

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DIREITOS AUTORAIS E LIBERDADE DE EXPRESSÃO NA INTERNET: NOVOS MODELOS PARA UMA NOVA CULTURA DE PARTICIPAÇÃO

ALEXANDRE HENRIQUE TAVARES SALDANHA Especialista, Mestre e Doutorando em Direito pela UFPE. Professor da Universidade Católica de Pernambuco e das Faculdades Integradas Barros Melo. Advogado membro da comissão de propriedade intelectual da OAB/PE.

SUMÁRIO: Introdução; 1. Liberdade de expressão na Internet; 2 Direitos Autorais e limites à criação de bens culturais; 3 Cibercultura e participação: novos modelos de Direitos Autorais para novas dimensões das liberdades de comunicação; Considerações Finais; Referências.

INTRODUÇÃO As contemporâneas tecnologias da informação provocaram, e continuam provocando, diversos impactos nos comportamentos sociais, na produção econômica, no sistema legal e em praticamente quaisquer setores do convívio humano. No que diz respeito ao Direito, são diversas também as consequências do desenvolvimento tecnológico na forma como alguns direitos são interpretados, aplicados, e ainda na própria criação de “novos” direitos para novos tempos. A cibercultura, expressão que faz referência a este momento de relacionamento hiperdimensionado entre homem e tecnologias digitais, se caracteriza por novos hábitos, novos comportamentos, novas exigências sociais etc. Daí produzir tantos impactos no desenvolvimento do sistema jurídico. Nestes tempos de internet, compartilhamentos digitais e microprocessadores realmente “micros”, a produção e o acesso à informação adquire uma nova proporção, pois os mecanismos e ambientes propícios a lançar e adquirir informações, para comunicar e ser comunicado, são facilmente dispostos, encontrando-se disponíveis em, por exemplo, qualquer aparelho moderno de telefones celulares que possam acessar a rede mundial de computadores e as redes sociais. Ou seja, com a devida inclusão digital, todos poderão acessar informações antes restritas a alguns meios, ou poderão produzir informações, o que estaria anteriormente reservado a determinadas categorias profissionais e classes sociais. Com essa ampla possibilidade de comunicações, a internet permite que cada um lance suas opiniões, expresse suas opções artísticas, obtenha informações de seu interesse e crie algo. Justamente nessa última possibilidade, a de criar algo que esteja afim, é que podem residir problemas com limitações impostas pelo próprio sistema. Na verdade, a liberdade de expressão proporcionada pelas práticas cibernéticas recebe diversos tipos de supressão, seja pelos direitos civis (danos morais e à imagem, por exemplo), pelos direitos penais (a exemplo dos crimes contra a honra), pelos fundamentais previstos na constituição (como a privacidade) e outros. O problema que envolve o exercício da criatividade em ambiente virtual reside nas questões de propriedade intelectual e adequação dos modelos legais de direitos autorais para tempos de cultura de compartilhamento, de convergência, de participação etc. Este trabalho propõe uma discussão sobre a supressão provocada pelos direitos autorais sobre a liberdade de expressão proporcionada pelos mecanismos da internet. A hipótese trabalhada é a de que o modelo tradicional de direitos autorais não é adequado para novos comportamentos típicos da cibercultura, principalmente aqueles que estão associados a liberdades fundamentais garantidas tanto em plano constitucional,

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quanto em instrumentos de proteção a direitos humanos. O objetivo não é defender uma extinção de direitos autorais, mas sim uma adaptação destes a novos modelos, a novas culturas. O que é possível, pois já há instrumentos juridicamente permitidos que trabalham com novas tutelas da propriedade intelectual. 1. LIBERDADE DE EXPRESSÃO NA INTERNET. Foge das pretensões de um trabalho desta dimensão conceituar objetivamente expressão tão complexa como liberdade, mas é necessário frisar ao menos o caráter ambíguo da dimensão jurídica de liberdade, pois reflete um esquema de liberdades x não-liberdades. Esta palavra vem sendo usada para significar a valoração dada a ações, políticas, culturas ou instituições, considerando-as de importância fundamental, ainda que seja um ato de obediência ao direito positivo, ou a satisfação de interesses econômicos. (BOBBIO, 1986, p. 708). Por mais complexo que seja a expressão liberdade (do ponto de vista jurídico) reflete sempre um relacionamento entre condutas e tratamentos legais, uma interação entre pessoas e entre pessoas e instituições. Reflete um esquema entre comportamentos permitidos (as liberdades) e os proibidos por lei (as não-liberdades) e é justamente este esquema que vai caracterizar a sociedade “livre” e a relação que existe entre liberdade e estado democrático. Muitos crêem ser a democracia “uma sociedade livre”. Todavia, as sociedades organizadas de estruturam mediante uma complexa rede de relações particulares de liberdade e não-liberdade (nada existe parecido com a liberdade em geral. Os cidadãos de uma democracia podem ter a liberdade política de participar do processo político mediante eleições livres. Os eleitores, os partidos e os grupos de pressão têm, portanto, o poder de limitar a liberdade dos candidatos que elegeram. A democracia exige que as “liberdades civis” sejam protegidas por direitos legalmente definidos e por deveres a eles correspondentes, que acabam implicando limitações da liberdade. (BOBBIO, 1986, p. 710).

Se por um lado as liberdades estão previstas tanto no rol de direitos fundamentais previstos em constituições federais e nas declarações internacionais de direitos humanos, elas vão encontrar limites em outros direitos ou outros valores também previstos no direito. É nessa “equação” que encontram-se as dimensões da liberdade, ou em outros termos, é nesse balanço que serão encontrados as reais possibilidades de comportamentos livres. Contemporaneamente, é possível analisar as questões que envolvem liberdades tanto em perspectiva otimista quanto pessimista. É possível falar em declínio das liberdades diante de ameaças a elas vindas tanto de representantes do poder público quanto de grupos de interesses, por causa de questões como crescimento da violência, desenvolvimento industrial, valoração das tecnologias e outros fatores. Em perspectiva oposta, a de evolução, as liberdades vêm sendo cada vez mais afirmadas e repetidas tanto em documentos jurídico de eficácia nacional quanto nos de alcance internacional, e estes últimos não se resumem às declarações universais. (RIVERO, 2006, p. 5). Sem entrar na discussão de perspectivas otimistas ou pessimistas, vale ressaltar que dentre os inúmeros problemas que envolvem as liberdades, dentre elas há as que sofrem consideráveis impactos da contemporânea cibercultura e que requer enfrentamentos específicos para melhor tutela, qual seja, a liberdade de comunicação e expressão. Dentro do esquema anteriormente mencionado da relação entre liberdades e não-liberdades, é necessário analisar quais são os comportamentos de comunicação e expressão atualmente permitidos e quais não o são. Incluindo na análise a questão de identificar se as não-permissões são compatíveis com as exigências sociais de tempos de sociedade de informação. Apesar de ser historicamente mais conhecida e de fazer parte, inclusive, do senso comum sobre o assunto das liberdades individuais, a liberdade de expressão não é a única liberdade associada à livre mani-

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festação do pensamento. O desenvolvimento histórico dos comportamentos sociais e das revoluções tecnológicas fez serem identificadas outras liberdades, daí hoje falar-se em liberdade de comunicação e liberdade de informação, além da liberdade de criação. Falar em liberdade de expressão representa o direito que todos têm de livremente manifestar suas ideias, pensamentos, posições religiosas, ideológicas etc., o que é diferente da liberdade de comunicação, pois esta concede o direito de comunicar e ser comunicado, além de divulgar e receber informações. A liberdade de informação então é uma decorrência da liberdade de comunicação, porém com ênfase aos direitos fundamentais de informar algo, de se informar e de ser informado. (FARIAS, 2007, p. 172). Quanto à liberdade de informação, a própria declaração universal dos direitos humanos, em seu artigo 19, já prevê a liberdade de receber informações por quaisquer meios e sem limitações. A questão está em associar informação com exercício de cidadania, com o direito de todos serem informados sobre o que está acontecendo na sociedade, sobre fatos relevantes e, principalmente sobre conteúdos que transcendam as esferas do público e do privado, e atinja o nível de interesse geral. (FARIAS, 2007, p. 175). Uma vez informados, os cidadãos terão condições de melhor participar da sociedade civil, de melhor interagir com o poder público e, de certa forma, melhor compreender as próprias características culturais de sua sociedade, além de produzir cultura. E isto pode não interessar a quem detiver poder. Assim como qualquer modalidade das liberdades, a de informação está sob diversos perigos, seja por exercício do poder público ou pelas próprias inter-relações entre particulares. Especificamente as de expressão e informação envolvem interesses econômicos, seja por causa do valor da informação, ou por causa dos direitos que estão em conexão com as formas de expressão, como a privacidade e os direitos autorais. A questão então residiria em atingir um grau de equilíbrio entre essas liberdades e os demais interesses envolvidos, ou supravalorizar uma coisa em detrimento de outra (valorizando a produção cultural ainda que diminuindo questões de direitos autorais, por exemplo). Esta hipótese representaria uma quebra de igualdade, mas “se deixamos de lado o dogma da igualdade jurídica das vontades privadas e nos voltamos às realidades, a freqüência das situações de dependência que permitem a quem se encontra em posição de superioridade impor sua vontade ao inferior fica evidente”. (RIVERO, 2006, p. 205). Se é da própria natureza das liberdades jurídicas conter contradições, criar dogmas, e se submeter a interesses e forças do poder público e de setores privados, no atual contexto da sociedade da informação, com sua intrínseca cibercultura, as liberdades de expressão encontram-se ainda mais repleta de problemas. Isto porque se o ambiente digital cria diversos mecanismos para se expressar e para exercer as liberdades de informação, diversas também são as barreiras legais e econômicas que, de forma explícita ou implícita, tolhem o exercício destas liberdades fundamentais. A expressão cibercultura representa algo além de formas de conexão entre comportamento humano e novas tecnologias, pois envolve aspirações pela construção de novos laços sociais, não fundados em circunstâncias territoriais, ou em instituições e poderes, mas baseados em novos interesses coletivos de compartilhamento, cooperação e processos abertos de informação e colaboração. (LÉVY, 1999, p. 132). Não são as novas tecnologias com suas respectivas máquinas que criam a cibercultura, mas sim os usos humanos dessas e consequentes comportamentos que assim o fazem. O que o desenvolvimento tecnológico permite é o surgimento de novas exigências sociais, novas formas de interação entre particulares e entre particulares com poderes públicos. Com a rede mundial de computadores interligando pessoas e pessoas, e pessoas a informações, cria-se um mecanismo hábil a permitir o surgimento de uma nova concepção de inteligência coletiva e uma nova relação com a produção de conhecimentos. Atitudes como colaborar, compartilhar, cooperar ganham força com os mecanismos digitais disponíveis, em detrimento de lógicas privadas e individualistas como a sensação de ter, possuir, disponibilizar etc. Do ponto de vista ideal, se reconhece que o que melhor o ciberespaço proporciona é a possibilidade de reunir conhecimentos, criações, idéias de pessoas em diferentes locais e culturas, porém, esse acesso coletivo ao conhecimento representa mais uma fonte de novos problemas do que especificamente de soluções. (LÉVY, 1999, p. 133).

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Se por meio da internet qualquer pessoa, usando de blogs, websites e perfis em redes sociais, pode transmitir informações e conhecimentos, pode se expressar com liberdade e pode interagir com a comunidade virtual de forma não proporcionada em outros tempos, esta produção de manifestações nunca esteve tão vigiada e tão valorada. Os instrumentos proporcionados pela internet permitem que alguém explore uma declinação artística específica sem que precise de intermediários. Alguém pode criar um blog, ou usar de seu perfil em rede social, para divulgar sua linha de confecções, seus utensílios, as obras de arte que realizou. Pessoas podem usar também das plataformas virtuais para expressar idéias e opiniões, ainda que não seja considerado alguém que represente uma empresa de comunicação. Daí, uma das questões a serem enfrentadas seria a que envolve limites a essas liberdades potencializadas pela cibercultura, ou, até mesmo se não há uma falsa sensação de que essas liberdades estejam tão amplas assim. Da mesma forma que a rede é vista como uma plataforma para expressar, para satisfazer exigências de informação e para exercer liberdades, ela também cria um novo meio a ser explorado comercialmente por novas formas de fazer negócios e novos desafios ao desenvolvimento de economias. Na sociedade da informação, a exploração econômica se baseia também em comercializar bens imateriais e aqueles que representam os interesses econômicos privados vêem na rede um excelente ambiente para fazer negócios, e sendo assim, as liberdades trazidas pela cibercultura podem sofrer grandes supressões por políticas de censura e por normas legais de controle da propriedade intelectual, por exemplo. (KRETSCHMANN, 2011, p. 77). Situações problemáticas surgidas com a cibercultura exemplificam como a internet pode incomodar o exercício tradicional de poder e a forma de pensar o direito. Casos como os grandes processos que envolvem de um lado sites que disponibilizam gratuitamente conteúdo artístico-cultural e de outro, representantes de grandes corporações (napster, soulseek e o mais recente piratebay), bem como os casos que envolvem punições políticas àqueles responsáveis pela divulgação não autorizada de informações de utilidade pública (Wikileaks e Julian Assange, ou Edward Snowden e o “escândalo da espionagem”) servem para mostrar que o tratamento dado às liberdades proporcionadas pela internet pode não estar tão compatível com os ideais da cibercultura. Ao mesmo tempo que a rede mundial de computadores oferece liberdades e satisfaz promessas de inclusão democrática, ela pode servir também para criar uma falsa sensação de liberdade, uma vez que é possível haver manipulações quanto ao que é disponibilizado na rede, controlando dados, informações ou qualquer conteúdo a ser acessado. (KRETSCHMANN, 2011, p. 77). Um dos conflitos que caracteriza esta ambigüidade da internet reside no exemplo que envolve liberdade de expressão artística e regras tradicionais de direitos da propriedade intelectual. Os instrumentos que surgem com o desenvolvimento das tecnologias da informação permitem que cada indivíduo explore sua criatividade criando conteúdos até então reprimidos por incapacidades técnicas (ausência de recursos, espaços, repressão de mercado etc.), porém tais criações se submeterão às normas jurídicas de tutela da propriedade intelectual, que podem não terem se adequado à cibercultura e terminar tolhendo a liberdade fundamental de participar de forma criativa da produção cultural. São pontos a serem examinados. 2. DIREITOS AUTORAIS E LIMITES À CRIAÇÃO DE BENS CULTURAIS. A proteção legal dada às criações do espírito criativo humano requereu um tratamento específico, mediante disciplina apropriada à tutela jurídica da propriedade imaterial, pois ser proprietário de uma garrafa não é a mesma coisa de ser o responsável pelo desenho dela ou pela marca do produto que está sendo consumido por meio dela. Assim, os direitos autorais surgem como essa disciplina cujo objeto é as criações e as manifestações do intelecto. Ramo do Direito bastante complexo, rico de contradições e repleto de problemas contemporâneos a serem enfrentados, principalmente por causa dos comportamentos associados à mencionada cibercultura, os direitos autorais já começam a apresentar sua complexidade a partir da própria designação. Há quem

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prefira usar a expressão propriedade intelectual como micro-sistema ao qual os direitos autorais estão ligados, e aqueles que vêem diferenças entre as expressões, preferindo não necessariamente vinculá-las. Seja por uma idéia ou por outra (usando ou não usando a expressão “propriedade”), é interessante frisar que a proteção oferecida pelos direitos autorais alcança não somente o aspecto patrimonial do produto cultural, respondendo questões sobre quem dispõe da obra, pra qual uso, se pode copiar e compartilhar etc., como também alcança aspectos da relação entre criador e obra mais ligados aos direitos da personalidade, como ser apresentado ou identificado como autor. No entanto, apesar do objeto dos direitos autorais alcançar direitos da personalidade do autor, sua origem e desenvolvimento prático possuem natureza bastante patrimonialística. A partir do século XVII o intelectual, bem como o artista, trabalha de forma autônoma, independente de patrões da nobreza ou do clero, fazendo com que sua luta pela sobrevivência represente uma concorrência intelectual, uma competição entre criações e criadores. (FRAGOSO, 2012, p. 130). O problema não está na inserção das lógicas capital e patrimonial na proteção ao conteúdo autoral, mas sim reside no de identificar a quem isto realmente beneficia, se ao autor propriamente dito ou se ao intermediário, aquele cria o elo entre criador e público. Há registros históricos demonstrando que desde o início da comercialização dos livros, existiam prejuízos ao escritor porque os negócios envolvendo livros traziam vantagens aos editores, recebendo incentivos reais diferentes e mais vantajosos do que a remuneração dada aos escritores. (FRAGOSO, 2012, p. 135). Como o desenvolvimento histórico dos direitos autorais não é objeto de estudo deste trabalho, a questão a ser enfrentada é a de analisar se os direitos autorais estão atingindo seus objetivos de proteger os criadores e incentivar a criatividade, ou se eles representam uma espécie de barreira legal para o surgimento de novas obras e novos exercícios do direito à criatividade. Em qualquer análise introdutória sobre os objetivos dos direitos autorais, a proteção à criatividade está sempre inserida dentre eles. A tutela da criação é o que justifica a própria existência do Direito de autor, uma vez que, não sendo identificada qualquer carga de contribuição criativa na obra, ela não merecerá a tutela deste direito, ficando o autor sem garantias jurídicas da compensação por esta contribuição dada à sociedade. (ASCENSÃO, 1997, p. 3). A contradição é identificada justamente sobre esta “compensação”, pois originalmente ela surge por meio de garantias de exclusividade de usos, por meio de instrumentos que impedem a abundância do produto e que oferecem acesso a estes produtos artístico-culturais mediante pagamento hábil. Em tese a sociedade aceita a contribuição dada pelo criador garantindo-lhe uma compensação pecuniária, que para ocorrer deverá provocar justificados impactos negativos na fluidez do acesso à cultura. (ASCENSÃO, 1997, p. 4). Ou seja, faz parte da concepção original de direitos autorais a sua capacidade de tolher liberdades fundamentais (acesso à informação, acesso à cultura, liberdade de expressão etc.), em nome da satisfação financeira do responsável pela obra, ainda que este responsável não seja o próprio criador. É possível argumentar que existe um direito fundamental de criar, de participar da criação de um patrimônio cultural, de livremente manifestar seu espírito criativo. Esta liberdade de criação “compreende o direito do indivíduo de gerar expressões intelectuais, sejam elas de caráter cultural (obras literárias ou artísticas), sejam elas de conteúdo científico ou técnico, sem qualquer restrição imotivada, isto é, sem necessidade de obter autorização ou licença e sem ficar sujeita a censura”. (SANTOS, 2011, p. 132). O objetivo desta liberdade de criação seria o de permitir que cada pessoa exerça sua criatividade sem barreiras, sem impedimentos indevidos. O que representa de logo uma contradição com características típicas dos direitos autorais, uma vez que em diversas hipóteses uma pessoa pode precisar de autorizações, de intermediários e de pagamentos para poder se basear em algo já criado e assim exercer sua criatividade. Com base nessa última observação indaga-se sobre a necessidade de intermediários e intermediações em tempos de cultura de compartilhamento na sociedade de informação. A dúvida surgida é a de saber se as concepções tradicionais dos direitos autorais estão em compatibilidade com novas exigências sociais provocadas pela cibercultura ou se elas tolhem a criatividade, que estaria na essência da produção de conteúdo em ambiente virtual. O que passa a ser examinado.

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3. CIBERCULTURA E PARTICIPAÇÃO: NOVOS MODELOS DE DIREITOS AUTORAIS PARA NOVAS DIMENSÕES DAS LIBERDADES DE COMUNICAÇÃO. Até então foi examinada a questão da liberdade de expressão, da liberdade de expressão na internet e de como os direitos autorais podem representar barreiras ao exercício dessas liberdades. O fato do sistema tradicional de proteção legal a conteúdo autoral criar limites às liberdades de expressão surge de seu cunho patrimonial, do fato deste sistema poder ser usado para satisfazer interesses patrimoniais. O copyright, expressão que representa o sistema norte-americano de tutela legal das criações autorais, deu cabimento a distorções em sua própria aplicação, já que tem como proposta uma clausura de possibilidades de uso de conteúdo cultural. Este modelo de direitos autorais surge como forma representativa de pretensões hegemônicas de uma classe dominante, resultando não exatamente de uma conquista de criadores, mas da uniformização dos esforços de livreiros e editores para conter a reprodução descontrolada de obras de arte, e assim preservar seus interesses econômicos. (FRAGOSO, 2012, p. 156). Então, apesar do conteúdo pessoal, está na essência do direito de autor, sua natureza econômica. A conotação econômica dada aos direitos autorais, com seu esquema de autorizações, usos exclusivos e direitos reservados, interessa a uma determinada classe que, de início detinha os meios necessários para expressar as manifestações criativas. Os direitos reservados de uso de bens culturais se concentrados indevidamente permitem a criação de uma espécie de oligopólio cultural, pois seriam as empresas de transmissão e distribuição desse conteúdo que ditariam as regras do mercado de culturas, cabendo ao sistema legal não permitir que qualquer pessoa crie algo próximo, ou derivado do que já está sob “proteção”. Este raciocínio se enfraquece quando os donos dos veículos de intermédio (editoras, gravadoras dentre outros) enfrentam os novos meios de divulgação e expressão, como a internet, e novos comportamentos sociais típicos da cibercultura, como o dilúvio de informações e o compartilhamento de dados digitais. Apesar de sua origem remeter a esquemas de espionagem militar, a internet surge para a sociedade civil como um instrumento que promete uma quase irrestrita liberdade de acesso à informação e um potencial até então inatingível de participação democrática, seja em discussões políticas, seja em produção artístico-cultural. Numa determinada perspectiva o ciberespaço promete realizar ideais da modernidade, pois nele a igualdade se manifesta pela possibilidade de cada pessoa, independente de suas características, expressar informações, a liberdade surge por meio das possibilidades de acesso, navegação e comunicação, e a fraternidade vem como conseqüência das conexões promovidas em ambiente virtual. (LÉVY, 1999, p. 254). É possível que estas promessas fiquem apenas em planos abstratos e não se materializem, até porque para isso seria necessário que cada cidadão do mundo possuísse meios para acessar a rede, o que não ocorre por causa de inúmeros problemas envolvendo a inclusão digital. Porém, os impactos da cibercultura nas liberdades de expressão e criação, bem como na forma de pensar os direitos autorais são bastante manifestos e significativos. Se antes os donos dos meios necessários para se expressar possuíam mecanismos para criar uma espécie de oligopólio da comunicação, hoje com a internet é consideravelmente mais fácil driblar as grandes corporações e poder se expressar. Com um simples vídeo posto em um blog individual, um criador pode exibir sua produção, seja ela um curta, um clipe ou uma animação. Uma banda pode oferecer gratuitamente em seu website suas composições até então não registradas por uma grande empresa para poderem assim divulgar sua arte. Simples exemplos que demonstram que a internet potencializa as possibilidades de se expressar. Não é apenas nos meios de comunicação que a cibercultura provoca impactos, mas também na própria forma de comercializar, de disponibilizar e apresentar uma modalidade de expressão artística. Tradicionalmente se entende que uma obra protegida por direitos autorais é aquela “que constitui exteriorização de uma determinada expressão intelectual, inserida no mundo fático em forma ideada e materializada pelo autor”. (BITTAR, 2004, p. 23). E que esta obra tutelável pelo direito requer esforço intelectual de seu autor que produz um bem a ser inserido materialmente na realidade fática. (BITTAR, 2004, p. 23). Porém, como antes já analisado, esta interpretação tradicional do objeto dos direitos autorais se torna no mínimo problemática na contemporaneidade imersa na cibercultura.

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Um dos motivos dessa incompatibilidade seria a própria inexistência de suporte fático para afirmar que a obra deve estar materializada em algo. Isto porque o ambiente digital não requer materialização da arte para considerá-la como legítima manifestação do espírito criativo. Outro motivo seria o de que o modelo tradicional de tutela da produção artístico-cultural exigia um intermediário (o que fornecia o intermédio), e com a internet esta intermediação não é mais necessária, devolvendo ao artista (o criador propriamente dito) o controle sobre sua obra, caso assim o opte. Diversas características da cibercultura, (participação, coletividade, conectividade, virtualidade e outras) provocam um declínio do modelo de negócio baseado no esquema autor e intermediário. (LÉVY, 1999, p. 139). A internet e a cibercultura demonstram então não apenas um potencial para dinamizar o exercício de liberdades fundamentais, como também potencial para mexer na produção econômica, na forma como negócios são feitos, talvez principalmente naqueles negócios cujo objeto seja informação ou arte. A criatividade volta a ser incentivada pelas práticas da cibercultura, tornando-se um grande negócio seja com fins lucrativos, seja apenas para participar da produção de cultura. A cultura do digital “promete um mundo de criatividade incrivelmente diversa que pode ser fácil e amplamente compartilhada. E à medida que tal criatividade se aplicar à democracia, será possível que uma vasta parcela de cidadãos utilizem-na para expressar, criticar e contribuir com a cultura que os rodeia”. (LESSIG, 2005, p. 184). A colaboração propriamente dita, a participação e cooperação representam hoje objetivos do cidadão, não necessariamente interessado em obter ganhos patrimoniais com sua contribuição à cultura que o rodeia. Exemplos como os do Free Software, do Linux, das tecnologias da informação com códigos abertos, demonstram como há pessoas interessadas em formas de criação coletiva e colaborativa, ainda que isto não traga benefícios financeiros. A interatividade promovida pelas tecnologias da informação e exigências sociais da cibercultura reformulam a relação entre a obra e aquele que tem acesso a ela, permitindo que este seja também criador em colaboração e exemplos como o do Wikipédia e do Creative Commons demonstram como há uma demanda social para tal. (SANTOS, 2011, p. 147). Porém, todas essas promessas de liberdade, criatividade e colaboração vindas da cibercultura enfrentam uma imensa barreira legal, qual seja, a manutenção das regras tradicionais de proteção aos direitos autorais. Para que toda essa abertura democrática ao acesso à informação e liberdade de criação ocorra, é necessário repensar o tratamento jurídico dado ao conteúdo autoral produzido, pois novos modelos de negócio surgem e assim exigem sua legalidade. Diante dos impactos produzidos pelo desenvolvimento tecnológico nos institutos jurídicos duas hipóteses surgem, uma a de que as normas jurídicas não sofrerão mudanças, outra a de que o sistema jurídico adotará medidas adaptativas, criando novas respostas jurídicas a mudanças de comportamentos sociais, a exemplo da possível subversão ao modelo tradicional de propriedade intelectual. (LEMOS, 2005, p. 66). Essa subversão não é uma eliminação de proteção legal à criação autoral, é apenas uma nova forma de tutelar, já que a cibercultura trouxe tantas transformações nas formas de se expressar. O que está em discussão aqui não é a necessidade de uma proteção legal, pois isso é de comum entendimento, mas sim o modelo de proteção oferecido pelos mecanismos legais tradicionais que podem, ao invés de incentivar a expressão criativa, reprimir iniciativas de produção de cultura. Caso sejam mantidas regras de direitos autorais criadas antes da internet e da cibercultura, a manifestação criativa pode ser inibida para satisfazer interesses econômicos de grandes corporações que podem estar interessadas em preservar o modelo de intermediação paga entre cultura e público interessado. Isto porque as novas formas de expressão e criação padecerão de ilegalidade, ou clandestinidade (como ocorre com o download gratuito feito pela rede que pode de imediato ser taxado de “pirata” numa visão bem inicial dos fatos). Na hipótese da legislação recair num excesso de regulação, prevendo punições excessivas para pequenas violações de direitos autorais, e se os empreendimentos inovadores passarem a ser constantemente fiscalizados ao ponto de requerem gastos volumosos com pagamentos e autorizações, haverá bem menos inovações e criatividade do que se houvesse uma alternativa à ilegalidade. (LESSIG, 2005, p. 192). Ou seja, em tempos de economia criativa, incentivos ao empreendedorismo e valoração da informação, a tutela jurí-

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dica tradicional da propriedade intelectual serviria como uma barreira, impedindo parcela considerável da sociedade civil de cooperar e criar culturas, ficando essas atividades (ou permanecendo) reservadas a quem tiver meios financeiros capazes de arcar com as despesas necessárias. Não seria adequado que essa parcela da sociedade civil, querendo participar de seu próprio patrimônio cultural, fique à margem da legalidade, ou não receba oportunidade de assim cooperar. A resposta para retirar essa ilegalidade passa por escolhas entre obedecer estritamente a legislação da forma como ela está, ou modificar a norma jurídica, e quando os malefícios da manutenção de tradições se sobrepõem a seus próprios benefícios, é caso de considerar a possibilidade de mudanças. (LESSIG, 2005, p. 201). Alternativas para mudar a lógica da tutela jurídica da produção autoral já existem. Uma delas são as licenças Creative Commons. As licenças oferecidas por esta organização procuram atender os diversos interesses e opções da classe de artistas, criadores e produtores em geral, permitindo que o autor interessado receba a oportunidade de escolher dentre opções de licenças disponíveis. (LEMOS, 2005, p. 85). Com isto, o Creative Commons criam uma alternativa ao modelo tradicional, satisfazendo exigências da cibercultura de liberdade de escolhas e democratização das atividades criativas, representando por outro lado uma mudança que parte não dos representantes do poder estatal, mas sim da sociedade civil. (LEMOS, 2005, p.83). Havendo alternativas, ainda que criadas extraoficialmente por instituições e vontades privadas, cabe preservar as liberdades de expressão e criação, ainda que em detrimento das regras tradicionais de proteção aos direitos autorais. Isto porque a manutenção destes pode interessar a grupos de pressão específicos (possivelmente não interessados em novos modelos de negócio que venham a prejudicar suas pretensões econômicas), e ainda porque tais liberdades compõem uma espécie de ideário comum aos praticantes da cibercultura. CONSIDERAÇÕES FINAIS O objetivo do trabalho foi o de analisar se as liberdades de expressão sofrem alguma alteração com a cibercultura e o desenvolvimento de tecnologias da informação que permitem acesso constante à internet, que por sua vez promete liberdades. Teve como objetivo também o de analisar a forma como os direitos autorais podem se relacionar com o exercício das liberdades para ou tolhe-lo ou garanti-lo, a depender da forma como é vista e interpretada a tutela jurídica da propriedade intelectual. No que diz respeito à liberdade de expressão, essa designação já não é mais suficiente para resumir todo um complexo de liberdades relacionadas com formas de manifestação. Liberdades de comunicação, de acesso à informação e cultura, e liberdade de criação também são objeto de tutela jurídica diferenciada, como o são as garantias constitucionais e os direitos previstos em instrumentos de direitos humanos. Apesar da complexidade, interessou ao trabalho criar uma linha de raciocínio pela qual a liberdade de exercer criatividade faz parte deste rol de liberdades garantidas de forma fundamental. Esta liberdade de criatividade é potencializada pelas práticas da cibercultura, pois a internet e respectivas tecnologias proporcionam e potencializam formas de participação, criação e quaisquer manifestações do espírito em seus ambientes virtuais. Assim, é da natureza da internet criar um ambiente livre de barreiras, ou melhor, um ambiente cuja regulamentação exista, mas de forma compatível com contemporâneas exigências sociais. A vontade de exercer liberdades existe, instrumentos capazes de fazê-las ocorrerem também e um sentimento de regulação ainda que mínima também. O problema reside quando esta regulação ultrapassa limites da ideologia por trás da cibercultura, ao ponto de provocar supressões às liberdades legalmente garantidas. Uma destas formas de suprimir liberdades, especificamente a de expressar criatividade, está na aplicabilidade dos direitos autorais. Direitos que surgem como garantias aos criadores, mas que podem servir para satisfazer interesses econômicos de empresas que intermedeiam a relação entre criação e público interessado. Porém, com a internet este caminho pode ser disponibilizado pelo próprio autor da obra, recaindo sobre ele, o próprio criador do bem cultural o controle dos usos de sua produção. O problema está na possível ilegalidade da subversão à tradição da tutela legal da propriedade intelectual, mas que pode ser driblada mediante alternativas, sejam elas estatais, como possíveis reformas da le-

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gislação autoral, ou não-estatais, como iniciativas da sociedade civil (free software, Linux, Creative Commons dentre outras), que demonstram como alterações podem ocorrer com o objetivo de preservar liberdades e satisfazer aspirações contemporâneas intrínsecas à sociedade da informação. Enfim, há meios de garantir as liberdades de expressão em tempos de internet, sem que isto represente descontrole absoluto do espaço virtual, sem que isto represente ausência de direitos autorais, mas sim com alternativas legais e boa vontade política. REFERÊNCIAS ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito Autoral. Rio de Janeiro: Renovar, 1997. BITTAR, Carlos Alberto. Direito de Autor. Rio de Janeiro: Forense, 2004. BOBBIO, Norberto. Dicionário de política. Brasília: editora universidade de Brasília, 1986. FARIAS, Edilsom Pereira de. Estatuto teórico da liberdade de expressão e comunicação. In: LOIS, Cecília Caballeros e BASTOS JUNIOR, Luiz Magno Pinto (coordenanores). A constituição como espelho da realidade: interpretação e jurisdição constitucionais em debate: homenagem a Silvio Dobrowolski. São Paulo: LTr, 2007. Páginas 156 a 180. FRAGOSO, João Henrique da Rocha. Direito de Autor e Copyright: Fundamentos Históricos e Sociológicos. São Paulo: QuartierLatin, 2012. KRETSCHMANN, Angela. O papel da dignidade humana em meio aos desafios do acesso aberto e do acesso universal perante o direito autoral. In: SANTOS, Manoel Pereira dos (Coordenador). Direito de Autor e direitos fundamentais. São Paulo: Ed. Saraiva, 2011. Páginas 76 a 103. LEMOS, Ronaldo. Direito, Tecnologia e cultura. Rio de Janeiro: FGV, 2005. LESSIG, Lawrence. Cultura Livre: como a grande mídia usa a tecnologia e a lei para bloquear a cultura e controlar a criatividade. São Paulo: Trama, 2005. LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Ed. 34, 1999. RIVERO, Jean. Liberdades públicas. São Paulo: Martins Fontes, 2006. SANTOS, Manoel Pereira dos. Direito de autor e liberdade de expressão. In: SANTOS, Manoel Pereira dos (Coordenador). Direito de Autor e direitos fundamentais. São Paulo: Ed. Saraiva, 2011. Páginas 129 a 158.

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INFRAERO E A ADOÇÃO DO ORÇAMENTO SIGILOSO NO REGIME DIFERENCIADO DE CONTRATAÇÃO PÚBLICA (RDC): UMA ANÁLISE SOBRE A (IN) CONSTITUCIONALIDADE DO INSTITUTO

Alcerlane Silva Lins Bacharela em Direito pela Faculdade ASCES. Advogada. Pesquisadora do INICIA/ASCES. Roberta Cruz da Silva Bacharela e Mestre em Direito, pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Professora de Direito Administrativo e de Prática Constitucional-Administrativa da Faculdade ASCES; da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP), do Centro Universitário de João Pessoa (UNIPÊ) e das pós-graduações da Faculdade ASCES; da ESMATRA/PE e do Complexo de Ensino Renato Saraiva (CERS-Recife). Advogada.

SUMÁRIO: Introdução; 1. Origem do Regime Diferenciado de Contratação e a sua possível (in) constitucionalidade; 2. O Regime Diferenciado de Contração e o tratamento conferido ao princípio da publicidade; 3. Aspectos relevantes do sigilo do orçamento estimado no RDC; 4. Justificativas para adoção do sigilo e a sua efetividade nas licitações da Infraero; Considerações finais; Referências.

INTRODUÇÃO A licitação é o meio utilizado pela Administração Pública para se alcançar a proposta mais vantajosa e consequentemente, a formação do contrato administrativo. Assim, pode-se afirmar que a licitação é medida que se impõe a Administração em decorrência do artigo 37, inciso XXI, da Constituição Federal de 1988 e, antecede os contratos administrativos. Entretanto, as normas infraconstitucionais que regem o procedimento licitatório parecem não suprir as demandas atuais. Essa deficiência ficou evidenciada quando o Brasil foi escolhido para sediar os eventos esportivos que ocorreriam entre 2013 a 2016 e não conseguiu viabilizar as obras vinculadas a tais eventos com as normas até então vigentes, provocando a discussão sobre a urgente necessidade de mudanças no sistema licitatório. Assim, a necessidade de um regime licitatório mais célere, levou a instituição do Regime Diferenciado de Contração (RDC), que é disciplinado pela Lei nº 12.462/11 e, tem como finalidade primordial agilizar a execução das obras para os jogos da Copa das Confederações 2013, da Copa do Mundo FIFA 2014, das Olimpíadas e Paralimpíadas em 2016. Esse novo regime tinha objeto transitório e limitado aos eventos esportivos sediados no país, sendo criado para atender situações excepcionais, no entanto, passou a abranger outras situações sem quaisquer vinculações com as hipóteses originárias. Com isso, percebe-se que há uma grande tendência de expansão do objeto do RDC, comprovando a relevância e atualidade do tema. As inovações advindas com essa nova modalidade licitatória provocaram diversas críticas, tanto pela forma como esse regime foi inserido no ordenamento jurídico, como pelas inovações decorrentes de seus institutos.

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Dentre as inovações que provocaram grandes controvérsias jurídicas pode-se destacar o orçamento sigiloso, que é objeto de estudo desse trabalho, previsto no artigo 6º da referida lei, que dispõe sobre a possibilidade da Administração Pública não divulgar o valor estimado do objeto licitado, enquanto se processa a licitação, tornando-se público apenas ao final do certame. Por isso, acredita-se que este sigilo afronta o princípio constitucional da publicidade. Nesse contexto, insere-se a presente pesquisa que tem como objetivos analisar a compatibilidade do sigilo do orçamento estimado com a Constituição Federal de 1988 e verificar a efetividade desse instituto no âmbito da Infraero. Para isso, a pesquisa não se restringiu ao estudo unicamente da lei, mas analisou o posicionamento doutrinário e jurisprudencial do Tribunal de Contas da União, além do estudo dos editais de licitações no âmbito da Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária (Infraero), bem como análise das ADI’s nº 4.645/11 e nº 4.655/11 que, atualmente aguardam julgamento do STF. Para tanto o método utilizado foi o hipotético dedutivo, adotando como hipótese que o sigilo do orçamento estimado afronta o princípio da publicidade. Tal sigilo é analisado com ênfase no aspecto jurídico e o aspecto econômico, para possível comprovação da constitucionalidade e efetividade desse instituto, bem como a sua repercussão social e econômica. Nessa perspectiva, espera-se chegar a um resultado que comprove a viabilidade e os benefícios para Administração Pública, auferidos pela ausência de publicação do orçamento estimado durante a licitação. Com isso, fica evidente a necessidade de um estudo mais detalhado sobre o tema. 1. ORIGEM DO REGIME DIFERENCIADO DE CONTRATAÇÃO E A SUA POSSÍVEL (IN) CONSTITUCIONALIDADE. A Constituição Federal de 1988 no seu artigo 37, inciso XXI, estabeleceu que as contratações públicas devam ser precedidas de procedimento licitatório, ressalvados os casos previstos em lei. A partir dessa imposição, a licitação passou a ser uma exigência constitucional, de observância obrigatória pela Administração Pública e por outras pessoas indicadas pela lei (OLIVEIRA, 2015, p.25). Para regulamentar esse dispositivo constitucional foi editada a Lei nº 8.666/93, denominada de Lei Geral de Licitações e Contratos, que estabelece em seu artigo 3º que este procedimento destina-se a garantir a observância dos princípios constitucionais e específicos para seleção da proposta mais vantajosa para Administração Pública, (BRASIL, LEI Nº 8.666, 1993). Atualmente, outras leis têm regulamentado esse procedimento uma vez que a Lei de Licitações e Contratos não tem conseguido alcançar e nem solucionar situações específicas, como aconteceu com as obras e serviços vinculados aos eventos esportivos sediados no Brasil entre os anos de 2013 a 2016, que foi a mola propulsora para a criação de uma Lei que atendesse as demandas atuais na seara estatal com celeridade e efetividade (HEINEN, 2015, p. 9). Nesse contexto, surge a Lei nº 12.462/11 que, de início, teve seu objeto limitado aos eventos esportivos sediados no Brasil, como a Copa das Confederações que ocorreu em 2013, Copa do Mundo em 2014, bem como os jogos Olímpicos e Paralímpicos que ocorrerão em 2016 (OLIVEIRA, 2015, p. 185). Trata-se da Lei do Regime Diferenciado de Contratação (RDC), que segundo Oliveira, (OLIVEIRA, 2015, p.185) segue orientada por parâmetros de eficiência, agilidade e economicidade, com a finalidade de viabilizar os eventos esportivos mencionados. As primeiras tentativas para se inserir o RDC no ordenamento jurídico, foram por intermédio das Medidas Provisórias nº 488 e nº 489 de 2010, que perderam a eficácia, em razão da não votação no prazo constitucional. Ainda assim, afirmam Motta e Paolucci, (2012, p. 29) que as ideias principais de tais Medidas Provisórias sobreviveram e reapareceram por meio da Lei nº 12.462/11, fruto da conversão da Medida Provisória nº 527/11. (BRASIL, MEDIDA PROVISÓRIA Nº 527, 2011). Foi durante a tramitação de tal Medida Provisória, que o deputado federal José Guimarães (PT/CE) apresentou em plenário uma emenda com conteúdo diverso do discutido na Medida Provisória. A princípio, o tema abordado referia-se unicamente, a alteração da estrutura do Poder Executivo Federal, para criação

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da Secretaria de Aviação Civil, bem como conferia autorização para contratação temporária de controladores de tráfego aéreo, enquanto que a proposta de emenda apresentada pelo deputado tratava da inclusão dos dispositivos que instituíam o RDC. Dessa forma, a Medida foi discutida, aprovada pelas casas do Poder Legislativo, sancionada pela Presidenta da República e consequentemente, convertida na Lei nº 12.462/11 (ALTOUNIAN, 2014, p.39). Como mencionado, a inserção da Lei nº 12.462/11 no ordenamento jurídico pátrio veio acompanhado de muitas inovações que provocou intensos questionamentos sobre a inconstitucionalidade da Lei e de alguns institutos que ela disciplina. Tudo isso, levou ao ajuizamento de duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI). A primeira foi a ADI nº 4.645 proposta por partidos políticos que argumentaram a extrapolação do poder de emendar, bem como a violação ao princípio da publicidade (HEINEN, 2015, p.18). A segunda foi a ADI nº 4.655 ajuizada pelo Procurador-Geral da República (PGR), à época, Roberto Monteiro Gurgel Santos que, também apontou inconstitucionalidades formais e materiais da Lei nº 12.462/11, referente a não observância ao devido processo legislativo, bem como a inconstitucionalidade de alguns dispositivos (HEINEN, 2015, p.12). Entre as inovações apontadas com vícios de inconstitucionalidade, tem-se o orçamento sigiloso que foi objeto de questionamento da ADI nº 4645/11 ajuizada por partidos políticos, sob o argumento de que nesse instituto há uma inversão de regras constitucionais, em que se atribui ao orçamento estimado um caráter sigiloso, enquanto que, no ordenamento jurídico o sigilo é a exceção e não a regra, violando o princípio da publicidade, inclusive o da moralidade. Nesse aspecto é importante analisar como o RDC trata o princípio da publicidade (HEINEN, 2015, p. 38). 2. O REGIME DIFERENCIADO DE CONTRAÇÃO E O TRATAMENTO CONFERIDO AO PRINCÍPIO DA PUBLICIDADE. A partir deste item, será analisado o tratamento que o RDC confere ao princípio da publicidade uma vez que tal princípio atribuiu eficácia aos atos administrativos. Assim, percebe-se que o RDC expressamente invocou esse princípio, conforme redação do artigo 3º da Lei nº 12.462/11: Art. 3º As licitações e contratações realizadas em conformidade com o RDC deverão observar os princípios da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da eficiência, da probidade administrativa, da economicidade, do desenvolvimento nacional sustentável, da vinculação ao instrumento convocatório e do julgamento objetivo.

Desse modo, observa-se que o legislador, ao instituir o RDC, determinou que os procedimentos que integram esse Regime estão condicionados a observância do princípio da publicidade. Esse princípio também é reforçado, pelo o caput do artigo 15, da Lei do RDC, que impõe aos órgãos da Administração o dever de dar ampla publicidade aos procedimentos licitatórios, ressalvado os casos determinados em lei. Também o § 1º do artigo 15, da citada lei, assegura que a publicidade pode ocorrer de forma direta aos fornecedores cadastrados ou não cadastrados, sem prejuízo das formas estabelecidas no artigo 15, §1º, incisos I e II, que determina que a publicação deverá ocorrer por meio do Diário Oficial e internet, de forma cumulativa (BRASIL, LEI Nº 12.462, 2011). Como se percebe, a dimensão dada a esse princípio pelo RDC não permite que a publicidade se limite apenas à divulgação em mídia impressa, como faz a Lei nº 8.666/93, mas que se estenda também à mídia eletrônica, a qual tem custo menos elevado. No entanto, verifica-se que esse meio de publicação também tem algumas limitações que pode restringir o acesso à informação, como por exemplo, quando os interessados estiverem localizados em áreas sem acesso à internet, ou mesmo quando não tiverem habilidades em manusear tal veículo de informação (ZYMLER, 2013; p.300). Todavia, Zymler (2013, p. 300) reconhece que a publicação dos atos licitatórios por meio da internet proporciona ampla vantagem, pois tal mecanismo consiste na possibilidade da publicação se dar de forma

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contínua, o que não ocorre com a mídia impressa, em que a publicidade tem efeito instantâneo, ou seja, perdura até a retirada de circulação da informação. Outra vantagem desse veículo apresentada pelo autor, diz respeito ao alcance desse meio de comunicação, pois quando se usa os meios de mídias eletrônicas, há um alargamento da publicidade, uma vez que tal divulgação alcança todos os interessados pelo certame, além de abranger todos os atos da licitação, independentemente, do valor do objeto e da localização do licitador (ZYMLER, 2013; p. 300). Com isso, é possível verificar que, a publicação em jornal de grande circulação tornou-se uma faculdade no RDC, sendo exigido apenas a publicação no Diário Oficial e internet. Segundo entendimento da doutrina, quando a licitação for de grande vulto ou com objeto complexo deve-se proceder a publicação em jornais de grande circulação, haja vista o acesso à informação corresponder a um direito que não pode ser mitigado indevidamente (BARIAN JUNIOR, 014, p.121). Em que pese toda essa discussão, vale salientar que para se concretizar o direito fundamental de acesso à informação devem-se utilizar todos os meios disponíveis e, existindo pluralidade de formas de divulgações capazes de efetivar o princípio da publicidade, deve-se privilegiar a que melhor concretize o princípio da publicidade (BARIAN JÚNIOR, 2014, p.121). No entanto, é preciso não confundir a publicidade com a publicação, pois segundo Amaral (2010, p.7), a publicação por si só não assegura a publicidade, pois quando aquela é realizada de forma deficiente, este é violado. Assim, resta evidente que existem atos que mesmo sendo publicado, não efetivam o princípio da publicidade. Assim, diante da importância atribuída ao princípio da publicidade percebe-se que o RDC, em nome do interesse público, adotou o sigilo do orçamento estimado como regra fundamental para se chegar a proposta mais vantajosa, conforme se depreende do artigo 6º da Lei nº 12.462/11. Tal inovação tem provocado intensas controvérsias que remetem ao seguinte questionamento: sendo a publicidade princípio tão relevante, pode ser mitigado pelo sigilo do orçamento estimado do RDC, em nome da proposta mais vantajosa? Essa temática será analisada com maiores detalhes no tópico a seguir. 3. ASPECTOS RELEVANTES DO SIGILO DO ORÇAMENTO ESTIMADO NO RDC. O sigilo do orçamento estimado previsto no artigo 6º da Lei nº 12.462/11 é, atualmente, um dos pontos mais discutidos do RDC, por estabelecer que esse orçamento apenas seja publicado ao final da licitação, sendo interpretado por muitos como uma afronta ao princípio da publicidade. Por isso, para melhor compreensão do tema faz-se necessário entender inicialmente o que é orçamento estimado. A definição de orçamento estimado, proposta por Altounian e Cavalcante (2014, p. 97), consiste na forma de avaliação do custo da obra ou serviço que se deseja contratar, tomando-se por base os índices que apontem o custo médio do empreendimento de forma rápida. No entanto, vale salientar que esse tipo de orçamento é menos detalhado, em razão da ausência de projeto básico, pois esse orçamento é elaborado ainda na fase preliminar da licitação (ALTOUNIAN; CAVALCANTE, 2014, p. 97). Diante da visível influência que esse orçamento exerce sobre a licitação, o legislador instituiu o sigilo do orçamento como condição para se chegar à proposta mais vantajosa, incorporando uma prática comum e já vivenciada nas relações de negócios entre particulares. Com isso, acredita-se que omitindo o valor máximo que a Administração pública se propõe a pagar, pode-se chegar à melhor proposta. Isso não significa que a Administração não elaborará o orçamento estimado, mas que será publicado apenas ao final da licitação. (CHARLES; MARRY, 2014, p. 62). Nesses termos, destaca-se que tal sigilo não alcançará os órgãos de controle externo e interno, uma vez que estes terão livres acesso a todas às informações do certame. Dessa forma, é possível perceber que esse sigilo não é absoluto, nem uma imposição da Lei, mas é uma opção para o gestor público, que após analisar a esfera de conveniência e oportunidade decidirá se o sigilo se adequa ao critério de julgamento escolhido ou as especificidade do objeto licitado (CHARLES; MARRY, 2014, p. 68-70).

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Nesse contexto, verifica-se que a própria Lei do RDC relativiza o sigilo do orçamento estimado quando determina que os critérios de julgamento maior desconto, melhor técnica ou conteúdo artísticos são incompatíveis com a natureza do sigilo do orçamento e, portanto, quando a Administração adotar tais critérios o sigilo não poderá ser adotado por expressa vedação legal e lógica, (CHARLES; MARRY, 2014, p. 71). O tribunal de Contas da União também entendeu no Acórdão nº 3.011/2012 que esse sigilo não é absoluto e, portanto, não tem natureza obrigatória. Esse Acórdão tratou de vários assuntos referentes às licitações com RDC, envolvendo a Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária (Infraero) que teve como Relator o Ministro Valmir Campelo que na ocasião entendeu que o sigilo do orçamento estimado não tem natureza obrigatória, conforme voto que retrata com clareza, a questão: Concluo, então, que, como o sigilo no orçamento-base não é obrigatório, e pelo dever de motivação de todo ato, se possa recomendar à Infraero que pondere a vantagem, em termos de celeridade, de realizar procedimentos com preço fechado em obras mais complexas, com prazo muito exíguo para conclusão e em que parcela relevante dos serviços a serem executados não possua referência explícita no Sinapi/Sicro, em face da possibilidade de fracasso das licitações decorrente dessa imponderabilidade de aferição de preços materialmente relevantes do empreendimento [...].

Com esse posicionamento o Tribunal de Contas da União confirmou a facultatividade do orçamento sigiloso, autorizando os gestores a analisarem e decidirem se adotam este instituto nas licitações. O TCU ainda recomendou que nas licitações com objeto de alta complexidade, com prazo mínimo para conclusão e, quando houver ausência de parâmetros oficiais de preços, o gestor deve analisar a viabilidade desse sigilo, pois se percebeu que esses fatores influenciam no êxito do sigilo do orçamento do RDC, haja vista, no caso analisado, as propostas apresentadas nessas situações mostrarem-se incompatíveis com o custo estimado pela Administração, devido à ausência de preços de referências. 4. JUSTIFICATIVAS PARA ADOÇÃO DO SIGILO E A SUA EFETIVIDADE NAS LICITAÇÕES DA INFRAERO. Entre as intensas discussões e controvérsias que envolvem o sigilo do orçamento, tem-se questionado quais motivos influenciaram o legislador a instituir o sigilo do orçamento estimado no RDC, visto que no ordenamento jurídico predomina a publicidade dos atos. A resposta a essa indagação pode ser encontrada no parecer do Relator do Projeto de Lei de Conversão nº 17, de 2011, decorrente da Medida Provisória nº 527/2011, que apresentou como justificativa para adoção do sigilo, a necessidade de impedir a formação de cartéis entre os licitantes, como se extrai do trecho do Parecer do Senado: Outra medida destinada a combater os cartéis é o sigilo do orçamento prévio durante a licitação. Em mercados cartelizados, é comum que os agentes econômicos combinem previamente como se comportarão nos certames. Eles dividem o mercado de obras públicas entre si, tornando a licitação um jogo de cartas marcadas, no qual os participantes do conluio já sabem de antemão qual deles irá vencer a disputa. Sabedor de que os outros licitantes irão ofertar preços superiores ao de sua proposta, o futuro vencedor pode elaborar a sua de modo a que a margem de desconto em relação ao orçamento prévio da Administração seja mínima [...]. Como se vê, o sigilo do orçamento, longe de ser uma medida reprovável, como sugerido por setores da mídia, traduz-se em inegável avanço na legislação, constituindo prática recomendada pela OCDE e adotada pela legislação de diversos países, como a França e os Estados Unidos.

Como se percebe, o sigilo tem como finalidade inibir a prática de carteis, além de ser uma recomendação da Organização e Desenvolvimento Econômico (OCDE) que estabeleceram diretrizes, visando comba-

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ter a formação de conluio nas licitações. Para isso, recomendou como garantia da lisura desse sigilo, manter guardada uma via do orçamento estimado em envelope lacrado, sob a responsabilidade de uma autoridade pública sem vínculo com o órgão responsável pelo certame (REZENDE, 2015, p. 41). Dessa forma, acredita-se que não haverá vazamento de informações, inclusive, impedirá a alteração do valor estimado após o início da licitação. Nesse aspecto, Heinen (2015, p. 37) entende que, a adoção do sigilo do orçamento nas licitações aumenta a possibilidade das propostas ofertadas pelos licitantes serem mais condizentes com suas realidades, representando a verdadeira situação econômica da empresa, além de exigirem dos participantes maiores cuidado na hora de elaborarem suas propostas. Em sentido contrário encontram-se aqueles que declaram que o sigilo do orçamento não será capaz de inibir a formação de conluio e cartéis, devido aos seguintes obstáculos: a) A administração elabora o orçamento estimado com base nos preços de mercados, que são acessíveis a todos, inclusive, das empresas participantes dos certames; b) A disponibilidade das informações aos órgãos de controle interno ou externo produz um risco de vazamento de informações por integrantes dos órgãos (CAMMAROSANO; DALPOZZO; VALIM, 2014, p. 53); c) O sigilo pode aumentar a possibilidade da licitação converte-se em deserta, diante da ausência de informações relevantes que auxilie a elaboração da proposta pelo licitante, desestimulando a competição na licitação (ALTONIAN; CAVALCANTE, 2014, p. 120). No entanto, os resultados apresentados decorrentes da experiência da Infraero demonstram que, apesar de se verificarem algumas falhas na adoção desse sigilo, todos eles foram passíveis de correção pelos órgãos de controles e os resultados positivos superaram as expectativas, conforme demonstra o resultado da auditoria realizada pelo Tribunal de Contas da União, especificamente pela Secretaria de Fiscalização de Obras Aeroportuárias e de Edificação (SecobEdif) nas obras de reforma, ampliação e restauração de pistas de pouso no aeroporto de Confins, em Minas Gerais, conforme destaca o Acórdão nº 305/2013 que teve como relator o Ministro Valmir Campelo: [...] A equipe de auditoria informou um sobre preço no orçamento base da licitação, mas prontamente corrigido pela Infraero anteriormente ao início do certame. Tal providência repercutiu em uma redução do valor base da licitação em mais de R$ 19 milhões [...]. Pode-se, diante disso, tanto festejar o sucesso do RDC eletrônico, como também - e por que não o do sigilo do orçamento, revelado somente após a publicação da classificação.

Extrai-se ainda da redação desse Acórdão que, a auditoria realizada pelo TCU ocorreu na fase interna da licitação, possibilitando o saneamento das irregularidades e promovendo resultados economicamente elevados. Isso também comprava a disponibilidade de informações aos órgãos de controle, efetivando o que determina o artigo 6º da Lei do RDC, o qual prevê que as informações relativas às licitações serão disponibilizadas aos órgãos de controle de forma ampla. A licitação citada por esse Acordão tinha como valor estimado pela Infraero, R$ 257.149.317,80 (duzentos e cinquenta e sete milhões, cento e quarenta e nove mil, trezentos e dezessete reais e oitenta centavos), no entanto, foi homologada por R$ 199.044.986,52, (cento e noventa e nove milhões, quarenta e quatro mil, novecentos e oitenta e seis reais e cinquenta e dois centavos), indicando que em termos de economicidade o sigilo do orçamento tem apresentado resultados efetivo. (BRASIL, INFRAERO, PORTAL DE LICITAÇÕES, 2015). Nesse contexto destaca-se o aspecto econômico do RDC, analisado nessa pesquisa por meio de visita realizada ao site da Empresa Infraero no dia 18 de maio de 2015, a qual constatou que foram homologados 74 procedimentos licitatórios sob a égide do RDC, dos quais 69 adotaram o sigilo do orçamento estimado. As licitações que adotaram o sigilo do orçamento envolveram um montante de aproximadamente R$ 3.175.776.144,35, (três bilhões, cento e setenta e cinco milhões, setecentos e setenta e seis mil, cento e quarenta e quatro reais e trinta e cinco centavos). Entretanto, o valor total homologado pela Infraero, corresponde a aproximadamente, R$ 2.924.175.738,21 (dois bilhões, novecentos e vinte quatro milhões, cento e

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setenta e cinco mil, setecentos e trinta e oito reais e vinte um centavo), representando em termos percentuais a diferença de 7,92% (BRASIL, INFRAERO, PORTAL DE LICITAÇÕES, 2015). De forma sistemática, tentou-se transformar as informações levantadas no site da Infraero em dados estatísticos representados por gráficos que foram divididos em dois grupos: as licitações realizadas na modalidade RDC presencial e RDC na modalidade eletrônica. Ressalta-se que, apenas foram contabilizados os valores das licitações homologadas que adotaram o sigilo do orçamento, considerando os anos compreendidos entre 2011 a 2014 no âmbito da Infraero. Para melhor sintetizar os resultados analisados nas licitações que adotaram o sigilo do orçamento estimado na modalidade presencial segue o gráfico 1:

As licitações realizadas sob a égide do RDC na modalidade eletrônica também foram objetos de estudos, expostos no gráfico 2.

Assim, foi considerado para análise dessa modalidade o período de 2012 a 2014. Percebe-se também que, a partir do ano de 2014 a Infraero priorizou a modalidade eletrônica, diminuindo gradativamente o uso das licitações na modalidade presencial, uma vez que no ano de 2014 não houve licitações nessa modalidade (BRASIL, INFRAERO, PORTAL DE LICITAÇÕES, 2015).

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Todo esse panorama retrata no âmbito da Infraero a relevância e efetividade do sigilo do orçamento, a partir dos resultados economicamente viáveis apresentados na pesquisa. Por fim, diante dos dados pesquisados e analisados é possível perceber que em relação ao aspecto econômico o sigilo do orçamento estimado apresentou resultados satisfatórios e relevante efetividade econômica no âmbito da Infraero. CONSIDERAÇÕES FINAIS O Regime Diferenciado de Contratação foi criado, inicialmente, para ser aplicado às obras e serviços relativos aos eventos esportivos, sediados no país entre os anos de 2013 a 2016. Nesse aspecto, o objeto originário do RDC era transitório e limitado, entretanto, devido aos resultados apresentados, o seu objeto foi ampliado, alcançando demandas sem nenhum vínculo com o objeto inicial. Desse modo, as inovações inseridas no ordenamento jurídico com o advento desse regime provocaram intensas discussões e controvérsias, que alcançaram o Supremo Tribunal Federal por meio das Ações Diretas de Inconstitucionalidade, nº 4645/11 e nº 4655/11, no entanto, até o presente momento não foram julgadas. Entre os diversos dispositivos impugnados pela ADI nº 4645/11 encontra-se o artigo 6º da Lei do RDC, que disciplina o sigilo do orçamento estimado, estabelecendo que o orçamento da licitação será elaborado, todavia, não será publicado antes do encerramento do certame. A controvérsia referente a esse instituto reside no fato de que no regime licitatório tradicional, disciplinado pela Lei 8.666/93, a publicação do orçamento estimado deve ocorrer juntamente com o edital. Assim, esse instituto desagradou a muitos, que visualizam no sigilo do orçamento estimado uma grave violação ao princípio da publicidade. Esse princípio determina que os atos administrativos devam ser publicizados com transparência, de modo a facilitar o controle tanto pelos órgãos de fiscalização como pela sociedade, favorecendo o Estado Democrático de Direito. Um dos principais argumentos para adoção do sigilo do orçamento é a de que esse instituto pode inibir as práticas de formações de cartéis, visto que a ausência dessa informação inviabiliza tal conduta, além de obrigar os participantes a elaborarem propostas mais reais e exequíveis, com a plena efetivação do princípio da eficiência. Durante a pesquisa também se percebeu que o sigilo do orçamento não é absoluto, tendo em vista que algumas situações não se adaptaram ao instituto, como as licitações que adotam os critérios de julgamento: maior desconto, melhor técnica ou conteúdo artístico, que devido às peculiaridades desses critérios torna-se inviável a adoção do sigilo. A outra forma de relativização desse sigilo é a liberdade concedida à Administração Pública para decidir se adota ou não o sigilo do orçamento estimado. A análise sobre a jurisprudência do Tribunal de Contas da União e os editais de licitações apontou que o sigilo do orçamento estimado do RDC no âmbito da Infraero foi efetivo, pois os valores homologados foram sempre menores que os valores estimados, traduzindo a viabilidade econômica do orçamento sigiloso. Assim, contudo, parecem ser inconsistentes as alegações de inconstitucionalidade do sigilo do orçamento estimado do RDC, previsto no artigo 6º da Lei 12.462/11, pois ao que tudo indica, o sigilo do orçamento estimado faz parte de uma importante adequação do sistema licitatório ao atual contexto social, visando atingir o interesse público com o alcance da proposta mais vantajosa para Administração Pública e de forma plenamente, compatível com a Constituição Federal de 1988, refutando a hipótese levantada no início da pesquisa. Em relação ao aspecto econômico o sigilo do orçamento mostrou-se plenamente efetivo no âmbito da Infraero.

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A EFETIVIDADE DO PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO NOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL Alcerlane Silva Lins Prof. Dr. Luiz Gustavo Simões Valença de Melo (Orientador)

SUMÁRIO: Introdução; 1.A importância dos princípios para o processo civil; 2. O princípio do contraditório; 3. Os embargos de declaração e o efeito infringente; 4. O princípio do contraditório nos embargos de declaração na perspectiva do novo CPC; Conclusão; Referências.

INTRODUÇÃO A função primordial do direito é manter a paz social, solucionando conflitos por meio de decisões judiciais. Para isso, tais decisões precisam ser claras e objetivas para serem compreendidas e consequentemente, executadas. Ocorre que, em determinadas situações as decisões judicias podem apresentar algum vício que impossibilite a execução da decisão pelo jurisdicionado. Por isso, o legislador instituiu no rol dos recursos os embargos de declaração, que consiste no instrumento hábil para impugnar decisões com vícios de omissão, contradição, obscuridade ou erro material, conforme prevê o artigo 1022 do novo CPC. Assim, em determinadas situações, ao se tentar corrigir esses vícios, a decisão embargada pode ser modificada, alterando-se totalmente a decisão inicial. Diante dessa possibilidade discutia-se na doutrina se haveria a necessidade de aplicação do princípio do contraditório, tendo em vista a Constituição Federal, no artigo 5º, inciso LV, prevê a obrigatoriedade de observância do contraditório tanto nos processo judiciais como administrativo, enquanto que o CPC de 1973 não fazia referência a tal necessidade. Essa discussão histórica se evoluiu em decorrência dessa omissão legislativa, que embora boa parte da doutrina e da jurisprudência dos Tribunais Superiores ventilasse a necessidade de contrarrazão diante dos efeitos infringentes dos embargos de declaração, outra parte da doutrina acreditava que não haveria a necessidade do contraditório, pois o conteúdo da decisão já havia sido abordado durante a fase de conhecimento. O novo Código de Processo Civil acabou com essa discussão, estabelecendo no artigo 1023, §4º que, quando o acolhimento dos embargados modificar a decisão embargada, o juiz concederá a oportunidade para o embargado apresentar contrarrazão no prazo de 5 (cinco) dias, efetivando expressamente o princípio do contraditório. Com isso, fica evidente a importância atribuída aos princípios constitucionais, notadamente quando se refere ao princípio do contraditório que atualmente, encontra-se presente em vários dispositivos do novo Código de Processo Civil, o qual absorveu a nova leitura dada a esse princípio pela doutrina e jurisprudência. Tal princípio é atualmente compreendido como um legitimador das decisões judiciais, visto que no atual Estado Democrático de Direito as decisões não só precisam ser analisadas dentro do campo da legalidade, mas também dentro do campo da legitimidade e, o princípio do contraditório atribui essa legitimidade as decisões judiciais. Percebe-se então que ao longo dos anos esse princípio tem ampliado o espaço de participação do cidadão nas decisões judiciais, uma vez que ele traz em seu conteúdo a oportunidade de participação, inclusive, atribui às partes o poder de influenciar no resultado final do processo, pois é predominante na doutrina o

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entendimento de que não existe processo sem o contraditório, permitindo que o cidadão não apenas apresente ao judiciário o objeto para decisão, mas participe influenciando ativamente no resultado do processo. Desse modo, fica evidente a relevância e atualidade do tema, visto que o novo CPC por meio dos embargos de declaração concretiza o modelo de processo previsto pela Constituição Federal de 1988, atribuindo à parte embargada o direito de exercer o contraditório em sua plenitude, para produção de decisões legítimas, pois como já mencionado, uma das finalidades do princípio do contraditório é atribuir legitimidade às decisões judiciais, para materialização do Estado Democrático de Direito. Com isso, a efetividade do princípio do contraditório nos embargos de declaração do novo CPC merece ser analisada minuciosamente. Assim sendo, a pesquisa se iniciará com a análise sobre a importância dos princípios para o processo civil, especificamente o princípio do contraditório. Em seguida analisará a efetividade desse princípio nos embargos de declaração sob a perspectiva do novo CPC, com respaldo da doutrina e jurisprudência referente à nova processualística desse recurso. 1. A IMPORTÂNCIA DOS PRINCÍPIOS PARA O PROCESSO CIVIL. Antes de adentrar na discussão sobre o princípio do contraditório, fundamental se mostra apresentar a importância dos princípios para o processo civil, especificamente para o sistema recursal, uma vez que os princípios vêm ganhando força no atual Estado Democrático de Direito em razão de terem como principal finalidade a positivação de valores sociais, com aplicação de um direito principiológico, fundamentado na Constituição Federal (AGRA, 2012, p.104). Nesse aspecto, é possível perceber que os princípios atuam como norteadores e inspiradores do legislador, bem como do aplicador do direito, tendo em vista exercerem a função primordial de abreviar o distanciamento entre a norma e a Justiça, agindo como nexo entre o Texto Constitucional e a realidade social. Isso não significa que, eles são imposições de aspectos sociais, morais ou econômicos, mas elementos incorporados ao conhecimento jurídico que se transformam em componentes do direito, (AGRA, 2012, p.104). Desse modo, pode-se afirmar que os princípios desenvolvem um papel importante na concretização dos direitos, indicando as diretrizes a serem seguidas com o intuito de se alcançar um determinado fim. A este propósito são imprescindíveis as lições de Barroso (2009, p.13) que, de forma clara e precisa afirma que os “princípios contêm, normalmente, uma maior carga valorativa, um fundamento ético, uma decisão política relevante e, indicam uma determinada direção a seguir”. Ainda assim, Theodoro (2015, p. 41) alerta para o cuidado de não se aplicar princípios sem relação normativa, pois para invocação de um princípio não basta apenas à presença de argumentos lógicos, morais ou pragmáticos, mas também a análise minuciosa do caso concreto. Por isso, diante das alterações e inovações inseridas no novo CPC, notadamente no sistema recursal, fica nítida a intenção do legislador em homenagear os princípios de modo a assegurar uma prestação jurisdicional eficiente. Para tanto, o princípio do contraditório foi invocado a partir de uma leitura predominantemente constitucional, que impõe não apenas a participação do jurisdicionado, mas também a capacidade de influenciar na decisão judicial, com a finalidade de garantir um processo justo. Diante da nova dimensão conferida ao princípio do contraditório é interessante analisar a nova faceta assumida por esse princípio que será abordado no tópico a seguir. 2. O PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO. A Constituição Federal de 1988 é o marco regulatório para o Estado Democrático de Direito, que atribuiu ao princípio do contraditório o status de direito fundamental das partes no processo, inserido no rol de direitos fundamentais, previsto no artigo 5º, inciso LV, que garante aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados

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em geral o direito ao contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes, concretizando o Estado Democrático de Direito que assegura a todos um processo pautado na isonomia das partes (FIORATTO; DIAS, p.113). Nessa perspectiva, pode-se verificar que o princípio do contraditório que decorre do princípio do devido processo legal traz em sua essência o direito da parte ser informada de todos os atos do processo e se manifestar ao ponto de influenciar no resultado final. Isso tem fundamento na democracia participativa, que garante um processo justo, conforme afirma Didier (2013, p. 56): O princípio do contraditório é reflexo do princípio democrático na estruturação do processo. Democracia é participação, e a participação no processo opera-se pela efetivação da garantia do contraditório. O princípio do contraditório deve ser visto como exigência para o exercício democrático de um poder.

Verifica-se que atualmente, esse princípio é elemento primordial e essencial para o resultado do processo, integrando o próprio conceito de processo, pois não existe processo onde não haja o contraditório, uma vez que o processo pode ser conceituado como um conjunto de procedimentos alicerçados em contraditório (DIDIER, 2013, p.56). É possível perceber que esse princípio sofreu ao longo dos anos consideráveis alterações, que de forma sistemática a doutrina separou em três fases: i) Fase formal, fundada na necessidade de informar; ii) Fase material, caracterizada pela oportunidade das partes se manifestarem no processo, iii) Fase constitucional, que efetivou o direito de influenciar a decisão final do processo, (RIBEIRO, 2014, p.20). Por isso, atualmente o processo deve ser interpretado dentro dos parâmetros democráticos, com a participação ativa das partes em todas as fases, inclusive na fase recursal, com a efetivação do princípio do contraditório, que tem como característica predominante o poder de influenciar no resultado do processo. Tal qualidade deriva das democracias construídas após a segunda guerra mundial e a observância dessa característica eleva o cidadão, reconhecendo-o como sujeito de direito (BODART, 2012, p.2). Ocorre que, nem sempre o processo foi compreendido com essa amplitude constitucional, visto que inicialmente, o contraditório era entendido apenas como a oportunidade de as partes tomarem ciência dos atos praticados no processo, alcançando uma mera formalidade, denominada pela doutrina como bilateralidade da audiência, que consistia no direito de igualdade das partes de receberem informações sobre o andamento do processo. Entretanto, tal finalidade restou ultrapassada, sendo acrescentada também, a possibilidade das partes influenciarem na formação do resultado final, com o objetivo de impedir o surgimento de decisões surpresas, também conhecidas como decisões de terceira via (THEODORO, 2015, p.69). Com isso, atualmente, pode-se verificar que o princípio do contraditório apresenta dois aspectos importantes: a) o aspecto formal representado pela garantia de participação; b) o aspecto substancial como a possibilidade das partes influenciarem na decisão (DIDIER, 2013, p.57). O aspecto formal consiste na garantia de participação que pode ser interpretada como o direto de simplesmente, dizer e ser ouvido, favorecendo a bilateralidade da audiência, com a possibilidade de o juiz utilizar seu livre convencimento e decidir da forma que melhor entenda, configurando um contraditório estático, que representa a face limitada e tradicional do princípio do contraditório. Segundo a doutrina atual, a simples oportunidade concedida às partes para manifestação não efetiva o contraditório, sendo necessária a participação com poder de influência. Em relação ao aspecto substancial, observa-se um contraditório dinâmico, que compreende a oportunidade de se manifestar, além do poder de influenciar no resultado do processo, impedindo o surgimento da decisão surpresa. Tal manifestação proporciona um sistema processual constitucional que torna a decisão legítima e com maior aceitação das partes. (DIDIER, 2013, p. 57) Desse modo, o princípio do contraditório legitima o provimento jurisdicional, pois no Estado Democrático de Direito não é suficiente apenas analisar a legalidade das decisões jurisdicionais, mas também é necessário que as decisões sejam legítimas. Com isso, fica evidente que toda atividade exercida pelo Estado só será legítima quando as decisões estiverem fundamentadas em argumentos discutidos pelas partes, atri-

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buindo às decisões, legitimidade por meio do exercício do contraditório, evitando o aparecimento de decisões de terceira via, (CÂMARA, 2011, p. 64). Como se vê, a violação ao direito de participação e a possibilidade de influenciar no resultado do processo, afronta o princípio do contraditório, bem como afetará outros princípios, tornando a decisão inválida. Sintetizando esse entendimento encontram-se as lições de Walber Agra (2012, p. 228). O contraditório tem como requisito a participação das partes na formação das lides processuais, assegurando sua eficiência apenas se for possibilitada aos componentes da relação, atuação na inteireza dos procedimentos. Se o cidadão não tem oportunidade de defesa está se estiolando o princípio da isonomia porque houve oportunidade para acusação, impedindo que todos sejam iguais perante a lei e, igualmente, obstaculiza-se que a verdade real possa ser concretizada.

Vale ressaltar, que sendo concedida a parte o direito de exercer o contraditório e vindo a parte a negligenciar, sem comparecer para exercer tal direito não haverá afronta a esse princípio, pois o contraditório se efetiva com a oportunidade de manifestar e influenciar e não com exercício desse direito. (RIBEIRO, 2014, p. 19). Como se percebe, o novo Código de Processo Civil - CPC, por intermédio do princípio do contraditório nos embargos de declaração, reflete o modelo de processo idealizado pela Constituição Federal de 1988, (BODART, 2012, p.2). E a importância da concretização plena desse princípio é fator imprescindível para configuração do Estado Democrático de Direito, por isso, o novo CPC, atribuiu relevante valor para tal princípio, reafirmando em seu artigo 10 a necessidade de observância ao princípio do contraditório, a partir de uma nova concepção, estabelecendo que não será possível decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício. A importância atribuída ao princípio do contraditório pelo novo CPC atingiu o sistema recursal, precisamente no artigo l023, §2º, determinando que: “O juiz intimará o embargado para, querendo, manifestar-se, no prazo de 5 (cinco) dias, sobre os embargos opostos, caso seu eventual acolhimento implique a modificação da decisão embargada. (BRASIL, LEI Nº 13.105, 2015). É nítida a relevância desse princípio para o processo, no entanto, cumpre ressaltar que no Estado Democrático de Direito, faz-se necessário efetivar também, outros princípios que compõem o devido processo legal e não apenas o princípio do contraditório, para produção de uma decisão justa com maior efetividade, decorrente de um processo totalmente democrático. Dessa forma, percebe-se que, o contraditório favorece o Estado Democrático de Direito, garantindo a participação das partes em todas as fases do processo, principalmente quando ocorre o efeito infringente nos embargos de declaração que será tratada no próximo tópico. 3. OS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO E O EFEITO INFRINGENTE. É sabido que o Estado tem como uma de suas funções o dever de dizer o direito, denominada de função jurisdicional. O exercício dessa função ocorre por intermédio de decisões judiciais que, devem ser prolatadas de forma clara, completa e coerente para que os jurisdicionados compreendam e a executem (WAMBIER, 2005, p. 18). Assim, quando as decisões judiciais forem imprecisas e incompreensíveis em decorrência dos vícios de omissão, obscuridade, contradição ou até erro material, que impossibilitem a execução da decisão será possível impugná-la com o recurso de embargos declaratório, que tem a finalidade de conceder ao juízo que prolatou a decisão a oportunidade de esclarecê-la, corrigindo o erro improcedendo, que abrange os erros de-

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correntes da atividade que, se manifestam quando as normas de procedimento são desrespeitadas, (DIDIER, 2013 p.82). Nesse sentido Araken (2014, p.630) apresenta com clareza a finalidade dos embargos de declaração: O remédio presta-se a integrar ou a aclarar o pronunciamento judicial, talvez decorrente do julgamento de outro recurso, escoimando-o dos efeitos considerados relevantes à sua compreensão e alcance, a saber: a omissão, a contradição e a obscuridade.

É certo que, em regra, os embargos de declaração não têm caráter modificador, mas apenas natureza de integrar e esclarecer uma decisão, podendo, assim, ser classificado como um recurso de fundamentação vinculada, visto que a lei restringe as matérias que podem ser impugnadas por meio de tal recurso, como a omissão, obscuridade, contradição e erro material, conforme se infere do artigo 1022 do novo CPC. Nesse aspecto, Didier (2013, p.200), conceitua o vício de omissão como a decisão que não se manifesta sobre o pedido ou sobre pontos importantes abordados pelas partes, inclusive sobre questões de ordem pública. Em relação ao vício da obscuridade, o mesmo autor define como sendo uma decisão ininteligível. Já o vício da contradição surge quando a decisão é composta de conjecturas contraditórias. Ocorre que, como já salientado, a finalidade típica dos embargos de declaração não é a reforma da decisão judicial, mas a correção de erro improcedendo. Entretanto, há determinadas situações em que o acolhimento desse recurso pode alterar a decisão embargada, provocando o efeito modificativo, também denominado pela doutrina como efeito infringente. No entanto, no Código de 1973, não havia previsão legal expressa, sobre a necessidade de se intimar a parte embargada para participar efetivamente da produção do resultado final da decisão, por meio do contraditório, quando a decisão embargada fosse alterada, embora os tribunais se posicionassem no sentido de ser obrigatória a efetivação desse princípio diante do efeito infringente dos embargos (BRASIL, LEI Nº 5869, 1973). Essa omissão legislativa remetia a seguinte indagação: ocorrendo a modificação da decisão embargada haveria realmente a necessidade do contraditório? Esse questionamento dividiu opiniões. A doutrina minoritária encampada por Daniel Assumpção (2011, p.726) e outros, entendia que era preciso classificar os efeitos decorrentes da alteração da decisão embargada em dois tipos: a) efeitos modificativos; b) efeitos infringentes. Para essa corrente diante do efeito modificativo dos embargos não era necessário aplicar o contraditório, visto que não havia alegação de matéria nova no processo, mas a análise de matéria já discutida no processo, com o pedido de saneamento de omissão ou contradição, por isso, não haveria a necessidade da concessão dos 5 (cinco) dias para o exercício do contraditório. Em relação aos efeitos infringentes derivado dos embargos de declaração, os defeitos eram teratológicos, portanto, não integravam nem esclareciam, mas promoviam a reforma ou anulação da decisão embargada, nesse caso o contraditório seria necessário, pois a decisão embargada era alterada ao sanar um vício, (NEVES, 2011, pp.726-728). A doutrina majoritária, que tinha como representante Fredie Didier (2013, p. 226) por sua vez, não fazia a distinção entre os efeitos modificativo e infringente, entretanto, considerava que qualquer alteração na decisão embargada produzia o efeito modificativo que correspondia ao efeito infringente e, portanto devia-se invocar o princípio do contraditório, visto que a ofensa a tal princípio acarreta a invalidade da decisão. A jurisprudência também entendia que era necessário oportunizar o contraditório quando houvesse o acolhimento dos embargos de declaração com a alteração da decisão embargada. Isso é o que se percebe no julgado do Supremo Tribunal Federal (BRASIL, STF, AI: 813184 RJ, Relator: Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno DJe-229 DIVULG 20-11-2014 PUBLIC 21-11-2014): EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. EXISTÊNCIA DE OMISSÃO. EFEITOS INFRINGENTES EM EMBARGOS. NECESSÁRIO CONTRADITÓRIO. I A atribuição de efeitos infringentes aos embargos de declaração torna imprescindível a observância do contraditório, oportunizando-se à parte contrária

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impugnar o pedido do embargante. II Embargos de declaração acolhidos para anular o acórdão proferido nos primeiros embargos de declaração e determinar a abertura de vista ao ora embargante para apresentar contrarrazões ao recurso anteriormente interposto. STF - AI: 813184 RJ, Relator: Min. RICARDO LEWANDOWSKI (Presidente), Data de Julgamento: 16/10/2014, Tribunal Pleno, Data de Publicação: ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-229 DIVULG 20-11-2014 PUBLIC 21-11-2014). (Grifo nosso)

A justificativa para tal controvérsia residia no fato de que, a finalidade dos embargos de declaração, consistia em esclarecer as decisões e não redecidi-las, como também não havia no Código de Processo Civil de 1973 nenhum dispositivo determinando a necessidade da parte embargada apresentar contrarrazão (DINAMARCO, 2013, p.186). Nesse contexto, é importante destacar que para muitos a efetivação do princípio do contraditório nos embargos de declaração impede que no futuro a parte embargante ajuíze ação rescisória (SOUZA, 2014, p. 474), visto que foi concedido a parte, o direito de influenciar no resultado do processo. Para resolver essa celeuma o novo Código de Processo Civil determinou expressamente, a efetivação do princípio do contraditório quando ocorrer a alteração da decisão embargada com a produção do efeito infringente. 4. O PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO NOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NA PERSPECTIVA DO NOVO CPC. O princípio do contraditório é refletido em vários dispositivos do novo Código de Processo Civil (CPC), especificamente no artigo 1023, §2º, que determina que “o juiz intimará o embargado para, querendo, manifestar-se, no prazo de 5 (cinco) dias, sobre os embargos opostos, caso seu eventual acolhimento implique a modificação da decisão embargada”. Esse dispositivo apresenta-se como uma forma de garantia do direito fundamental das partes de participarem do resultado do processo (BRASIL, LEI Nº 13.105, 2015). Com isso, verifica-se a relevância do princípio do contraditório nos embargos de declaração do novo CPC, que foi aplicado pelo legislador dentro dos parâmetros constitucionais que abrange tanto a participação, como o poder das partes de influenciarem no resultado da decisão. Esse mesmo raciocínio é expresso no enunciado nº 3, aprovado pela Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrado – ENFAM, que também indica a necessidade da parte se manifestar e de exercer influência na solução da causa. Assim, como se vê, a alteração concentrada no regramento dos embargos de declaração indica que o legislador ordinário, além de efetivar o contraditório, acabou com uma discussão que se estendia ao longo dos anos, admitindo expressamente o efeito infringente dos embargos de declaração. Nesse contexto é importante ressaltar que o efeito infringente, pois em regra, os embargos de declaração não têm caráter modificador, mas apenas natureza de integrar ou esclarecer omissão, contradição ou obscuridade e corrigir erro material, como prever o artigo 1022, incisos I, II, III do novo CPC: Art. 1.022. Cabem embargos de declaração contra qualquer decisão judicial para: I - Esclarecer obscuridade ou eliminar contradição; II - Suprir omissão de ponto ou questão sobre o qual devia se pronunciar o juiz de ofício ou a requerimento; III - Corrigir erro material.

Como se percebe, os embargos de declaração têm, em princípio, a função de integrar ou esclarecer a decisão, todavia, pode acontecer que ao suprir a omissão, esclarecer uma dúvida ou eliminar uma contradição que contamine a decisão judicial, ocorra uma modificação na decisão embargada. Quando isso ocorrer

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deve-se atentar para o que dispõe o artigo 1023, §4º, do novo CPC dispõe que: “O juiz intimará o embargado para, querendo manifestar-se, no prazo de cinco dias, sobre os embargos opostos, caso seu eventual acolhimento implique a modificação da decisão embargada”. Assim, extrai-se da redação desse dispositivo que o novo CPC disciplina expressamente os efeitos infringentes nos embargos de declaração, regulando a necessidade do contraditório. Com isso, comprova-se que esse novo código se pauta por um processo moderno que busca a efetividade das decisões, oferecendo um provimento justo e eliminando as contradições, omissões e obscuridade dos provimentos jurisdicionais. Nesse aspecto, Mazzei (2015, p.2278) atenta para o dever de se aplicar o contraditório a todo e qualquer capítulo da decisão e não apenas aos temas principais da decisão embargada, como entendia boa parte da doutrina. Atualmente, entende-se que o contraditório deve ser observado em toda fase de processo. Por isso, as alterações efetuadas pelo novo CPC no sistema recursal no que tange aos embargos de declaração alcançaram também outros dispositivos, como as que se concentram no artigo 1024, §4º estabelecendo que, quando o acolhimento dos embargos de declaração implicar a modificação da decisão embargada e o embargado já tiver interposto outro recurso contra a mesma decisão, os embargos serão julgados primeiros e ocorrendo o efeito infringente a parte embargada terá direito de: a) complementar as razões do recurso, inclusive alterar seu conteúdo. Isso se constitui como direito lógico, pois se a decisão foi alterada, as razões do recurso mostram-se sem sentido e por isso, a parte terá direito a adaptar as razões do recurso a atual decisão prolatada decorrente do efeito infringente. Ressalta-se que o dispositivo legal alerta para a necessidade da alteração das razões serem feitas dentro dos limites da modificação. b) Não havendo alteração da decisão embargada quem recorreu não precisará ratificar o recurso para que ele seja julgado (BRASIL, LEI Nº 13.105, 2015). Esse novo regramento, que apresenta a desnecessidade de ratificação do recurso implicará o cancelamento da Súmula 418 do Superior Tribunal de Justiça que determinava ser “inadmissível o recurso especial interposto antes da publicação do acórdão dos embargos de declaração, sem posterior ratificação”. Nesse sentido o enunciado 23 do Fórum Permanente de Processualista – FPPC estabelece que: “(art. 218, § 4º; art. 1.024, § 5º) fica superado o enunciado 418 da súmula do STJ após a entrada em vigor do CPC (“ É inadmissível o recurso especial interposto antes da publicação do acórdão dos embargos de declaração, sem posterior ratificação”). (Grupo: Ordem dos Processos no Tribunal, Teoria Geral dos Recursos, Apelação e Agravo).

Desse modo, a alteração inserida no âmbito dos recursos, principalmente, nos embargos de declaração foi relevante e necessária, pois se buscou efetivar o princípio do contraditório nas decisões embargadas com possibilidade de modificação da decisão. Com isso, concede-se a parte a oportunidade de exercer seu direito ao contraditório, além do direito de complementar ou alterar as razões do recurso e a desnecessidade de ratificá-lo, quando for interposto concomitantemente aos embargos de declaração. Tudo isso representa um grande avanço para o Estado democrático de Direito, como bem diz Teresa Wambier (2005, p.15) “Hoje, parece poder-se sustentar sem sombra de dúvida que os embargos de declaração têm raízes constitucionais”, por isso, o novo CPC invocou expressamente o princípio do contraditório, consolidando o modelo constitucional de processo. CONCLUSÃO É bem verdade que atualmente os princípios vêm conquistando espaço no ordenamento jurídico e exercendo relevante influência dentro do processo civil, em razão de desempenharem um papel importante na efetivação dos direitos fundamentais. Assim, dentre os princípios que compõem o modelo constitucional do processo, destaca-se o princípio do contraditório que diante de sua relevância para o processo civil, o legislador ordinário determinou sua

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aplicação em diversos dispositivos do novo Código de Processo Civil, notadamente no artigo 1023, § 2º que, trata do recurso de embargos de declaração. Esse recurso é classificado pela doutrina como recurso de fundamentação vinculada, pois é cabível apenas quando ocorrer omissão, contradição, obscuridade e erro material, com a finalidade específica de esclarecer uma decisão judicial. No entanto, é possível que diante de determinada situação a correção desses vícios altere a decisão embargada, produzindo o efeito infringente, também denominado pela doutrina de efeito modificativo. O efeito infringente nos embargos de declaração é aceito pela doutrina e jurisprudência como efeito excepcional, uma vez que tal recurso tem como finalidade precípua a correção de um erro improcedendo e, não a reforma da decisão. Durante muito tempo existiu uma discussão sobre a necessidade de se efetivar o contraditório se a decisão embargada fosse modificada. O Código de Processo Civil de 1973 não fazia referência sobre a necessidade de se intimar a parte embargada para apresentar contrarrazão, quando surgisse o efeito infringente, embora boa parte da doutrina e da jurisprudência se posicionasse no sentido de aplicar o princípio do contraditório quando o acolhimento desse recurso modificasse a decisão embargada. Essa omissão legislativa provocou intensas discussões e o novo CPC vem acabar com tal celeuma e reafirmar o que boa parte da doutrina e dos tribunais já afirmavam sobre a necessidade de se conceder oportunidade para parte embargada, querendo, apresentar contrarrazões. Cumpre destacar que o princípio do contraditório traz em seu conteúdo não apenas o direito das partes se manifestarem, mas de exercerem influência na formação do resultado final do processo, como garantia de um processo justo, pois se sabe que atualmente esse princípio é compreendido como um legitimador das decisões judiciais, visto que no atual Estado Democrático de Direito as decisões devem ser analisadas tanto no campo da legalidade como no da legitimidade e o princípio do contraditório previsto nos embargos de declaração do novo CPC promove essa legitimidade. Desse modo, fica evidente que essa alteração inserida no novo CPC buscou aperfeiçoar as decisões judiciais, garantindo uma prestação jurisdicional objetiva e precisa sem afrontar o direito das partes ao contraditório, pois a violação a tal princípio macula o Estado Democrático de Direito. REFERÊNCIAS AGRA, Walber de Moura. Curso de Direito Constitucional. 7 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012. ASSIS, Araken de. Manual de Recursos. 6 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009. BODART, Bruno Vinícius da Rós. O processo civil participativo- A efetividade constitucional e o projeto do novo Código de Processo Civil. In: Revista dos Tribunais Online. Disponível em: http://www.revistadostribunais.com.br/maf/api/widgetshomepage?areinterest=wlbrHome&stnew=true. Acesso em: 24/10/2015. CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. 21 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. DIDIER JR, Fredier. Curso de Direito Processual Civil. 11 ed. Salvador: Juspodivm. V.3, 2013. DINAMARCO, Candido Rangel. Nova Era do Processo Civil. 4 ed. São Paulo: Malheiro, 2013.

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COTAS RACIAIS: ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO DE FUNDAMENTAÇÃO DO VOTO DE LEWANDOWSKI NA ADPF 186/DF

Ana Caroline Alves Leitão Bacharelanda e bolsista de iniciação cientifica(PIBIC) em Direito na Universidade Católica de Pernambuco(UNICAP). Virginia Colares Mestre e Doutora em Linguística pela UFPE. Presidente da ALIDI. Membro do ILLA. Professora da Graduação e do Programa de Pós graduação em Direito da UNICAP e orientadora da bacharelanda no PIBIC.

SUMÁRIO: Introdução. 1. Fundamentação teórica. 1.1. Análise crítica e tridimensionalismo do discurso. 1.2. Ideologia: conceitos e modos de operação. 2. Análise crítica do discurso jurídico e atuação da ideologia na ADPF 186. Considerações finais. Referências.

INTRODUÇÃO Este trabalho integra o plano de trabalho “Os modos de operação da ideologia no discurso de fundamentação nas decisões do STF sobre os direitos dos negros” a ser desenvolvido no PIBIC 2015/2016 da Universidade Católica de Pernambuco, sob responsabilidade das autoras. Com o objetivo de identificar, nas peças processuais, as estratégias linguístico-discursivas dos modos de operação da ideologia no discurso de fundamentação nas decisões do Supremo Tribunal Federal no que concerne aos direitos dos negros, a metodologia utilizada será a da Análise Crítica do Discurso Jurídico, ressaltando efeitos ideológicos e políticos do discurso, a partir dos modos de operação da ideologia postos por J. B. Thompson. A Análise Crítica do Discurso Jurídico tem por escopo a abordagem das relações entre linguagem, direito e sociedade. Para tal analisa-se o voto do ministro Ricardo Lewandowski na ADPF 186/DF, aprovando as cotas raciais, o qual evidencia as mudanças nas relações entre direito e sociedade, que tradicionalmente foi de imperativa ratificação do poder das classes dominantes frente às minorias e atualmente vem adotando uma postura em prol da justiça social na contramão de seu uso tradicional. O foco da análise é a identificação dos modos de operação da ideologia nesse discurso de fundamentação da ADPF 186/DF. Assim, a adoção do conceito de ideologia, neste projeto, não implica necessariamente a sua utilização como algo que oculta a verdade e leva a uma falsa consciência em contraste com algo que é considerado verdadeiro e real, já que comumente a ideologia é retratada como uma via alienante para a manutenção de poderes; o que se pretende é evidenciar que a ideologia opera por intermédio da linguagem que viabiliza a ação social, sendo parcialmente constitutiva daquilo que na nossas sociedades é denominado “a realidade”. A ACD revela uma tridimensionalidade do discurso, conforme a proposta de Normam Fairclough, assim, o texto é analisado em suas três dimensões: textual, como pratica discursiva e como pratica social, para compreender integralmente o que sustenta as cotas raciais como direito social e garantia de igualdade material, considerando, que apenas com a análise detalhada e meticulosa da estrutura textual do discurso,

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da forma como ele é produzido, distribuído e consumido e das relações sociais construídas entre negros e outras raças, a partir de um contexto histórico de dominação e inferiorização do povo negro em relação aos demais, é que se torna possível enxergar a discriminação positiva entre essas pessoas negras e não negras como cabível, no momento em que se constitui o argumento para a ocupação das vagas universitárias e porque a construção deste argumento dada a partir apenas da nota numericamente constituída através da fria avaliação de conhecimento se traduz em injustiça. As fronteiras entre direito e política tem-se demonstrado bastantes flexíveis em diversas decisões do STF, tais como: aborto anencefálico, casamento civil igualitário, as cotas, entre outras, nas quais o STF tem, frente aos demais poderes e a sociedade, concedido e até mesmo criando novos direitos sociais; como as cotas raciais tratadas no voto que este trabalho analisa, que objetivam alcançar a igualdade -material- presente na carta magna e suprir uma dívida histórica que o Brasil tem com tal minoria, após um passado vergonhoso de escravidão e uma realidade permanente de exclusão destes, através de uma verdadeira justiça distributiva. Tentando alcançar assim, o objetivo primário de toda a estrutura do poder judiciário que consiste em promover a justiça e a pacificação social, intermediando por meio de peças fundamentadas tais conflitos presentes na sociedade brasileira. A fundamentação jurídica presente nas decisões condensa as práticas sociais de todo um contexto histórico-social em seus textos. Portanto, todo discurso é uma construção social e somente pode ser analisado ao se considerar a realidade em que esta imerso. Uma realidade de luta de classes em que o judiciário tem se colocado ao lado dos interesses das minorias que compõe o povo. Assim, decifrando-se o discurso jurídico, pretende-se também obter toda uma compreensão da realidade vivida podendo, com isto, compor novas perspectivas de, não apenas novos direitos sociais, mas de toda uma nova estrutura jurídica. 1. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA. 1.1 ANÁLISE CRÍTICA E TRIDIMENSIONALISMO DO DISCURSO.

A análise crítica do discurso, idealizada por Norman Fairclough da década de 70, é uma espécie de investigação dos emaranhados compositivos do discurso que considera a linguagem como uma forma de prática social; tem como centro da análise o contexto no qual o discurso é feito assim como a ideologia presente, ou seja, foca nas relações entre linguagem e sociedade. A ACD de Fairclough postula que o discurso tem três áreas fundamentais a serem decifradas para compor a análise crítica a qual se propõe, ou seja, faz-se um estudo tridimensional do discurso; São essas: análise de textos, que podem ser falados ou escritos; análise da prática discursiva, que observa os processos de produção, distribuição e consumo dos textos e a análise da prática social do discurso que seria todo o contexto sócio cultural da sociedade da qual o discurso provém, já que não existe prática discursiva inerte ao ambiente na qual é constituída. Ter destacado esses três aspectos não implica dizer que Fairclough propunha uma análise isolada de cada uma delas, pelo contrário, em sua obra destaca que tal distinção é ilusória, por que ao analisar um texto sempre se examinam concomitantemente questões de forma e de significado. Na primeira dimensão, no discurso como texto, destacam-se aspectos formais da construção textual, considerando que os signos são socialmente motivados, isto é, que há razões sociais para combinar certos significantes a certos significados. Assim, a análise textual pode ser organizada em quatro tópicos: vocabulário, gramática, coesão e estrutura textual. Vocabulário trata das palavras postas individualmente; gramática das palavras estruturadas em orações e frases; a coesão evidencia a ligação entre orações e frases; e a estrutura textual trata das propriedades organizacionais de larga escala dos textos. A dimensão da prática discursiva envolve os processos de produção, distribuição e consumo e a natureza desses processos caminha entre diferentes tipos de discurso em conformidade com fatores sociais, como o processo de produção, que são idealizados de múltiplas formas particulares em contextos específicos.

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O consumo também pode ser diferenciado a partir de aspectos sociais diversos, que se relaciona com a capacidade interpretativa do publico alvo e os modos de interpretação disponíveis. No que se refere a distribuição, pode ser simples ou complexa, cada texto possui padrões próprios de consumo e rotinas próprias para a reprodução e transformação do texto. Fairclough elenca ainda o que seriam: /.../ dimensões ‘sociocognitivas’ de produção e interpretação textual, que se centralizam na inter-relação entre os recursos dos membros, que os participantes do discurso têm interiorizado e trazem consigo para o processamento textual e o próprio texto. (FAIRCLOUGH, 2001, pág. 109).

Três dos principais itens sociocognitivos que integram a pratica discursiva são: a força dos enunciados(tipos de atos de fala); a coerência do texto que é uma propriedade das interpretações na qual um texto coerente seria aquele que mantém uma relação de perfeita harmonia entre as partes integrantes do texto e o sentido objetivado; e a intertextualidade trata da propriedade que determinado texto tem de ser cheio de fragmentos de outros textos, característica bastante frequente no fragmento da peça que este trabalho analisa. Na ultima dimensão o discurso é tido como uma prática social, em que o autor: /.../discutirei o conceito de discurso em relação à ideologia e ao poder e situa o discurso em uma concepção de poder como hegemonia e em uma concepção da evolução das relações de poder como luta hegemônica. (FAIRCLOU-

GH, 2001, pág. 116).

Nesta dimensão o autor entende que ideologias são construções da realidade em que são construídas varias formas das práticas discursivas que contribuem para a produção ou transformação das relações de dominação. Já hegemonia diz respeito ao poder e domínio exercido em determinada sociedade, e no que diz respeito à análise discursiva, avalia-se não só o exercício deste poder, mas toda a estrutura de luta hegemônica que se trava entre os detentores e submissos. 1.2 IDEOLOGIA: CONCEITOS E MODOS DE OPERAÇÃO.

O termo ideologia carrega em si o peso de seu uso ao longo do tempo, assim, a compreensão histórica do termo é essencial para entender sua aplicação usual no senso comum e contrapropostas a esse uso e também tentar traçar uma definição mais condizente com sua real dimensão na linguagem, portanto, será posto os principais conceitos e usos históricos da ideologia e o conceito adotado neste trabalho. Destutt de Tracy introduziu o conceito de ideologia como uma definição para o que seria uma ciência das ideias, sendo inicialmente posto como um sistema de análise das ideias e sensações, acreditando que as coisas não podem ser conhecidas em si mesmas, mas apenas as ideias formadas pelas sensações que se tem delas. Ao passo em que a expressão começou a ser utilizada em meio político, seu conceito sofreu uma reviravolta e foi usado por Napoleão contra os filósofos, não para se referir a uma ciência positiva e eminente, mas a um corpo de ideias apartadas da realidade, assim, ideologia corresponderia a ideias utópicas e ilusórias. Nas obras de Marx é possível flagrar vários significados distintos atribuídos ao mesmo termo- ideologia-, primeiramente tem-se um conceito dito polêmico na obra a ideologia alemã, na qual denota, ao criticar as ideias dos jovens hegelianos, que ideologia seria uma concepção teórica que acredita utopicamente nas ideias como auto-suficientes e que não consegue compreender as características históricas e sociais da realidade física, conceito que muito se assemelha ao uso que Napoleão fez do termo, ao postular que ideologia seria a ideia afastada da política pratica, e por isso deveria ser desprezada. Já na concepção epifenomênica, Marx concebe ideologia como um conjunto de ideias que expressam os interesses da classe dominante e que representa as relações de classe de forma ilusória. Há ainda uma concepção que J. B. Thompson nomeou de concepção latente, na qual:

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/.../Ideologia é um sistema de representações que servem para sustentar relações existentes de dominação de classe através da orientação das pessoas para o passado em vez de para o futuro, ou para imagens e ideais que escondem relações de classe e desviam da busca coletiva de mudança social. Eu descreveria isso como a “concepção latente” de ideologia. (THOMPSON, 1998, pág. 58).

Após os três usos de Karl Marx: polêmica, epifenomênica e latente, o conceito de ideologia emergiu com certa importância no meio das disciplinas sociais e chamou para si a atenção de vários outros filósofos e sociólogos abordaram a temática da ideologia em duas concepções, a crítica, onde se insere a concepção marxista e também a de Thompson, que baseado na concepção latente de Marx, nega que a ideologia teria que necessariamente ser algo ilusório, que oculte a realidade, mas mantém como característica o objetivo de manter as relações de dominação, postulando que: “ideologia são as maneiras como o sentido serve para estabelecer e sustentar relações de dominação” ( J. B. THOMPSON, 1998, pág.76). Em relação a Marx, Thompson também diverge quando diz que as relações de dominação estão aquém das relações de classe, incluindo gênero, raça e outras. Já a concepção neutra, concebe ideologia como sendo uma espécie de visão de mundo, a qual não serve necessariamente a manutenção de um discurso dominante, já que as minorias, por exemplo, teriam sua visão de mundo, sua ideologia própria, tal qual o discurso feminista frente ao discurso machista patriarcal dominante. Lênin, quando argumenta em favor de uma “ideologia socialista”, contribui bastante para a neutralização do termo. No presente artigo, a concepção de ideologia traçada se aproxima bastante da concepção neutra do termo ideologia quando postula que ideologia deve ser tratada como ingrediente essencial ao discurso, sem juízo de valor acerca do conteúdo ideológico, como faz a concepção crítica ao atribuir a ideologia um conjunto de ideias que seria torpe e serviria para a manutenção das relações de poder, aqui ideologia se é posta apenas como um aglomerado de ideias que podem ser relacionadas a determinados grupos e sociedades, ou seja, não apenas o discurso dominante seria a manifestação dos ideais da classe detentora do poder, como também todo e qualquer discurso está fadado a refletir as opiniões e posicionamentos de quem o prolata, assim sendo, todo ele é ideológico. Quando uma pessoa apresenta-se ao publico no inicio de um discurso, têm-se duas escolhas ao abordar a plateia, que seriam: senhores; ou senhores e senhoras. Em qualquer uma das escolhas se faz presente a ideologia de um grupo, seja ele dominante ou dominado, em que se demonstra ou a preocupação com o frequente apagamento do gênero feminino da língua portuguesa ou a ratificação deste apagamento. Sendo assim, a ideologia esta sempre presente, pois, por mais que o individuo se proponha a ser neutro, o ser humano que discursa esta imbuído de suas próprias crenças e concepções, transparecendo-as sempre na sua produção intelectual. A premissa de que todo discurso é ideológico é de suma importância para o desenvolvimento deste trabalho, considerando que a análise crítica empenhada na ADPF 186, que trata das cotas, pode sugerir que as cotas estão sendo aqui criticadas, quando na verdade, por trata todo discurso como impregnado por ideologia, nos propomos apenas a identificar tais estratégias linguísticas no trecho em questão e não fazer qualquer juízo de valor negativo acerca deste direito social conquistado pelos negros. Compreendido o sentido de ideologia, para a análise crítica do discurso jurídico serão considerados os seus modos de operação, propostos por J. B. Thompson( ....) que são estratégias típicas de construção simbólica, as quais serão compiladas e transcritas a seguir: 1. Legitimação: relações de dominação são estabelecidas e sustentadas como legitimas. • Racionalização: uma cadeia de raciocínios procura justificar um conjunto de relações ou instituições sociais. • Universalização: acordos institucionais que servem aos interesses de alguns indivíduos são apresentados como servindo ao interesse de todos.

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• Narrativização: histórias que contam o passado e tratam o presente como parte de uma tradição eterna e aceitável. 2. Dissimulação: relações de dominação são estabelecidas e sustentadas sendo ocultadas, negadas, obscurecidas ou representadas de maneira que desvia a atenção. • Deslocamento: um termo usado para se referir a um determinado objeto ou pessoa é usado para se referir a outro, deslocando conotações positivas ou negativas. • Eufemização: ações, instituições ou relações sociais são descritas com uma valoração positiva. • Tropo: uso das formas simbólicas da linguagem. • Sinédoque: junção semântica da parte ao todo. • Metonímia: um termo toma o lugar de um atributo para se referir a própria coisa. • Metáfora: aplicação de um termo a um objeto ao qual ele não pode ser aplicado. Dissimula relações de dominação através de sua representação ou de grupos a e indivíduos nela implicados. 3. Unificação: construção simbólica de uma unidade coletiva • Padronização: referencial padrão é proposto como fundamento partilhado. • Simbolização da unidade: construção de símbolos de unidade e identificação coletiva 4. Fragmentação: segmentação de indivíduos e grupos que possam desafiar os grupos dominantes. • Diferenciação: ênfase as distinções entre pessoas e grupos que os desunem e impede de constituir uma força expressiva de contestação do poder atuante. • Expurgo do outro: construção de um inimigo contra qual os indivíduos são chamados a resistir. 5. Reificação: retratação de uma situação transitória como permanente e atual. • Naturalização: criação social e histórica tratada como natural. • Eternalização: fenômenos sócio históricos apresentados como permanentes. • Nominalização e passivização: sentenças são transformadas em nomes/verbos são colocados na voz passiva. A proposta de Thompson de categorizar os modos de operação da ideologia está, nos seus conceitos, mergulhados na própria definição de ideologia do autor, que em sua concepção crítica, a considera apenas para a manutenção das relações de poder. Como a definição que este trabalho aborda é outra, considerando ideologia como intrínseca a qualquer discurso iremos utilizar tais modos de operação para decifrar a ideologia permeada na peça, mesmo que não seja um discurso utilizado para manter uma relação de poder pré-existente, já que a peça analisada concede um direito a uma minoria historicamente oprimida, portanto, não é um discurso que se proponha a manter uma relação de poder já consolidada, mesmo assim esta repleto de ideologia, como qualquer outro discurso. Ideologia essa que temos como escopo tentar decifrar.

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2. ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO JURÍDICO E ATUAÇÃO DA IDEOLOGIA NA ADPF 1861. Este trabalho propõe a análise do trecho “igualdade formal versus material” retirado da ADPF 186, recorrendo aos modos de operação da ideologia bem como a tridimensionalidade do discurso para evidenciar as estratégias discursivas que sustentam a decisão de Lewandowski. Para começar a análise do texto, faremos observações com ênfase na dimensão prática do discurso, segunda dimensão proposta por Fairclough, que trata da produção, distribuição, consumo; aspectos que podem ser examinados como exteriores ao corpo físico da decisão. Quanto à produção de uma decisão do STF acerca do controle de constitucionalidade, temos um procedimento formal descrito na constituição brasileira. O rito da produção de uma decisão inicia-se apenas quando o judiciário é provocado, e neste caso, tem que ser provocado acerca da suposta colisão com a constituição federal, já que o STF é o órgão guardião desta. Quando o DEM impetrou a ADPF 186, alegando inconstitucionalidade das cotas, justificando que estas iriam contra o principio da isonomia, presente no artigo 5° CF, o judiciário teve que se manifestar sobre, e daí advém a explicação de Lewandowski sobre a igualdade da qual trata o referido artigo. Assim, descrito um rito estritamente formal de produção, prolatado pela mais alta corte do país, temos um discurso tido como de autoridade, respeitável, visto como sólido e confiável. Quanto à distribuição e consumo, decisões não são textos acessíveis à maioria da população, sendo um conteúdo tido como erudito o qual, dada a formatação do texto, apelidada como “juridiquez”, revela uma identidade unitária entre os produtores e consumidores, sendo necessária o mínimo de conhecimento jurídico para a compreensão da sentença prolatada, a capacidade interpretativa restringe os consumidores e a maioria da população fica a mercê de meios que “mastiguem a informação” pra si, passando a impressão de que quem produz tal conteúdo é dotado de grande saber. 97. IGUALDADE FORMAL VERSUS MATERIAL 98. De acordo com o artigo 5º, caput, da Constituição, “todos são iguais 99. perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. Com essa expressão 100.

legislador constituinte originário acolheu a ideia – que vem da tradição

101.

liberal, especialmente da Declaração do Homem e do Cidadão francesa

102.

de 1789 - de que ao Estado não é dado fazer qualquer distinção entre

103.

aqueles que se encontram sob seu abrigo.

Fragmento 01

Neste fragmento é notável a presença da ‘intertextualidade’, descrita como estratégia que traz ao texto recorte de outros textos, geralmente discursos famosos, como forma de solidificar a argumentação que se pretende construir. Além dos recortes, têm-se também datas e fatos históricos, que corroboram para a construção da percepção de confiabilidade na ideia que se pretende defender.

104.

É escusado dizer que o constituinte de 1988 – dada toda a evolução

105.

política, doutrinária e jurisprudencial pela qual passou esse conceito –

106.

não se restringiu apenas a proclamar solenemente, em palavras

1  “Análise Crítica do Discurso Jurídico” é a disciplina oferecida por Virginia Colares no Curso de Mestrado do Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Católica de Pernambuco, desde sua criação, em 2005. Assim como é o título do relatório de pesquisa, apresentado em julho de 2009, como resultado do Edital MCT/CNPq 50/2006 - Ciências Humanas, Sociais e Sociais Aplicadas; Protocolo n° 2546463711149023.

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107.

grandiloquentes, a igualdade de todos diante da lei.

108.

À toda evidência, não se ateve ele, simplesmente, a proclamar o

109.

princípio da isonomia no plano formal, mas buscou emprestar a máxima

110.

concreção a esse importante postulado, de maneira a assegurar a

111.

igualdade material ou substancial a todos os brasileiros e estrangeiros

112.

que vivem no País, levando em consideração – é claro - a diferença que os distingue por

113.

razões naturais, culturais, sociais, econômicas ou até

114.

mesmo acidentais, além de atentar, de modo especial, para a

115.

desequiparação ocorrente no mundo dos fatos entre os distintos grupos

116.

sociais.

Fragmento 02

Na linha 111 do recorte acima é perceptível o uso da ‘universalização’, estratégia típica que apresenta o interesse de uma classe ou categoria como se fossem um interesse coletivo, comum a todos, quando na verdade a igualdade material á qual o texto remete só beneficia, neste caso, os detentores dos direitos a cotas, ou seja, os negros. A partir da linha 112 também temos uma ‘fragmentação’, modo de operação que separa grupos que poderiam apresentar um real desafio ao poder dominante, caso atuasse juntos, são fragmentados em detrimento de suas características únicas. Tem-se ainda nas linhas 114, 115 e 116 uma ‘eternalização’, ou seja, fenômenos sócio-históricos apresentados como permanentes.

117.

Para possibilitar que a igualdade material entre as pessoas seja

118.

levada a efeito, o Estado pode lançar mão seja de políticas de cunho

119.

universalista, que abrangem um número indeterminado de indivíduos,

120.

mediante ações de natureza estrutural, seja de ações afirmativas, que

121.

atingem grupos sociais determinados, de maneira pontual, atribuindo a

122.

estes certas vantagens, por um tempo limitado, de modo a permitir-lhes a

123.

superação de desigualdades decorrentes de situações históricas

124.

particulares.

Fragmento 03

Na linha 118 temos uma ‘eufemização’, estratégia que legitima instituições e suas ações. Neste caso, o quando se diz que o estado pode lançar mãos de um determinado tipo de política para se alcançar um bem maior-igualdade material-, tem-se uma valoração positiva desta instituição e de sua ação. Na 121 novamente temos uma ‘segmentação’, ao tratar de grupos sociais determinados, legitimando a atribuição de tratamento especifico a estes grupos em detrimento de características particulares. Já nas linhas 123 e 124, é flagrante a ‘narrativização’ na qual histórias do passado justificam o presente e novamente a ‘eternalização’.

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125.

Nesse sentido, assenta Daniela Ikawa:

126.

“O princípio formal de igualdade, aplicado com exclusividade,

127.

acarreta injustiças (...) ao desconsiderar diferenças em identidade.

128.

(...)

129.

Apenas o princípio da igualdade material, prescrito como

130.

critério distributivo, percebe tanto aquela igualdade inicial, quanto

131.

essa diferença em identidade e contexto. Para respeitar a igualdade

132.

inicial em dignidade e a diferença, não basta, portanto, um princípio

133.

de igualdade formal.

134.

(...)

135.

O princípio da universalidade formal deve ser oposto, primeiro,

136.

a uma preocupação com os resultados, algo que as políticas

137.

universalistas materiais abarcam. Segundo deve ser oposto a uma

138.

preocupação com os resultados obtidos hoje, enquanto não há recursos

139.

suficientes ou vontade política para a implementação de mudanças

140.

estruturais que requerem a consideração do contexto, e enquanto há

141.

indivíduos que não mais podem ser alcançados por políticas

142.

universalistas de base, mas que sofreram os efeitos, no que toca à

143.

educação, da insuficiência dessas políticas. São necessárias, por

144.

conseguinte, também políticas afirmativas.

145.

(...)

146.

As políticas universalistas materiais e as políticas afirmativas

147.

têm (...) o mesmo fundamento: o princípio constitucional da igualdade

148.

material. São, contudo, distintas no seguinte sentido. Embora ambas

149.

levem em consideração os resultados, as políticas universalistas

150.

materiais, diferentemente das ações afirmativas, não tomam em conta

151.

a posição relativa dos grupos sociais entre si”.

Fragmento 04

Todo este fragmento se trata de um recorte de outro texto, ou seja, novamente presente a ‘intertextualidade’ usada para sustentar a posição do autor. Nas linha 127 segmenta-se novamente a minoria negra para justificar o direito social a cotas e postular a injustiça presente num modo de acesso a educação superior que ignore as diferenças sociais entre os concorrentes. Já na linha 131, ao se falar em identidade e contexto, tem-se uma ‘unificação’ em que se constrói uma identidade simbólica coletiva, no caso- negros.

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152.

A adoção de tais políticas, que levam à superação de uma

153.

perspectiva meramente formal do princípio da isonomia, integra o

154.

próprio cerne do conceito de democracia, regime no qual, para usar as

155.

palavras de Boaventura de Sousa Santos,

156.

“(...) temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos

157.

inferioriza; e temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade

158.

nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça

159.

as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou

160.

reproduza as desigualdades ”.

Fragmento 05 Na linha 154, ao relacionar tais políticas ao próprio cerne da democracia temos um discurso que postula a evolução das relações de poder como luta hegemônica, estratégia postulada na terceira dimensão- análise do discurso como prática social- e que diz repeito a luta de classes historicamente oprimidas pela atuação no poder. Ou seja, quando se coloca um direito de uma minoria ao alcance da possibilidade de um curso que pode ser sua chance de alternar de classe social como alvo do regime político e econômico vigente no país, que em tese sempre favorece a classe dominante, temos uma flagrante luta contra as relações de dominação vigentes no regime atual. Já a partir da linha 155, temos novamente a ‘intertextualidade’, utilizando-se de um famoso discurso no ambiente jurídico.

161.

Aliás, Dalmo de Abreu Dallari, nessa mesma linha, adverte que a

162.

ideia de democracia, nos dias atuais, exige a superação de uma concepção

163.

mecânica, estratificada, da igualdade, a qual, no passado, era definida apenas

164.

como um direito, sem que se cogitasse, contudo, de convertê-lo em uma

165.

possibilidade, esclarecendo o quanto segue:

166.

“O que não se admite é a desigualdade no ponto de partida, que

167.

assegura tudo a alguns, desde a melhor condição econômica até o

168.

melhor preparo intelectual, negando tudo a outros, mantendo os

169.

primeiros em situação de privilégio, mesmo que sejam socialmente

170.

inúteis ou negativos” .

Fragmento 06

Todo este trecho se compõe através da ‘intertextualidade’. Nas linhas 164 e 165, na contraposição dos conceitos de “igualdade” e “possibilidade” temos uma ‘metáfora”, uma vez que aplica-se um termo a uma significação ao qual ele não poderia ser aplicado, considerando que igualdade e possibilidade são significantes totalmente distintos.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS Esse trabalho analisa o voto do ministro Ricardo Lewandowski na ADPF/186-DF, no que concerne a “igualdade formal versus material”. A tese do DEM de que as cotas seriam inconstitucionais por ferir o princípio da isonomia, presente no caput do artigo 5º da carta magna, é contestada pelo relator no que se refere às cotas como direitos sociais dos negros. A metodologia adotada é a análise crítica do discurso jurídico(ACDJ), em especial os modos de operação da ideologia, propostos inicialmente por J. B. Thompson. Como resultados identifica-se o uso reinterado da estratégia de intertextualidade. Ao longo da análise proposta, percebe-se o uso de diversas estratégias e modos gerais de operação da ideologia, mas, diferentemente das analises clássicas em que tais estratégias são utilizadas para fundamentar discursos atuantes em prol da classe detentora do poder, desta vez são empregadas para conceder um direito social a uma minoria, ou seja, em uma flagrante luta hegemônica em prol de uma configuração social mais justa. REFERÊNCIAS FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social. Brasilia: UnB, 2001. PIMENTEL, Alexandre Freire; BARROSO, Fábio Túlio; DE GOUVEIA, Lúcio Grassi. Processo, hermenêutica e efetividade dos processos. Recife: APPODI, 2015. THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. 9. ed. Petrópolis: Vozes, 2011.

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A PROTEÇÃO JUDICIAL DAS MINORIAS: A UNIÃO HOMOAFETIVA NO STF E NA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

Ana Catarina Silva Lemos Paz Bacharelanda em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Bolsista da CAPES no programa Tutela Multinível de Direitos Humanos. Monitora da cadeira de Direito Constitucional I na Universidade Católica de Pernambuco. [email protected] Luiz Manoel da Silva Júnior Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Pós graduando no PPGD Unicap. Advogado. [email protected] Arthur Albuquerque de Andrade Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Mestrando em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Bolsista da CAPES no programa Tutela Multinível de Direitos Humanos. [email protected]

SUMÁRIO: Introdução; 1. União homoafetiva no Sistema Interamericano de Direitos Humanos; 1.1. Direito Internacional dos Direitos Humanos: breve histórico; 1.2. O Sistema Interamericano de Direitos Humanos; 1.3. O Sistema interamericano e os direitos LGBTI; 2. O tratamento jurídico da união homoafetiva; 3. A controvérsia acerca do regime jurídico das uniões homoafetivas no brasil; 3.1. O reconhecimento jurídico da união homoafetiva pelo STF; 3.2. Estatuto da Família: Supremacia judicial e proibição ao retrocesso; Conclusão; referências.

INTRODUÇÃO O presente trabalho tem como objetivo analisar a discussão acerca da definição de entidade familiar, mais precisamente devido à sua repercussão no reconhecimento da união estável e do casamento homoafetivos. É sabido que, sob a perspectiva do constitucionalismo democrático, um dos mais relevantes papéis atribuídos aos Tribunais consiste na proteção dos direitos das minorias. Essa proteção vem sendo intensificada no âmbito nacional, sobretudo perante o Supremo Tribunal Federal (STF), e também em âmbito supranacional, considerando a atuação da Corte Interamericana de Direitos Humanos na defesa dos direitos humanos diante dos países signatários da Convenção Interamericana de Direitos Humanos. Dessa forma, em sede de controle de constitucionalidade direto, através da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4277 e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132, o STF reconheceu a extensão do conceito jurídico de união estável para os casais do mesmo sexo, o que, consequentemente, viabilizou-se o casamento igualitário. Entretanto, uma parcela política conservadora, baseada em argumentos eminentemente religiosos, pretende a aprovação no Congresso Nacional do Projeto de Lei nº 6.583/2013 (Estatuto da Família) que apenas reconheça como entidade familiar a união entre homem e mulher, excluindo, portanto, o reconhecimento do casamento e da união estável homoafetiva.

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Nesse diapasão, são analisadas as possíveis repercussões da aprovação do referido projeto no que tange ao fato de contrariar decisão já prolatada pelo STF, trazendo à tona questões como a supremacia judicial na interpretação da constituição e a aplicabilidade do princípio da proibição do retrocesso para a atividade parlamentar, quando direitos de minorias estão sob ameaça. 1. UNIÃO HOMOAFETIVA NO SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS. 1.1 DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS: BREVE HISTÓRICO.

A tarefa de definir Direitos Humanos não é fácil. Alguns doutrinadores entendem que direitos humanos e direitos fundamentais seriam sinônimos, uma vez que ambos são inerentes aos seres humanos, intimamente ligados à ideia de dignidade da pessoa humana, e ainda, ambos possuem o condão de limitar a ação do Estado. São exemplos dos que seguem essa concepção: Paulo Gustavo Gonet Branco (2002), Alexandre de Morais (2013), e João Baptista Herkenhoff (1994). Há, entretanto, aqueles que entendam que embora sejam comumente utilizadas como sinônimas, as duas expressões guardam entre si importantes diferenças a serem apontadas. José Joaquim Gomes Canotilho (1998, p.59) aponta distinções no que tange às origens e aos significados, pois que Direitos Humanos (ou Direitos do Homem, como coloca o autor) são aqueles inerentes a todos os povos e em qualquer espaço de tempo. Já os direitos fundamentais são aqueles direitos do homem que possuem resguardo jurídico-institucional, e são percebidos num determinado espaço de tempo. Assim, os direitos humanos seriam aqueles os quais originam-se diretamente da natureza humana, enquanto que os direitos fundamentais dependem de uma ordem jurídica vigente. No mesmo sentido, Ingo Wolfgang Sarlet (2005, p.35 e 36) leciona: “[...] o termo direitos fundamentais se aplica para aqueles direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de determinado Estado, ao passo que a expressão direitos humanos guardaria relação com os documentos de direito internacional, por referir-se àquelas posições jurídicas que se reconhecem ao ser humano como tal, independentemente de sua vinculação com determinada ordem constitucional, e que, portanto aspiram à validade universal, para todos os povos e tempos, de tal sorte que revelam um inequívoco caráter supranacional.”

Como se pode perceber, portanto, embora guardem alguma semelhança, Direitos humanos e Direitos fundamentais não se confundem, pois este é referente ao direito positivado, ao direito garantido constitucionalmente pelos estados em seus diplomas legais, enquanto que aquele refere-se ao direito inerente ao homem por ser homem, e guarda cunho universal, intertemporal e inviolável (CANOTILHO, 1998, p.59), não dependendo de positivação em nenhuma ordem jurídica. Nas palavras de Perez Luño (1999, p. 48) Los derechos humanos aparecen como un conjunto de facultades e instituciones que, en cada momento histórico, concretan las exigencias de la dignidad, la libertad y la igualdad humana, las cuales deben ser reconocidas positivamente por los ordenamientos jurídicos a nivel nacional e internacional.

Desta forma, a expressão direitos humanos é comumente utilizada para referir-se ao homem sujeito de direitos na ordem internacional, conotação que ganhou força no pós-guerra. Assim, o Direito Internacional de Direitos Humanos, um movimento bastante recente na história, nasceu mediante resposta da população mundial às atrocidades cometidas durante o nazismo. As preocupa-

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ções primordiais do movimento eram: (i) universalizar e internacionalizar o tema, a fim de que fosse possível uma normatização internacional dos direitos; (ii) marcar a concepção contemporânea de direitos humanos como aquela que advém da dignidade humana como fundamento de proteção. Inicia-se assim a “era dos direitos”. (BOBBIO, 1992; p. 49) Dessa forma, a proteção aos direitos humanos deixou de ser apenas de carácter regional e passou a ser objeto de proteção da comunidade internacional, sendo a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU (DUDH), de 1948, seu maior expoente (PIOVESAN, 2010, p. 121-122). Os sistemas internacional e nacional se complementam, pois, os dois consagram o valor da primazia da pessoa humana, proporcionando por tanto, um maior arcabouço de proteção e uma maior efetividade na tutela e promoção dos direitos fundamentais. Assim, a sistemática internacional funciona como uma garantia adicional, pois institui mecanismos de responsabilização e controle dos Estados, evitando a omissão na implementação de tais direitos. Em sequência à Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, diversos outros diplomas normativos internacionais foram editados, como os tratados e as convenções de direitos humanos. Todos esses diplomas contavam, também, com a natureza de fiscalização e promoção dada pela declaração. São bons exemplos: o Pacto Internacional dos direitos civis e políticos; o Pacto Internacional dos direitos econômicos, sociais e culturais; a Convenção Internacional sobre a eliminação de todas as formas de Discriminação Racial; a Convenção Internacional sobre a eliminação de todas as formas de violência contra a mulher (PIOVESAN, 2010, p. 161-237). Além dos tratados e convenções, também surgiram outros sistemas de proteção dos direitos humanos, onde podemos citar o sistema africano, o europeu e o interamericano, como complementares do sistema global.1 1.2 O SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS

O Sistema Interamericano de Direitos Humanos é um dos sistemas regionais que complementam o sistema global de proteção a esses direitos. Ele é composto por dois regimes, aquele que é regido pela Convenção Americana de direitos humanos, e aquele que é regido pela Carta da Organização dos Estados Americanos. O presente trabalho, no entanto, limita-se a explicar a atuação do sistema no que tange ao regime baseado na convenção. A Convenção Americana de Direitos Humanos - também denominada Pacto de São José da Costa Rica - é um dos principais instrumentos normativos do SIDH e foi assinada em São José da Costa Rica em 1969, entrando em vigor apenas em 1978.2 O Brasil é seu signatário desde 19923. É o mais extenso instrumento internacional de proteção aos direitos humanos, contando com 82 artigos (VASAK, 1982; p. 558 e 559). Dentre eles, podemos achar bastante semelhança com aqueles elencados pelo Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, como por exemplo: direito à personalidade jurídica, à vida, ao tratamento humano, à liberdade pessoal, à privacidade. Os direitos sociais, culturais e econômicos não estão enunciados de forma específica na convenção, esta apenas limita-se a determinar que os Estados busquem meios de alcançar, progressivamente, a plena realização desses direitos. Esses meios podem ser medidas legislativas ou outras apropriadas para a persecução 1  A temática da orientação sexual e da identidade de gênero era ainda incipiente, possuindo abordagem bastante pontual. Uma maior discussão sobre o tema, entretanto, foi possível após a apresentação da Resolução “Direitos Humanos, Orientação Sexual e Identidade de Gênero” na ONU, em 2003. Mesmo retirada posteriormente por pressão de países islâmicos, dos EUA e do Vaticano (PAZELLO, 2004, p. 29-30), foi novamente reintegrada em 2011, demonstrando seu importante valor no que consta sobre a discussão do tema em âmbito mundial. 2  Disponível em: . Acesso em: 25 de janeiro de 2016. Importante assinalar que apenas os Estados-membros da Organização dos Estados Americanos possuem o direito de aderir à Convenção. Até janeiro de 2014, a OEA contava com 24 Estados- partes. (PIOVESAN, 2015; p. 340) 3  Decreto n. 678, de 6 de novembro de 1992. Disponível com a tradução em português em: . Acesso em: 25 de janeiro de 2016.

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do objetivo final. Posteriormente a Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos adotou o Protocolo de San Salvador, que concerne, justamente, aos direitos sociais, econômicos e culturais (PIOVESAN, 2015; p. 341). Dessa forma, é possível perceber que, embora a convenção elenque direitos e garantias que não devem ser violados pelos Estados-membros, ela também cuida de mecanismos que visam a garantir a efetiva realização desses direitos. Sendo assim, ao mesmo tempo que os Estados-membros respeitam os direitos e garantias prescritos na convenção, eles também devem assegurá-los e, assim sendo, a convenção estabelece dois órgãos responsáveis pelo monitoramento e implementação dos direitos nela elencados: a comissão interamericana de direitos humanos e a corte interamericana de direitos humanos. A competência da Comissão Interamericana se estende por todos os Estados-partes da Convenção Americana, e também pelos Estados-membros da Organização dos Estados Americanos. Ora, a comissão exerce diversas atribuições - das quais podemos citar o papel de conciliadora, crítica, assessora, legitimadora, promotora, etc4 - as mais relevante para esse estudo são as modalidades de controle: exame de petições encaminhadas - por indivíduos ou grupo de indivíduos, ou ainda, organizações, sejam elas governamentais ou não5 - referentes à violação de algum direito protegido em qualquer dos instrumentos normativos de competência da comissão; elaboração de informes, sobre a situação dos Direitos Humanos em qualquer dos Estados que sejam parte do Sistema Interamericano; e investigações “in loco” nos países (PINTO, 1993; p. 83) A comissão é composta por sete membros os quais podem ser de qualquer Estado-membro da OEA. São eleitos por assembleia geral, podendo ser reeleitos apenas uma vez e devem ser dotados de reconhecido saber jurídico no que tange aos Direitos Humanos e também alta autoridade moral. A Corte interamericana de Direitos Humanos é o outro aparato trazido pelo SIDH com função de monitorar e viabilizar o cumprimento dos direitos expostos na convenção. Órgão jurisdicional do sistema regional, é composto por juízes dos Estados-membros da OEA em número de sete. Possui competência tanto consultiva como contenciosa. Ou seja, quanto à sua competência contenciosa, a Corte IDH pode responsabilizar o Estado-parte pela violação dos direitos os quais ratifica a convenção, isso porque os signatários comprometeram-se a não só respeitar, como também garantir esses direitos, usando de todos os seus recursos para punir os infratores de acordo com suas normas internas. Quanto à sua competência consultiva, a corte emitirá pareceres, à pedido dos Estados-parte, manifestando-se sobre a compatibilidade entre qualquer das normas elencadas na convenção a as leis dos respectivos Estados (GUERRA, 2010; p. 05-07). Dessa forma, no âmbito procedimental, a comissão recebe uma petição fazendo o juízo de admissibilidade6 e, em seguida, solicita informações do Governo denunciado. Uma vez recebidas as informações ou transcorrido o prazo para tal, é verificada existência ou subsistência dos motivos arrolados na petição. Em seguida, a comissão decide pelo arquivamento ou pelo prosseguimento do exame do assunto, o qual, após 4  Para mais informações vide Héctor Fix-Zamudio, Proteccíon jurídica de los derechos humanos, p. 152. 5  A convenção americana, diferente das outras convenções e tratados de direitos humanos, não estabelece à vítima, exclusivamente, o direito de peticionar junto à comissão. Qualquer indivíduo ou grupo de indivíduos ou qualquer organização poderá fazê-lo. (BUERGUENTHAL, 1981; p. 148) 6  O juízo de Admissibilidade é feito segundo o artigo 46 da CIDH, assim prescrita: 1. Para que uma petição ou comunicação apresentada de acordo com os artigos 44 ou 45 seja admitida pela Comissão, será necessário: a. que hajam sido interpostos e esgotados os recursos da jurisdição interna, de acordo com os princípios de direito internacional geralmente reconhecidos; b. que seja apresentada dentro do prazo de seis meses, a partir da data em que o presumido prejudicado em seus direitos tenha sido notificado da decisão definitiva; c. que a matéria da petição ou comunicação não esteja pendente de outro processo de solução internacional; e d. que, no caso do artigo 44, a petição contenha o nome, a nacionalidade, a profissão, o domicílio e a assinatura da pessoa ou pessoas ou do representante legal da entidade que submeter a petição. 2. As disposições das alíneas a e b do inciso 1 deste artigo não se aplicarão quando: a. não existir, na legislação interna do Estado de que se tratar, o devido processo legal para a proteção do direito ou direitos que se alegue tenham sido violados; b. não se houver permitido ao presumido prejudicado em seus direitos o acesso aos recursos da jurisdição interna, ou houver sido ele impedido de esgotá-los; e c. houver demora injustificada na decisão sobre os mencionados recursos.

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realizado, será depreendido esforço no sentido de buscar uma solução amigável entre as partes, ou seja, entre o peticionante e o Estado. Caso essa negociação não seja bem-sucedida, a comissão elaborará um relatório, apresentando os fatos e as conclusões pertinentes ao caso e o enviará ao Estado-parte para que no período de três meses possam ser tomadas as devidas providências. Dentro desse príodo de tempo, o caso pode ser ou solucionado plas próprias partes, ou então poderá ser remetido à Corte IDH. 1.3 O SISTEMA INTERAMERICANO E OS DIREITOS LGBTI.

A OEA, vem, repetidamente, através dos anos, editando resoluções em sua assembleia geral, que visam assegurar os direitos humanos da população LGBTI, assim como reprimir qualquer tipo de discriminação e violência que possam incorrer devido à orientação sexual ou identidade de gênero da vítima. A primeira, a Resolução nº 2435/2008 – Direitos Humanos, Orientação Sexual e Identidade de Gênero –, foi aprovada pela Assembleia Geral da OEA em 03 de junho de 2008. O documento foi fruto de iniciativa do Estado brasileiro e apoiou-se nas disposições normativas da Declaração Universal dos Direitos Humanos, na Declaração Americana dos Direitos do Homem e na Carta da OEA. Em sequência, foi aprovada a Resolução nº2504 em 2009, com as mesmas fundamentações normativas da anterior, mas levando também em consideração a nota da Declaração da ONU sobre Orientação Sexual e Identidade de Gênero7, e inova ao sugerir que os Estados membros considerem a adoção de medidas que enfrentem o tratamento discriminatório motivado por orientação sexual e identidade de gênero, e que a Comissão IDH faça um estudo temático sobre discriminação e violência contra a população LGBTI. (ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS, 2010, p. 02). Na mesma linha seguiram a Resolução nº 2653/2011, aprovada em 07 de junho de 2011, estabelecendo o plano de trabalho “Direitos das Pessoas LGBTI”. (ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS, 2011b, p. 0102); a Resolução nº 2721/2012, de 04 de junho de 2012, a qual propõe a criação junto à Comissão IDH da Unidade de Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros e Intersexuais (LGBTI) (ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS, 2012b, p. 02); e, por fim, a Resolução nº 2807/2013, de 06 de junho de 2013, a qual incentiva os Estados-membros a fazer o levantamento para políticas públicas de proteção pessoal LGBTI. (ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS, 2013b, p. 02-04). O primeiro caso levado à comissão sobre orientação sexual e identidade de gênero foi o caso Marta Alvarez vs. Colombia. Esse caso trata sobre a negação ao tratamento igualitário por parte do denunciado contra a denunciante, uma vez que esta teve por proibidas suas visitas conjugais no sistema prisional por causa da sua orientação sexual. Houve, portanto, a inobservância dos arts.5º (integridade física, psíquica e moral), 8º (respeito à dignidade enquanto pessoa privada de liberdade), 11 (direito ao respeito de sua honra e ao reconhecimento de sua dignidade) e 24 (igualdade perante a lei e igual proteção desta), em razão da recusa das autoridades prisionais em autorizar o exercício do seu direito à visita íntima por causa de sua orientação sexual. O caso ainda aguarda decisão definitiva (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇOES UNIDAS, 1999). Outro caso emblemático sobre direito LGBT levado à comissão, foi o caso Atala Riffo y niñas vs. Chile. De acordo com a comissão, houve o descumprimento dos arts.11 (Proteção da honra e da dignidade), 17.1 e 17.4 (Proteção da família), 19 (Direitos da criança), 24 (Igualdade perante a lei), 8 (Garantias judiciais) e 25.1 e 25.2 (Proteção judicial) da Convenção, em relação ao artigo 1.1 do mesmo instrumento. Isso porque se alega a responsabilidade internacional do Estado pelo tratamento discriminatório, interferindo, arbitrariamente, na vida privada e familiar das denunciantes, observadas no processo judicial que resultou na retirada da custódia das filhas da senhora Atala. O Estado foi condenado a adotar de medidas de reparação. (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2012a). Por fim, é de suma importância citar o caso José Alberto Pérez Meza vs. Paraguay (ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS, 2001), o qual, embora rejeitado no juízo de admissibilidade por não preencher o requisito do esgotamento dos recursos internos, além de não verificar tratamento discriminatório no julgamento do reconhecimento da sociedade de fato, vez que trata-se do único caso que chegou até a corte tratando especificamente do reconhecimento de uniões homoafetivas, o então objeto desse estudo. No caso 7  Declaração nº A/63/635 – Direitos humanos, Orientação Sexual e Identidade de Gênero”, de 22 de dezembro de 2008. (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2008)

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em questão o peticionante tentara ter reconhecida sua sociedade com o seu falecido companheiro homoafetivo. Apesar dos esforços empenhados, não restou comprovada a união de fato, quando, então, o peticionante resolveu pleitear nas instancias internas o reconhecimento de união homoafetiva. Cuida que tanto o Código Civil paraguaio quanto a Constituição, expressamente proíbem a união e casamento entre pessoas do mesmo sexo, prevendo apenas a existência desses institutos quando se tratando de homem e mulher. Ao apresentar à comissão o caso, José Alberto Pérez alegou a inobservância dos artigos 24 (igualdade perante a lei e igual proteção desta) e 25 (direito ao acesso à justiça eficaz e em prazo razoável) do Pacto de São José da Costa Rica. Entretanto, conforme falado anteriormente, a CIDH julgou pela inadmissibilidade do caso por questões técnicas, mas não de mérito. Como será demonstrado adiante, se a petição tivesse sido admitida, era possível fazer um paralelo entre as decisões em sede de controle de constitucionalidade feitas pelo Supremo Tribunal Federal brasileiro e uma possível sentença dada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, uma vez que, assim como o ordenamento jurídico brasileiro, a CADH não prevê proibição expressa à união homoafetiva, no que, pelo outro lado, expressamente proíbe qualquer forma de discriminação perante a lei. Poderia ser um caso bastante importante no que tange tanto aos Direitos LGBTI, quanto ao estudo do diálogo entre corte, no que tange à tutela Multinível dos Direitos Humanos. 2. O TRATAMENTO JURÍDICO DA UNIÃO HOMOAFETIVA. A Constituição Federal e o Código Civil brasileiros tratam de entidade familiar como aquela formada por um homem e uma mulher, excluindo, a princípio, qualquer outro tipo de relação afetiva que não se enquadre neste contexto. Assim prescreve a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988: Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. § 1º O casamento é civil e gratuita a celebração. § 2º O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei. § 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento. (grifo nosso)

Da mesma forma, prescreve o Código Civil de 2002: Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família. § 1º A união estável não se constituirá se ocorrerem os impedimentos do art. 1.521; não se aplicando a incidência do inciso VI no caso de a pessoa casada se achar separada de fato ou judicialmente. § 2º As causas suspensivas do art. 1.523 não impedirão a caracterização da união estável.

A Convenção Interamericana de Direitos Humanos também faz menção à família e coloca-a como um dos principais pilares da sociedade. Assim prescreve: Artigo 17. Proteção da família. 1. A família é o elemento natural e fundamental da sociedade e deve ser protegida pela sociedade e pelo Estado. 2. É reconhecido o direito do homem e da mulher de contraírem casamento e de fundarem uma família, se tiverem a idade e as condições para isso exigidas pelas leis internas, na medida em que não afetem estas o princípio da não-discriminação estabelecido nesta Convenção.

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Esses artigos não devem, entretanto, ser interpretados de forma isolada. É preciso contextualizá-los dentro dos diplomas normativos nos quais estão inseridos. Nesse diapasão, deve-se observar a importância de dois princípios fundamentais no estudo dos direitos humanos: o princípio da igualdade e o princípio da não-discriminação. Ambos estão codificados tanto na Constituição brasileira (arts. 3º, IV e 5º)8, como na Convenção Americana (arts. 1.1 e 24)9. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos, na Opinião Consultiva nº. 18, expressou que o princípio da igualdade está intimamente ligado ao princípio da dignidade da pessoa humana, pois os dois advém do próprio gênero humano. Sendo assim, seria incompatível a supremacia ou inferioridade de um determinado grupo perante outro, se de qualquer forma esse tratamento enseje hostilidade ou discriminação no gozo dos direitos de ambos. (Corte IDH. Condición Jurídica y Derechos de los Migrantes Indocumentados. Opinião Consultiva OC-18/03 de 17 de setembro de 2003. Série A No. 18, § 87). Outros diplomas normativos também reconhecem a importância do princípio da igualdade e da não discriminação como basilares ao respeito e proteção dos direitos humanos. Para citar alguns exemplos: Carta da Organização dos Estados Americanos, 1997 (art. 3.1); Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), 1969 (arts. 1 e 24); Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, 1948 (art. 2); Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Protocolo de San Salvador), 1988 (art. 3); Carta das Nações Unidas, 1945 (art. 1.3); Declaração Universal de Direitos Humanos, 1948 (arts. 2 e 7); Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, 1966 (arts. 2.2 e 3); Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, 1966 (arts. 2 e 26); Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial, 1968 (art. 2); Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, 1979 (arts. 2, 3, 5 a 16); Declaração sobre a Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e Discriminação Fundadas na Religião ou nas Convicções, 1981 (arts. 2 e 4); Convenção No. 111 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) relativa à Discriminação em Matéria de Emprego e Ocupação, 1958 (arts. 1 a 3); Proclamação de Teerã, 1968 (parágrafos 1, 2, 5, 8 e 11); Declaração e Programa de Ação de Viena, 1993 (I.15; I.19; I.27; I.30; II.B.1, arts. 19 a 24; II.B.2, arts. 25 a 27); Declaração sobre os Direitos das Pessoas Pertencentes a Minorias Nacionais ou Étnicas, Religiosas e Linguísticas, 1992 (arts. 2, 3, 4.1 e 5); Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, 2000 (arts. 20 e 21); Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, 1950 (arts. 1 e 14); Carta Social Europeia, 1961 (art. 19.4, 19.5 e 19.7); Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, 1981 (Carta de Banjul) (arts. 2 e 3); Carta Árabe sobre Direitos Humanos, 1994 (art. 2); e Declaração do Cairo sobre Direitos Humanos do Islã, 1990 (art. 1). (Nota de rodapé nº 33 da Opinião Consultiva OC-18/03) Dessa sorte, mesmo não havendo proteção expressa à união homoafetiva em nenhum dos dois sistemas jurídicos - nem na convenção americana e nem no ordenamento jurídico brasileiro - eles acabam por proteger, de outra forma esse direito da população LGBTI. Garantir e promover a igualdade significa tratar igual os grupos iguais e desigual os grupos desiguais. Convém lembrar, contudo, que a diferença de tratamento deve ser pautada em motivos objetivos e razoáveis. Advém Robert Alexy (1997) que o tratamento igual deve ser depreendido a todos sempre que o tratamento desigual não for pautado em nenhuma razão suficiente. Nesse contexto, não há fundamentação nem fática nem jurídica que corrobore para a diferença de tratamento entre casais hétero e homoafeitvos no que tange à união estável. Muito pelo contrário. É certo dizer que o entendimento acerca da temática é que mesmo não havendo menção expressa a entidade familiar formada por casais homoafetivos, o que se encontra disposto não é taxativo, mas sim exemplificativo, englobando, portanto, outros tipos de família, não só aquela formada por um homem e uma mulher.

8 

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. 9  Art. 1.1 - Os Estados-Partes nesta Convenção comprometem-se a respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição, sem discriminação alguma, por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição social [...] Art. 24 - Todas as pessoas são iguais perante a lei. Por conseguinte, têm direito, sem discriminação alguma, à igual proteção da lei.

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Essa mudança se dá no momento em que o direito acompanha a nova realidade da sociedade mundial. Novos padrões e novas práticas éticas e morais vêm surgindo, e com elas, uma nova forma de ver a norma jurídica, uma forma que atribui aos direitos um carácter mais “prático e efetivo, não teor ético e ilusório”. (Corte IDH. Condición Jurídica y Derechos de los Migrantes Indocumentados. Opinião Consultiva OC-18/03 de 17 de setembro de 2003. Série A No. 18, §120) 3. A CONTROVÉRSIA ACERCA DO REGIME JURÍDICO DAS UNIÕES HOMOAFETIVAS NO BRASIL.

Há muito que as uniões homoafetivas são cada vez mais comuns no cenário não só brasileiro, como mundial. A falta de regulamentação jurídica dessa situação corresponde à violação de direitos fundamentais importantes, vez que esse direito é ao mesmo tempo individual, social e difuso. O ordenamento jurídico brasileiro não possui proteção legal expressa à união homoafetiva. Outros países já reconhecem a união civil entre casais homossexuais, como é o caso da Dinamarca (1989), Noruega (1993), Suécia (1994), Holanda (1995) e Reino Unido (2001). Diversos projetos de Lei versando sobre a regulamentação da situação da união homoafetiva, desde o primeiro em 1995, não chegam ao plenário da câmara. Esse descaso acerca da matéria demonstra a inércia de parte do legislativo em se envolver, tanto por questões políticas, como também religiosas. 3.1 O RECONHECIMENTO JURÍDICO DA UNIÃO HOMOAFETIVA PELO STF.

A primeira decisão judicial brasileira reconhecendo a união entre casais do mesmo sexo ocorreu na década de 90, no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.10 O Supremo Tribunal Federal, em cinco de maio de 2011, analisa a temática das uniões homoafetivas, através da conjugação das questões vertidas na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 427711, de propositura da Procuradoria Geral da República, e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 132, de legitimação ativa do governo do Estado do Rio de janeiro12. As duas ações foram relatadas pelo então Ministro Ayres Britto, e objetivavam, mediante interpretação conforme a constituição, a equiparação da união entre pessoas do mesmo sexo com a união estável, a fim de adquirirem status de entidade familiar, assegurada, no artigo. 226, §3º. A falta de reduto positivo no que concerne à união entre pessoas do mesmo sexo, não significa que não haja tal proteção por parte do ordenamento jurídico brasileiro. Nas palavras do Ministro Gilmar Mendes, o fato de que tanto a Constituição quanto o Código Civil apenas fazem menção à entidade familiar formada por casais heterossexuais, não significa a negativa da proteção à união homoafetiva. Ainda segundo os Ministros Marco Aurélio, Joaquim Barbosa e Cármen Lúcia, o supracitado art. 226, §3º da Constituição deve ser interpretado sistematicamente com os artigos 3º, IV e 5º. Portanto, na inexistência de proibição expressa e consagrando a constituição so princípios da igualdade e da não discriminação, deveriam ser reconhecidas as uniões homoafetivas como equiparadas às uniões civis. Assevera o Ministro Luiz Fux que o conceito ontológico de família engloba as uniões marcadas por afetividade, estabilidade, continuidade, publicidade e identificação recíprocas de seus integrantes como formadores de uma família. Assim, seguindo o exposto pelo Ministro Relator, o pleno do STF, por unanimidade, decidiu por dar provimento às pretensões expostas nas duas ações supracitadas.

10  TJRS, AI 599075496, 8ª. Câm. Civ., j. 17.06.1999, rel.Des. Breno Moreira Mussi. 11  Era inicialmente ADPF 178, na qual se intentava o reconhecimento de uniões homoafetivas como entidade familiar, estendendo-se a elas, portanto, o mesmo tratamento jurídico da união civil. 12  Nesta ação intentava-se aplicar o regime de união estável aos casais homoafetivos funcionários públicos civis do estado com base no argumento de que a negativa de tal feito contrariava preceitos constitucionais fundamentais.

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As mesmas teses poderiam ter sido alegadas no caso do José Alberto Pérez Meza vs. Paraguay, baseadas nos artigos 11 (proteção da honra e da dignidade) e 24 (igualdade perante a lei e igual proteção por parte desta) da CADH, uma vez que esta também não proíbe expressamente a união civil entre pessoas do mesmo sexo. É certo dizer que representaria um avanço hermenêutico de grande importância histórica, levando em consideração o contexto sociopolítico atual. 3.2 ESTATUTO DA FAMÍLIA: SUPREMACIA JUDICIAL E PROIBIÇÃO AO RETROCESSO.

O judicial review teve início no emblemático caso Marbury vs. Madison, e desde então, tem sido adotado por diversos ordenamentos jurídicos13, inclusive pela nossa atual Contituição. Desde então, o dualismo existente entre constitucionalismo e democracia tem tomado forma e representa um dos assuntos mais discutidos até hoje na área acadêmica. Sem pretensões de encerrar o assunto, teceremos alguns comentários sobre essa controvérsia. A jurisdição constitucional nasceu nos Estados Unidos, e portanto se fundamenta em moldes de uma sistemática definida por James Madison. Esse sistema assenta a constante e permanente necessidade de reconcialiação entre dois princípios opostos: o de autogoverno - ou governo da maioria -, e o de abstaenção da maioria quando as ações por ela adotadas possam ser ofensivas a direitos das minorias. (BORK, 1991; P.139). É baseado nesse contexto que Bickel (1986), o principal teórico a enfrentar o dilema Madisoniano, descreve o que ele chama de dificuldade contramajoritária. em sua obra ele tenta explicar como o controle de constitucionalidade, uma insittuição não democrática, pode ser justificado num governo baseado em legitimidade democrática dos representantes. Em verdade, a crítica de Bickel é demasiadamente paradoxal, e foi bastante criticada, por basear-se em deixar a cargo dos juízes da Suprema Corte decidirem pautados em ideais de sabedoria e imperativos morais. Outro importante doutrinador que tentou justificar a legitimidade da jurisdição constitucional foi Ronald Dworkin. Para ele, o direito é naturalmente interpretativo e apenas pode ser conhecido através do processo de interpretação das normas. O direito, como um todo, só pode ser entendido, portanto, dentro de casos concretos, onde o juíz irá interpretar a lei segundo a situação que ali se encontra. (DWORKIN, 2009; p.14-15). Já a democracia é um ideal a ser seguido, não bastando apenas democracia de carácter procedimental - leia-se eleições majoritárias - para que num Estado possa haver o autogoverno. Antes, é preciso que o povo sinta-se parte de determinada comunidade para se autogovernar e isso só ocorre quando o tratamento entre os membros de uma mesma comunidade é igualitário. (DWORKIN, 2002, p. 305-369). Nesse contexto que encontramos o papel e a legitimidade da juridicção constitucional. à ela cabe o papel de evitar que maiorias eventuais sobreponham seus desejos e vontade sobre todos, prejudicando o direito das minorias. É certo que, apesar das controvérsias existentes acerca do controle de constitucionalidade e sua legitimidade, a Constituição Federal brasileira adota essa prática jurídica e prevê, portanto, a função do judiciário como intérprete da constituição. Ou seja, (CITTADINO, 2009; p.62) o Ordenamento Constitucional Brasileiro, apesar de não ter transformado o Supremo Tribunal Federal em uma corte constitucional propriamente dita, veio por restringir sua compêntica à matéria de cunho constitucional - assim, cabe ao STF a guarda da Constituição. Essa função de guardião, nada mais é do que a expressão do carácter político que assume o Supremo nesse novo desenho constitucional, uma vez que função de interpretar e, portanto, declarar o alcance e o sentido de normas jurídicas é ação - se não política - de grande repercursão politico-social.

13  O controle de constitucionalidade, apesar do grande perído que passou inerte nos Estados Unidos, passou a ser uma prática comum nas cortes de todo o mundo, tendo início com a sua adoção pelas novas repúblicas da antiga união soviética, posteriormente na europa ocidental no pós- Segunda Guerra e então pelos países da América Latina e península ibérica após os seus períodos de governos ditatoriais. (VICTOR, 2008; p. 87 e ss)

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Nesse contexto, com o passar dos anos o STF tem assumido diversos posicionamentos políticos acerca de assuntos14 das mais diversas ordens, tomando por base, em alguns momentos específicos um posicionamento ativista. Isso se deve a diversos fatores, como por exemplo, o fortalecimento do judiciário diante da atual desconfiança nacional no que se refere ao legislativo - principalmente pelos recorrentes escândalos de corrupção; mas também ao posicionamento inerte do órgão legislativo, vez que se exime de discutir algumas questões “polêmicas”, deixando sua resolução à cabo do judiciário uma vez que este não passa pelo processo eleitoral. Essa prática demonstra a relação existente entre o legislativo e o judiciário brasileiro. Pois de um lado encontramos uma instituição que, por diversas vezes ampliou sua esfera de atuação, buscando legitimar-se democraticamente; enquanto de de outro lado, há o poder político organizado, sofrendo uma grave crise de legitimidade democrática, experimentando um descrédito recorrente e suas próprias limitações políticas em uma sociedade fragmentada pelos interesses conflitivos (SILVA et al , 2010, p. 14). Interessante notar que, o posicionamento majoritário do Supremo Tribunal Federal, ao longo de 21 anos (de 1988 até 2009) foi o de deferência com relação as decisões tomadas pelo legislativo. Ou seja, a corte não têm demonstrado um o exercício de um poder contramajoritário, pelo menos não de forma relevante. Sempre que possível, são aproveitadas partes das leis que sofreram o controle de constitucionalidade, ou, em caso de omissões legislativas, o Tribunal procurou conceder prazo para que o congresso suprimisse a irnércia. 15

Ocorreu diferente, porém, no caso das uniões homoafetivas. Diante do já mencionado silêncio legislativo, o Supremo Tribunal Federal reconheceu, através de interpretação conforme a constituição, o status de entidade familiar às uniões formadas por casais do mesmo sexo. Em resposta à atuação do guarda da constituição, foi proposto na câmara dos deputados o Projeto de Lei nº 6583 de 2013, também conhecido com Estatuto da Família, de autoria do Deputado Federal anderson Ferreira do PR/PE16. Essa reação parte da bancada religiosa tradicionalista do congresso nacional, e tem por fim a restrição do significado de “entidade familiar” para aquela formada apenas pela união entre homem e mulher, e também das unidades monoparentais - dái o nome ser “Estatuto da Família”, no singular, defendendo a existência de apenas uma forma de família. Os argumentos apresentados para legitimação do projeto de lei, pautam-se principalmente em dois: o primeiro, referente à utilidade procriativa do casamento - sendo portanto imperativo para a espécie humana que as uniões heterossexuais permaneçam intactas e reconhecidas como pivô da sociedade -, e a segunda à tradição cristã do Estado brasileiro - muito embora o Brasil seja um estado laico 17. O projeto encontra-se em trâmite na câmara dos deputados e ainda não foi votado pelo plenário. Quais seriam, entretanto, as consequências jurídicas da aprovação do “Estatuto da Família”? Ora, o diálogo institucional não é institucionalizado no Brasil, o que não significa que não ocorra. O Supremo Tribunal Federal, embora seu eminente caráter político - principalmente em questões controversas

14  O supremo Tribunal Federal já analisou caso referente ao uso de armas de fogo ((ADI 3112/DF), à pesquisa com células-tronco embrionárias (ADI 3510/DF), à liberdade de expressão e os discursos com conteúdo racista (HC 82424/RS), à liberdade de informação jornalística (ADPF 130/DF), a processos seletivos diferenciados para pessoas de origens sociais e raciais diferentes (ADI 3330/DF), e à interrupção da gravidez de feto anencéfalo (ADPF 54/DF). 15  Para informações e dados completos da pesquisa, vide POGREBINSCHI, Thamy. Judicialização ou Representação?: Política, direito e democracia no Brasil. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011. 16  Para leitura do tero completo do PL: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=597005. 17  Art. 5. VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias; VII - é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva; VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei; Art. 150 - Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:VI - instituir impostos sobre: b) templos de qualquer culto; Art. 210 § 1º - O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental.

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como aborto de feto anencéfalo, entre outros - em diversos casos também houve recalcitrância do judiciário em afirmar-se o último intérprete da Carta Magna. No entanto, o direito de constituir família é direito fundamental e está resguardado pela nossa contituição. Assim como demostramos acima, os direitos à igualdade e não discriminação são direitos humanos de suma importância e o fundamento principal de diversos diplomas jurídicos, entre eles a nossa constituição e a CADH. Assevera o Ministro Gilmar Mendes: Liberdade e igualdade constituem os valores sobre os quais está fundado o Estado constitucional. A história do constitucionalismo se confunde com a história da afirmação desses dois fundamentos da ordem jurídica. Não há como negar, portanto, a simbiose existente entre liberdade e igualdade e o Estado democrático de direito. Isso é algo que a ninguém soa estranho – pelo menos em sociedades construídas sobre valores democráticos [...]

Assim, o direito objeto de estudo, aqui, constitui direito de uma minoria frente ao possível desejo de uma maioria representada no congresso. Nesse caso, qual deverá prevalecer? Entramos novamente na discussão acerca da jurisdição constitucional e do constitucionalismo, essa problemática interfere diretamente na questão do poder contramajoritário do Tribunal. Entretanto, defendemos que deva haver uma supremacia judicial na questão, pautados nos seguintes argumentos: (i) A proteção dos direitos das minorias é ethos da jurisdição constitucional; (ii) pelo fenômeno que ficou conhecido como “leis in your face” (VICTOR, 2013; p.169); (iii) pelo princípio da poribição ao retrocesso. Apesar de já discutida acima, faz-se mister frisar que o mais importante papel do Supremo Tribunal Federal é o de guardião da constituição. é no contexto de seu exercício que existe o Estado de Direito, pois este depende da efetivação de direitos e garantias fundamentais. Nesse diapasão, a fim de garantir o cumprimento desses direitos, o papel da corte não possui o condão de interferir nas atividades do legislador democrático. Não há, portanto, que se falar que o judiciário, ao exercer a jurisdição constitucional age em detrimento dos demais poderes, mas garante o ral funcionamento da democracia, pois é a tensão entre esta e o controle de constitucionalidade “ que alimenta e engrandece o Estado Democrático de Direito tornando possível o seu desenvolvimento, no contexto de uma sociedade aberta e plural, baseado em princípios e valores fundamentais.” (MENDES, 2001) A própria Carta Magna, ao definir procedimentos específicos para a atuação do legislador, prevê que os atos praticados pelos orgão de representação possam ser criticados e controlados. (MENDES, 2001) Assim, o judicial review seria uma espécie de “fiscalização democrática” no que tange a guardar os direitos das minorias frente as maiorias tiranas. Quanto à questão do “leis in your face”, é um fenômeno que representa a reação do legislativo, com edição de lei que contraria entendimento já estabelecido pelo judiciário. Nesses casos, é comum que este útlimo reaja. Um bom exemplo foi no caso da edição da Súmula 394, o qual estendia o foro por prerrogativa de função para o julgamento de processos criminais relativamente aos atos praticados no exercício da antiga função pública. Proposta uma ação direta de inconstitucionalidade (ADI nº 2860), o Supremo entendeu por declarar inconstitucional a prerrogativa no caso referido acima, sem, no entento, alteração do texto. A Lei nº 10.628 foi aprovada pelo congresso nacional no final de 2002, revertendo o entendimento do Supremo Tribunal Federal e extendendo, novamente, o foro por prerrogativa de função para os ex-detentores de cargos públicos. Essa lei foi impugnada, posteriormente, através da ADI 2797, na qual o STF declarou, por maioria de votos, a incostitucionalidade da lei, por tentar superar uma interpretação constitucional da Corte.

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Diante disso, é possível que, caso aprovado, o Estatuto da Família venha a sofrar impugnação através de ação direta de inconstitucionalidade, e pode o Supremo Tribunal Federal decidir por manter o seu entendimento e declarar inconstitucional a lei por ir de encontro com interpretação constitucional já firmada. Um outro motivo pelo qual deve haver a supremacia judicial no caso do casamento igualitário, refere-se ao princípio da proibição ao retrocesso. A proibição ao retrocesso se perfaz no contexto da segurança jurídica, corolário do Estado de direito e protegido em diversos diplomas constitucionais, inclusive na nossa Carta Magna de 1988. O direito Fundamental (e humano) à segurança, possui várias faces. Ele possui a condição de direito fundamental da pessoa humana (em seu âmbito pessoal e social) e, simultaneamente, é princípio fundamental da ordem jurídica estatal e internacional - já que se encontra firmada tanto nos diplomas nacionais como também em vários diplomas supranacionais (SARLET, 2008; p. 5-6). Em verdade, a idéia de segurança jurídica e proteção da confiança (do cidadão e da sociedade) está intimamente ligada à ideia de dignidade da pessoa humana. Ora, O princípio da dignidade da pessoa humana, como já explicitado nesse estudo , é o berço e o fundamento dos direitos humanos, e estes de concretizar através da eficácia e eficiência dos direitos fundamentais em cada Estado e da proteção da ordem internacional. Assim sendo, só é possível vizualizar a realização dos direitos fundamentais em um estado que forneça o mínimo de segurança (aqui em sentido amplo, pois não envolve apenas a jurídica, mas também a econômica, a pessoal e a social, entre tantas outras) aos seus cidadão. É preciso que o cidadão confie no ordenamento jurídico e no Direito do seu Estado, que não se sinta refém e não seja apenas manipulado pelo Estado para fazer o que esse bem entender. Assim, o direito à segurança encontra-se ligado (e nesse sentido também a proibição ao retrocesso) ao Estado não apenas em seu sentido formal - na proteção do ato jurídico perfeito, do direito adquirido e da coisa julgada -, ou seja, um Estado Liberal de Direito, mas também em sentido material, sendo, de fato, um Estado Democrático de direito. A ação do Estado, portanto, - no que diz respeito aos direitos sociais - deve ser de carácter positivo - no que se refere à prestação de serviços essenciais a garantir o direito à segurança -, mas também de carácter negativo - no que tange a não violar os direitos humanos e fundamentais de seus cidadãos. (SARLET, 2008; p.7-8). Com efeito, a proteção dada à confiança e, consequentemente, à segurança jurídica - pelo menos no que tange à à sua relação com a dignidade da pessoa humana - não refere-se apenas aos atos de cunho retroativo, mas também aqueles atos de cunho retrocessivo, ou seja, que não alcançaram as figuras dos direitos adquiridos, do ato jurpidico perfeito e da coisa julgada, mas que de alguma forma houveram por prejudicar os direitos humanos e fundamentais de uma parcela de seus cidadãos. Neste diapasão, também a proibição do retrocesso encontra-se devidademente prevista em nosso ordenamento jurídico. Exemplos são os já mencionados ato jurídico perfeito, direito adquirido e coisa julgada, mas não deixam de ser importantes - e na realidade de extrema relevância para esse estudo - as restrições legislativas dos direitos fundamentias, e até mesmo as limitações feitas ao poder constituinte reformador (limitações materiais e também formais18). E, da mesma forma como na segurança jurídica, como bem colocar Ingo Sarlet (2008, p. 9), a proibição ao retrocesso não se restringe, tão somente, a atos passados, mas também a atos futuros: Com efeito, na esteira do que tem sido reconhecido na seara do direito constitucional alienígena e, de modo particular, em face do que tem sido experimentado no âmbito da prática normativa (muito embora não exclusivamente nesta esfera), cada vez mais se constata a existência de medidas inequivocamente retrocessivas que não chegam a ter caráter propriamente retroativo, pelo fato de não alcançarem posições jurídicas já consolidadas no patrimônio de seu titular, ou que, de modo geral, não atingem situações anteriores. As18  Vide SARLET, Ingo. A Eficácia dos Direitos Fundamentais,5a ed., especialmente p. 371 e ss., para maiores informações sobre os limites materiais à reforma constitucional.

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sim, por paradoxal que possa parecer à primeira vista, retrocesso também pode ocorrer mediante atos com efeitos prospectivos.

A união homoafetiva e o direito de constituir família, é direito humanos e fundamental, o qual perpassa tanto os direitos individuais, como os sociais. Sendo assim, uma possível violação desses direitos já asserugarados pelo STF, representaria uma afronta tanto à segurança jurídica, quanto principal e especificamente ao princípio da proibição ao retrocesso. Isso porque, mesmo representando ato futuro do poder legislativo - uma vez que ainda não foi aprovado o projeto de Lei do Estatuto da Família - este representa uma retrocessão ao estado anterior, já que os indívios da comunidade LGBTI estariam privados de exercer a união estável e todos os direitos que advém da sua realização. Isso seria uma falha na eficácia protetiva dos direitos fundamentais.19 Portanto, no que tange ao casamento igualitário, defendemos a idéia de supremacia judicial primeiro porque a aprovação e efetivação do Estatuto da Família representaria um retrocesso, o que claramente não é aceito pelo nosso ordenamento jurídico. Em segundo lugar, porque cabe à jurisdição constitucional a proteção ào direito das minorias, e dessa forma, não estaria o Supremo Tribunal Federal usurpando a função do legislador, mas sim exercendo a sua própria função em prol de um grupo marginalizado. Em terceiro lugar, porque é esperada uma reção do pretório excelsior frente à possível “violação” do legislativo no que se refere à entendimento já pacificado no judiciário. O Projeto de Lei (PL) nº 6583 de 2013, também conhecido como Estatuto da Família, foi proposto pelo Deputado Federal Anderson Ferreira do PR/PE. A propositura desse PL é consequência direta do reconhecimento da união homoafetiva e sua posterior conversão em casamento, por parte da banca evangélica tradicionalista que compõe o congresso nacional. CONCLUSÃO A equiparação da união entre casais do mesmo sexo à união civil para fins de entidade familiar foi um avanço e um ganho no ordenamento jurídico brasileiro. Em duas ações emblemáticas o Supremo Tribunal Federal agiu no sentido de defender a constituição e efetivar os direitos fundamentais, exercendo seu papel de guardião da constituição através da jurisdição constitucional. Embora o ordenamento jurídico brasileiro não preveja, expressamente, a possibilidade de formação de núcleo familiar por pessoas homoafetivas, ao interpretar a Carta Magna como um todo, é possível perceber que há espaço para a realização de tal feito, uma vez que a Constituição expressamente proíbe qualquer tipo de discriminação e preza pela concretização do princípio da igualdade. Da mesma forma, a CADH não dispõe proibição referente ao casamento igualitário, mas assim como a nossa carta magna, proíbe a discriminação e pressa pela igualdade. Baseado nisso, é provável que diante de um caso de violação de direitos humanos, como seria a provação do Estatuto da Família pelo congresso brasileiro, a corte pudesse agir no sentido de punir o Estado, aproveitando para atualizar seu entendimento sobre questões desse gênero, como aconteceu com o emblemático caso Atala Rifo e ninãs vs. Chile. A aprovação do Estatuto da família representaria uma ação retrógrada movida por setores conservadores e tradicionalistas do congresso nacional. Seria uma afronta não só à própria constituição brasileira, mas também a diversos diplomas internacionais e supranacionais sobre direitos humanos, diplomas normativos dos quais o brasil é signatário, ensejando penalização. Por todas essas razões, esperamos uma reação do Supremo Tribunal Federal caso o projeto de lei do Estatuto da Família seja aprovado pelo congresso. Esperamos pela declaração de inconstitucionalidade da referida lei, e pela prevalência da interpretação feita pelo pretório excelsior, assegurando o direito de todas as pessoas em constituírem família.

19 

idem. p. 361 e ss.

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DIREITO AO PROTESTO E SUA TUTELA JUDICIAL: UM ESTUDO DE CASO SOBRE A OCUPAÇÃO DA RUA NETO CAMPELO PELO MOVIMENTO OCUPE ESTELITA

ANA PAULA DA SILVA AZEVÊDO Mestranda no Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Católica de Pernambuco - UNICAP, vinculada à linha de pesquisa Jurisdição e Direitos Humanos, com bolsa da CAPES/PROSUP. Pesquisadora do Grupo REC - Recife Estudos Constitucionais LETÍCIA MALAQUIAS MENDES BARBOSA Mestranda no Programa de Pós-graduação em Direitos Humanos da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE, vinculada à linha de pesquisa Cidadania e Práticas Sociais. Pesquisadora do Grupo Novo Constitucionalismo Latino-americano VITÓRIA CAETANO DREYER DINU Mestranda no Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Católica de Pernambuco - UNICAP, vinculada à linha de pesquisa Jurisdição e Direitos Humanos, com bolsa da CAPES/PROSUP. Pesquisadora do Grupo Asa Branca de Criminologia

SUMÁRIO: Introdução; 1. O movimento ocupe estelita (#ocupeestelita) e o porquê do estudo da ocupação da rua neto campelo; 2. Direito ao protesto como o “primeiro direito”; 3. Análise da decisão interlocutória do processo de nº 0024756-03.2015.8.17.0001; Considerações finais; Referências.

INTRODUÇÃO A pesquisa busca promover a discussão sobre a tutela judicial do direito ao protesto a partir do processo de nº 0024756-03.2015.8.17.0001, de maio de 2015, envolvendo a ocupação da Rua Neto Campelo, na capital pernambucana, por manifestantes do Movimento Ocupe Estelita (#OcupeEstelita), após aprovação e sanção da Lei Municipal nº 18.138/2015, relativa ao plano urbanístico apresentado pelo Consórcio Novo Recife para o Cais de Santa Rita, José Estelita e Cabanga. Para tanto, utiliza-se da metodologia qualitativa do estudo de caso, exatamente porque são as singularidades do caso que puderam indicar se o Poder Judiciário atuou (ou não) como poder contramajoritário em amparo à efetivação de direitos fundamentais das minorias. A abordagem volta-se a discutir o direito ao protesto e as interações entre o espaço público e o privado no processo analisado quando houve a ocupação da Rua Neto Campelo, endereço do Prefeito, e posterior desocupação determinada pelo Poder Judiciário nos autos do processo supracitado, ajuizado pela Procuradoria do Município de Recife. A reflexão construída envolve os confrontos práticos entre os direitos fundamentais relativizados através da realização dos protestos, de um lado, e as formas de representação dos protestos com vistas a alcançar impacto na sociedade, por outro, que também não deixam de constituir direitos fundamentais tutelados. Esse cuidado no trato da matéria faz-se necessário para garantir que a suposta defesa da sociedade não se volte contra ela própria, oprimindo-a e constituindo instrumento ilegítimo de manutenção de forças políticas no poder.

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Desta feita, o propósito desse artigo não é realizar um juízo de valor peremptório da decisão que ordenou a desocupação da rua onde o Prefeito reside. Como se estava diante de um conflito de direitos fundamentais, múltiplas poderiam ser as interpretações para a resolução do caso. A pergunta de partida, pois, pode ser sintetizada da seguinte forma: em que medida o magistrado contemplou a discussão sobre direitos fundamentais no caso da ocupação e desocupação da Rua Neto Campelo? Assim, independentemente do resultado final da decisão, o objetivo a que se busca é analisar se os caminhos percorridos pelo juiz contemplam a discussão dos protestos como arena de construção democrática, conforme indicado pela Constituição, ou não. Com este intuito, adotou-se como marco teórico a perspectiva de Roberto Gargarella sobre o direito ao protesto como um direito fundamental de liberdade coletiva. Neste contexto, o trabalho propõe-se, inicialmente, a compreender as manifestações populares de rua como um direito constitucionalmente protegido, mormente em tempos de crise da democracia representativa, envolvendo ainda a proteção dos direitos de reunião e de liberdade de expressão coletiva, tidos com essenciais para que haja a proteção da crítica feita ao poder. Após, com o fito de construir as reflexões sobre o tema, como já indicado, são apresentados os ensinamentos de Gargarella, especialmente a doutrina do foro público, que aduz serem as ruas, as praças e as avenidas os locais historicamente vocacionados para a expressão coletiva de opinião. Por fim, analisa-se a decisão do processo de nº 0024756-03.2015.8.17.0001, que ordenou a retirada dos manifestantes da Rua Neto Campelo. Embora inicialmente houvesse expectativas de identificar elementos no processo relacionados ao sopesamento dos direitos fundamentais envolvidos – considerando a ocupação como manifestação do direito ao protesto –, assim como as interações entre o espaço público e o privado, verificou-se que a decisão foi proferida reduzindo a causa a um problema administrativo referente à falta de autorização/licença para ocupação de espaço público. A partir do caso escolhido, tendo como pano de fundo o conturbado cenário recifense envolvendo a pauta sobre o direito à cidade, é fundamental compreender a diretriz adotada quando há o conflito entre interesses diversos e o direito ao protesto, velando para que a discussão e o dissenso, imprescindíveis à democracia, não sejam tolhidos pelo Judiciário sob a justificativa de proteção de direitos supostamente prevalentes. 1. O MOVIMENTO OCUPE ESTELITA (#OCUPEESTELITA) E O PORQUÊ DO ESTUDO DA OCUPAÇÃO DA RUA NETO CAMPELO. O Movimento Ocupe Estelita ou #OcupeEstelita, como divulgado na página do facebook e em outras mídias sociais, corresponde a um movimento iniciado em 2012 que se apresenta como sendo composto por diversas identidades as quais se uniram em torno de um propósito, qual seja, o ideal de um crescimento urbano democrático inclusivo para a cidade do Recife, em confronto ao empreendimento imobiliário intitulado Novo Recife, com impacto nas áreas do Cais de Santa Rita, Cabanga e José Estelita, envolvendo, entre outros itens, a proposta de construção de um complexo habitacional luxuoso. A busca pelo propósito do Movimento Ocupe Estelita é feita, precipuamente, a partir de ocupações urbanas organizadas e não violentas – realizadas em espaços públicos, em sua maioria, e concentradas no entorno do Cais José Estelita –, como símbolo na busca pela efetivação dos direitos urbanos. A forma de apresentação do movimento, entre a ocupação e o manifesto, exteriorizada e propagada pelas mídias sociais, é um dos diferenciais do movimento, permitindo a sua análise contextualizada ao direito ao protesto e ao direito de resistência, destacando a sua relevância no cenário nacional, entre outras razões, por sinalizar a decadência do regime democrático representativo e o anseio por participação na política de forma direta e ativa, onde todos podem ser ouvidos e respeitados em suas subjetividades. No dia 04.05.2015, foi aprovado pela Câmara Municipal de Recife o Projeto de Lei 008/2015, em uma situação peculiar de violação do acesso do povo ao debate político. Na ocasião, a Câmara Municipal convocou às pressas uma audiência para aprovação do Projeto, desconsiderando a recomendação do Ministério Público

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Estadual de que o PL precisaria ser primeiramente discutido pelo Conselho da Cidade antes de ser inserido na pauta da Câmara dos Vereadores. Apesar das críticas dos poucos vereadores oposicionistas, e apesar do restrito acesso à casa legislativa ofertado ao povo para a sessão indicada, o Projeto foi aprovado e encaminhado ao Prefeito Geraldo Júlio para sanção, cujo ato também ocorreu no mesmo dia. Na noite do dia 07.05.2015, uma quinta-feira, manifestantes apoiadores do Movimento Ocupe Estelita decidiram, de forma espontânea, ocupar a rua onde reside o Prefeito da Cidade do Recife, Geraldo Júlio, como forma de protesto contra a sanção da Lei Municipal nº 18.138/2015. A mensagem que os manifestantes tentaram passar com esse ato foi bastante simbólica: se o Prefeito estava supostamente imiscuindo os interesses públicos com os privados na condução do plano urbanístico dos Cais de Santa Rita, José Estelita e Cabanga, os manifestantes, de forma análoga, iriam adentrar na seara privada do Prefeito, acampando na frente do prédio onde reside, a fim de pressionar pela prevalência dos interesses públicos. Durante a ocupação, os manifestantes foram acusados de jogar ovos no prédio, fazer bastante barulho, bater latas no local, fazer ameaças, impedir o livre trânsito dos moradores e daqueles que passavam naquela rua. Mesmo que se possam levantar ressalvas éticas e morais contra a atitude dos manifestantes, que não atrapalharam apenas a vida do Prefeito, mas a vivência de moradores de toda uma rua, estava-se diante de um caso de exercício do direito de protesto em via pública. Diante da repercussão, a Procuradoria do Município do Recife ingressou com Ação de Obrigação de Fazer contra os integrantes do Movimento Ocupe Estelita e do Grupo Direitos Urbanos, sob o fundamento de que a ocupação da Rua Neto Campelo, como bem público destinado à circulação e ao lazer das pessoas em geral, deveria ter sido precedida de licença ou autorização por parte da Administração Pública. Se de um lado o Executivo Municipal não é capaz de atender as demandas sociais e volta-se à satisfação de interesses alheios à sociedade para viabilizar o atendimento de interesses de grandes grupos econômicos – normalmente grandes financiadores de campanhas –, de outro, o Legislativo Municipal, composto pela base governista, é instrumento de afirmação e continuidade dos projetos tocados pelo Executivo. O Poder Judiciário, neste contexto, como terceiro e independente poder, deveria se afirmar como poder contramajoritário, tutelando as garantias e direitos fundamentais, mas há grande distinção entre o discurso e a prática, escancarando a falácia do discurso democrático apresentado à população. Daí surge o interesse para a utilização da metodologia do estudo de caso. Por mais que este método seja, em tese, passível da crítica da dificuldade de generalização, ele se faz útil no presente trabalho exatamente porque são as suas singularidades que demonstram, de forma clara, os impasses que precisam ser enfrentados pelo Poder Judiciário ao julgar o conflito de direitos fundamentais existentes em qualquer protesto. Afinal, está-se diante de um exemplo de judicialização do direito ao protesto, com uma farta discussão sobre os limites de utilização do meio público como forma de exercício democrático. Se porventura há críticas quanto à objetividade desse método, uma possível resposta é que: [...] a validação do conhecimento gerado pela pesquisa, a aprovação de sua confiabilidade e relevância pela comunidade acadêmica, exige que o pesquisador se mostre familiarizado com o estado atual do conhecimento sobre a temática focalizada, de modo que ele possa, de alguma forma, inserir sua pesquisa no processo de produção coletiva do conhecimento (ALVES-MAZZOTTI, 2006, p. 638).

Assim sendo, acredita-se que o presente estudo de caso irá contribuir para a elucidação da problemática envolvendo o respeito ao protesto como um direito constitucionalmente tutelado. Isso porque, a partir de um caso extremado, em que manifestantes ocupam a calçada em frente ao prédio do Prefeito, é possível extrair conclusões que podem ser aplicadas em outros contextos (VENTURA, 2007, p. 386), fortalecendo-se a hipótese de que ainda falta amadurecimento do Judiciário para compreender os protestos como instrumentos legítimos de participação democrática popular e, por conseguinte, como verdadeiro direito que, em um caso concreto, pode vir a colidir com outros, fazendo-se necessária a ponderação.

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2. DIREITO AO PROTESTO COMO O “PRIMEIRO DIREITO”. O direito ao protesto tem se mostrado, nos últimos anos, muito importante para a compreensão do Direito como instrumento para a solução de conflitos, ganhando destaque tanto na seara do Direito Constitucional quanto do Direito Penal. Roberto Gargarella, desenvolveu vasta obra acerca do derecho a la protesta social, demonstrando o quanto se faz necessário refletir acerca desse direito que pode ser considerado como o “primeiro direito”. Quando Gargarella (2012) fala da relação do direito com o protesto, está se referindo às respostas do poder público diante dos protestos sociais e, muito especialmente, das respostas conferidas pelo Poder Judiciário. Inclusive, Gargarella dedica muito dos seus textos a abordagem do papel que o Judiciário, especialmente o Judiciário argentino, vem desenvolvendo na temática do direito ao protesto. Por sua vez, quando tal autor menciona “protestos”, está se referindo às reclamações/reivindicações feitas por determinados grupos de pessoas, que veem suas necessidades básicas constantemente insatisfeitas. Essas reivindicações, por conseguinte, referem-se a problemas envolvendo a carência de trabalho, de moradia digna, de assistência sanitária, de proteção social, dentre tantas outras violações a direitos básicos do cidadão (GARGARELLA, 2012). De acordo com Gargarella (2012), ao pensar sobre os protestos sociais, experimenta-se uma tensão entre as aspirações democráticas, de um lado, e as preocupações com os direitos de cada indivíduo, do outro. Uma Constituição, por seu turno, convida a pensar numa maneira de como pensar essas duas preocupações de forma conjunta. Contudo, quando o protesto social chega ao âmbito do Judiciário, o autor aponta o seguinte: Quando os juízes se encontram diante de um conflito que envolve o protesto social, devem se expressar sobre o modo como eles mesmos concebem a democracia. Entretanto, algumas vezes por preguiça, outras por torpeza, ou por uma falta de atenção devida, eles passam por esses problemas sem tomar consciência da importância do que está em jogo1. (GARGARELLA, 2012, p. 23).

Com isso, o autor chama atenção para a necessidade de o Poder Judiciário aprofundar as reflexões acerca dos conceitos de democracia, direitos, justiça, interpretação constitucional, enfim, acerca dos assuntos que envolvem muitos tópicos centrais da Filosofia Política e da Teoria Constitucional, para que se possa debruçar sobre a questão dos protestos sociais de modo mais acurado, e não genericamente, como vem ocorrendo (GARGARELLA, 2012). Citando o artigo 22º da Constituição da Argentina, segundo o qual “o povo não delibera nem governa senão por meio dos seus representantes” 2, Gargarella atenta para o fato de que, nos casos concretos envolvendo os protestos sociais, os juízes argentinos, de um modo ou de outro, acabam efetuando uma interpretação acerca do significado daquela norma constitucional, demonstrando diferentes graus de aprofundamento. Sobretudo, o que ficou em evidência foi o fato de que os juízes, em sua maioria, seguiram a tendência de uma interpretação mais restritiva, limitada e elitista acerca da democracia, movendo-se em direção do que Gargarella (2012) denomina de princípio da desconfiança. Essa desconfiança estaria exatamente na discussão pública e no que os cidadãos poderiam realizar através dela e iria de encontro ao que Gargarella (2012) chamou de princípio alternativo da confiança, segundo o qual a confiança estaria depositada “no cidadão, em nossas capacidades coletivas, na discussão pública” 3 (GARGARELLA, 2012, p. 23). 1  2  3 

Tradução livre. Tradução livre. Tradução livre.

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Sem dúvidas, interpretar a democracia de modo restritivo, acreditando que aquela se encerraria com o sufrágio, é uma visão muito pobre acerca da democracia e do que ela pode proporcionar aos cidadãos de qualquer país. Se comportando dessa maneira, o poder público e os juízes acabam não auxiliando a população nas suas aspirações coletivas e terminam por espalhar o medo oriundo das possíveis consequências penais da participação em uma greve ou manifestação, por exemplo. Para Gargarella, a ideia de democracia deveria estar associada à ideia de um processo de discussão coletiva, no qual todos os envolvidos pudessem intervir e expressar suas opiniões em face do que se está por decidir, principalmente, aqueles cidadãos que seriam mais afetados por tais decisões. A participação da população em expressões diretas de democracia, como manifestações e greves, por exemplo, pode ser um meio de os cidadãos cobrarem dos seus representantes eleitos ações condizentes com os motivos que levaram aqueles a escolher estes como seus porta-vozes. No que diz respeito às reivindicações por necessidades básicas insatisfeitas, há, ainda, outro fator que as tornaria mais graves, qual seja: o fato de que, não apenas na Argentina, mas em diversos outros países, como salienta Gargarella, o espaço concedido nos meios de comunicação para reclamações não depende da urgência destas, por exemplo, mas sim, e, sobretudo, da capacidade econômica de quem pretende ser ouvido (GARGARELLA, 2012). Por outro lado, se o Poder Judiciário se põe contra as minorias, perseguindo-as ou penalizando suas reivindicações, isso pode ter um resultado extremamente negativo, tendo em vista que alguns grupos minoritários já não gozam de popularidade, o que deveria levar o Judiciário a tomar atitudes que os protegessem. Entretanto, parece que os juízes, ao promoverem suas decisões, revelam-se de acordo com as opiniões de uma maioria hostil. Com relação à interpretação que é conferida ao texto de uma Constituição, pode-se afirmar, desde já, que se trata de uma tarefa delicada, tendo em vista que o próprio ponto de partida, onde se encontra o intérprete, já revela dificuldades, pois os textos constitucionais normalmente são repletos de conceitos vagos e genéricos, como por exemplo, justiça, igualdade e liberdade, fazendo tortuoso o trabalho do hermeneuta. O que Gargarella aponta é para o fato de um juiz poder livremente se amparar em qualquer doutrina existente para justificar algum entendimento proferido através das suas decisões e, com má fé ou não, acabar cometendo alguns abusos. Certamente, a tarefa de interpretar as normas constitucionais e aplicá-las aos casos concretos não é fácil, e ações judiciais envolvendo a colisão de certos direitos demandam um esforço reflexivo maior por parte do juiz, o qual, ao invés de afirmar, simplesmente, que o direito de um termina onde começa o direito do outro, deveria questionar-se acerca de onde está, mais especificamente, esse limite ou quais os fundamentos nos quais se lastreia para dizer que determinado direito termina aqui, ao passo que outro direito começa ali. Gargarella ainda traz, com relação à forma como as manifestações acontecem, a distinção entre “expressão pura” (que inclui escritos políticos e panfletos, por exemplo) e “expressão com agregados” (o plus speech), a qual faz referência a marchas, por exemplo, utilizada em alguns países, como nos Estados Unidos. Essa distinção vem sendo utilizada para proteger as chamadas “expressões puras”, deixando sem proteção as manifestações com agregados. Por sua vez, Gargarella (2007) propõe o desfazimento dessa dicotomia, citando a posição de Harry Kalven, segundo o qual toda manifestação/expressão inclui, necessariamente, o chamado plus speech (GARGARELLA, 2007). Por mais que seja trabalhoso, o que Gargarella sugere é que, apesar das críticas, deve ser preservado o conteúdo das manifestações, o que ele chama de el componente expressivo (o componente expressivo) (GARGARELLA, 2007). Assim, o ato de queimar uma bandeira ou de arremessar um ovo em algum político, tem obrigado os doutrinadores a pensar com mais cuidado sobre esse tipo de atitude por parte dos manifestantes, levando em consideração a potencialidade das mensagens que tais atos carregam. Para Gargarella (2007), não prestar a devida atenção a esse ponto significa desconsiderar uma questão crucial.

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Com relação à chamada doutrina do foro público, a doutrina e a jurisprudência internacional tem se posicionado em sua defesa. Segundo o foro público as ruas, praças e avenidas são lugares tradicionalmente utilizados para protestos e que merecem, por esse motivo, uma proteção especial (GARGARELLA, 2012, p. 28). Assim, pode-se perceber o quanto é atual e extremamente necessário o debate envolvendo o direito ao protesto, pois as manifestações se tornaram comuns nos últimos tempos. Insatisfações variadas motivam as pessoas a saírem de suas casas e trabalhos para reclamarem nas ruas tudo o que lhes causa incômodo. É por isso que o papel do Poder Judiciário se torna tão essencial4, tendo em vista que, no âmbito legislativo, o direito ao protesto não encontra respaldos. Da mesma forma, a doutrina ainda é tímida quando o assunto é protesto social. O Poder Judiciário trata-se de um Poder com ampla liberdade para decidir os rumos do Direito Constitucional de um país, porém, é justamente aquele que temos menos possibilidades institucionais de controlar. Além disso, a própria composição do Judiciário é seletiva demais (homens brancos e de classe média). Como, então, esperar decisões não segregadoras e elitistas por parte dos magistrados? Por mais que a decisão de um juiz esteja claramente fundamentada em normas e princípios, acrescidos da doutrina mais especializada no assunto, inocência não atentar para as convicções pessoais dos magistrados que, embora não apareçam de modo explícito na fundamentação de uma decisão, certamente determinam esta. Se, de um lado, é a polícia quem censura uma manifestação, utilizando-se de meios exageradamente violentos, por outro, o Judiciário parece não saber lidar com o tema do direito ao protesto, oferecendo também decisões que aproximam as manifestações à prática delituosa ou, simplesmente, proferindo reflexões genéricas e rasas acerca desse importante direito. 3. ANÁLISE DA DECISÃO INTERLOCUTÓRIA DO PROCESSO DE Nº 0024756-03.2015.8.17.0001. Consoante já exposto, a Procuradoria do Município do Recife ajuizou o Processo de nº 002475603.2015.8.17.0001, com o objetivo de “garantir a desocupação da Rua Neto Campelo, seu entorno e passeios públicos, no Bairro da Torre, Recife-PE”, vez que o Município do Recife estaria “impedido de exercer o seu poder de polícia e reestabelecer a paz social que se faz mister” 5 após manifestantes terem ocupado a rua para forçar a revogação do projeto urbanístico relativo aos Cais de Santa Rita, José Estelita e Cabanga pelo Prefeito da cidade. Em breve síntese, o magistrado concedeu a antecipação dos efeitos da tutela, a fim de que houvesse a imediata desocupação da rua e seus entornos, cuja circulação estava sendo impedida pelos manifestantes, chegando, inclusive, a arbitrar multa diária de dois mil reais por pessoa por descumprimento da decisão. Em virtude do pronunciamento judicial, os ocupantes saíram pacificamente da localidade. A questão que se impõe, todavia, é a pobreza da decisão no que tange aos debates sobre direitos fundamentais. Em verdade, por mais que o magistrado tenha feito referência ao art. 5º, inc. XVI, da CF/88, o qual institui o direito de reunião para fins pacíficos (albergando, pois, o direito ao protesto), trata-se de uma citação meramente pró forma, tanto que se ignorou por completo o fato de que, para um protesto, não há necessidade de autorização administrativa. 4  Segundo Gargarella, o Judiciário, ao enfrentar casos relativos a protestos, deveria atuar com base em dois princípios: o princípio da imparcialidade ou distância deliberativa, e o princípio das violações sistemáticas (2007, p. 42/45). O primeiro princípio estabelece que, quando os manifestantes não são membros plenamente integrados na sociedade deliberativa, o Judiciário deve ser mais sensível às demandas desse grupo, de forma a conferir maior proteção às formas de comunicação eleitas para expor as demandas. O segundo princípio, por sua vez, indica que as autoridades públicas devem dar atenção especial aos protestos decorrentes de sistemáticas violações a direitos básicos, sopesando este fator ao analisar as circunstâncias de realização do protesto. Assim, quando a injustiça é particularmente grave e persistente, os juízes deveriam estar mais abertos a tolerar ações que, em outras situações, poderiam ser reprovadas. 5  Os trechos entre aspas foram extraídos da decisão interlocutória em comento.

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A decisão, de forma simplória, reduziu toda a questão a uma querela meramente administrativa, como se a ocupação da Rua Neto Campelo fosse uma simples utilização irregular de bem público, e não um protesto, com proteção constitucional diferenciada, portanto. Nos termos do douto juiz, “a Rua Neto Campelo e demais ruas e calçadas em seu entorno, por serem espaços utilizados para a circulação e lazer das pessoas em geral, são consideradas juridicamente como bens públicos, e como tal, qualquer ocupação delas, (sic) está sujeita a licença ou autorização por parte da Administração Pública”. Como é cediço, a Constituição Federal de 1988 (CF/88) consagrou o modelo do Estado Democrático de Direito, seguindo a tendência dos Estados Ocidentais, mas também como reação aos abusos e arbitrariedades cometidos durante a ditadura militar. Nada mais natural, portanto, que tenha se dado bastante ênfase aos direitos e garantias fundamentais, dentre eles os direitos de expressão e participação política, a fim de possibilitar a construção de uma sociedade pluralista, em que múltiplas opiniões tenham vez e voz. Só assim é possível constituir uma verdadeira democracia, pois, sem que haja um debate livre de ideias e amplas informações, não há como os cidadãos, exercendo a sua autodeterminação, posicionarem-se livremente. Diante disso, por mais que a CF/88 não tenha falado expressamente em um “direito ao protesto”, há um desenho institucional que garante essa dimensão coletiva da liberdade de expressão (SANTOS; GOMES, 2014, p. 590-591). Afinal, se o exercício democrático demanda opiniões públicas diversas, é necessário permitir que as pessoas, mesmo que não tenham acesso aos meios usuais de comunicação, possam expor ideias contrárias ao status quo, o que pode se dar via manifestações de rua. Só assim a opinião pública será, efetivamente, constituída pelo cruzamento de inúmeras fontes, para que os cidadãos possam tomar as decisões fundamentais da comunidade de forma embasada, em um verdadeiro espaço público de discussão. Com o objetivo de proteger essa participação do cidadão na sociedade civil, pode-se afirmar que a CF/88 consubstanciou o direito ao protesto, primeiramente, na defesa do pluralismo como fundamento da República Federativa do Brasil (art. 1º, inc. V), bem como no âmbito do exercício das liberdades (SANTOS; GOMES, 2014, p. 593). Têm-se, assim, a liberdade de reunião (art. 5º, inc. XVI) e a liberdade de expressão (art. 5º, inc. IX, e art. 220) conferindo o substrato para a defesa do exercício coletivo da manifestação do pensamento. Muito embora o art. 5º, inc. XVI, da CF/88, diga explicitamente que, para o direito de reunião, não se faz necessária autorização administrativa, toda a decisão é construída sobre o fato de que, não tendo havido solicitação prévia para o uso do espaço, a ocupação seria ilegal, o que contraria em absoluto as disposições constitucionais. A impressão que fica é a de que o magistrado ignorou o fato notório de que a ocupação tratava-se de um protesto, e, assim atuando, deixou de exercer o caráter contramajoritário que deveria ser a marca do Poder Judiciário. Tão raso foi, que sequer fez considerações sobre o fato de que não houve comunicação prévia da reunião às autoridades públicas, este sim requisito constitucional para o exercício do direito de reunião. Neste ponto, cumpre destacar, todavia, que ainda sim há críticas quanto à peremptoriedade deste mandamento, o qual tolheria o caráter espontâneo e imprescindível de muitos protestos. Como nos relembra Gargarella, seria necessário um esforço para identificar o “componente expressivo” dessas ações (2007, p. 34), que pode estar exatamente em sua espontaneidade. Talvez, a ideia de comunicação prévia possa ser interpretada no sentido apenas de evitar que se frustre outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, e não como uma forma de tornar ilegal todo e qualquer protesto que não tenha sido comunicado às autoridades, sob pena de tolher de forma desproporcional e impedir o exercício da liberdade de expressão coletiva. De toda forma, trata-se de assunto o qual ainda precisa de elaboração doutrinária (conforme aduz SANTOS; GOMES, 2014), a qual não é o foco do presente trabalho. Após toda a explanação sobre a importância do direito constitucional ao protesto, é preciso deixar claro que, por evidência, não se trata de um direito absoluto, havendo condições para o seu exercício. Com o pós-positivismo e a declaração da força normativa dos princípios constitucionais, eis que a subsunção cedeu espaço para outro método de aplicação de normas, a ponderação, segundo a qual, num conflito de princípios,

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se deve efetuar um balanceamento, a fim de identificar qual o princípio que irá prevalecer no caso concreto, bem como as suas consequências normativas. Desta feita, a depender da circunstância, o direito ao protesto pode, em tese, ser legitimamente restringido. Se o conflito de regras se resolve no plano da validade, o mesmo não ocorre com o conflito de princípios. Pelo fato de eles serem mandamentos ou comandos de otimização, eles jamais podem ser realizados completamente6. Portanto, em uma colisão de princípios, como ambos os comandos normativos apresentam a mesma hierarquia e o mesmo valor, o objetivo da ponderação seria restringir o mínimo possível um princípio, para que o outro seja protegido (CAMBI, 2011, p. 92/93), o que se dá por meio do postulado da proporcionalidade e seus deveres de adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito (ÁVILA, 2001). Mesmo que haja críticas a essa forma de interpretação das disposições constitucionais, no caso em análise, o magistrado não considerou o direito ao protesto como um direito fundamental, empobrecendo por demais a discussão jurídica e ignorando o conflito de direitos entre a livre circulação e a manifestação popular. Independentemente de o momento ser ou não de retirada dos manifestantes do passeio público, a ausência de cotejo sobre o caráter democrático dos protestos reforça a hipótese de que ainda há muito para que o direito ao protesto seja plenamente efetivado e respeitado. Tem-se, assim, uma situação em que a prática do sistema não raro opera em total desrespeito às diretrizes constitucionais, com a repressão desproporcional aos manifestantes, por mais que as manifestações de rua sejam constitucionalmente protegidas. Está-se, pois, numa situação de desconstitucionalização fática ou concretização desconstitucionalizante, nos termos utilizados por Marcelo Neves (1996). Em outras palavras, significa que o texto constitucional é uma referência distante dos agentes estatais e dos cidadãos, de forma que a prática desenvolve-se à margem do modelo estabelecido na Constituição. A constitucionalização simbólica funcionaria, assim, “como álibi em favor dos agentes políticos dominantes e em detrimento da concretização constitucional” (NEVES, 1996, p. 327). Jamais um direito constitucional e internacional exercido regularmente poderia configurar um ilícito (ZAFFARONI, 2010, p. 6). Não obstante, sob o manto da defesa da segurança pública de toda a comunidade, estão se olvidando direitos constitucionalmente protegidos, dentre eles o direito ao protesto. E pior: muitas vezes, a realização dos protestos se dá exatamente porque, de forma prévia, houve, por parte do Executivo, um triplo mecanismo de violação dos direitos fundamentais (prestacionais, políticos e de defesa), tudo sob a justificativa da tutela de interesses de outras pessoas (direito de propriedade, de liberdade de locomoção, etc.): As pessoas protestam pela falta de políticas públicas prestacionais (privação de direitos sociais). Não conseguem influenciar os processos políticos oficiais e por isso protestam publicamente. A seguir, o Estado reprime esses cidadãos que exercem seus direitos fundamentais de cunho político, pois o ato de protestar corresponde a um direito político muito importante nas democracias. Nesse contexto, o Estado organiza a repressão por meio de atos de violência, de detenções ilegais atingindo os direitos de liberdade (direitos de defesa) com prisões, lesões corporais e até morte. A ordem é: nenhuma tolerância com quem o Estado considera “intolerante” (SABADELL; SIMON, 2014, p. 532, grifos dos autores).

CONSIDERAÇÕES FINAIS A ocupação da Rua Neto Campelo, na capital pernambucana, por manifestantes do Movimento Ocupe Estelita (#OcupeEstelita), apresenta-se como peculiar na medida em que permite a reflexão sobre os espaços de atuação política destinados aos cidadãos na democracia representativa contemporânea. Ao ter sido 6  Não obstante as dificuldades de conceituação dos princípios, traz-se a definição elaborada por Humberto Ávila: “[...] pode-se definir os princípios como normas que estabelecem diretamente fins, para cuja concretização estabelecem com menor exatidão qual o comportamento devido (menor grau de determinação da ordem e maior generalidade dos destinatários), e por isso dependem mais intensamente da sua relação com outras normas e de atos institucionalmente legitimados de interpretação para a determinação da conduta devida” (2001, p. 21).

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vedado o acesso à Câmara Municipal de Recife, manifestantes do movimento dirigiram-se à rua onde se situa a residência do Chefe do Executivo Municipal, forçando a reflexão sobre os limites entre o público e o privado, entre o direito de protestar e resistir dos cidadãos manifestantes e a liberdade daqueles cidadãos eventualmente prejudicados pelo processo de ocupação urbana, ainda que pacífica. O processo de nº 002475603.2015.8.17.0001 criava expectativas acerca deste debate, envolvendo direitos e garantias fundamentais. Todavia, após a leitura da decisão em análise, que tem por fundamentação uma citação doutrinária descontextualizada sobre poder de polícia, autorização e licença, fica a frustração pela ausência de debate sobre direitos fundamentais, logo quando se está diante de um caso de exercício democrático via pressão popular na rua da residência do Prefeito. Em tese, protestos “desarrazoados” são reprimidos tendo por base o exercício legítimo da força pelo Estado. Todavia, cabe o questionamento sobre até que ponto esse uso da violência institucional é cabível, para que o Estado não sirva, em verdade, à perpetuação de situações de dominação, mormente ao ignorar o caráter fundamental do direito de reunião. Quando os casos chegam ao Judiciário, este fica diante de duas concepções de democracia: uma mais restritiva, em que se tolhe o direito ao protesto, e outra mais inclusiva e ampla. Ora, por se estar em uma democracia representativa, o Judiciário deveria ser mais atento às manifestações de crítica ao poder constituído, até porque o poder emana do povo. Não obstante, não é incomum que os magistrados punam os supostos excessos cometidos em protestos com base no argumento de que “todo direito tem limites”, sem qualquer fundamentação mais aprofundada sobre que limites seriam esses. Não se cumpre, pois, o dever do ônus argumentativo do intérprete, mais acentuado em se tratado de cláusulas abertas como a referida. No estudo de caso analisado: a casa do povo (Legislativo) deixa de ser de acesso público e de participação da sociedade; o Judiciário deixa de analisar a importância e o contexto das manifestações e o argumento dos excluídos; e a ordem é para desocupar as ruas. É tempo de refletir sobre os espaços destinados à participação dos cidadãos e o direito fundamental de oposição ao sistema, pilares de um regime político dito democrático. REFERÊNCIAS ALVES-MAZZOTTI, Alda Judith. Usos e abusos dos estudos de caso. Cadernos de Pesquisa, São Paulo,  v. 36,  n. 129,  p. 637/651,  set./dez. 2006. Disponível em: . Acesso em: 16 set. 2015. ARGENTINA. Constitución de la Nación Argentina. 1994. ÁVILA. Humberto. A distinção entre princípios e regras e a redefinição do dever de proporcionalidade. Revista Diálogo Jurídico, Centro de Atualização Jurídica, ano I, vol. I, n° 4, Salvador, jul/2001. Disponível em: . Acesso em: 29 nov. 2014. CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e Neoprocessualismo: Direitos fundamentais, políticas públicas e protagonismo judiciário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. GARGARELLA, Roberto. Un diálogo sobre la ley y la protesta social. Postdata, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, n. 12,  ago. 2007. Disponível em: . Acesso em: 28 mai. 2015. _______. El derecho de resistência en situaciones de carência extrema. Barcelona: Astrolabio - Revista internacional de filosofia, n. 4, 2007.

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QUEM TEM DIREITO À ÚLTIMA PALAVRA? O INSTITUTO DA REVISÃO JUDICIAL À LUZ DAS TEORIAS DE DWORKIN, DAHL E WALDRON

ANA TEREZA DUARTE LIMA DE BARROS Mestranda em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco. Bacharela em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Bolsista de Mestrado do CNPq. E-mail: [email protected] MARIANA COCKLES TEIXEIRA Mestranda e Bacharela em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco. Bolsista de Mestrado da Facepe. E-mail: [email protected]

SUMÁRIO: introdução; 1. Revisão judicial como elemento da democracia (ou não): as visões de Ronald Dworkin e Jeremy Waldron; 2. O judiciário seria realmente neutro e imparcial? A visão de Robert Dahl; Conclusão; Referências.

INTRODUÇÃO Judiciário ou legislativo? Quem tem direito à última palavra em questões políticas relevantes e controversas é assunto sobre o qual, desde a obra histórica de Dahl, escrita em 1957, vários teóricos políticos, juristas e constitucionalistas têm se posicionado. Primeiramente é explorada a visão de Ronald Dworkin - que se opõe claramente à de Dahl e Waldron – que defende ser o Judiciário a instituição competente para decidir questões políticas que envolvam moralidade. Igualmente, defende que a Corte estaria mais apta a proteger a minoria contra a “tirania da maioria”, uma vez que a premissa majoritária não implica democracia. O procedimento democrático também não definiria qual autoridade é a legitimada para proteger direitos, importando mais o conteúdo da decisão do que “quem decide”. Igualmente, é abordada a visão de Jeremy Waldron - o maior crítico de Dworkin – quem considera que, no que diz respeito às questões morais, sempre haverá discordância, não havendo uma resposta correta. A única forma, portanto, de se garantir uma decisão democrática seria através do procedimento, não do conteúdo. Seria o Judiciário não-responsivo perante os eleitores e, portanto, ilegítimo para decidir questões políticas, que só poderão ser plenamente debatidas, com igualdade, no âmbito legislativo. Também é analisado o entendimento de Robert Dahl, quem, contrariamente a Dworkin, considera uma falácia o argumento de que o Judiciário é realmente neutro e serve para proteger o direito das minorias. Dahl demonstra que a Suprema Corte sempre se alia à aliança nacional dominante e que, em muitos poucos casos, decidiu contra a maioria, pondo, por água abaixo, o argumento de Dworkin. Por fim, faz-se uma breve conclusão, contrapondo a visão dos autores trabalhados.

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1. REVISÃO JUDICIAL COMO ELEMENTO DA DEMOCRACIA (OU NÃO): AS VISÕES DE RONALD DWORKIN E JEREMY WALDRON. Para os defensores da revisão judicial, como Ronald Dworkin, dito instrumento aprofundaria a democracia, ao proteger os direitos das minorias contra a “tirania da maioria”. Dworkin defende que a leitura moral realizada pela Suprema Corte é extremamente necessária. Como exemplo, cita o caso Brown, em que a atuação da Corte foi necessária para que se pudesse extinguir a segregação oficial nas escolas. O autor, igualmente, defende que uma alternativa intermediária é impossível, e que resta aos juristas e constitucionalistas aceitar a leitura moral realizada pelos juízes (DWORKIN, 2006, p. 18-21). Citando Conrado Hübner Mendes: Para Dworkin, a política do mundo civilizado deve estar subordinada ao império do direito, do princípio, da integridade. Deve respeitar não apenas o direito posto, legislado, mas também suas premissas morais. E os juízes seriam um veículo institucional adequado para carregar e impor a dimensão de princípio às decisões políticas. Não nega que o legislador também deva ser guardião de princípios, e que tenha responsabilidade de não produzir decisões institucionais. Mas o ambiente legislativo não seria o ideal para questões de escolha sensível. Dworkin não admite uma cultura jurídica leniente, segundo a qual o Direito é uma questão de força e autoridade, e os argumentos baratos intercambiáveis. É possível buscar o melhor argumento, a resposta certa, ainda que não demonstráveis (MENDES, 2008, p. 77).

A tese principal de Dworkin ataca a premissa majoritária, ou seja, a premissa de que as decisões políticas a que se chega devam ser as favorecidas pela maioria dos cidadãos. Tal premissa não implicaria democracia. Conforme sua concepção comunitária - segundo a qual as decisões políticas deveriam ser tomadas pelo “povo” enquanto tal, e não por “indivíduos encarados um a um” - “uma sociedade em que a maioria despreza as necessidades e perspectivas de uma minoria é não só injusta como ilegítima” (DWORKIN, 2006, p. 24-26/ 31/ 38-39). Se a democracia fosse entendida no sentido subminimalista, como o fazem Schumpeter (1961) e Przeworski (1999), a proteção ao direito das minorias pouco importaria, pois, democracia existiria em todo lugar onde houvessem eleições limpas, sendo este o único requisito democrático. Porém, Dworkin, contrariamente a Schumpeter e Przeworski, defende que democracia é conteúdo, não procedimento. O que importa é o conteúdo da decisão a que se chega, não importando “quem” seja a autoridade que a profira. Para Dworkin, quando juízes anulam uma decisão tomada pelo legislativo, em lugar de estarem indo de encontro à democracia, estão aprofundando-a, uma vez que a democracia não se reduz à regra da maioria, mas é resultado da combinação entre procedimento e substância (MENDES, 2008, p. 34/ 59/ 76-77). A Corte, então, seria considerada o “fórum do princípio”, de modo que não haveria necessidade de representação nos moldes tradicionais, ao contrário do que defendem os que se opõem à revisão judicial, como Waldron. Para evitar que a maioria se torne juíza da própria causa, não deveria ser ela quem decide quais decisões majoritárias devem ser aceitas (DOWRKIN, 2010, p. 222-223). As decisões a respeito dos direitos contra a maioria não são questões que devam, por razões de equidade, ser deixadas a cargo da maioria. O constitucionalismo – a teoria segundo a qual os poderes da maioria devem ser limitados para que se protejam os direitos individuais – pode ser uma teoria política boa ou má, mas foi adotada pelos Estados Unidos, e não parece justo ou coerente permitir que a maioria julgue em causa própria. Dessa forma, os princípios

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de justiça parecem posicionar-se contra o argumento derivado da democracia, e não a seu favor (DWORKIN, 2010, p. 222-223).

Uma das principais críticas feitas à revisão judicial, e que será feita por Waldron, é justamente essa aparente falta de legitimidade dos juízes. No entanto, para seus defensores, como é o caso de Dworkin, a proteção aos direitos individuais, ou seja, ao conteúdo, compensa. Além do mais, teriam os juízes melhor formação técnica e não estariam subordinados às pressões políticas (LEIBIR; DUTRA, [s.d], p. 8-9). Nas palavras de Dworkin (2005, p. 17): “os juízes não são eleitos nem reeleitos, e isso é sensato porque as decisões que tomam ao aplicar a legislação tal como se encontra devem ser imunes ao controle popular”. Conclui Dworkin que os tribunais devem ser ativistas, de modo que estejam preparados a formular e dar respostas a questões de moralidade política. Se deixarmos as decisões de princípio exigidas pela Constituição a cargo dos juízes, e não do povo, estaremos agindo dentro do espírito da legalidade, tanto quanto nossas instituições o permitam, mas correremos o risco de que os juízes venham a fazer as escolhas erradas (DWORKIN, 2005, p. 231-232).

Dahl, como veremos, irá derrubar esse argumento de Dworkin, ao provar que o Judiciário sempre se alia à aliança nacional dominante, logo, não seria neutro. Contrariamente a Dworkin, Jeremy Waldron se opõe à chamada revisão judicial “forte”, que é a existente nos Estados Unidos da América (e no Brasil), em que os tribunais têm autoridade para declarar que determinada norma não será aplicada, transformando-a em letra morta. Waldron parte do pressuposto de que existe um compromisso por parte da maioria dos membros da sociedade e da maioria de seus funcionários em respeitar os direitos individuais e das minorias (WALDRON, 2006, p. 1354/ 1360). Pergunto-me em quantos países ocidentais a maioria da população os respeita e os leva em consideração para tomar suas decisões. Acredito que em poucos. Assim, Waldron, diferentemente de Dworkin, acredita que os membros de uma sociedade sempre irão discordar a respeito de se determinada decisão viola ou não direitos, não existindo uma única decisão correta. Como resposta a esse problema de desentendimento moral, Waldron defende a legitimidade do procedimento, contrapondo-se à visão de Dworkin, que preza pelo conteúdo (WALDRON, 2006, p. 1369- 1370). Nas palavras de Waldron: Todavia, dada a inevitabilidade do desacordo sobre tudo isso, uma teoria da justiça e dos direitos deve ser complementada por uma teoria da autoridade. Uma vez que pessoas discordam sobre o que a justiça requer e quais direitos temos, precisamos perguntar: quem deve ter poder para tomar decisões (...)? Saber o que conta como uma boa decisão é uma questão que não desaparece no momento em que respondemos à questão “Quem decide”? Pelo contrário, a função de uma teoria da justiça e dos direitos é aconselhar seja lá quem for identificado (pela teoria da autoridade) como a pessoa para tomar a decisão (WALDRON, 1993, p. 32).

Waldron salienta o insulto que é considerar que os cidadãos não deveriam dirimir seus conflitos por meio do procedimento majoritário, outorgando a um seleto grupo de juízes a autoridade de fazê-lo. Na verdade, o procedimento adotado pelos tribunais para se chegar a uma decisão é o mesmo: a votação majoritária. Quando cidadãos ou seus representantes discordam sobre quais direitos temos ou sobre o que estes direitos impõem, parece quase um insulto dizer que isto não é algo que se lhes permite resolver por meio de procedimento majoritário, mas que deve ser atribuído para determinação final a um pequeno número de juízes. É particularmente insultante quando descobrem

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que juízes discordam entre exatamente pelas mesmas linhas que cidadãos e representantes, e que juízes tomam suas decisões, também, por votação majoritária. Cidadãos podem sentir que, se desacordos nesses assuntos devem ser resolvidos pela contagem de cabeças, então são as suas cabeças ou as de seus representantes que deveriam ser contadas (WALDRON, 2001, p. 15).

Assim, já que ambos decidem de forma majoritária, antes todos os cidadãos decidindo por maioria do que um seleto grupo de juízes fazendo o mesmo. Dessa forma, para o Waldron, a Suprema Corte não seria uma instituição contramajoritária. Tampouco teria o argumento dos juízes ou a qualidade de suas decisões, peso no seu voto (MENDES, 2008, p. 102). Em lugar de falar impessoalmente sobre “a dificuldade contramajoritária”, devemos distinguir entre a Corte decidindo por maioria, e muitos e muitos homens e mulheres comuns decidindo por maioria. Se fizermos isso, nós vemos ainda que a questão “Quem deve participar?” sempre tem prioridade sobre a questão “Como eles decidem quando discordam?” (WALDRON, 1993, p. 50).

A defesa do procedimento como melhor maneira de se obter uma decisão democrática levaria a duas perguntas fundamentais: “por que eles? Por que não eu?” e “no procedimento decisório, por que não foi dado maior peso aos pontos de vista dos legisladores que concordam comigo sobre o assunto?”. Primeiramente, seriam os legisladores quem decide, pois foram eleitos diretamente pelo povo, logo, são responsivos perante este. Nas eleições, os cidadãos decidem, em condição de igualdade, quem deverá assumir o posto privilegiado de representá-los na tomada de decisões. Em segundo lugar, o princípio majoritário garantiria justiça e tratamento igualitário a todos. Assim, todas as opiniões têm peso igual (WALDRON, 2006, p. 1387-1388). Ao dar mais valor ao procedimento que à substância, Waldron, de certa forma, termina por considerar que mesmo as decisões que contrariam os direitos das minorias, se deliberadas por uma legislatura eleita, serão consideradas democráticas. Assim, uma decisão que fosse contrária ao matrimônio igualitário continuaria sendo democrática, uma vez que passou pelo debate legislativo. Já para Dworkin, uma decisão legislativa que não reconhecesse esse direito estaria ferindo o direito de uma minoria e precisaria passar pelo crivo do Judiciário. Waldron, igualmente, deveria levar em consideração que, embora a deliberação legislativa supostamente deixe todos em situação de igualdade, nem todos possuem a mesma capacidade de influência, restando claro que o legislativo também sofre pressões políticas e econômicas. Este foi um dos argumentos trazidos por Dworkin em seu livro “A virtude soberana”, em que reconhece que há uma diferença de influência, no processo político, que determinados grupos possuem em relação a outros. Dessa forma, embora o voto dos eleitores tenha o mesmo impacto, nem todos conseguem exercer a mesma influência no processo político (DWORKIN, 2005, p. 270-271). Assim, considerando que o parlamento pode traduzir uma desigualdade considerável de representação, defende Dworkin que a revisão judicial. Proporciona um fórum político no qual os cidadãos possam discutir, se desejarem, e, por conseguinte, o faz de maneira mais diretamente ligada à sua vida moral do que o voto. Além disso, nesse fórum aumenta muito o incentivo das minorias, que praticamente não têm nenhum incentivo na política comum (DWORKIN, 2005, p. 288).

Quanto ao argumento de que a revisão judicial seria eficiente para proteger direitos das minorias contra a tirania da maioria, Waldron argumenta que tirânico é sempre algo relativo. Sempre que um lado discordar de algo, achará que o lado a favor estará sendo tirânico. Como exemplo, o autor cita a lei que regula o financiamento de campanha. Os que se opõem à referida lei sempre a acharão tirânica (WALDRON, 2006, p. 1395-1396).

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2. O JUDICIÁRIO SERIA REALMENTE NEUTRO E IMPARCIAL? A VISÃO DE ROBERT DAHL. Dahl inovou ao ter sido o primeiro a reconhecer a Suprema Corte norte-americana como sendo, também, uma instituição política. Afinal, é comum que a Suprema Corte tenha de decidir casos em que há severos desacordos dentro da sociedade, como nos casos em que estão em questão a regulação da economia pelo Estado ou a segregação racial. Nesses casos, a decisão da Corte é política, e a sociedade precisa aceitar esse fato (DAHL, 1957, p. 279-280). Dahl demonstra que o entendimento da Suprema Corte está sempre alinhado com o da aliança nacional dominante. Afinal, os ministros são indicados pelo presidente, que não indicaria um juiz que fosse hostil a suas políticas públicas. Dessa forma, estaria a Corte menos propensa a obter sucesso se a iniciativa bloqueada for a de uma maioria. Inclusive, uma maioria legislativa forte sempre conseguiria superar o veto da Corte. Conclui alegando que a Corte não é eficiente protegendo direitos fundamentais e que tem poucos poderes para afetar o curso da política nacional (DAHL, 1957, p. 284-286/ 288/ 292-293). Como as investigações de Dahl se deram em 1957, questiono se ele teria tido as mesmas conclusões se dita pesquisa tivesse sido levada a cabo nos dias atuais. Decisões como a aprovação do casamento igualitário e a reforma da saúde afetaram fortemente o curso da política nacional norte-americana e protegeram direitos de minorias, mas são decisões que também estavam totalmente alinhadas com as políticas do executivo, o que talvez comprove a tese de que o judiciário se alia à aliança nacional dominante. É possível que a Suprema Corte apenas tenha protegido direitos fundamentais de minorias, nesses casos, porque a aliança nacional dominante tem viés progressista. A teoria de Dahl também põe, por água abaixo, o argumento dos defensores da revisão judicial - como Dworkin - de que seria melhor que o Judiciário decidisse as questões importantes, pois seria uma instituição neutra, diferentemente do legislativo, que sofre pressões políticas e econômicas. Ao demonstrar que o entendimento da Suprema Corte tende a se alinhar com o da aliança nacional dominante, o status de “neutralidade” da instituição é posto, claramente, em cheque. CONCLUSÃO É difícil se posicionar quanto a quem deve dar a última palavra, se o judiciário ou o legislativo. Tanto os argumentos de Dworkin a favor da revisão judicial, como os argumentos de Dahl e Waldron, contrários a dito instituto, são bastante convincentes. Talvez os que defendam a revisão judicial, como Dworkin, em boa medida, estejam insatisfeitos com a democracia representativa. Para que se possa defender vigorosamente os legisladores, é preciso acreditar que eles realmente estão sendo representativos. É evidente que, em uma grande quantidade de casos, foi o Judiciário quem protegeu o direito das minorias, como recentemente, quando a Suprema Corte norte-americana reconheceu o matrimônio igualitário. É verdade, igualmente, que, no citado caso do matrimônio igualitário, dita decisão estava totalmente alinhada com as políticas do presidente, o que favorece a tese de Dahl de que o Judiciário tende a se alinhar à aliança nacional dominante. Talvez a revisão judicial passe a ser mais bem vista, aceita e preferida, em tempos em que o executivo e o judiciário têm viés mais progressista, situação em que irão tender a, de fato, proteger os direitos das minorias não reconhecidos pelo legislativo. No que diz respeito à legitimidade democrática, difícil contestar o argumento de Waldron de que os legisladores são os legitimados, uma vez que foram eleitos diretamente pelos cidadãos e, portanto, são responsivos perante estes. Por outro lado, ao dar mais valor ao procedimento que à substância, Waldron, de certa forma, termina por considerar que, mesmo as decisões que contrariem os direitos das minorias, se deliberadas por uma legislatura eleita, serão consideradas democráticas.

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Por fim, não pretendo posicionar-me em favor ou contrariamente a nenhuma das posições. Os argumentos dos três autores estudados demostram como, a depender do aspecto a ser observado, uma das posições parece mais acertada que a outra, o que torna difícil a construção de um posicionamento final. BIBLIOGRAFIA DAHL, Robert. Decision-making in a democracy: The Supreme Court as a national policy-maker. The Journal of Public Law, n. 6, 1957, p. 279-295. DWORKIN, Ronald. A virtude soberana. A teoria e a prática da igualdade. São Paulo: Martins Fontes, 2005. ________________. Uma questão de princípios. São Paulo: Martins Fontes, 2005. ________________. O direito da liberdade: A leitura moral da Constituição norte-americana. São Paulo: Martins Fontes, 2006. ________________. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martin Fontes, 2010. LEIBIR, Mauro; DUTRA, Letícia. Direitos das minorias e pressupostos democráticos: um paradoxo da jurisdição constitucional. [S.l.], [s.d.]. MENDES, Conrado Hübner. Controle de Constitucionalidade e Democracia. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008. WALDRON, Jeremy. A Right-based Critique of Constitutional Rights. Oxford Journal of Legal Studies, v. 13, 1993. _________________. Law and Disagreement. Oxford: Oxford University Press, 2001. _________________. The core of the case against judicial review. Yale Law Journal, n. 115, 2006, p. 13461406. PRZEWORSKI, Adam. Minimalist conception of democracy: a defense. In: Shapiro, Ian e Hacker-Cordón, Casiano (org); Democracy´s Value. Cambridge University Press, 1999, p. 23-55. SCHUMPETER, Joseph A. [1942] Capitalismo, Socialismo e Democracia. Trad. de Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1961, p. 305-344.

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A AUTONOMIA DAS ORDENS LOCAIS INDÍGENAS NA AMÉRICA LATINA SOB O PONTO DE VISTA DO TRANSCONSTITUCIONALISMO E DO NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO ARTHUR ALBUQUERQUE DE ANDRADE Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Mestrando em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Bolsista da CAPES no programa Tutela Multinível de Direitos Humanos. [email protected] ANA CATARINA SILVA LEMOS PAZ Bacharelanda em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Bolsista da CAPES no programa Tutela Multinível de Direitos Humanos. Monitora da cadeira de Direito Constitucional I na Universidade Católica de Pernambuco. [email protected] LUIZ MANOEL DA SILVA JÚNIOR Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Bolsista da CAPES no programa Tutela Multinível de Direitos Humanos. Monitora da cadeira de Direito Constitucional I na Universidade Católica de Pernambuco. [email protected]

SUMÁRIO: Introdução; 1. O Transconstitucionalismo; 2. O Novo Constitucionalismo latina-americano; 3. A interseção entre o Transconstitucionalismo e o Novo Constitucionalismo; 4. A possibilidade do Transconstitucionalismo na América Latina servir à autonomia da cultura nativa, um dos objetivos do Novo Constitucionalismo; Conclusão; Referências.

INTRODUÇÃO De acordo com Luhmann, a formação do Estado moderno ocorreu mediante a diferenciação funcional da sociedade. Manifesta-se, inicialmente, no sistema político e a posteriori, no econômico e no jurídico. A partir da distinção sistêmica, são construídos os paradigmas modernos: a soberania (“staatgeralst”), a economia de mercado e o monismo jurídico (GALINDO, 2006). A sociedade contemporânea supera os paradigmas mencionados. A Guerra Fria é considerada o marco. Segundo o filósofo alemão Kurz, uma das consequências do fato histórico é a globalização e o agravamento da crise das sólidas instituições elaboradas na modernidade. Aponta o surgimento de uma “postura social niilista”, decorrente da incerteza desses paradigmas ocasionada pela citada crise. Estes são considerados insuficientes para coordenar as democracias contemporâneas e os juristas passam a ter de reformulá-los (GALINDO, 2006). Isto porque a sociedade fragmenta-se e apresenta alta complexidade, em um descompasso com os postulados do Estado, mormente o dos campos político e jurídico, os quais se encontram limitados geograficamente, em oposição aos demais (econômico, informativo, etc.). Na lição de Wolkmer (1994), os mais prejudicados pela falência das instâncias política e jurídica são os grupos vulneráveis. Estes passam a exigir o reconhecimento de um soberano jurídico para cada cultura, no intuito de reverter o contexto de exclusão no qual se encontram devido à explanada falência.

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Funda-se, destarte, o pluralismo jurídico, um dos paradigmas contemporâneos do direito. Para ser concretizado, explica Raquel Fajardo (2015), deve haver uma ruptura com o constitucionalismo monista liberal do século XIX e com o constitucionalismo integracionista do século XX. Estabelecido o pluralismo jurídico, diversos questionamentos vêm à tona. 1. O TRANSCONSTITUCIONALISMO. Segundo Marcelo Neves (2010), na sociedade hodierna, a partir da globalização, os problemas de direitos humanos e regulamentação do poder, por exemplo, interessam a diversos ordenamentos jurídicos: nacionais, locais, transnacionais, supranacionais e internacionais. O pluralismo jurídico, ao reconhecer novas ordens normativas, acentua a rede de tutela multinível de direitos (fundamentais) exposta. Nesse contexto, César Garavito (2015) questiona: qual(is) o(s) método(s) para compatibilizar os inúmeros ordenamentos, posto a diversidade e, por vezes, a incompatibilidade entre eles? O presente artigo destaca a teoria de Neves, o transconstitucionalismo. O método desenvolvido por Neves, o transconstitucionalismo, intenta construir pontes transversais entre os ordenamentos jurídicos dissonantes. Estes, para alcançar um consenso, devem, a princípio, se conter e perceber a própria incapacidade em ter uma visão holística da celeuma. Trata-se do denominado “ponto cego”, presente em todas as jurisdições, o qual se torna visível a partir de outros. Em paralelo, deve-se compreender a inexistência de uma última ratio entre os ordenamentos, mais um motivo para ser estabelecido um diálogo entre eles. No que tange à América Latina, sobressaem-se as relações transversais estabelecidas entre as ordens locais indígenas e os Estados. Isto porque, na última década, há surgido, no continente, um movimento constitucional denominado “novo constitucionalismo latino-americano”, pelo qual se intenciona garantir a autonomia das tribos indígenas perante os tribunais estatais: propósito semelhante ao do transconstitucionalismo referente à problemática. O vínculo aludido, então, esclarece a possibilidade de estudar o método e o movimento conjuntamente. No supracitado estudo, entretanto, notam-se pontos divergentes. É interessante, tanto para o transconstitucionalismo, como para o novo constitucionalismo, o alcance de uma compatibilização dos mencionados pontos, a fim de que possam se fortificar reciprocamente. 2. O NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO. Na América Latina, a inclusão almejada pelas tribos indígenas visadas pelo Novo Constitucionalismo pressupõe o reconhecimento de um ordenamento jurídico próprio para cada cultura presente dentro dos Estados. Diante dessa nova configuração, os Estados nacionais são substituídos pelos plurinacionais. Na realidade fática da região, esse projeto não aconteceu igualmente. Ao ponderar o reconhecimento da diversidade étnica nas Constituições vigentes da América Latina, Rodrigo Uprimny (2011) as categoriza em três diferentes tipos. O primeiro reúne as adeptas de um “pluralismo liberal”, as quais não reconhecem nenhum direito especial às comunidades discriminadas. Entre outros Estados, incluem-se nesse grupo o Chile, o Uruguai e a Costa Rica. O segundo promove o multiculturalismo, máxime através da jurisprudência dos Tribunais constitucionais. A Colômbia é um exemplo nítido. Quanto aos dois primeiros grupos, é frequente o debate concernente à autenticidade dos processos constitucionais. Indaga-se se os citados ordenamentos jurídicos foram construídos como resposta às demandas e aos desafios sócio-políticos das regiões nas quais se encontram; ou se são uma tentativa de copiar ideais eficazes na conjuntura europeia, contudo ineficazes na complexa realidade latino-americana (GARAVITO, 2015). O terceiro tipo de Constituição, por fim, remete ao Novo Constitucionalismo Latino-Americano e, por conseguinte, ao Equador e à Bolívia. Estas não se restringem a promulgar direitos característicos de um Estado multicultural, porém ainda unitário, precipuamente no tocante às diversas nações nele presentes. Inau-

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guram, pois, um Estado plurinacional e intercultural. Em termos práticos, essas Constituições reconhecem a autodeterminação dos povos indígenas, ao atribuir-lhes circunscrições próprias de representação política e judiciária. Ademais, institucionalizam as línguas e os elementos da cultura nativa (UPRIMNY, 2011). Isto posto, vale salientar a existência de outras classificações com critérios deveras semelhantes, tal qual a elaborada por Raquel Fajardo (2011). Analogamente, a jurista divide as Constituições em três ciclos. A ideia é situar os Estados de acordo com o grau de avanço nas questões relacionadas ao pluralismo. Nessa linha, o primeiro ciclo apresenta as Cartas com menor propensão às demandas das comunidades ora tratadas. O terceiro, por sua vez, dispõe os Estados com o maior reconhecimento às problemáticas advindas da diversidade cultural. 3. A INTERSEÇÃO ENTRE O TRANSCONSTITUCIONALISMO E O NOVO CONSTITUCIONALISMO. Diante do exposto, notam-se objetivos comuns entre o transconstitucionalismo e o novo constitucionalismo. Ambos pretendem, em perspectivas diversas, garantir a autonomia de determinadas ordens jurídicas comumente olvidadas no monismo jurídico estabelecido pelo modelo eurocêntrico moderno. O primeiro como método e o segundo como fenômeno popular de reivindicação de um conjunto direitos. Sendo assim, sustenta-se a hipótese de aplicar o mencionado método ao fenômeno aludido, a fim de promover uma intensificação recíproca. No próximo tópico, serão narrados litígios cuja resolução valeu-se do transconstitucionalismo e nos quais um dos litigantes tratava-se de grupo(s) nativo(s). O intuito é sobrelevar a simbiose apontada, para suscitar discussões sobre essa hipótese aos interessados tanto na efetivação do método transconstitucional como no fenômeno do novo constitucionalismo no continente. Antes da narrativa, no entanto, salienta-se a necessidade de aplicar o método de modo distinto. O motivo é a desigualdade de expor normas válidas entre os indígenas e as demais ordens. Como atenta Neves (2010), há um risco destas se imporem àquelas. Ou seja, o transconstitucionalismo, nesses casos, deve funcionar como um instrumento de empoderamento do coletivo indígena, para que se consiga preservá-lo, assim como se faz com os demais. Nas palavras de Marcelo Neves (2010): Um outro lado do transconstitucionalismo aponta para a relação problemática entre as ordens jurídicas estatais e as ordens extraestatais de coletividades nativas, cujos pressupostos antropológico-culturais não se compatibilizam com o modelo de constitucionalismo do Estado. Evidentemente, nesse caso, trata-se de ordens “arcaicas” que não dispõem de princípios ou regras secundárias de organização e, por conseguinte, não se enquadram no modelo reflexivo do constitucionalismo. A rigor, elas não admitem problemas jurídico-constitucionais de direitos humanos e de limitação jurídica do poder. Ordens normativas dessa espécie exigem, quando entram em colisão com as instituições da ordem jurídica constitucional de um Estado, um “transconstitucionalismo unilateral” de tolerância e, em certa medida, de aprendizado. Essa forma de transconstitucionalismo impõe-se, porque – embora as referidas ordens jurídicas, em muitas de suas normas e práticas, se afastem sensivelmente do modelo de direitos humanos e de limitação jurídica do poder nos termos do sistema jurídico da sociedade mundial – a simples outorga unilateral de “direitoshumanos” aos seus membros é contrária ao transconstitucionalismo. Medidas nessa direção tendem a ter consequências destrutivas sobre mentes e corpos, sendo contrárias ao próprio conceito de direitos humanos.

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4. A POSSIBILIDADE DO TRANSCONSTITUCIONALISMO NA AMÉRICA LATINA SERVIR À AUTONOMIA DA CULTURA NATIVA, UM DOS OBJETIVOS DO NOVO CONSTITUCIONALISMO. O transconstitucionalismo na América Latina é narrado em casos emblemáticos envolvendo as tribos Suruahá, Yawanawá, Yanomami, Yakye Axa e Sawhoyamaxa. Sobre as três primeiros tribos, colaciona-se a exposição do transconstitucionalista (NEVES, 2010): Um dos casos mais delicados apresentou-se recentemente na relação entre a ordem jurídica estatal brasileira e a ordem normativa dos índios Suruahá, habitantes do Município de Tapauá, localizado no Estado do Amazonas, que permaneceram isolados voluntariamente até os fins da década de 1970 (SEGATO, 2011, p. 363, 357-381). Conforme o direito consuetudinário dos Suruahá, é obrigatório o homicídio dos recém-nascidos quando tenham alguma deficiência física ou de saúde em geral. Em outra comunidade, a dos indígenas Yawanawá, localizada no Estado do Acre, na fronteira entre Brasil e Peru, há uma ordem normativa consuetudinária que determina que se tire a vida de um dos gêmeos recém-nascidos. Nesse contexto, também se tornou público o fato de que práticas desse tipo eram comuns entre os Yanomami e outras etnias indígenas. Essa situação levou a polêmicas, pois se tratava de um conflito praticamente insolúvel entre direito de autonomia cultural e direito à vida. O problema já tomara destaque na ocasião em que uma indígena Yawanawá, em oficina de direitos humanos da Fundação Nacional do Índio, em 2002, descreveu a obrigatoriedade, em sua comunidade, da prática de homicídio de um dos gêmeos, apresentando-se como vítima dessa prática jurídica costumeira (SEGATO, 2011, p. 357 et seq.). êxito, o contexto em que foi elaborado e a discussão que engendrou apontam para um caso singular de “diálogo” e colisão transconstitucional entre ordem jurídica estatal e ordens normativas locais das comunidades indígenas.

Neves (2010), então, prossegue em uma análise crítica à problemática: Os elaboradores e defensores do Projeto de Lei partiram primariamente da absolutização do direito fundamental individual à vida, nos termos da moral cristã ocidental. Secundariamente, também contribuiu para a proposição do Projeto o direito fundamental da mãe à maternidade. Essa postura unilateral pela imposição dos direitos individuais em detrimento da autonomia cultural das comunidades não pareceu adequada para os que se manifestaram em torno do problema em uma perspectiva antropológica mais abrangente. A simples criminalização das práticas indígenas, em nome da defesa do direito à vida, pode ser vista, outrossim, como um verdadeiro genocídio cultural, a destruição da própria comunidade, destruindo suas crenças mais profundas. [...]. As ponderações da antropóloga Rita Laura Segato contribuíram positivamente para o esclarecimento dessa colisão de ordens jurídicas, enfatizando a necessidade de um diálogo entre ordens normativas, em termos que se enquadram em um modelo construtivo de transconstitucionalismo. No contexto do debate, Segato (2011, p. 358) reconheceu que tinha diante de si “a tarefa ingrata de argumentar contra essa lei, mas, ao mesmo tempo, de fazer uma forte aposta na transformação do costume”. No âmbito de sua argumentação, ela invocou pesquisa empírica sobre os Suruahá, na qual se verificou que, em um grupo de 143 membros da comunidade indígena, entre 2003 e 2005, houve dezesseis nascimentos, vinte e três suicídios, dois homicídios de recém-nascidos (denominados pelos antropólogos “infanticídio”, sem o sentido técnico-jurídico do tipo penal) e uma morte por doença. Ou seja, enquanto 7,6% das mortes ocorreram por “infanticídio”, houve 57,6% de mortes por suicídio entre os Suruahá. Essa situação aponta uma compreensão da vida bem distinta da concepção cristã ocidental. Entre essa comunidade indígena, a vida só tem sentido se não for marcada por excessivo sofrimento para

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o indivíduo e a comunidade, se for uma vida tranquila e amena. Assim se justificaria o homicídio de recém-nascido em determinados casos (SEGATO, 2011, p. 364 et seq.). O significado atribuído à vida e à morte pelos Suruahá não seria menos digno do que o sentido que lhes atribui o cristianismo.

No que diz respeito às duas últimas tribos, Neves (2010) é claro: “Parece-me de uma relevância especial a decisão da Corte Interamericana de Direito Humanos, nos julgamentos dos casos Yakye Axa vs. Paraguai e Sawhoyamaxa vs. Paraguai30 (CORTEIDH, 2005b), no qual se decidiu sobre o direito de propriedade sobre territórios das comunidades indígenas Yakye Axa e Sawhoyamaxa, localizadas no Paraguai. Nesses interessantes casos, a CorteIDH decidiu não conforme o conceito técnico-jurídico de propriedade privada definido nos termos do direito constitucional estatal, mas sim levando em conta primariamente a noção cultural de “propriedade ancestral” das comunidades indígenas sobre os respectivos territórios, sedimentada historicamente em suas tradições. Assim, deixando em segundo plano um direito fundamental assegurado constitucionalmente no plano estatal, a CorteIDH argumentou favoravelmente aos direitos de comunidade local extraestatal sobre o seu território, para assegurar direitos humanos garantidos no nível internacional. Esse entrelaçamento multiangular em torno dos direitos humanos e fundamentais não seria possível, se não houvesse uma disposição, nas diversas ordens, especialmente na estatal, para ceder às exigências das perspectivas de outras ordens normativas em relação ao significado e abrangência de direitos colidentes. [...]. Parece-me que os argumentos apresentados no item anterior não perdem o seu significado em virtude dessa referência ao direito internacional. Nesses casos, cabe não apenas uma releitura complexamente adequada tanto das normas estatais de direitos fundamentais quanto das normas internacionais de direitos humanos. Um universalismo superficial dos direitos humanos, baseado linearmente em uma certa concepção ocidental ontológica de tais direitos, é incompatível com um “diálogo” transconstitucional com ordens nativas que não correspondem a esse modelo. Ao contrário, a negação de um diálogo construtivo com as ordens indígenas em torno dessas questões delicadas é contrária aos próprios direitos humanos, pois implicaria uma “ultracriminalização” de toda a comunidade de autores e coautores dos respectivos atos, afetando-lhes indiscriminadamente corpo e mente mediante uma ingerência destrutiva. No âmbito de um transconstitucionalismo positivo impõe-se, nesses casos, uma disposição das ordens estatais e internacionais de surpreender-se em um aprendizado recíproco com a experiência do outro, o nativo em sua autocompreensão.

Nesse ponto, discute a questão do relativismo e do universalismo dos direitos humanos. Como percebe-se, é um debate comum tanto ao transconstitucionalismo, como ao novo constitucionalismo, uma vez que este propõe um Estado plurinacional, ou seja, com diversas jurisdições. Isto posto, é imperioso atentar para a importância de se encontrar pontos de interseção entre as culturas constitucionais, a qual não implica necessariamente em uma uniformidade teórica. O dilema entre o universalismo e o relativismo dos direitos humanos possui uma relevância particular para a América Latina. No ensinamento de Julieta Ripoll (2015), a região padece de uma grande instabilidade sobre “quem é e quem não é um ‘ser humano’” desde a colonização europeia, quando aos índios não era atribuída a “humanidade” e tampouco direitos. Diante desse quadro, João Paulo Allain Teixeira (2000) entende o relativismo como um modo de garantir aos povos historicamente dominados a emancipação da cultura e, portanto, da própria coletividade. Isto porque o universalismo, conforme explanado, tende a valorizar as sociedades dominantes em detrimento das demais – em oposição ao relativismo.

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A mesma lógica, em diferentes proporções, da preservação das tribos indígenas pode ser aplicada em outros casos. Entre os quais os negros, vítimas de racismo; da memória dos torturados, nas ditaduras recentes, olvidadas pelo Estado; dos moradores de favelas das capitais brasileiras frente às ações abusivas da Polícia Militar. São contextos, por vezes, excluídos de direitos e, portanto, ausentes de humanos. CONCLUSÃO O transconstitucionalismo é originariamente concebido sob a pretensão de promover um diálogo, cujos interlocutores estariam posicionados igualmente. Nesse sentido, Neves afirma haver poucos Estados capazes de aplica-lo. Contudo, em um desdobramento do conceito, amplia a ideia de diálogo para a de abertura a novas razões normativas, sem o estabelecimento de uma final ou superior. Esse aprendizado converge com o novo constitucionalismo no que concerne à reformulação do Judiciário nos pretendidos Estados plurinacionais. O presente artigo demonstra a intersecção entre o método e o fenômeno. Por óbvio, trata-se tanto de uma teoria, como de uma prática assaz complexa e, portanto, impossível de ser verticalizada dentro dos limites inerentes a esse artigo. Este ambiciona ser o ponto de partido para futuras discussões sobre a hipótese avençada e assim o faz. REFERÊNCIAS FAJARDO, Raquel Z. Yrigoyen. El horizonte del constitucionalismo pluralista: del multiculturalismo a la descolonización. In: GARAVITO, César Rodríguez (Coord.). El derecho en América Latina: Un mapa para el pensamiento jurídico del siglo XXI. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores S.a., 2011. Cap. 6. p. 139-160. Disponível em: < http://www.justiciaglobal.net/files/actividades/fi_name_recurso.8.pdf>. Acesso em: 15 out. 2015. GALINDO, Bruno. Teoria Intercultural da Constituição: A Transformação Paradigmática da Teoria da Constituição Diante da Integração Interestatal na União Européia e no Mercosul. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. GAVARITO, César Rodríguez. Navegando la globalización: un mapamundi para el estudio y la práctica del derecho en América Latina. El derecho en América Latina: Un mapa para el pensamiento jurídico del siglo XXI. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores S.a., 2011. Cap. 3. p. 69-86. Disponível em: < http://www. justiciaglobal.net/files/actividades/fi_name_recurso.8.pdf>. Acesso em: 15 set. 2015. NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2010. RIPOLL, Julieta Lemaitre. ¿Constitución o barbarie? Cómo repensar el derecho en las zonas “sin ley”. In: GARAVITO, César Rodríguez (Coord.). El derecho en América Latina: Un mapa para el pensamiento jurídico del siglo XXI. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores S.a., 2011. Cap. 2. p. 46-67. Disponível em: < http://www.justiciaglobal.net/files/actividades/fi_name_recurso.8.pdf>. Acesso em: 28 set. 2015.

UPRIMNY, Rodrigo. Las transformaciones constitucionales recientes en América Latina: tendencias y desafios. In: GARAVITO, César Rodríguez (Coord.). El derecho en América Latina: Un mapa para el pensamiento jurídico del siglo XXI. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores S.a., 2011. Cap. 5. p. 109-138. Disponível em: < http://www.justiciaglobal.net/files/actividades/fi_name_recurso.8.pdf>. Acesso em: 10 set. 2015. WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo jurídico. Fundamentos de uma nova cultura no direito. São Paulo: Alfa-Ômega, 1994.

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ESCRAVISMO CONTEMPORANEO E INTEGRAÇÃO ECONÔMICA: UM ESTUDO ACERCA DOS POSSÍVEIS IMPACTOS DA ADESÃO DA BOLÍVIA AO MERCOSUL

BRUNA DE OLIVEIRA MACIEL Graduada e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco, com concentração na área da Teoria Geral do Direito, Direito Internacional Público e Direitos Humanos. Advogada pública concursada da Caixa Econômica Federal. brunaolimaciel@ gmail.com JAQUELINE MARIA DE VASCONCELOS Graduanda em Direito pela Faculdade Boa Viagem, monitora em Direito Constitucional, pesquisadora do PICT/FBV DeVry-Brasil, colaboradora do Núcleo Multidisciplinar de Pesquisa em Direito e Sociedade (NPD/CNPq/UFRPE) e estagiária concursada da Caixa Econômica Federal. [email protected]

SUMÁRIO: 1. Contextualização; 2. A regulamentação do direito comunitário e brasileiro no combate à escravidão contemporânea no âmbito da indústria têxtil; 3. Costurando sonhos: Possíveis reflexos da adesão da Bolívia ao Mercosul; Considerações finais; Bibliografia

CONTEXTUALIZAÇÃO A busca pelo crescimento econômico por meio da formação de blocos regionais é uma estratégia que foi, e continua sendo, adotada por diversos países. A contextura do atual cenário econômico global se caracteriza pela existência de uma ampla mobilidade no fluxo de capitais e dos demais fatores de produção. A instalação de um capitalismo global é inegável, sendo possível visualizar uma dupla e contraditória dinâmica entre concentração e fragmentação. Onde se tem, por um lado, uma voraz competitividade que, por meio de fusões e aquisições empresariais, visa a concentração de capital em busca de reconhecimento e liderança; de outro lado, a fragmentação da produção em escala mundial, por meio dos processos de subcontratação, terceirização e informalização do trabalho, para suprir a demanda desse mercado globalizado (DUPAS, 1999). Para legitimar o pretendido crescimento econômico frente ao desenvolvimento humano, o Tratado de Assunção assinado em 26 de março de 1991, pelas Repúblicas da Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai, buscou deixar consignado em seu preâmbulo uma preocupação (retórica e falaciosa) acerca da justiça social. Na verdade, a questão social toma relevância nos espaços regionais, especificamente no Mercosul, na medida em que a abertura de mercados mostra ampla repercussão na estrutura dos empregos. Os trabalhadores passam a ser o único fator de produção imóvel, enquanto capital e meios de produção circulam livremente. Desta maneira, surge o chamado “dumping social”, em virtude da disparidade do nível de desenvolvimento da legislação sócio laboral de cada um dos países signatários do Mercosul. Nesse sentido, a iminente adesão da Bolívia ao Mercosul acarreta uma fundada preocupação acerca de seus reflexos no combate à escravidão contemporânea no âmbito da indústria têxtil no Brasil. Tendo em vista que os problemas flutuantes sobre as imigrações bolivianas com intuito laboral, são flagrantes e existentes desde a intensificação do fluxo migratório de bolivianos na década de 80 (ILLES, et. al., 2008).

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O acordo entre Brasil e Seul, que teve como objetivo “aliviar o desemprego que atingia a Coreia do Sul – em função da grande leva de pessoas que fugiram do regime comunista da Coreia do Norte, inflando a oferta de mão-de-obra no sul –” (ROSSI, 2005, p. 22), marca as raízes da celeuma. A primeira leva de coreanos desembarcou no porto de Santos no dia 12 de fevereiro de 1963, do navio Tjitjalenk, sendo destinados ao comércio de roupas intermediado pelos judeus, proprietários de grandes lojas do ramo. Os coreanos foram ousados, investiram na confecção de peças e na produção familiar, recebendo maior abertura no momento em que os judeus passaram a trabalhar em outros segmentos. O mercado passou a exigir uma produção em larga escala concomitante ao período em que os bolivianos fugiam da situação crítica de seu país, sendo rapidamente absorvidos pela demanda coreana (ROSSI, 2005). Fausto Brito (1995) defende em seus estudos a existência da chamada ilusão imigratória contida no imigrante internacional. Onde de um lado se está diante de uma racionalidade imersa na decisão de emigrar e por outro lado, há a consideração (ou miragem) das condições da região escolhida. Atualmente a imagem acerca da existência de trabalho digno no Brasil auxiliado à expectativa de ascensão social, continua presente na percepção do povo boliviano, em especial, os provenientes da região de La Paz e Cochabamba (SILVA, 2006). O fato é que as senzalas do século XXI revelam um cenário tão crítico quanto o de outrora, caracterizado, acima de tudo, pela ausência de efetividade das proteções constitucionais sócio laborais para esse nicho específico de trabalhadores, considerados como suspeitos para segurança nacional diante da interpretação do anacrónico Estatuto do Estrangeiro. Com isso, a presente pesquisa se destina a extrair as perspectivas pragmáticas de proteção em aspectos mínimos de desenvolvimento humano para os imigrantes bolivianos com a iminente expansão do bloco econômico. 1. A REGULAMENTAÇÃO DO DIREITO COMUNITÁRIO E BRASILEIRO NO COMBATE À ESCRAVIDÃO CONTEMPORÂNEA NO ÂMBITO DA INDÚSTRIA TÊXTIL. Desde a formação do Mercosul, a ideia de livre circulação de pessoas encontrava acepções vagas e divergentes entre os integrantes do bloco. A livre circulação em um Mercado Comum, de acordo com o modelo europeu, deverá implicar na formação de um mercado de trabalho único, o qual, por força da incorporação normativa do princípio da dignidade da pessoa humana, deverá se pautar pela igualdade de direitos entre os trabalhadores do bloco, o que se reflete numa vedação de discriminação do trabalhador em função de sua nacionalidade. No intuito de amenizar o impacto social da circulação de pessoas entre países com diferentes padrões socioeconômicos e jurídicos, em dezembro de 1991, o Encontro dos Ministros do Trabalho do Mercosul sugeriu a criação do Subgrupo nº 11 como órgão consultivo na estrutura do Mercosul, aprovada na reunião do Conselho do Mercado Comum em 17/11/1991. O principal objetivo do Subgrupo é que todos os trabalhadores, independentemente da origem, possam se beneficiar da proteção dada pela legislação trabalhista do país onde esteja trabalhando, bem como da integração dos sistemas previdenciários. Diante da dificuldade de uniformização da legislação, de forma a aplicar o mesmo texto legal para todos os integrantes, em um bloco econômico que não reconhece instancias supranacionais, a meta do órgão é a harmonização das normas de cunho sócio laboral. No trabalho de harmonização legislativa das condições de trabalho no Mercosul destacam-se as atividades da Comissão Temática nº 1 do antigo Subgrupo nº 11, que tem por objeto a análise comparativa dos sistemas de relações de trabalho entre os países integrantes. Para a verificação das simetrias e assimetrias a comissão vem se socorrendo de um método comparativo genérico, da legislação como um todo.

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José Alves de Paula, coordenador do estudo em 1992 apontava a vantagem do método, uma vez que, para a quantificação dos custos trabalhistas e encargos sociais, é possível a manutenção de vantagens maiores oferecidas por alguns países, uma vez compensadas por outras menores. Assim, o trabalho de harmonização prescinde da convergência de cada instituto individualmente (NASCIMENTO, 2004). Para que a livre circulação de trabalhadores possa se tornar uma realidade no Mercosul, não é suficiente a liberdade de acesso ao emprego. A circulação do trabalhador depende, sobretudo, das condições de permanência no país onde se trabalha. Atualmente, a discussão da eficácia jurídica dos direitos trabalhistas no espectro internacional passa pela conveniência de sua vinculação ao comércio internacional. A influência do comércio nos custos laborais se revela na medida em que países que abrem mão do maior número de direitos trabalhistas conseguem deslocar para si determinados setores produtivos, caracterizando o chamado “dumping social”. No intuito de estabelecer patamares mínimos de direitos trabalhistas, foi aprovada, em 10 de dezembro de 1998, a Declaração Sócio Laboral do Mercosul, trazendo parâmetros a serem adotados como diretrizes na atividade legislativa e na elaboração de políticas públicas de cada país integrante. Para garantir a efetividade do direito de livre circulação do trabalhador no âmbito comunitário merece também destaque o Acordo Previdenciário Multilateral, aprovado por meio do Decreto n° 19/97 do Conselho Mercado Comum. Maria Cristina Irigoyen Peduzzi, Ministra do TST, defende que a Declaração Sócio Laboral do Mercosul não se confunde com uma decisão do Conselho Mercado Comum, regida pelo direito comunitário (PEDUZZI, 2005). Tratando-se de um instrumento internacional assinado pelos presidentes dos países membros deve ser regida pelas normas gerais de Direito Internacional Público, respeitada a característica de tratar-se de norma de consagração de direitos humanos sociais. A noção de bloco de constitucionalidade está presente no Brasil nas discussões sobre controle de constitucionalidade e foi tratada com grande clareza pelo Min. Celso de Mello, no julgamento da ADI 595-ES, na qual discorre sobre a existência de uma tendência ampliativa de, no conceito de Constituição, da seguinte forma: Considerados não apenas os conceitos de índole positiva, expressamente proclamados em documento formal (que consubstancia o texto escrito da Constituição), mas, sobretudo, que sejam havidos, igualmente, por relevantes, em face de sua transcendência mesma, os valores de caráter suprapositivo, os princípios cujas raízes mergulham no direito natural e o próprio espírito que informa e dá sentido à Lei Fundamental do Estado (TAVARES, 2005, p, 99).

A aplicabilidade da teoria do bloco de constitucionalidade se fortaleceu com o advento da Emenda Constitucional nº 45 de 08 de dezembro 2004, a qual confere aos tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos o tratamento de norma formalmente constitucional, quando incorporados ao ordenamento interno segundo o processo legislativo das emendas constitucionais. A discussão sobre a hierarquia normativa da Declaração Sócio Laboral do Mercosul é relevante na medida em que a legislação nacional que trata do trabalhador migrante apresenta inúmeros óbices à meta da livre circulação. No Brasil, a questão do trabalhador estrangeiro, em linhas gerais, pela Lei nº 6.815 de 19 de agosto de 1980, o Estatuto do Estrangeiro, regulamentada pelo Decreto 86.715 de 10 de dezembro de 1981. Cumpre destacar que a Consolidação das Leis do Trabalho, em seu art. 352 e seguintes, segundo um princípio de nacionalização do trabalho vigente na época de sua promulgação, instituiu uma proporção de dois terços de empregados brasileiros nas empresas nacionais. Além disso, o Constituinte de 1998, em prol da segurança e do interesse nacionais estabeleceu a vedação de alguns cargos e atividades para estrangeiros. No art. 12, § 3º estão enumerados determinados cargos privativos de brasileiros natos, quais sejam o de Presidente da República, e, por conseguinte, a ocupar a linha sucessória de substituições, o de Vice Presidente da República, de Presidente da Câmara dos Deputados, de

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Presidente do Senado Federal e de Ministro do STF; assim como os cargos de Carreira Diplomática, de Oficial das Forças Armadas e de Ministro de Estado da Defesa. A Constituição Federal restringe ainda aos estrangeiros a propriedade de empresa jornalística e de rádio difusão sonora e de sons e imagens. De acordo com a redação dada ao art. 222 pela Emenda Constitucional nº 36 de 28 de maio de 2002, a propriedade está restrita a brasileiros natos ou naturalizados há mais de dez anos e a pessoas jurídicas constituídas sobre as leis brasileiras e que tenham sede no país. Neste último caso, não podendo a participação do capital estrangeiro exceder trinta por cento do capital total e volante das empresas, conforme regulamentação do §1º do art. 222 dada pela Lei 10.610 de 20/12/02. Apontadas as limitações constitucionais ao exercício de determinadas atividades laborais pelo estrangeiro, observa-se que a questão do trabalhador migrante não mereceu tratamento específico pelo legislador infraconstitucional. O Estatuto do Estrangeiro mostra-se anacrônico no trato da questão, pois não se compatibiliza com a realidade das disposições comunitárias. As hipóteses de concessão de vistos correspondem a uma classificação de ingressos que ignora o direito à livre circulação do trabalhador no âmbito comunitário: trânsito, turismo, temporário e permanente. O visto temporário, tratado pelo art.13 do Estatuto do Estrangeiro, abrange apenas determinadas categorias profissionais especializadas, destinando-se ao estrangeiro em viagem cultural ou missão de estudos; em viagem de negócios; na condição de artista ou desportista; na condição de estudante; na condição de cientista, professor, técnico ou profissional de outra categoria, sob regime de contrato ou a serviço do Governo brasileiro; na condição de correspondente de jornal, revista, rádio, televisão ou agencia noticiosa estrangeira; e na condição de ministro de confissão religiosa ou membro de instituto de vida consagrada e de congregação ou ordem religiosa. Por outro lado, o visto permanente restringe ainda mais a possibilidade de residência, posto que só será conferido a quem seja tido como mão-de-obra especializada, capaz de contribuir com a política nacional de desenvolvimento do país, incrementando a produtividade e assimilação de tecnologia, dentre outros requisitos a serem estipulados por meio de resoluções pelo Conselho Nacional de Imigração. Em todos os casos, o estrangeiro trabalhador está proibido de exercer diversas atividades elencadas no art. 106 do Estatuto. O que se observa no Brasil é que seja para o visto permanente ou temporário, a entrada do trabalhador migrante está sempre condicionada à solicitação da empresa interessada em contratar, conforme disposto na Resolução Administrativa nº 07 de 06 de outubro de 2004 do Conselho Nacional de Imigração. A mais recente Resolução Normativa do Conselho é a de nº 64 de 13 de setembro de 2005 e trata dos requisitos para quem pretenda vir ao Brasil sob visto temporário. A resolução especifica exigências de comprovação da qualificação e/ou experiência profissional compatível com a atividade que irá ser exercida a pedido da empresa requerente. Por meio de diplomas, certificados ou declarações, o estrangeiro deverá comprovar experiência de três anos, para atividades artísticas e culturais que independam de formação escolar; dois anos de experiência e escolaridade mínima de nove anos para o exercício de profissão de nível médio; experiência de um ano a partir da conclusão da graduação para profissões de nível superior; ou a conclusão de curso de mestrado na área que irá desempenhar. Torna-se evidente que só mão-de-obra bastante qualificada será capaz de preencher tais requisitos. A livre circulação é ficcional para o trabalhador de baixa qualificação. No próprio âmbito comunitário, os mecanismos de circulação do trabalhador se concentram na área de serviços. No ano de 2000 o Conselho Mercado Comum aprovou o Decreto nº 48, que permite dispensa de visto a determinadas categorias profissionais, como artistas, professores, cientistas, profissionais e técnicos especializados, cujo propósito seja desenvolver suas atividades por até noventa dias corridos, prorrogáveis por igual período, no limite de cento e oitenta dias anuais.

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Quanto ao reconhecimento de títulos, o Brasil, por meio do Decreto Legislativo nº 800 de 2003, incorporou a sua ordem jurídica o “Acordo de admissão de títulos e graus universitários para o exercício de atividades acadêmicas no Estados Partes do Mercosul” por meio do qual se estabelece uma carga horária mínima para reconhecimento de títulos de graduação e pós-graduação, bem como um Sistema de Informação e Comunicação do Mercosul, que proporcionará informação sobre as agências credenciadoras dos Países, os critérios de avaliação e os cursos credenciados. Por fim, a mais recente conquista em prol da livre circulação, com reflexos no trabalhador, que encontrou acolhida na ordem jurídica interna foi o “Acordo sobre Regularização Migratória Interna de Cidadãos do Mercosul”, por meio do Decreto Legislativo nº 928 de 2005, por meio do qual se busca a facilitação dos trâmites migratórios para os cidadãos dos Estados Partes do MERCOSUL, no sentido de permitir sua regularização migratória sem a necessidade de regressar a seu país de origem. O Estado brasileiro reconhece o problema do trabalho análogo ao de escravo e a exploração de bolivianos em oficinas de costura e tem buscado implementar iniciativas de inclusão desses imigrantes à sociedade brasileira. Exemplo disso foi a sanção do projeto de lei 1.664/2007, responsável pela anistia e legalização de milhares de migrantes no país. Nessa linha ainda se segue o projeto de lei n.º 288/2013 do senador Aloysio Nunes Ferreira, já remetida à Câmara dos Deputados, buscando, dentre outros, a efetiva substituição do Estatuto do Estrangeiro, como é possível extrair da explicação da ementa da iminente lei: Explicação da Ementa: Dispõe sobre os direitos e deveres do migrante e regula a entrada e estada de estrangeiros no Brasil, revogando, em parte, o Estatuto do Estrangeiro (Lei nº 6.815/80). Regula os tipos de visto necessários para ingresso de estrangeiros no país. Estabelece os casos e os procedimentos de repatriação, deportação e expulsão. Dispõe sobre a naturalização, suas condições e espécies e os casos de perda de nacionalidade. Trata da situação do emigrante brasileiro no exterior. Tipifica o crime de tráfico internacional de pessoas para fins de migração e infrações administrativas relativas a entrada irregular no país. Altera a Lei nº 8.213/91 (Previdência Social), para facilitar a contribuição à Previdência do trabalhador brasileiro referente ao período em que tenha trabalhado em país estrangeiro (BRASIL, 2013).

2. COSTURANDO SONHOS: POSSÍVEIS REFLEXOS DA ADESÃO DA BOLÍVIA AO MERCOSUL. Segundo Rossi (2005), a maior parte dos funcionários utilizados na indústria têxtil brasileira é composta pelos imigrantes latino-americanos em situação ilegal no Brasil. São ele paraguaios, chilenos, bolivianos, peruanos que saem dos seus países de origem buscando a sobrevivência do sonho de uma vida melhor. Atualmente é possível constatar que entre os hispano-americanos, os imigrantes bolivianos no Brasil são a maioria, localizados, em especial, no estado de São Paulo. De acordo com os dados trazidos por Silva (2008), no Censo de 2000 houve o registro de 20.388 imigrantes bolivianos que residiam no Brasil e no Censo de 2010, já se tinha 38.826 o que constitui um aumento de 90,43% somente naquele período. Do ponto de vista espacial, os bolivianos (as) estão concentrados em bairros da Zona Central da cidade, como Bom Retiro, Brás, Pari, Barra Funda, Cambuci, Mooca, entre outros. Entretanto, há também uma significativa presença deles em bairros da Zona Leste, como Belém, Tatuapé, Penha, Itaquera, Cangaíba, Engenheiro Goulart, Ermelino Matarazzo, Guaianases, São Mateus, e em bairros da Zona Norte, como Vila Maria, Vila Guilherme, Casa Verde, Cachoeirinha, entre outros. Entretanto, nos últimos anos, a presença de bolivianos extrapolou os limites do município de São Paulo, podendo ser encontrada em cidades como Guarulhos, Osasco, Santo André, Diadema, e

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em outras cidades do interior paulista, como Jundiaí, Campinas, Americana, entre outras (SILVA, 2006, p. 160).

Nesse ponto, toma-se cuidado para que com o exposto não se chegue a uma falsa premissa. Pois é comum e falacioso deduzir que o processo migratório ocorre de forma espontânea, ao livre arbítrio das pessoas que vão em busca de melhores condições. Ocorre que esse processo é, na verdade, induzido. Observe que a Bolívia é um dos países mais pobres da América Latina. Em sua própria pátria os bolivianos são expostos e submetidos a atividades laborais precárias, sem perspectiva de crescimento e sem condições dignas vida, são coagidos pelo próprio meio no qual estão inseridos a migrar, para que sejam componentes efetivos do sistema capitalista (MARINUCCI, 2005). Nota-se que a mão-de-obra boliviana é estratégica para alimentar esse sistema. Os donos das oficinas de costura se utilizam dos sonhos que envolvem a ascensão social e se projetam para os imigrantes como se fossem os responsáveis pelo resgate de uma vida sem perspectivas. Dessa forma, diferentemente dos escravos ligados à produção rural da fronteira agrícola da Amazônia, que sofrem intensiva e constante coação física, a submissão à condição degradante e de superexploração dos bolivianos na indústria têxtil se dá por meios indiretos de coação moral e psicológica. “Em nome da fidelidade e da possibilidade de trabalhar, o imigrante clandestino exerce um contrato de trabalho verbal no qual ele é remunerado por peça, totalizando um salário-hora muito abaixo da mão de obra local e exercendo uma jornada extensa de trabalho, que pode atingir 16 ou 18 horas por dia” (CACCIAMALI, AZEVEDO, 2005, p.137). Não obstante, ainda é propagado um sentimento de insegurança já existente. Ou seja, os bolivianos que estão de forma irregular no Brasil passam a ser constantemente amedrontados no sentido de que a qualquer momento podem ser abordados pela polícia federal e consequentemente deportados. Com isso, sabe-se o porquê de a mão-de-obra local ser preterida frente à boliviana. O empregado do meio urbano brasileiro, que é envolvido por um ambiente mais protecionista conquanto à legislação trabalhista, visualiza de forma mais racional a exploração submetida. Sabe-se que se porventura for submetido ao trabalho degradante, em nenhum momento os direitos trabalhistas serão negados (SILVA, 1995). Teoricamente, tanto a Bolívia quanto o Brasil trazem um arcabouço normativo de repressão ao trabalho escravo contemporâneo. Na dicção dos artigos 8° e 5° da Constituição boliviana de 1967, tem-se de forma expressa a proibição do trabalho forçado. No Brasil, a valorização do trabalho e a dignidade da pessoa humana constituem o próprio fundamento da República Federativa, sem olvidar dos diversos dispositivos do código penal brasileiro e dos compromissos internacionais firmados, como: a Convenção das Nações Unidas sobre Escravatura (1926), promulgada pelo Decreto nº 58.563/1966; a convenção nº 29 da Organização Internacional do Trabalho sobre o Trabalho Forçado, promulgada pelo Decreto nº 41.721/1957 e a Convenção nº 105 da Organização Internacional do Trabalho sobre a Abolição do Trabalho Forçado, promulgada pelo Decreto nº 58.822/1966 (MATTIOLI, 2015). Com isso, nota-se que o abismo entre a teoria e a prática consiste justamente na ineficácia dos dispositivos jurídicos existentes e/ou na prevalência do Estatuto do Estrangeiro (lei 6.815/1981) que trata os imigrantes como inimigos da segurança nacional, favorecendo a clandestinidade e os altos custos burocráticos de mudança territorial e é justamente nesse aspecto que se visualiza os possíveis reflexos da adesão da Bolívia como membro pleno do Mercosul. Segundo o jornal El País (2015), todos os países do Mercosul (Argentina, Brasil, Paraguai, Uruguai e Venezuela) já assinaram na cúpula de Brasília um novo protocolo de adesão à união aduaneira. Na verdade, esse acordo já havia sido firmado em 2012, mas o aval do Paraguai não foi possível devido à sua suspensão do bloco decorrente da destituição do presidente Fernando Lugo, sendo o fato avaliado pelo Mercosul como uma afronta aos princípios democráticos que norteiam o bloco. Hoje para o ingresso do sexto membro ao bloco, necessita-se apenas da ratificação dos Congressos do Paraguai e do Brasil. Sabe-se que o Mercosul é constituído através de acordos sejam eles regionais ou bilaterais sobre a eliminação de direitos aduaneiros e restrições alfandegárias à circulação de mercadorias; a livre circulação

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de bens, serviços, fatores produtivos. Dentre outros fatores, o Mercosul é dependente de mercado comum de trabalho e por isso, busca viabilizar a liberdade de acesso dos trabalhadores entre os Estados-Membros, com um tratamento paritário e previdenciário. O direito de livre circulação de trabalhadores encontra fundamento no princípio da não discriminação, que comporta a igualdade de tratamento entre todos os trabalhadores que desempenham sua atividade no âmbito de um Mercado Comum, superando-se todo discriminação quanto aos trabalhadores estrangeiros face aos trabalhadores nacionais. A discriminação cria dificuldade para a livre circulação e pode criar «reservas de mercado» para os trabalhadores nacionais (no Brasil, recordem-se que vigora, atualmente, a Lei 6.815/80 Estatuto do Estrangeiro, que define a situação jurídica do estrangeiro do Brasil e cria o Conselho Nacional de Imigração; o Decreto lei 691/69, que dispõe sobre técnicos estrangeiros; a Lei 7.064/82, que trata do deslocamento de trabalhadores contratados por empresas de engenharia que prestam serviços em outros países) (MATTIOLI, 2015, p. 4).

Nesse passo, observa-se que o processo de integração do Mercosul não incrementa apenas as relações comerciais entre os Estados em uma economia mais globalizada, os reflexos são mais amplos do que esses. A adesão de novos membros ao bloco anuncia também um nível mais elevado do ponto de vista humanitário dentro do mercado comum, no qual compreende a livre circulação de pessoas. A livre circulação de pessoas implica na abolição das discriminações existentes calcadas na nacionalidade, estatuindo igualdade de direitos com os países-membros do MERCOSUL, de forma a favorecer o combate ao trabalho degradante em prol do desenvolvimento humano pleno (AZEVEDO, 2005). Se não é assim, observa-se o feito pela Reunião dos Ministros do Trabalho do MERCOSUL no dia 26 de junho de 2015, assinando uma nova versão da Declaração sócio-laboral do MERCOSUL, no qual reforçou o compromisso com os direitos sociais e trabalhistas, como se observa nos trechos abaixo: Trabalhadores migrantes e fronteiriços Art. 4º Todos os trabalhadores migrantes, independentemente de sua nacionalidade, têm direito à ajuda, informação, proteção e igualdade de direitos e condições de trabalho reconhecidos aos nacionais do país em que estiverem exercendo suas atividades. Os Estados Partes comprometem-se a adotar medidas tendentes ao estabelecimento de normas e procedimentos comuns relativos à circulação dos trabalhadores nas zonas de fronteira e a levar a cabo as ações necessárias para melhorar as oportunidades de emprego e as condições de trabalho e de vida destes trabalhadores. Eliminação do trabalho forçado Art. 5º Toda pessoa tem direito ao trabalho livre e a exercer qualquer ofício ou profissão, de acordo com as disposições nacionais vigentes. Os Estados Partes comprometem-se a eliminar toda forma de trabalho ou serviço exigido a um indivíduo sob a ameaça de uma pena qualquer e para o qual dito indivíduo não se ofereça voluntariamente. Ademais, comprometem-se a adotar medidas para garantir a abolição de toda utilização de mão-de-obra que propicie, autorize ou tolere o trabalho forçado ou obrigatório. De modo especial, suprime-se toda forma de trabalho forçado ou obrigatório que possa utilizar-se: a) como meio de coerção ou de educação política ou como castigo por não ter ou expressar determinadas opiniões políticas, ou por manifestar oposição ideológica à ordem política, social ou econômica estabelecida; b) como método de mobilização e utilização da mão-de-obra com fins de fomento econômico; c) como medida de disciplina no trabalho; d) como castigo por haver participado em greves; e) como medida de discriminação racial, social, nacional ou religiosa (MERCOSUL, 2015, p. 2)

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CONSIDERAÇÕES FINAIS Esta pesquisa trabalhou em um primeiro momento questões acerca do fluxo migratório de trabalhadores e buscou identificar as origens do trabalho análogo ao escravo no Brasil. O segundo capítulo explorou o arcabouço legislativo local e comunitário, identificando que o aparato normativo brasileiro é ineficiente no combate à exploração de mão-de-obra imigrante. Tendo em vista que o Estatuto do Estrangeiro, Lei 6.815, em vigor desde 1980, e posteriormente alterado pela Lei 6.964/81, é apresentado como um mecanismo de restrição e repressão. Mostrando-se desatualizado e desalinhado com o atual contexto sócio-político-econômico nacional e mundial. O referido estatuto trabalha os imigrantes como criminosos, clandestinos, em perene ilegalidade facilitando a fragilidade trabalhista concernente ao quadro de empregabilidade dos bolivianos. O projeto de lei n.º 288 de 2013 que visa à substituição do Estatuto do Estrangeiro, constituirá no cenário latino-americano um grande avanço no combate ao trabalho escravo contemporâneo. Contudo a presente pesquisa se deteve à relação Brasil-Bolívia, uma vez que o projeto de lei abarcará todos aqueles considerados imigrantes, sejam eles bolivianos, peruanos, chilenos. Trabalhar a Bolívia também não foi uma escolha aleatória. Em regiões específicas do estado de São Paulo, como Bom Retiro, Brás, Pari Cambuci, a predominância dos imigrantes bolivianos é sensível aos olhos e os dados comparativos entre os censos de 2000 e 2010 somente ratificaram a hegemonia desse contingente. A importância deste trabalho se pauta justamente na atualidade do tema desenvolvido. O processo de adesão da Bolívia como membro pleno do Mercosul está neste último semestre de 2015 em seus trâmites finais, aguardando tão-somente o aval do Congresso brasileiro e paraguaio. A expansão do bloco com a integração da Bolívia trará as pretendidas benesses de cunho econômico, mas principalmente, de forma reflexa, no desenvolvimento humano, ao passo que questões laborais Brasil-Bolívia serão abarcadas pelas diretrizes da livre circulação de pessoas prevalente no MERCOSUL, ratificada no segundo semestre de 2015 com a assinatura da nova versão da Declaração sócio-laboral do bloco. REFERÊNCIAS AZEVEDO, Flávio Antonio Gomes de. A presença de trabalho forçado urbano na cidade de São Paulo: Brasil/Bolívia. São Paulo, 2005. 2012. Tese de Doutorado. Dissertação (Mestrado)-USP. BRASIL, Senado Federal. Projeto de lei n.° 288 de 2013. Ementa: Institui a Lei de Migração e regula entrada e estada de estrangeiros no Brasil. Disponível em >. Acesso em dez de 2015. BRITO Fausto. Os Povos em Movimento: As migrações internacionais no desenvolvimento do capitalismo. PATARRA, Neide (org). Emigração e Imigração Internacionais no Brasil Contemporâneo. Vol1: 1995. CACCIAMALI, M. C. e AZEVEDO, F. A. G. de. Entre o tráfico humano e a opção da mobilidade social: a situação dos imigrantes bolivianos na cidade de São Paulo. In: Seminário Internacional Trabalho Escravo por Dívida e Direitos Humanos, GPTEC – Centro de Filosofia e Ciências Humanas/UFRJ. Rio de Janeiro: 2005. DUPAS, Gilberto. A questão do Emprego e da Exclusão Social na Lógica da Economia Global. In Direitos Humanos no Século XXI. Paulo Sérgio Pinheiro e Samuel Pinheiro Guimarães (org.). Brasília: IPRI, 1999.

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O PODER-DEVER DO ESTADO NA PROTEÇÃO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE NO ÂMBITO FAMILIAR À LUZ DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 Bruna de Oliveira Maciel Graduada e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco, com concentração na área da Teoria Geral do Direito, Direito Internacional Público e Direitos Humanos. Advogada pública concursada da Caixa Econômica Federal.brunaolimaciel@ gmail.com Jaqueline Maria de Vasconcelos Graduanda em Direito pela Faculdade Boa Viagem, monitora em Direito Constitucional, pesquisadora do PICT/FBV DeVry-Brasil, colaboradora do Núcleo Multidisciplinar de Pesquisa em Direito e Sociedade (NPD/CNPq/UFRPE) e estagiária concursada da Caixa Econômica Federal. [email protected]

SUMÁRIO: 1. Contextualização: A evolução do conceito de família e sua proteção legal; 2. A caracterização da alienação parental e seu tratamento na ordem jurídica brasileira; 3. Princípios Constitucionais que fundamentam a igualdade parental; 4. As falsas memorias e suas repercussões na dignidade da pessoa humana. Considerações Finais; Referências.

1. CONTEXTUALIZAÇÃO: A EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE FAMÍLIA E SUA PROTEÇÃO LEGAL. O presente estudo parte de concepções preliminares imprescindíveis ao objetivo do trabalho, comportando o devido entendimento do papel do Estado imerso em uma lógica neoconstitucional diante do princípio da proteção integral da criança e do adolescente. O marco histórico do constitucionalismo – Magna Carta de 1215 – completou os seus oitocentos anos de luta com o intuito político-jurídico de limitação do poder estatal. Os ideais existentes para conter o poderio do Leviatã foram perpassados, servindo como reflexo para outras vitórias como a Constituição Norte-Americana de 1787, a Constituição Francesa de 1791, que traziam em seu âmago os direitos negativos (ou de primeira dimensão), além da configuração de um Estado Liberal. O pleito pela aquisição de mais e de novos direitos prosseguiu, fazendo emergir a segunda, terceira e até mesmo a quarta dimensão de direito, pondo termo àquele modelo liberal. Mas foi o Pós-Segunda Guerra Mundial que quebrou os paradigmas fazendo com que a sociedade buscasse muito mais do que um Estado Social ou Estado Democrático de Direito, imerso em uma constituição simbólica, tendo em vista a pouca aplicabilidade de suas normas. O marco pós-moderno impulsionou uma onda neoconstitucional que pugna pela ampliação da jurisdição constitucional, pela hermenêutica do ordenamento jurídico equivalente aos seus princípios e, sobretudo, pela eficácia de suas diretrizes. Com isso, tem-se o poder-dever do Estado na proteção integral da criança e do adolescente cristalizado na Constituição Federal de 1988. Ocorre que, pragmaticamente um trabalho que deveria ser executado de forma holística, é negligenciado pelo Estado no tocante ao resguardo dos menores no âmbito familiar, dando margem à Síndrome da Alienação Parental.

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Trabalhar com o tema Alienação parental requer mais do a interdisciplinaridade de matérias, carece de um retrospecto às raízes do problema. Dessa forma, verifica-se que o próprio modelo patriarcal de família, segundo destaca Côrrea (2009), é herança da concepção romano-cristã e tendo a sua essência constituída pelo matrimônio, de modo que só eram tidos como filhos os que nascessem na constância de um casamento legítimo. Vale lembrar que a adoção do Cristianismo como religião oficial do Estado Romano fez com que somente pessoas que profetizassem o catolicismo pudessem se casar e ter a família protegida pela lei (NORONHA & PARRON, 2012, p. 04). Com a adoção das Ordenações Filipinas no Brasil, às mulheres somente era concedido o papel exclusivo de mãe e aos homens o protagonismo matrimonial, o pátrio poder (SCANDELARI, 2013). Nessa linha, o Código Civil de 1916 consagra na sociedade a mentalidade patriarcal da época romano-cristã embutindo a ideia da superioridade do homem sobre a mulher e os filhos, fixando em seus artigos a relativa incapacidade da esposa e comparando-a com os pródigos, índios e menores entre 18 e 21 anos (VERSIANI; ABREU; SOUZA; TEIXEIRA, 2008). Por longo período, a educação fornecida à mulher tinha como objetivo a formação de boas mães para criarem grandes homens. Mas, com a Revolução Industrial esses preconceitos ainda amarrados passam a ser desatados, com a gradativa participação feminina no trabalho das fábricas, processo que teve seu auge na Primeira Guerra Mundial. Somente então se fortaleceu a luta por educação, mercado de trabalho e direitos de participação política, através do movimento feminista. No Brasil, o Estatuto da Mulher Casada, Lei 4.121 de 27/08/1962, caracterizou uma das maiores conquistas desse movimento. Dentre tantas modificações trazidas, a mais notória foi a revogação do princípio da capacidade relativa, concedendo o pátrio poder a mulher nos casos em que o seu marido fosse, por algum motivo, impedido. Em 1977, A Lei do Divórcio (lei n. 6515/77) trouxe maior facilidade ao rompimento matrimonial e refletiu um maior nível de aceitação social desta realidade. Concomitante a isso, a luta feminista já havia surtido alguns efeitos e o progressivo crescimento do aumento da independência financeira das mulheres, certamente reduziu sua tolerância à ideia de submissão marital, o que fez com que o número de divórcios aumentasse substancialmente. No entanto, somente com promulgação da Constituição Federal de 1988 a concepção de família para o Direito de fato passa a ter uma nova roupagem. Não apenas porque a Constituição reconheceu o divórcio como instrumento para a dissolução do casamento civil (§6º do art. 226 da CF), mas porque, com ela, adentrou no sistema jurídico brasileiro o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, considerado por muitos doutrinadores o ponto de partida para a transformação do paradigma do tratamento legal da família. Bolivar da Silva Telles (2011) afirma que a dignidade na proteção da família deve ser compreendida como igual dignidade para todas as entidades familiares e interpreta que seria indigno proporcionar tratamentos diferenciados aos diversos tipos de constituição familiar. Associado a este princípio, tem-se ainda o Princípio da Igualdade que garante aos homens, às mulheres e aos filhos adotivos e provenientes ou não do casamento, o mesmo tratamento. Por isso mesmo, as famílias constituídas através da união estável, foram equiparadas em direitos e deveres ao casamento (NORONHA & PARRON, 2012). Esse arcabouço constitucional reflete que a concepção de organização familiar, tradicionalmente conhecida, já não comporta as relações familiares atuais. Hodiernamente a mãe trabalha, estuda, projeta sua carreira e, com a evolução da ciência, opta por ter ou não mais filhos devido aos mecanismos contraceptivos. A figura do pai é recriada, pois passam a ser mais presentes e capazes de cuidar dos filhos, dividindo inclusive as atividades domésticas (PAULO, 2011). A mudança do tratamento legal da família vai além. Com um teor democrático e cooperativo de família na Constituição de 1988, os filhos, que antes eram tidos como objeto da relação matrimonial, agora se tornam o foco principal da proteção do Estado, caracterizando-se como sujeitos de direito. Dentro dessa lógica, o poder familiar passa a ser entendido como um instituto de obrigações, encargos e deveres de ambos os

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pais (SCANDELARI, 2013). Outra decorrência é que os filhos devem ser detentores de uma atenção especial do Estado e seu aparato judiciário, seja quanto aos deveres compartilhados pelos pais na constância de sua união, seja diante dos potenciais conflitos decorrentes da separação dos pais, situação que se constitui como objeto do presente trabalho. 2. A CARACTERIZAÇÃO DA ALIENAÇÃO PARENTAL E SEU TRATAMENTO NA ORDEM JURÍDICA BRASILEIRA. A problemática que motiva o presente trabalho é que essa concepção de família contemporânea parece que ainda não transpôs as barreiras da sociedade conjugal, sobretudo no que diz respeito às consequências da separação do casal no tocante ao compartilhamento do poder familiar sobre as crianças. Pretende-se tratar especificamente, da resposta da ordem jurídica brasileira às condutas dos pais titulares da guarda da criança após a separação, que ocasionam no menor a Síndrome da Alienação Parental (SAP). A nomenclatura foi cunhada pelo o psiquiatra Richard A. Gardner1 em 1985, que verificou um comportamento atípico comum às crianças e adolescentes envolvidos no fim da sociedade conjugal, que possui como característica marcante o sentimento repugnante que os filhos passaram a demonstrar pelo genitor que não detinha a sua guarda. Gardner identificou três estágios do fenômeno: No estágio considerado como leve, tem-se a desmoralização do genitor de forma discreta e uma suposta onda de esquecimento toma conta do genitor alienador. Por exemplo, “esquece” de informar sobre os compromissos escolares e fala à criança que o outro genitor poderia ter ido às festividades, mas não quis ou deu pouca importância e esqueceu. Nesse estágio é também comum criar outras atividades e até mesmo lamentar a solidão que sente durante o período de visitação para que isso cause um sentimento de remoço e faça com que a criança sempre tenha que tomar a difícil escolha entre a mãe ou o pai (LOGANO, 2011). No estágio moderado, o genitor alienado é malvado e o outro é bonzinho. Segundo Jorge Trindade (2010), são utilizadas táticas de exclusão do outro genitor e além da intensificação dos atos do estágio inicial, a criança passa a apresentar um comportamento inadequado e as visitas deixam de acontecer por motivações fúteis. No último estágio, os filhos já compactuam com a paranoia do alienador. Ficam em pânico, gritam e choram com a ideia de ter que visitar o outro genitor (ROSA, 2008). François Podevyn ainda apresenta atitudes comumente verificadas durante o processo alienatório, tais como: “a) Recusar de passar as chamadas telefônicas aos filhos [...]; j) Envolver pessoas próximas (sua mãe, seu novo conjugue, etc.) na lavagem cerebral de seus filhos[...]; q) Culpar o outro genitor pelo mau comportamento dos filhos” (PODEVYN, 2001). A Lei 12.318, que dispõe sobre alienação parental no Brasil, ainda elenca de forma meramente exemplificativa algumas condutas típicas da alienação parental. Tais como a desqualificação de um dos genitores no exercício da maternidade ou paternidade; mudar de domicílio para um local distante sem uma justificativa plausível ou até mesmo não informar o novo endereço; dificultar o exercício do direito de convivência familiar, assim como omitir informações pessoais relevantes sobre os filhos no tocante aos estudos, saúde dificultando assim, o exercício da autoridade parental.2 De acordo com o art. 2° da referida lei, o ato não é promovido exclusivamente pela mãe ou pelo pai, mas sim por qualquer pessoa que possa interferir na formação psicológica da criança ou do adolescente com o intuito de romper os laços afetivos com um dos genitores.

1  Richard Alan Gardner nasceu em 28 de abril de 1931. Muitas de suas obras são autoridade na área da pedopsiquiatria, dentre elas “Parental Alienation Syndrome”, citadas como referência pela American Psychiatric Association. Professor na Universidade de Columbia de 1963 a 2003, ele foi o primeiro nos Estados Unidos a elaborar jogos que permitem a expressão da criança durante a avaliação. Impressionado pelos comportamentos estranhos das crianças no contexto do divórcio, ele identificou certos mecanismos e publicou sua primeira obra sobre a SAP em 1985. 2  BRASIL. Lei 12. 318 de Agosto de 2010. Dispõe sobre a Alienação Parental.

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Nesse sentido, observemos o trecho de um acórdão que decidiu de forma unanime em negar provimento ao apelo dos avós maternos que pretendia obter a guarda da neta, após o falecimento da mãe, e com isso provocava a alienação parental. A guarda de VICTÓRIA foi deferida ao pai [...] Numa mistura de mágoa e rancor, os apelantes assumem a posição de vítimas, procuram responsabilizar o apelado pelas mortes do neto e da filha, sem se dar conta de que, com isso, permitem que esses sentimentos negativos embotem o amor que sentem pela neta, transferindo para ela o peso de ser o único consolo dos avós velhinhos, a única coisa que restou da mãe. [...] Ao invés de se mobilizarem em desfazer da figura do pai – ensejando a síndrome de alienação parental noticiada na petição e laudo de fls. 438/443, o que de melhor a família materna fazer por esta menina é um esforço para superar as diferenças e se empenhar para que ela se sinta amada a afetivamente amparada por todos aqueles a quem ama, inclusive o pai. Esse esforço é fundamental para evitar as graves seqüelas da Síndrome de Alienação Parental, que podem se manifestar como depressão crônica, incapacidade de adaptação em ambiente psico-social normal, transtornos de identidade e de imagem, desespero, sentimento incontrolável de culpa, sentimento de isolamento, comportamento hostil, falta de organização, dupla personalidade a às vezes suicídio.3

Seja ou não intencional, é a criança ou o adolescente quem mais sofre com o fim da sociedade conjugal, tendo que por vezes optar com qual dos genitores irá ficar e isso pode lhe parecer como uma forma de mensurar, ou melhor, quantificar o amor que sente pela mãe ou pelo pai. Decerto, como diz a Promotora de Justiça Raquel Pacheco: “ o maior sofrimento da criança não advém da separação em si, mas do conflito e do fato de se ver abruptamente privada do convívio com um de seus genitores, apenas porque o casamento deles fracassou”. Com a alienação parental princípios como o melhor interesse da criança e do adolescente, da prevalência e convivência familiar, da afetividade e da paternidade são infringidos. O art. 3° da lei 12. 318 ratifica a necessidade de o Estado “empreender diligências suficientes para amparo dos direitos e garantias fundamentais de sobrevivência e desenvolvimento humano” das crianças e adolescente que sofre de tamanho abuso moral. Com o presente trabalho, pretende-se demonstrar que há no processo da Alienação Parental uma verdadeira afronta a uma norma fundamental do Estado Democrático de Direito. Dentre os princípios constitucionais atingidos durante o processo da alienação parental, este trabalho se concentra nos pilares da Igualdade e da Dignidade da Pessoa Humana. O primeiro princípio será direcionado à igualdade parental que, como visto, por um longo lapso temporal, foi lesado pelo poder patriarcal. O segundo princípio será compreendido sob a ótica da prole e do genitor alienado que são lesados em sua dignidade durante os diversos níveis da síndrome em questão, que pode escalar da privação dos laços de afetividade familiar a repercussões mais severas, como ocorre em casos extremos, onde quem detém a guarda induz na criança falsas memórias, inclusive de abuso sexual. 3. PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS QUE FUNDAMENTAM A IGUALDADE PARENTAL. A Constituição da República Federativa do Brasil em seu art. 226, §§ 3º e 5º reconhece a igualdade entre homens e mulheres no que tange à sociedade conjugal, constituída tanto pelo casamento quanto pela união estável. Sob a égide desse princípio, tem-se a despatriarcalização das relações familiares, já que a figura paterna não mais exerce a dominação e o poder absoluto de outrora. Observa-se que organização familiar é democrática e colaborativa, desaparecendo o conceito e a essência do pátrio poder, permitindo que inclusive os filhos exponham suas opiniões (TARTUCE, 2006). 3  BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Cível Nº 70017390972. Relator. DES. LUIZ FELIPE BRASIL SANTOS.

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O princípio da igualdade aplicado no âmbito familiar se refere ao tratamento entre homem e mulher quanto à chefia da sociedade conjugal. Nas palavras de Maria Berenice Dias: “A organização e a própria direção da família repousam no princípio da igualdade de direitos e deveres dos cônjuges, tanto que compete a ambos a direção da sociedade conjugal em mútua colaboração. São estabelecidos deveres recíprocos e atribuídos igualitariamente tanto ao marido quanto à mulher” (DIAS, p 63, 2007). A expressão poder familiar é o a que mais se adequa a contemporânea concepção de família, que devido ao advento da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA – Lei 8.069/1990) passou a ser guiada pelo princípio da igualdade, conferindo assim um caráter protetivo e um tratamento isonômico para ambos os cônjuges. Para Carlos Roberto Gonçalves e Maria Helena Diniz o poder familiar é tido como múnus de direitos e deveres e que a convivência com um dos pais não concede a titularidade do poder familiar (FONTELES, 2014). O Código Civil de 2002 em seu art. 1.631 concomitante ao art. 1.579 ratifica a permanência do poder familiar em casos de separação judicial, divórcio ou dissolução da união estável sem que haja modificação dos direitos e deveres relacionados aos filhos. Para atender ao princípio da igualdade, no âmbito do direito de família, atualmente, a legislação e a jurisprudência brasileira utilizam-se do instituto da guarda compartilhada para minimizar as consequências geradas na disputa pelos menores, além de haver um diploma legal específico para caracterizar o fenômeno Alienação Parental e suas consequências no âmbito do direito de família (Lei 12.318/2010). Por isso, antes de avançar, necessária se faz a distinção entre guarda alternada e guarda compartilhada. A própria dicção da expressão guarda alternada induz um teor antagônico e de alternância, ou seja, ora se está com o pai, ora se está com a mãe. Segundo Grisard Filho, a guarda alternada não é saudável para a prole, pois haverá uma confusão relacionada a qual orientação seguir e até mesmo qual moradia chamar de sua. Nessa mesma tendência segue à jurisprudência: A guarda alternada, permanecendo o filho uma semana com cada um dos pais não é aconselhável pois ´as repetidas quebras na continuidade das relações e ambiência afetiva, o elevado número de separações e reaproximações provocam no menor instabilidade emocional e psíquica, prejudicando seu normal desenvolvimento, por vezes retrocessos irrecuperáveis, a não recomendar o modelo alternado, uma caricata divisão pela metade em que os pais são obrigados por lei a dividir pela metade o tempo passado com os filhos´ (RJ 268/28).´ (TJSC - Agravo de instrumento n. 00.000236-4, da Capital, Rel. Des. Alcides Aguiar, j. 26.06.2000).

A guarda compartilha, por sua vez, visa uma participação em nível de igualdade dos genitores nas decisões relacionadas aos filhos. Há uma equidade de contribuições dos pais na formação dos filhos, seja educacional, moral, espiritual. Sendo assim, não há privilégios para nenhum dos pais, mas sim a busca pelo melhor interesse do menor (BONFIM, 2005). Observa-se que, em teoria, a guarda compartilhada é a melhor maneira de prevenir a Alienação Parental (NÚÑEZ, 2013). Esse instituto jurídico regulamentado pela Lei Federal n° 11.698/2008 evita que os filhos venham a se afastar de um de seus pais e permite que tanto a mulher quanto o homem possam ser titulares do princípio da igualdade e desta forma exercer, independente das contendas existentes, o papel de pai e mãe. 4. AS FALSAS MEMÓRIAS E SUAS REPERCUSSÕES NA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. O princípio da Dignidade da Pessoa Humana que está previsto no art. 1°, III da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, no qual garante ao ser humano a preservação da integridade física e psíquica. Além disso, a Constituição Federal assegura à criança, dentre outros, o direito à dignidade e dentro

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do ambiente familiar é que a criança ou o adolescente pode constrói sua personalidade para a concretização de uma vida digna. Assim, a alienação parenta se torna inaceitável não só por afrontar princípios constitucionais e direitos da criança e do adolescente, mas expor pessoas ainda tão vulneráveis e pleno desenvolvimento a graves consequências psicológicas (GUILHERMANO, 2012). Como visto, a alienação parental pode ou não ser intencional e sua finalidade é denegrir o outro genitor como também afastá-lo da convivência com o filho (GARDNER, 2002). Todavia, Jorge Trindade (2010) alerta que, embora a síndrome da alienação parental comece como um distúrbio de cunho afetivo, dependendo da intensidade com que é provocada, pode acarretar, inclusive, o surgimento das falsas memórias na criança. A implantação de falsas memórias ocorre através de sugestões fabricadas ou forjadas, de forma total ou parcial, de fatos inverídicos. A criança passa a crer em um fato que nunca aconteceu, como por exemplo o abuso sexual, e reage como se de fato tivesse acontecido (VELLY, 2010). As crianças envolvidas no processo de falsas memórias podem sofrer de patologias afetivas, sexuais ou psicológicas, assim como as que de fato sofreram abuso sexual. As consequências da alienação parental não possuem um rol taxativo, mas os efeitos são direcionados a produzir uma tendência ao isolamento, a depressão, incapacidade de comunicação. Por vezes, pessoas que foram vítimas da alienação parental passam a desenvolver um sentimento de culpa, quando adultas, por se considerar cúmplice mesmo que de forma inconsciente da injustiça praticada contra o genitor alienado, podendo acarretar transtornos psíquicos resultando no suicídio (MAZZONI, MARTA, 2011). Crime sexual ou síndrome da alienação parental? Posto está o desafio para os Tribunais. Afinal, quando o problema chega às mãos do Estado, encontram-se, de uma lado, crianças com um enorme repúdio a um dos genitores ou ente familiar e até mesmo alegando sofrer algum tipo de abuso. Por outro lado, está a defesa do outro genitor arguindo a existência de falsas memórias decorrentes da alienação parental. O fato desencadeia uma das mais delicadas “situações do mundo jurídico, com o dever de tomar imediatamente uma atitude e com o receio da denúncia não ser verdadeira” (LOGANO, 2011). No último estágio da alienação parental, muitas vezes caracterizado pela implantação de falsas memórias, o juiz toma medidas de proteção à criança e realiza o afastamento da prole com o genitor injustiçado. Estudiosos observam que, neste momento, no qual a criança ou o adolescente mais necessita do aparato do Estado para resguardar seus interesses, depara-se com profissionais do Direito, psicólogos, peritos sem um preparo técnico e emocional para lidar com a situação e identificar os verdadeiros casos de alienação parental e de abuso sexual (MAZZONI, MARTA 2011). A jurisprudência já coleciona precedentes onde houve para o reconhecimento de falsas memórias decorrentes da síndrome da alienação parental. Nesse sentido segue um excerto jurisprudencial que negou provimento a pedido de guarda da mãe que implantou falsas memórias na filha, “segundo a menor de 07 anos, eu pai, além de bater maltrata-la, teria cometido abuso sexual e ao afirmar isso disse apontado com dedo indicador para o meio de suas pernas ‘ele me machucou aqui’”4 e fez com que o filho relatasse maus tratos. Após diversas perícias o Superior Tribunal de Justiça compreendeu que: Pelo que se verifica, genitora vai continuar empregando todos os mecanismos par afastar os filhos do pai, pois conforme se vê na petição de fls. 264, a genitora não permitiu o convívio das crianças com o pai nas datas festivas nem nas férias, com dispõe o acordo em vigência, desrespeitando os limites do poder familiar: ‘A existência de limites configura poder familiar não apenas com um poder (assim como era o pátrio poder), mas também com um dever dos pais. [...] Por tudo isso, entendo que alteração da guarda é media que impõe como forma de salvaguarda as crianças da prática manipuladora da mãe (BRASIL, p. 18-20).

4  BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Conflito de Competência n° 94.723 –RJ ( 2008/0060262-5. Relator. Ministro Aldir Passarinho Junior.

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Caetano Lagrasta, desembargador e presidente da Coordenadoria de Projetos Especiais e Acompanhamento Legislativo do Tribunal de Justiça de São Paulo, considera a implantação de falsas memórias como “diabólica” e defende a prisão do alienador que chega a tal estágio, sob alegação de tortura. Em suas palavras: “Nestes casos fica evidente que o alienador tortura e a tortura é crime previsto constitucionalmente, logo, a prisão do alienador-torturador deve ser aplicada” (OLIVEIRA, 2012). Não se pode perder de vista que é um dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, assegurando assim o direito à convivência familiar (art. 19 ECA), à liberdade e dignidade como pessoas em pleno processo de desenvolvimento garantido pela Constituição Federal e pelo ECA (art. 15), assim como o direito a participação na vida familiar, da inviolabilidade da integridade física e psíquica e moral para que seja possível a preservação da imagem, da identidade, dos valores, crenças e ideais. Deve-se iniciar a reinvindicação do Princípio da Igualdade e Dignidade da Pessoa Humana pela base da família. Se a família falha em atender o comando constitucional de cuidados a integridade emocional da criança, o Estado deve intervir para assegurar não só a proteção da criança e do adolescente, mas também da dignidade da pessoa humana (filhos e genitores alienados) tão lesada durante a alienação parental. CONSIDERAÇÕES FINAIS Como visto, a Síndrome da Alienação Parental não é um fenômeno novo, inédito ao Século XXI. A emancipação da mulher e a evolução do mundo moderno modificou não só conceito, mas a própria organização e estrutura familiar. Passou-se por uma verdadeira metamorfose, e a busca pela igualdade entre o casal constituiu o elemento propulsor dessa transição. Como visto, a igualdade concedida foi aparente e olvidou-se da igualdade parental, já que a prática judiciária não consegue distinguir situações de manipulação das emoções da criança como forma de atingir o ex-parceiro, mantendo-se de forma irrefletida uma cultura maniqueísta que jamais põe em cheque a figura da boa mãe, herdada da era patriarcal. Apesar de possuirmos uma Lei definindo o conceito e exemplificando características comuns à Alienação Parental, estipulando que qualquer indivíduo, mãe, pai, avós, podem ser os responsáveis pela prática alienante, e listando uma série de medidas que podem ser tomadas a título de atenuação dos efeitos da síndrome, observa-se na jurisprudência que os profissionais militantes da área do Direito de Família (operadores do direito, psicólogos, peritos), por vezes, desconhecem a profundidade e as graves consequências do tema em questão. Essa incompetência técnica pode aumentar a injustiça levando um inocente à prisão Não o bastante, a luta histórica pela igualdade parental retrocede e Dignidade da Pessoa Humana é afetada. Daí concluímos que, para dar a concretude devida ao Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, seriam necessárias políticas públicas direcionadas a divulgar para população a existência e os danos causados aos envolvidos na síndrome da alienação parental. Como também seria imprescindível capacitar os profissionais que trabalham na área, pois o estudo prático da alienação parental denuncia a carência de profissionais preparados e comprometidos com o estudo da Síndrome em questão, capazes de se despir de rótulos preconcebidos sobre a família tradicional. REFERÊNCIAS BONFIM, Paulo Andreatto. Guarda compartilhada x guarda alternada: delineamentos teóricos e práticos. Jus Navigandi, Teresina, ano, v. 10, 2008. BRASIL. Lei n° 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente. Disponível em >. Acesso em agosto de 2014. _________. Lei 12. 318 de Agosto de 2010. Dispõe sobre a Alienação Parental. Disponível em < http:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Lei/L12318.htm >. Acesso em agosto de 2014.

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LIBERDADE RELIGIOSA: UMA ABORDAGEM DO PONTO VISTA DAS RELAÇÕES ENTRE OS MODELOS DE ESTADO E IGREJA E O CASO LAUTSI CONTRA ITALIA

CAMILA LEITE VASCONCELOS Mestranda em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (2015). Especialista em Direito Processual pela Escola Superior de Advocacia Professor Ruy Antunes. Professora Universitária

SUMÁRIO: Introdução; 1. Modelos de estado e igreja e sua relação com a liberdade religiosa; 2. Lautsi contra Italia: sobre a liberdade religiosa e os deveres de neutralidade e imparcialidade do estado; Conclusão. Referências.

INTRODUÇÃO O presente trabalho tem por finalidade analisar as relações entre o Estado e o direito constitucional de liberdade religiosa a partir dos artigos dos professores Winfried Brugger e José Ignacio Solar Cayón. Winfried Brugger identifica e descreve seis tipos de relações entre Estado e Igreja, quais sejam: hostilidade agressiva, separação rígida na teoria e na prática, separação e alguma acomodação, divisão e cooperação, unidade formal, unidade material entre Igreja e Estado. O referido autor aborda de maneira mais intensa os modelos da separação rígida na teoria e na prática, separação e alguma acomodação, divisão e cooperação e unidade formal, pois entende que a hostilidade agressiva e a unidade material entre Igreja e Estado estão em contradição com o Direito Constitucional e o Direito Internacional, bem como promovem discriminação e coação. Após explanar todas essas relações, o professor Brugger fundamenta a exclusão do primeiro e do sexto modelos no direito moderno. No final do artigo o autor também destaca as decisões proferidas pelas Cortes Constitucionais nos hard cases, apontando semelhanças e diferenças entre os modelos 2 e 5. O artigo escrito pelo professor José Ignacio Solar Cayón, denominado Lautsi contra Itália: sobre a liberdade religiosa e os deveres de neutralidade e imparcialidade do Estado, tem como objeto analisar os fundamentos da decisão definitiva do Tribunal Europeu de Direitos Humanos no que diz respeito a presença de crucifixos em salas de aula italiana e tenta demonstrar as discrepâncias existentes provocadas pela Corte. 1. MODELOS DE ESTADO E IGREJA E SUA RELAÇÃO COM A LIBERDADE RELIGIOSA. Na introdução do artigo de Brugger consta que a disputa entre o catolicismo e o protestantismo terminou se estendendo para uma questão política, e a busca pelo domínio político e religioso tornou impraticável a formação de relações pacíficas. Em razão disso, o mundo vivenciou grandes guerras e catástrofes civis. Nesse período Igreja e Estado se confundiam enquanto instituições legítimas de poder em que ambas tinham pretensões em normatizar e regular o corpo e a mente dos sujeitos, detendo assim o monopólio da violência simbólica no campo social.

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No Brasil, a Constituição de 1824 adotou o catolicismo a religião oficial do país, conferindo a Igreja Católica os mesmos poderes e prerrogativas da época do império, o que evidencia que nesse período histórico a separação entre Igreja e Estado praticamente não existia e consequentemente não havia liberdade religiosa enquanto direito subjetivo. Somente era tolerada manifestações de outras religiões em espaços privados ou domésticos, não sendo possível aos indivíduos exercerem publicamente qualquer outra religião que não fosse a católica. (EMMERICK, 2010) Com o passar dos anos pareceu inevitável a necessidade de fazer a política se preocupar tão somente com aspectos mundanos voltados para o bem estar, enquanto que a religião se dedicaria apenas a obtenção da salvação eterna sem utilizar o Estado como meio de impor a religião preferida do poder político. Esse movimento de divisão estrutural dos assuntos pertinentes ao Estado e à Igreja ficou bastante evidente na maioria dos Estados da Europa e nos Estados Unidos. Outrossim, a busca pela salvação eterna deveria partir da consciência de cada individuo, declarando-se religioso ou não pautado no principio da liberdade. Para tanto, as constituições modernas separaram as áreas de domínio do Estado e da Igreja por meio de uma norma estrutural e inserem a liberdade religiosa no capítulo dos direitos fundamentais. O referido autor cita exemplos clássicos como o da primeira emenda da Constituição dos Estados Unidos, a qual definiu que “O Congresso não deve elaborar lei relacionada ao estabelecimento da religião, ou à proibição do seu exercício…”. Verifica-se nesse texto legal tanto uma distinção estrutural no tocante a definição do campo de atuação do Estado e da Igreja como também a questão da liberdade religiosa. A Constituição de Weimar também é citada como exemplo ao contemplar o direito de liberdade de confissão religiosa e ao explicitar que não existe uma igreja do Estado. De acordo com as palavras de Brugger, a proteção da liberdade religiosa passou a compreender a liberdade de pensamento, de consciência e religiosa, o direito a mudar de religião e de ideologia, a liberdade do exercício dessas atividades de forma individual ou coletiva, em que se abrangem o culto ou a missa, o ensinamento e o respeito pelos costumes religiosos. Desse modo, o Estado de Direito ocidental passou a ser distinguido por meio da liberdade religiosa como instrumento de combate contra a coerção do Estado no tocante a essas relações contenciosas e também por meio de uma divisão estrutural do campo de domínio pertencente ao Estado de um lado e a Igreja do outro. O primeiro modelo da relação entre Estado e Igreja citado no artigo de Brugger é o da Hostilidade Agressiva entre Estado e Igreja. Essa relação se caracteriza pela adoção de atitudes hostis contra religiões e igrejas por parte de alguns países. Em outras palavras seria dizer que o regime político de um país pode ser instituído eliminando as religiões e as igrejas, propagando um ateísmo e introduzindo na mente dos sujeitos uma “ideologia cietífico-materialista”. Nesse contexto, a hostilidade imposta contra a Igreja a impede de participar dos assuntos políticos e estatais, fazendo reinar um Estado tipicamente totalitário, tendo em vista que na medida que o Estado proíbe o indivíduo escolher uma religião, ele termina infringindo o princípio da liberdade religiosa. O segundo modelo introduzido pelo autor seria o da Separação Rígida na Teoria e na Prática. De acordo esse modelo, deveria haver uma total separação espacial nas relações entre Estado e Igreja, de modo que por meio de uma parede se evitaria o envolvimento de Igrejas na esfera pública e organizacional. Como exemplo, Brugger cita o caso norte-americano Everson v. Board of Education, em que os alunos de orientação religiosa cristã não podiam utilizar o transporte de ônibus custeado pelo Estado para se deslocarem até a escola por violar a cláusula da primeira emenda da Constituição norte-americana. Assim, vejamos o que diz o mencionado professor em torno da separação rígida:

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Só por meio de um respeito rígido [do dever de separação], o Estado pode preservar sua neutralidade e, unilateralmente, impedir o partidarismo com as disputas, que se originam inevitavelmente quando grupos religiosos concorrem entre si para obter fundos do Estado para a educação e aulas religiosas ou outras atividades federativas, sejam essas diretas ou indiretas. (BRUGGER, 2010, p.18)

Portanto, esse modelo se caracteriza por uma separação rígida em que as mensagens de conteúdo se referem ao bem estar, com resultados para uma área privada e pública de uma liberdade religiosa forte e no âmbito estatal se verifica uma liberdade religiosa negativa maximizada contra paternalismo. O terceiro modelo diz respeito a Separação Rígida na Teoria, Acomodação na Prática. Ou seja, seria uma visão mais moderada quando comparada ao segundo modelo. Nesse sentido, a separação entre Estado e Igreja por meio de uma parede não seria tão espessa e densa. Segundo esse modelo, o Estado tinha que se manter neutro perante as Igrejas, mas ao mesmo tempo essa neutralidade não poderia se transformar em uma hostilidade, de modo a não prejudicar a liberdade religiosa. O teste “Lemon”, desenvolvido pela Corte Americana em 1971 prevê que a “lei precisa ter uma finalidade legislativa secular, o efeito primário não pode promover e nem prejudicar a religião e a lei não pode conduzir a um excessivo almagamento entre governo e religião”. Ao final, reza que “haverá inconstitucionalidade se só um dos critérios também não for satisfeito”. O quarto modelo foi intitulado por Brugger como Divisão e Cooperação. Nesse modelo não existe a parede separando espacialmente a Igreja e o Estado, pois o que há é uma cooperação entre eles em determinadas áreas. Essa relação se caracteriza pelo fato do Estado e da Igreja serem titulares de direitos fundamentais de um lado e do outro a organização do Estado tem o dever de direitos fundamentais. A igreja não pode se formar de cima para baixo, ou seja, não pode se formar a partir do Estado. Ela tem que se instituir de baixo para cima através dos fieis e dos militantes. Não há uma separação total entre o Estado e a religião, em que se faz presente a coordenação mútua nos trabalhos em conjunto. O exemplo trazido pelo autor para visualizar esse modelo em termos práticos é a possibilidade de se ter aulas de religião nas escolas públicas e de se conferir status de entidade de Direito Público a determinadas sociedades religiosas. O quinto modelo é a Unidade Formal da Igreja e do Estado com Divisão de Conteúdo. Esse modelo se concretiza quando há a criação de uma igreja estatal ou quando se adota uma igreja nacional. Nas palavras de Brugger, vislumbra-se esse modelo quando “a entidade política constitui formalmente uma igreja estatal ou, de outra forma reconhecível, se identifica, como Igreja nacional, com uma determinada Igreja”. São características da Unidade Formal da Igreja e do Estado com Divisão de Conteúdo: (1) Ambas as entidades configuram basicamente suas próprias organizações. (2) Elas buscam diferentes objetivos (bem estar versus salvação). (3) Elas chegam às suas próprias decisões. (4) A Igreja não é um poder do Estado no sentido estrito, não pode, portanto, exercitar qualquer coação dura do ponto de vista externo. (5) A liberdade de crença e de religião de todos os fiéis e infiéis é fundamentalmente respeitada”. (BRUGGER, 2010, p.21)

De acordo com o autor, países escolhem esse tipo de modelo com o intuito de se manter uma tradição religiosa na comunidade, com cautelas para que isso não se transforme em imposição e consequentemente

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ferir a liberdade de confissão religiosa. No caso de Israel, a adoção desse modelo de Unidade Formal com divisão de conteúdo seria para proteger os judeus espalhados pelo mundo inteiro e seu território. Esse modelo confere um tratamento diferenciado aos fies da igreja nacional/estatal, diferindo diante da situação dos direitos fundamentais constitucionais de cada Estado. O autor cita os principais níveis de diferenciação, quais sejam: diferença apenas simbólica (onde não há tratamento diferenciado entre fiéis e infiéis), diferenças consideradas “suaves” como, por exemplo, os incentivos financeiros conferidos a Igreja Estatal e as diferenças “duras” como proibir infiéis de assumirem cargos públicos. O sexto e último modelo identificado por Brugger é Unidade Material e Formal entre Igreja e Estado. Nesse modelo não mais se visualiza aquela divisão estrutural entre Estado e Igreja, ao contrário, “o imperativo jurídico é, portanto, em muitos casos, o imperativo religioso e, tendencialmente, a violação jurídica também é um pecado”. Portanto, não há separação entre o Estado e a Igreja. Faz-se presente a desvalorização da liberdade religiosa negativa, em que o Estado passa a ficar vinculado a Igreja, aproximando-se de uma teocracia. Há uma obrigatoriedade da população adotar e permanecer na religião oficial, não podendo contradizer os mandamentos religiosos. Outras religiões não são tratadas igualmente, ocorrendo coação e discriminação dos fiéis que não adotam a religião oficial. Brugger cita como exemplo a decisão da Suprema Corte do Paquistão. Em suma, Corte entendeu que: O Direito Islâmico ou Sharia é o Direito de maior hierarquia no País, e qualquer forma de elaboração de lei, inclusive a Constituição, a ele se submete. O Direito Islâmico é o Direito conhecido e estabelecido, que não pode ser aplicado sem modificação ou ajuste, a fim de responder a todos os problemas, com os quais um Estado Moderno se confronta, inclusive com os assuntos de governabilidade constitucional e direitos individuais fundamentais. As prescrições dos direitos humanos internacionais estão sujeitas aos ditames do Direito Islâmico e, por isso, são irrelevantes com relação a questões pertinentes à liberdade religiosa num Estado muçulmano. (BRUGGER, 2010, p. 23)

No tópico II do seu artigo, Brugger ressalta a necessidade de se excluir o primeiro e o último modelo no Direito Moderno, uma vez que o primeiro modelo não se distancia tanto assim do sexto, pois não pode ser negado ao indivíduo o direito e a liberdade de escolher uma determinada religião. Impor uma religião é tão hostil quanto impedi-lo de eleger uma. Quando o Estado prega um ateísmo excessivo ou impõe uma religião estatal, ele termina se transformando em um Estado Totalitário. No item III, o autor faz uma análise do sistema do quinto modelo de unidade formal. Para ele, esse sistema se adequa bem a organizações estatais que necessitam da religião como instrumento para se promover uma liberalização e pluralização pacífica das religiões. O fundamento para esse tipo de sistema ainda se manter presente é justamente a garantia da liberdade religiosa como direito humano de todos os fieis e infiéis. Tal sistema de unidade formal pode ser visto na Grécia e no Reino Unido. No tópico IV, Brugger procura promover a estrutura da ponderação nos modelos 02, 03 e 04 de separação e de divisão. Para esse professor, esses modelos seriam a melhor forma de organização da relação Estado x Igreja. Vejamos: À separação estrutural de Estado e Igreja, ou melhor, de religiões correspondem os padrões de independência, neutralidade, tratamento igual e não-identificação. No caso dos direitos fundamentais, o modelo de separação conduz à liberdade religiosa, como direito de liberdade, com a exclusão da coação à religião, e à igualdade religiosa, com o mandamento da não-discriminação. (BRUGGER, 2010, p.25)

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A aplicação das características de um determinado tipo de modelo de relação entre Estado e Igreja a um caso concreto por parte dos tribunais vai depender do “texto Constitucional, da situação histórica inicial, do ambiente político, da compreensão de integração, do teste jurisdicional para a interpretação das normas relativas ao Estado e à Igreja, e da própria compreensão passiva e ativista dos tribunais constitucionais”. Por isso, o autor defende que a jurisprudência poderá orientar e analisar o conflito, esclarecendo todas as vantagens e desvantagens ao se escolher aplicar determinado modelo de sistema relacionado a Estado e Igreja. Contudo, essa atividade deve ser feita de forma limitada, de modo que ninguém melhor do que os julgadores que vivem dentro daquele Estado para avaliar a melhor solução a ser aplicada ao caso concreto. Na parte final do artigo, o autor traz casos reais que foram objeto de análises por parte de Cortes Constitucionais. De acordo com a Corte Constitucional Americana, aulas de religião não devem ocorrer em escolas públicas, fazendo-se presente uma parede para separar espacialmente e de forma rígida as relações entre Estado e Igreja. Por outro lado, servidores públicos podem dar aulas de disciplinas leigas tanto em escolas públicas quanto em escolas particulares e o Estado pode financiar livros para ambas as escolas, verificando assim a inexistência de qualquer tratamento desigual. O servidor público ao ingressar no serviço não precisa fazer o juramento para não prejudicar a liberdade religiosa e por haver a separação rígida entre Estado e Igreja. No que diz respeito ao uso de símbolos religiosos por parte do Estado, há um debate acalorado entre os defensores do modelo de separação rígida e moderada na jurisprudência norte-americana, pois aqueles defendem a impossibilidade de se montar, por exemplo, uma árvore de Natal nos parques da cidade, em ruas ou repartições públicas, enquanto os moderados relativizam essa posição rígida e defendem que não há violação da liberdade religiosa desde que se deixe explícito que no Estado não há nenhuma preferencia por uma determinada religião. No tocante as cruzes fixadas nas paredes de escolas públicas, salvo melhor juízo, Brugger entendeu que não há que se falar em transgressão a liberdade religiosa quando esses símbolos fazem referencia ao caráter histórico do país. Entretanto, o Tribunal Constitucional interpreta o crucifixo como sendo uma mensagem cristã que gera discriminação e apela para os alunos não cristãos. O autor conclui afirmando ser impossível distinguir por completo Estado e Religião, seja como campo da política, seja judicialmente. Percebe-se de maneira clara que Brugger aceita os modelos 02, 03 e 04 de relações entre Estado e Igreja no Direito Moderno. Acredita ainda que o quinto modelo também pode ser implantado com ressalvas, sob a justificativa de que em todos esses modelos de Estado, cada indivíduo pode decidir confessar uma crença e ainda continuar sendo ideologicamente livre. 2. LAUTSI CONTRA ITALIA: SOBRE A LIBERTADE RELIGIOSA E OS DEVERES DE NEUTRALIDADE E IMPARCIALIDADE DO ESTADO. O artigo escrito pelo professor José Ignacio Solar Cayón, denominado Lautsi contra Itália: sobre a liberdade religiosa e os deveres de neutralidade e imparcialidade do Estado, tem como objeto analisar os fundamentos da decisão definitiva do Tribunal Europeu de Direitos Humanos no que diz respeito a presença de crucifixos em salas de aula italiana. No ano de 2002, a Sra. Lautsi pleiteou a retirada do crucifixo fixado na sala de aula da escola pública onde estudavam seus dois filhos Dataico e Sami Albetin perante a diretoria da instituição. Diante do seu pedido negado, a mãe recorreu ao Conselho Escolar, ao Tribunal Administrativo de Veneza, bem como ao Conselho de Estado, onde também lhe foram negados o pedido.

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O caso Lautsi contra a Itália teve início em razão das várias e sucessivas demandas da Sra. Lautsi ao impugnar judicialmente a presença de crucifixos nas salas de aula das escolas públicas, sob o fundamento de que a exposição desses símbolos nos centros públicos estava ferindo o seu direito de criar e educar os seus filhos em conformidade com as suas convicções filosóficas e religiosas. A demandante argumentava que a fixação das cruzes era inconstitucional porque era uma verdadeira violação do princípio da laicidade do Estado, o qual estava expressamente contemplado na Constituição italiana. A Sra. Lautsi defendeu que a sua liberdade religiosa estava sendo violada e que o Estado não estava cumprindo com o disposto no Art. 9° da Convenção Europeia. Além do mais, a obrigação de expor crucifixos em sala de aula provém de normas que foram promulgadas durante o regime fascista de Mussolini e por isso carecem de legitimidade democrática. A demandante alegou violação do art. 9º e 14 da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, bem como o art. 2 de protocolo nº 1, que seguem abaixo transcritos: Convenção Européia de Direitos Humanos Artigo 9° Liberdade de pensamento, de consciência e de religião 1. Qualquer pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de crença, assim como a liberdade
de manifestar a sua religião ou a sua crença, individual ou colectivamente, em público e em privado, por meio do culto, do ensino, de práticas e da celebração de ritos. 2. A liberdade de manifestar a sua religião ou convicções, individual ou colectivamente, não pode ser objecto de utras restrições senão as que, previstas na lei, constituírem disposições necessárias, numa sociedade democrática, à segurança pública, à protecção da ordem, da saúde e moral públicas, ou à protecção dos direitos e liberdades de outrem. Artigo 14° Proibição de discriminação O gozo dos direitos e liberdades reconhecidos na presente Convenção deve ser assegurado sem quaisquer distinções, tais como as fundadas no sexo, raça, cor, língua, religião, opiniões políticas ou outras, a origem nacional ou social, a pertença a uma minoria nacional, a riqueza, o nascimento ou qualquer outra situação. Artigo 2° (do Protocolo nº 1) Direito à instrução A ninguém pode ser negado o direito à instrução. O Estado, no exercício das funções que tem de assumir no campo da educação e do ensino, respeitará o direito dos pais a assegurar aquela educação e ensino consoante as suas convicções religiosas e filosóficas. 1

Em contrapartida, o governo italiano sustentou como principal linha de defesa que a exposição de crucifixos em salas de aula não possui significado religioso, mas se trata de um símbolo que faz parte da história e da identidade do povo italiano. Em face dessas decisões, a Sra. Soile Lautsi interpôs no ano de 2006 um recurso ao Tribunal Europeu de Direitos Humanos, o qual julgou no ano de 2009 por unanimidade que a conduta do governo italiano efetivamente violou o Art. 9º da Convenção Europeia de Direitos Humanos c/c o Art. 2º do Protocolo n° 01 da mesma Convenção. Decidiu-se ainda não analisar a questão sob o enfoque do Art. 14 da citada Convenção. 1  http://www.echr.coe.int/Documents/Convention_POR.pdf. Último acesso em 18.02.2015

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No ano de 2010, o governo italiano requereu a reanálise da matéria pela Grande Sala do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, conforme previsão legal. No julgamento, a Grande Sala decidiu por quinze votos contra dois que a presença do crucifixo na escola pública não violava os mencionados dispositivos da Convenção Europeia. De imediato, verifica-se as incoerências com algumas decisões prévias do próprio tribunal. De acordo com os argumentos para embasar a decisão definitiva, a Grande Sala entendeu que apenas há violação ao princípio da laicidade quando o Estado ultrapassa a imparcialidade, ou seja, o Estado não pode objetivar doutrinação ou direcionamento a uma determinada religião. Outra ideia central presente no julgado é a da “margem de apreciação dos Estados” no respeito aos direitos humanos, ou seja, os Estados possuem uma margem de conduta para atuar, atentando-se aos limites previstos na Convenção Europeia de Direitos Humanos. O Tribunal Europeu de Direitos Humanos adota a doutrina da margem de apreciação nacional, por meio da qual confere as autoridades nacionais uma certa discricionariedade na hora de justificar a adoção de medidas que a princípio poderia interferir no exercício dos direitos reconhecidos na Convenção, mas que seria possível atender e solucionar as peculiaridades do contexto doméstico. A margem da apreciação nacional leva em conta diversos fatores, tais como: a natureza do direito afetado e a sua importância, o fim perseguido pela medida estatal questionada, as circunstancias do caso. De acordo com José Ignácio, a existência ou não de um consenso em torno da matéria que está sendo discutida, funciona como uma espécie de válvula de segurança que alivia as pressões do sistema, permitindo ao tribunal reforçar ou rebater o nível de supervisão e controlar as atuações estatais em cada matéria. Assim, o Tribunal Europeu no âmbito da liberdade religiosa confere as autoridades nacionais uma ampla margem de discricionariedade, pois a concepção de religião não uniforme, variando de um país para o outro e por isso cresce a importância das autoridades nacionais em solucionar as demandas de acordo com o contexto doméstico. O autor destaca ainda em seu artigo a questão do uso de símbolos religiosos nos centros de ensino. Nesse sentido, destaca o Cayón: (...) o tribunal enfatizou que a ampla margem de apreciação que corresponde as autoridades nacionais em matéria religiosa se impõe especialmente quando os Estados regulam o uso de símbolos religiosos nos centros de educativos dada a disparidade de soluções legislativas adotadas nesse tema. (CAYÓN, 2011, p. 578)

O autor coloca em pauta caso Leyla Sahin contra Turquía. Em 1998, o vice-reitor da Universidade de Istambul proibiu a utilização de véus islâmicos que cobrissem a cabeça da estudante e o uso de barba em cursos e aulas ministradas na universidade. Em 1998, Sahin levou seu caso à CEDH. Em 2005, a Corte Europeia proferiu seu veredicto, afirmando a inexistência de violação ao artigo 9° da Convenção Europeia de Direitos Humanos. Ora, verifica-se uma incoerência no tocante aos fundamentos utilizados pela Corte ao decidir sobre liberdade religiosa. No caso da Sra. Lautsi, a Grande Sala julgou que a presença de crucifixos nas salas de aula das escolas não violava a sua liberdade religiosa de educar seus filhos conforme as suas convicções religiosas. Por outro lado, analisando o caso Leyla contra a Turquia, a mesma foi impedida de expressar publicamente a sua religião ao usar um véu nos centros de ensino. Um véu pode representar um símbolo religioso tão inocente quanto um crucifixo. Ao mesmo tempo, esses símbolos podem de fato serem capazes de influenciar na formação religiosa dos demais alunos. Contudo, questiona-se qual foi o fundamento utilizado pela Corte para definir o significado passivo de um crucifixo

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e o caráter perigoso de um véu. Um crucifixo pode representar um símbolo religioso tão influente quanto um véu. Por outro lado, esses símbolos podem exercer intensa dominação. Outro caso que demonstra intensa incoerência dos critérios utilizados pelo Tribunal se faz presente no caso Dahlab contra Suiza. A Corte julgou que a decisão de determinada escola suíça de proibir que uma de suas professoras usasse o véu islâmico durante suas aulas, que eram ministradas para alunos de primário, era uma medida “necessária em uma sociedade democrática”. No entanto, o próprio Tribunal reconheceu a dificuldade de provar o impacto que o uso do véu por parte de uma professora pode ter sobre as crenças dos alunos. Ressalte-se que não havia nada que provasse que ao longo dos quatro anos em que Dahlab estava exercendo suas tarefas como docente usando o véu, tenha produzido qualquer tipo de influencia. Assim, de acordo com as palavras de Cayón, Dahlab precisaria provar que o uso do véu não provocava qualquer tipo de efeito sobre as crenças religiosas dos alunos. Lautsi, por sua vez, teria que provar a exposição do crucifixo em sala de aula exercia influencias nas convicções religiosas dos seus filhos e dos demais alunos. Dessa forma, verifica-se uma total discrepância e divergências nos fundamentos utilizados para decidir sobre questões religiosas, levando a crer a existência de uma verdadeira parcialidade por parte das autoridades julgadoras. Cayón, conclui o seu artigo afirmando que por meio do seu trabalho procurou demonstrar as estratégias argumentativas utilizadas pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos ao decidir sobre liberdade religiosa. Segundo ele, o Tribunal utiliza como estratégia argumentativa de forma abusiva a doutrina da “margem de apreciação nacional” que por sua vez só faz gerar uma jurisprudência voltada para a proteção das religiões majoritárias e uma atuação estatal que não corresponde aos ideais de neutralidade e imparcialidade, prejudicando o pluralismo. CONCLUSÃO Enfim, tanto o professor Winfried Brugger quanto José Ignacio Solar Cayón procuram enfatizar a temática das relações entre Igreja e Estado. A Corte Constitucional da Itália se pronunciou por diversas vezes que a Constituição impõe o princípio da separação entre Estado e Igreja. Contudo, a adoção do princípio da separação não significa dizer que o Estado é indiferente às religiões, pois tem o dever de garantir a liberdade religiosa diante da existência de um pluralismo cultural, permitindo nesse liame que as crenças, culturas e tradições coexistam sem qualquer discriminação. Entretanto, na prática se percebe que os fundamentos utilizados pela Suprema Corte para assegurar a liberdade religiosa em seu sentido amplo, muitas vezes termina por gerar violações desse direito, em especial naqueles indivíduos, cujas convicções religiosas estão em menor número. REFERÊNCIAS CAYÓN, José Ignacio Solar. Lautsi contra Italia: sobre la libertad religiosa y los deberes de neutralidad e imparcialidad del estado. Cuadernos Electrónicos de Filosofía del Derecho. Universidad de Cantabria, 2011. BRUGGER, Winfried. Da hostilidade passando pelo reconhecimento até a identificação – modelos de estado e igreja e sua relação com a liberdade religiosa. Disponível em http://www.dfj.inf.br/Arquivos/PDF_Livre/10_Dout_Estrangeira_1.pdf EMMERICK, Rulian. As relações Igreja/Estado no Direito Constitucional Brasileiro. Um esboço para pensar o lugar das religiões no espaço público na contemporaneidade. Disponível em http:// www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/SexualidadSaludySociedad/article/view/383/823.

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MORAIS, Márcio Eduardo Pedrosa. RELIGIÃO E DIREITOS FUNDAMENTAIS: O PRINCÍPIO DA LIBERDADE RELIGIOSA NO ESTADO CONSTITUCIONAL DEMOCRÁTICO BRASILEIRO. Revista Brasileira de Direito Constitucional–RBDC n, v. 18, p. 225, 2011. Disponível em: http://www.esdc.com.br/ RBDC/RBDC-18/RBDC-18-225-Artigo_Marcio_Eduardo_Pedrosa_Morais_%28Religiao_e_Direitos_Fundamentais_o_Principio_da_Liberdade_Religiosa%29.pdf http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/rfduerj/article/viewFile/1718/1364

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A VEDAÇÃO CONSTITUCIONAL AO OLIGOPÓLIO MIDIÁTICO E O DIREITO À COMUNICAÇÃO: A NECESSIDADE DA SUPERAÇÃO DO DOMÍNIO ECONÔMICO DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO EM MASSA PARA SUA REGULAÇÃO DEMOCRÁTICA

Camila Freire Monteiro de Araújo Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Izídia Carolina Rodrigues Monteiro Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Nara Fonseca de Santa Cruz Oliveira Nara Fonseca de Santa Cruz Oliveira Mestranda em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Especialista em Direito Público, Graduada em Direito na AESO/PE. [email protected].

SUMÁRIO: Introdução; 1. Esfera Pública, Democracia e Direito à Comunicação; 2. Os limites da concepção burguesa do direito à liberdade de expressão; 3. Espaço midiático: concentração, privatização e segmentação; 4. Liberdade de imprensa x direito à comunicação; 5. O Direito à comunicação na América Latina; 5.1. O caso da Argentina; 5.2. Lei de meios; 6. Sistema Público de Comunicação; Conclusão; Referências.

INTRODUÇÃO Embora a redemocratização da sociedade brasileira tenha ocorrido há mais de duas décadas, as regras que regulamentam a radiodifusão constituída no país pela rádio e televisão abertas permanecem, ainda hoje, praticamente inalteradas, e a patente concentração dos meios de comunicação nas mãos de cinco famílias (LOPES, 2011) talvez seja um dos exemplos mais explícitos da contradição da democratização no Brasil. O oligopólio constituído durante o regime ditatorial militar permanece; como avanços no campo da comunicação social, houve alguns, tímidos, como a criação da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) pelo governo federal em 2007, bem como a realização, em dezembro de 2009, da 1ª Conferência Nacional de Comunicação (Confecom). Para o professor Murilo César Ramos (2000), o desenvolvimento do sistema de comunicação brasileiro foi caracterizado por compadrio, patronagem, clientelismo e patrimonialismo. Associados a uma cultura política e social arcaica, esses elementos desenvolveram-se pelo Brasil e sofisticaram-se por meio da rádio e da televisão, servindo como instrumentos de reforço de dominação e manutenção das injustiças sociais e contribuindo, sobretudo ideologicamente, para a manutenção da hegemonia do grupo econômico-político-militar que estava governando o país. Em razão de ocupar lugar central no processo de construção da hegemonia, desde a segunda metade da década de 1960 (LOPES, 2011, p. 2), a televisão precisa ser considerada como um dos elementos fundamentais para pensar a democratização, tanto da comunicação quanto da própria sociedade brasileira. Partindo-se do reconhecimento de que este meio de comunicação implica em um estratégico instrumento

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de poder, conclui-se que a sua democratização representa a potencialidade da democratização da cultura política, da formação da opinião pública e dos costumes (MARTÍN-BARBERO, 2001). Na sociedade de massas contemporânea, a opinião pública não se forma, como no passado, sob o manto da tradição e pelo círculo fechado de inter-relações pessoais de indivíduos ou grupos. Ela é plasmada, em sua maior parte, sob a influência mental e emocional das transmissões efetuadas, de modo coletivo e unilateral, pelos meios de comunicação de massa.   A liberdade de opinião na esfera pública se torna a garantia básica da liberdade de expressão, porque é através da imprensa que a opinião pública se concretiza como uma prática comunicativa regular (MARQUES, 1997). Tal concepção vai além da liberdade de expressão como direito individual. Sendo a imprensa a mediadora das relações política e privada, então, esta liberdade relaciona, já na sua origem, uma liberdade individual negativa e uma liberdade social positiva – como uma só dimensão, uma extensiva à outra: a liberdade de expressão sendo relacionada à livre manifestação de idéias e opiniões, e, a liberdade de imprensa, aquela que media e garante a liberdade de expressão através dos meios de comunicação (MARQUES, 1997). 1. ESFERA PÚBLICA, DEMOCRACIA E DIREITO À COMUNICAÇÃO A mídia é o âmbito em que se dá a produção e circulação de bens simbólicos, constituindo-se como campo de embate crucial para os processos de representações sociais e formação de identidades. Situa-se, a imprensa, no que compreende-se como esfera pública, definida por Habermas como sendo um espaço de articulação entre a esfera privada e o Estado (HABERMAS, 1991), em que os interesses e pretensões da sociedade civil apresentam-se discursivamente e argumentativamente, de forma aberta e racional. (GOMES,1998). A esfera pública surge com a consolidação da burguesia enquanto classe. Alijada de participação política no contexto do Estado Absolutista da Idade Moderna, subjugada pelas autoridades política e religiosa, a burguesia, que detinha o poderio econômico, identifica, na esfera pública, um reduto onde se fará possível o debate livre das hierarquias dominantes. Esta nova esfera, embora fosse um local de debate entre homens privados – destituídos de poder estatal – era investida de relevância pública, passando a integrar um intercâmbio social extenso, induzido e controlado publicamente, tornando-se relevante e autônoma, composta pela sociedade civil emancipada (à época, representada pela burguesia) (GOMES, 1998, p. 160). É dessa forma, ainda de acordo com Gomes, que surge a ideia de esfera pública como um local de mediação entre o Estado e a sociedade civil. Tornando-se instrumento essencial à tomada e à legitimação de decisões políticas, diante desse novo fórum público, a imprensa vai estar associada, desde então, principalmente ao espectro da opinião pública política (GOMES, 1998), de modo que a liberdade de opinião na esfera pública passa, desde então, a ser sede da liberdade de expressão. Inobstante, analisando as transformações da esfera pública, sobretudo a partir da segunda metade do século XX – compondo os fenômenos de consolidação do capitalismo contemporâneo - Habermas identificará seu desvirtuamento, com a conversão da imprensa em empresa capitalista e a transformação do “cidadão” em “consumidor de serviços”. Sob o signo da troca de conhecimentos e intercâmbios culturais, e com a perspectiva de domínio e expansão comerciais, houve um intenso investimento para a instrumentalização da comunicação com o objetivo de impulsionar a economia industrializada. Thompson, por exemplo, acredita que a mídia criou uma nova concepção de esfera pública, desterritorializada e não dialógica (1995, p.42). Os grandes grupos de comunicação falam da liberdade de imprensa apenas quando alguma medida estatal tenta intervir em sua produção, seja por censura ou por regulamentação. Mas esquecem-se que a liberdade de expressão requer meios de fala, para garantir a diversidade de interesses e representação dos diversos grupos e setores sociais. Portanto, o direito à comunicação, na sociedade contemporânea, depende da “universalidade da liberdade de expressão individual”. Ou seja, para que o direito fundamental à liberdade de expressão seja garantido a todos e implique no direito à comunicação, precisa ser assegurado um conjunto

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de condições para um ciclo positivo de comunicação, cujo ponto de partida é o acesso aos meios de comunicação em massa.(INTERVOZES, 2010, p. 23). 2. OS LIMITES DA CONCEPÇÃO BURGUESA DO DIREITO À LIBERDADE DE EXPRESSÃO. Em seu livro “Direito à Comunicação – possibilidades, contradições e limites para a lógica dos movimentos sociais”, Renata Rolim (2011, p. 33) elucida que “Naturalizada a ordem capitalista, o uso público da razão transformou-se em operacional de administração dos conflitos dentro dos limites das condições sociais existentes – privilégio de uma intelligentsia capaz de traduzi-la para as massas na esperança de transforma-las em seres racionais”. Ao final da batalha contra o absolutismo monárquico, que culminou no fim do antigo regime e definitiva ascensão da burguesia, assistiu-se ao triunfo da concepção liberal na condução da imprensa mediante a positivação de seus elementos essenciais para o domínio capitalista, a liberdade de publicação e de empresa. Mediante a apropriação empresarial dos meios de produção da informação, a burguesia viabilizou a imposição temática de sua esfera pública – autonomia individual, fundada na liberdade econômica, a que deve se submeter toda organização política – sufocando outras interpretações e projetos, intentando – sem direito ao contraditório - a consolidação da democracia política liberal. Com a ajuda do Estado, a burguesia utilizou-se de mecanismos restritivos para afastar os trabalhadores e a população em geral do acesso às tecnologias de produção da informação. A ingerência estatal nem sempre é mal vista pelos defensores do free trade (ROLIM, 2011). 3. ESPAÇO MIDIÁTICO: CONCENTRAÇÃO, PRIVATIZAÇÃO E SEGMENTAÇÃO. Historicamente, a negação seletiva do poder de voz nos ambientes públicos de debate é utilizada como uma eficiente ferramenta de exclusão e controle sociais. Tal restrição atua na subjetividade dos grupos que se intenta controlar e marginalizar, vez que trabalha na perspectiva sistemática destituí-los de sua capacidade de argumentação, ação, reflexão e poder de auto representação, reverberando não apenas na impotência ante a tomada desse espaço público, mas refletindo na própria identidade e auto-estima grupais. O início de um ciclo positivo de comunicação imprescinde, portanto, da diversidade de conteúdo, e, consequentemente, da diversidade da propriedade dos meios de comunicação (INTERVOZES, 2010, p. 23). Ao estudar o desenvolvimento do cenário da comunicação brasileira, Renato Ortiz (1991) marca que, aliada ao fenômeno do capitalismo tardio, a consolidação da cultura midiática de massa ganha forma mais definida no contexto da Ditadura Civil-Militar brasileira, entre as décadas de 1970 e 1980. Apesar do fim de tal regime, a lógica da concessão pública de outorgas mantém uma relação muito parecida ainda hoje. Durante o regime ditatorial, a outorga e a concessão públicas dadas a estes veículos dependiam diretamente da relação destes com a linha ideológica ditatorial – além do crivo da própria censura, pelo qual qualquer programação passaria, independentemente. Apesar de a abordagem dos grandes veículos de comunicação não ser mais plenamente vertical, suas diretrizes continuam correspondendo à manutenção dos privilégios de elites políticas e econômicas dominantes, à lógica do capital, do status quo, e, como consequência, à ideologia dominante. Em um cenário em que poucos grupos empresariais controlam as comunicações no país, vale dizer que existem outros fatores - para além dos mecanismos de controle estatais, hoje refreados - que restringem a liberdade de imprensa – e, consequentemente, de expressão - àqueles que não dispõem do controle sobre os meios de comunicação. Desse modo, a censura não mais caracteriza-se como sendo monopólio do Estado, mas “também está sendo privatizada” (LIMA, 2010, pag. 105). Tal aparente incoerência em relação a quê/quem ameaça ou censura a liberdade de imprensa demonstra a necessidade do debate livre e racional acerca do tema que é de interesse público - bem como do resgate à teoria da esfera pública. Porém, afirma Kucinski que existe a interdição a este debate por parte da chamada grande mídia, que costuma acusar qualquer tentativa de regulação democrática do setor como

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sendo “censura” (KUCINSKI, 2002) numa clara reivindicação da perpetuação de seu privilégio no controle destes meios, e, por conseguinte, de controle sobre a poderosa opinião pública. Afirma a chamada grande mídia que a regulação (qualquer que seja) representaria restrição ao direito fundamental absoluto à liberdade de expressão - como se este direito lhes fosse privativo - invocando o fantasma da censura estatal quando, em realidade, as iniciativas de regulamentar o setor vêm, de forma contundente, não do Estado, ou do governo, mas da própria sociedade civil organizada, e dos movimentos sociais. Assim, evitam que o debate floresça – o que lhes é bastante fácil, vez que detém os meios de comunicação e “censuram” a entrada nestes desta discussão – e silenciam todos os atores políticos que pleiteiam voz e representatividade na esfera pública, esterilizando qualquer tentativa de aprofundamento do debate através da rotulação de “censura”, “restrição”, “repressão”. Nesse caso, o efeito silenciador vem do próprio discurso. Em 2002, projeto inédito desenvolvido por Daniel Heinz e intitulado Donos da Mídia desvendou as ramificações das seis principais redes nacionais de tv aberta – veículo de comunicação que exerce até hoje papel estruturador no conjunto do mercado de mídia – quais sejam: Globo, Record, SBT, Bandeirantes, RedeTV! e CNT. O estudo constatou que, por meio de grupos afiliados, as redes geram um vasto campo de influência, em escala de massas, que capilariza por 294 emissoras de tv em VHF (90% do total de emissoras do País), 15 em UHF, 122 emissoras de rádio AM, 184 de FM e 2 de rádio em onda tropical (OT), além de 50 jornais. Os 667 veículos ligados às seis redes privadas nacionais são a base de um sistema de poder econômico e político que se ramifica por todo o Brasil e se enraíza fortemente nas regiões (HERZ, 2002). Não é difícil concluir que, diante dos fenômenos da consolidação do capitalismo e da globalização mundial, a comunicação é instrumentalizada para atendimento, manutenção e criação de mercados, deturpando seu caráter primordial, situação esta que reflete em problemas relacionados à representatividade quais reverberarão nas esferas políticas e pessoais dentro da sociedade. 4. LIBERDADE DE IMPRENSA X DIREITO À COMUNICAÇÃO. Na maioria dos países latino-americanos, a mídia desenvolveu-se com o apoio de governos autoritários, tendo a lógica do capital como embasamento para sua ampliação. Toda a infraestrutura necessária para a expansão do rádio e da televisão foi promovida por tais governos, quais limitaram aos movimentos populares o acesso às tecnologias de produção da informação, enquanto viabilizavam a adoção de políticas neoliberais que intensificaram as economias de escala e a maior integração e dependência do setor em relação ao sistema global comercial (ROLIM, 2011). Na América Latina, foi adotado o free flow of information, isto é, a versão informacional da livre circulação de capitais. Na década de 80, quando esse modelo foi implantado, apenas cinquenta corporações globais dominavam quase todos os meios de comunicação existentes, número este que foi, ainda, diminuindo com a chegada dos anos 90, em que apenas oito corporações detinham tal domínio - obtido através de estratégias de desestatização das telecomunicações, como a permissão de investimentos estrangeiros e a liberalização da propriedade de meios audiovisuais (ROLIM, 2011). O free flow information ocasionou a diminuição do espaço para a criação de meios de comunicação mais democráticos e de produções que não se adequam ao retorno de capital imediato, sendo responsável por tornar vulnerável o mercado de trabalho da indústria cultural latino-americana em relação à concorrência com os países centrais. O que é produzido pelos grandes grupos midiáticos tem como principal escopo a distração da audiência para o retorno econômico imediato, de modo que o processo comunicacional não reflete a experiência social destes indivíduos (ROLIM, 2011). 5. O DIREITO À COMUNICAÇÃO NA AMÉRICA LATINA. Segundo Paulo Freire, não há possibilidade de haver comunicação dentro de uma via de mão única, uma vez que a comunicação se constrói na busca de significação dos significados entre os interlocutores. De

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acordo com a sua teoria da comunicação “somente o diálogo, que implica um pensar crítico, é capaz, também, de gerá-lo. Sem ele não há comunicação e sem esta não há verdadeira educação” (PAULO FREIRE, 1970, p. 83). A comunicação, portanto, não deve ser vista como relação entre um sujeito ativo e outro passivo, mas implica numa reciprocidade que não pode ser rompida.  O direito à comunicação, no entanto, sempre encontrou barreiras nos oligopólios midiáticos. Esses grupos são responsáveis por adotar estratégias de censura à liberdade de informação, quando, por exemplo, têm o poder de decidir o conteúdo que irá ou não ser veiculado em seus domínios (DÊNIS DE MORAES, 2013), bem como quando são capazes de silenciar as vozes que fazem oposição a seus interesses políticos. Nos países latino-americanos, a adoção de políticas públicas foi de grande importância para possibilitar um maior acesso ao direito à comunicação - imprescindível que tais medidas viessem acompanhadas da desconcentração do espaço midiático (DÊNIS DE MORAES, 2012), cedendo espaço a vozes contra hegemônicas. Devido ao seu contexto social e político, a Argentina é hoje um dos países que adotou de forma bastante satisfatória a ampliação do direito à comunicação. Dênis de Moraes (2011) em seu livro Vozes da América Latina aborda como as políticas públicas devem direcionar-se à redefinição do setor de mídia em bases mais equitativas, tornando as relações mais simétricas, combatendo os privilégios que vêm favorecendo a iniciativa privada. Aponta como as campanhas opositoras orquestradas pelas elites empresariais detentoras do oligopólio midiático combatem a referida diversificação da radiodifusão sob concessão pública, objetivando a manutenção de seus privilégios. Essas campanhas denunciam uma suposta ameaça à liberdade de expressão imposta pelos governos progressistas, reduzindo a liberdade de expressão à liberdade de imprensa e, esta, à liberdade de empresa. A efetivação do direito à comunicação na América Latina nas décadas de 1960 e 1970 era pretendida a partir da criação de meios de comunicação alternativos, em que a propriedade e o controle seriam coletivos, a partir da ampla participação na elaboração da programação. Na Venezuela foram implementados programas de incentivo às rádios e TVs comunitárias; na Bolívia, Evo Morales estimulou as rádios comunitárias doando equipamentos e isentando-as do pagamento da licença e uso das frequências. Um fato importante a ser destacado foi a criação da TELESUR, composta pela Argentina, Bolívia, Cuba, Equador, Nicarágua e Venezuela. Trata-se de uma empresa pública multiestatal que tem como escopo a integração dos povos latino-americanos e que pretende ser uma alternativa ao discurso das corporações midiáticas (DÊNIS DE MORAES, 2011). Desse modo, as políticas públicas desses governos progressistas além de apoiarem os meios que não atendem à lógica do capital e uma nova configuração do serviço público de radiodifusão, também ajudam na difusão de conteúdos com incentivo à produção cultural e o estímulo à indústria audiovisual nacional. 5.1 O CASO DA ARGENTINA.

Considerado um dos primeiros países a reformular seu marco regulatório da comunicação, a Argentina tornou-se referência para aqueles que lutam pela democratização da mídia. Dentre os países latino-americanos a Argentina era o que adotava políticas neoliberais mais rigorosas, onde os processos de concentração econômica tiveram grande avanço, além da desnacionalização do espaço midiático. Consequência disso foi a concentração desses meios nas mãos dos dois maiores grupos presente no país, ADMIRA e Clarín, responsáveis por retransmitir várias produções importadas dos Estados Unidos. Durante a redemocratização do país, no entanto, houve diversas tentativas de diversificação do espaço midiático, num longo processo que teve a sua culminância na promulgação de novo marco regulatório. Vários movimentos sociais, comunitários e sindicatos uniram-se em torno da Coalizão por uma Radiodifusão Democrática (CRD), a fim de atuar pela democratização dos meios de comunicação (BRÁULIO RIBEIRO, 2012). Esse projeto teve grande apoio da população, que se organizou em diversos atos, e, posteriormente, foi apoiado pela presidente Cristina Kirchner. Tal apoio acarretou o embate direto entre o governo e os grupos midiáticos, devido ao fortalecimento da crise política.

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Os oligopólios midiáticos se utilizaram das medidas adotadas para acusar Kirchner de atentar contra a liberdade de imprensa e de expressão, enquanto os setores populares e seus aliados que ansiavam pela democratização dos espaços midiáticos demonstraram apoio à continuidade do governo, organizando protestos decisivos para a aprovação do marco regulatório. 5.2. LEI DE MEIOS.

A Lei n. 26.522/2009, conhecida como a Ley de Medios, reorganizou o espaço midiático através da desconcentração da concorrência, permitindo que outros atores obtivessem concessões para produzirem outros conteúdos audiovisuais, não necessariamente alinhados com a ideologia dominante. Importante citar as soluções normativas encontradas para equilibrar a democratização da mídia com os mecanismos de produção comuns do modo de produção capitalista. A lei de meios pretendeu regular os critérios de outorga de licenças e operação, bem como o monitoramento da qualidade do serviço e do atendimento a critérios de pluralismo (LINS, 2009). Para garantir um amplo acesso aos meios de comunicação foram tomadas medidas com o intuito de inibir a sua concentração. Dentre elas, encontra-se a limitação do número de outorgas de licenças – quais são concedidas através de um processo licitatório. Essas licenças passaram a ter um prazo de 10 anos, podendo ser renovadas uma única vez; findo o prazo da renovação passou a ser necessário outro processo licitatório, havendo a possibilidade de que antiga outorgatária concorra em condições de igualdade com outros pleiteantes (LINS, 2009). Alguns artigos da lei tornaram-se os mais polêmicos por impor limites à concessão de faixas de radiodifusão e audiovisual a grupos empresariais. Visando a coibir a tendência concentradora vigente no sistema privado, a lei estabeleceu dois limites: o primeiro deles é o número de licenças e o segundo é a cota de mercado. Outra exigência da lei é a proibição da coexistência de vínculos societários entre empresas de radiodifusão, agências de publicidade e de jornais e revistas, como forma de impedir os processos de integração vertical e horizontal. A lei estabelece, a nível nacional, um limite de uma licença de radiodifusão por satélite, e até 10 licenças de serviços de comunicação audiovisual por radiodifusão. A nível local, são estabelecidos os limites de uma única licença de radiodifusão sonora em AM, uma única em FM, ou até duas, se houver mais de oito emissoras na localidade. Quando se tratar da única frequência disponível, não pode ser outorgatário quem já tenha outorga na mesma área ou em áreas adjacentes (LINS, 2009). Quanto à cobertura, as licenças concedidas estão proibidas de atingir um número superior a 35% da população. Como restrição à formação de redes, passou-se a exigir autorização formal do governo para que uma emissora atue como afiliada a uma rede. A Ley de Medios reconheceu a importância das emissoras comunitárias, que deixam de sofrer restrições com o advento da lei, cabendo a elas 33% de todas as frequências de radiodifusão. Além disso, não sofrem com restrições geográficas de alcance ou de temática e recebem autorização para se constituírem em redes, desde que observadas as cotas de programação (ROLIM, 2011). A fim de que a Lei de Meios pudesse ter sua efetivação garantida, foram criadas entidades reguladoras para atuarem de modo conjunto com a autoridade competente na matéria de telecomunicação. A Autoridade Federal de Serviços de Comunicação Audiovisual (Afsca) tem como escopo a interpretação e a aplicação da lei com independência orçamentária e administrativa em relação ao governo nacional (ROLIM, 2011). Tem como objetivos a melhoria da qualidade técnica dos serviços de radiodifusão, a igualdade de acessos e a pluralidade de informações, bem como o controle da programação, a avaliação do conteúdo, bem como a fiscalização, identificação de infrações e aplicação das sanções adequadas (INTERVOZES, 2010). Embora a Lei de Meios seja reconhecida por abrir espaço para novas vozes e ser reconhecida como uma das leis mais avançadas do mundo, ainda sofre bastante com entraves impostos tanto pelo Judiciário quanto pela resistência por parte dos grandes grupos midiáticos. Mauricio Macri, que assumiu a presidência da Argentina, atendendo a interesses dos grupos midiáticos, em 15 dias de mandato emitiu decretos presidenciais considerados nocivos para os ganhos já obtidos em relação ao direito à comunicação (INTERVO-

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ZES, 2016). O último decreto modificou profundamente o que estava previsto na Lei de Meios, ampliando a quantidade de licenças permitidas para cada empresa e acabando com o alcance máximo de 35%, que se trata de uma restrição à oligopolização do setor (REVISTA FÓRUM, 2016). 6. SISTEMA PÚBLICO DE COMUNICAÇÃO. O horizonte da mídia pública como sistema comunicacional engloba a quebra do paradigma da comunicação como atividade comercial direcionada à obtenção de lucro para proprietários privados ou acionistas, e, ao mesmo tempo, com a “alternativa” a esse sistema estatista que proponha a excessiva ingerência e domínio governamentais. Intenta-se promover a participação pública, de cidadãos, no gerenciamento do sistema comunicacional, forjando-o cada vez mais autônomo, sendo justamente essa a medida do caráter realmente público que é capaz de atingir: a autonomia em relação ao mercado e ao Estado e, como condição essencial, a abertura à participação, com poder deliberativo, ao cidadão (PEREIRA, 2011). Quando se fala em sistema público de comunicação pensa-se justamente em um conjunto de mídias públicas (nos diversos suportes, como rádio, televisão, internet etc.) que operam de modo integrado e sistêmico, tendo como horizonte o interesse dos cidadãos. Instituições de mídia cujos financiamentos se baseiam na comercialização de sua audiência no mercado publicitário não podem encaixar-se nesta categoria. E, se a agência pública de comunicação necessita de autonomia frente ao mercado, necessita também de independência face às influências políticas governamentais para cumprir o seu papel de servir ao interesse dos cidadãos. Meios de comunicação de massa financiados por dinheiro público e livre do controle privado comercial tem sido um modelo de comunicação bastante explorado e consolidado na maioria das democracias modernas. Segundo pesquisa realizada no ano de 2006 em sete países (França, Coréia do Sul, Alemanha, Reino Unido, Itália, Estados Unidos e Japão) pelo Instituto NHK de Pesquisa em Radiodifusão (NHK Broadcasting Culture Research Institute, 2006), 4 em cada 5 cidadãos consideram necessário existir um sistema público de comunicação. Em países como Alemanha, Japão e Reino Unido – onde há cobrança de imposto específico que financia mídias públicas – 60% dos entrevistados consideraram importante pagar este tipo de tributo para sustentar tais corporações. No Brasil, o tema da democratização da mídia ainda é tratado como uma espécie de tabu, o que se dá, em parte, pelo fato de ter sido este debate abafado durante quase todo o século XX. Principalmente sob o incentivo do regime militar, após os anos 60, o país desenvolveu um sistema de comunicação de perfil majoritariamente comercial. Tal realidade fez com que, no Brasil, pouco se saiba sobre o real papel da mídia pública (PEREIRA, 2011). A sociedade brasileira convive com o modelo comercial achando que ele é único, o que impede qualquer reivindicação transformadora. As iniciativas de radiodifusão pública que surgem a partir do final da década de 1960 no Brasil são tímidas e sem forças para concorrer com o modelo hegemônico estabelecido. Sofrem da falta de recursos, das ingerências político-partidárias e da ausência de programas de ação de médio e longo prazo. Além das pressões abertas ou veladas dos radiodifusores comerciais contra uma possível concorrência do modelo público (LEAL apud PEREIRA, 2011, p. 4).

A despeito da negligência do Estado e das políticas públicas mesmo no período em que se vivenciou a redemocratização do país após o término da Ditadura Militar, o projeto de um sistema público de comunicação ganhou novo fôlego nas décadas subsequentes e culminou na criação da Empresa Pública de Comunicação (EBC) através do Decreto Presidencial 6.689 de 11 de dezembro de 2008. Em seu artigo primeiro, o decreto estipula que a EBC é “uma empresa pública, organizada sob a forma de sociedade anônima de capital fechado, vinculada à Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República” (BRASI, 2008).

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Dentre as finalidades da Empresa Pública de Comunicação, elencadas pelo art. 2º do Decreto nº 6.689, de 11 de dezembro de 2008, estão a complementaridade entre os sistemas privado, público e estatal; a promoção do acesso à informação por meio da pluralidade de fontes de produção e distribuição do conteúdo; a produção e programação com finalidades educativas, artísticas, culturais, científicas e informativas; a promoção da cultura nacional, estímulo à produção regional e à produção independente; a autonomia em relação ao Governo Federal para definir produção, programação e distribuição de conteúdo no sistema público de radiodifusão; e, finalmente, a participação da sociedade civil no controle da aplicação dos princípios do sistema público de radiodifusão, respeitando-se a pluralidade da sociedade brasileira (BRASIL, 2008). Intimamente ligado ao problema da blindagem em relação a interesses de natureza partidária ou privada, isto é, da autonomia e independência de uma mídia efetivamente pública, está o problema da legitimidade democrática, que remete à questão da participação. A Empresa Brasil de Comunicação possui uma instância deliberativa (Conselho Curador) que tem as prerrogativas de aprovar o plano de trabalho anual da empresa, bem como a sua linha editorial, fiscalizando e fazendo recomendações de acolhimento obrigatório pela diretoria executiva da organização. O Conselho Curador da EBC é composto por 22 membros. São 15 representantes da sociedade civil (indicados pelo presidente da República nesta primeira gestão), 4 do Governo Federal (representantes dos ministérios da Educação, Cultura, Ciência e Tecnologia e Comunicação Social, também indicados pelo Executivo Federal), 2 do Congresso Nacional (Câmara e Senado) e 1 dos funcionários da empresa. Os membros têm mandato de quatro anos, com possibilidade de renovação a cada dois anos. A legislação também prevê que a renovação das vagas dos representantes da sociedade civil será feita através de uma consulta pública – apesar disso, o formato desta consulta ainda não está definido. A existência de uma instância mista e com poder de decisão na EBC é significativamente positiva, mas ainda é necessária a qualificação do modo de escolha de seus membros – o atual modelo é frágil e omisso quanto aos critérios de indicação, o que põe em xeque a necessária autonomia da agência. A falta de objetividade na escolha dos componentes do órgão deliberativo acaba revestindo de personalismo as indicações a serem feitas pelo Presidente da República, o que, por sua vez, faz com que tal instância passe a ser influenciada por uma política de governo e não por uma política de Estado, como deveria ser e como acontece nos países onde o sistema é mais consolidado (VALENTE, 2011). Necessário seria que esta instância fosse composta por representantes indicados por um maior número possível de entidades da sociedade civil, algo que seja aberto a ponto de garantir que o Conselho tenha proporcionalidade regional, diversidade de segmentos, pluralidade, onde todos os setores como cinema, audiovisual, cultura se sintam representados. Além das emissoras educativas-estatais e aquelas ligadas a fundações civis sem fins lucrativos, dois outros segmentos também entram no debate sobre o campo público de comunicação: as emissoras universitárias e os canais comunitários de rádio e TV. Embora sustentem formatos bastante distintos de conteúdo e transmissão, ambos os segmentos se vinculam ao campo através de sua aproximação com as comunidades ou nichos públicos em que atuam, seja as comunidades universitárias, as comunidades de bairros urbanas ou em pequenas localidades do interior e povoados rurais. Os canais comunitários, de suma importância para a consolidação de uma mídia democrática e popular, caracterizam-se por sua aproximação com o campo público, e em sua forma de gestão enraizada nas comunidades. Seu caráter eminentemente comunitário, tanto no protagonismo para a criação de conteúdo quanto em sua natureza autóctone, diferencia-as em relação aos demais veículos públicos de comunicação, em razão da relação orgânica que possuem com o entorno – o que significa estar abertas à participação de moradores e movimentos sociais da localidade, garantir o contraditório e a pluralidade de opiniões, prestarem serviços de utilidade pública, estar comprometida com as lutas e demandas da comunidade (SÓTER apud PEREIRA, 2009). Peruzzo (1991, p. 162) defende que a participação na comunicação popular é fundamental para o processo emancipatório, qual contribui para cidadania e possibilita ao homem tornar-se sujeito. A necessidade de conscientização e mobilização popular implica na demanda por meios de comunicação populares, acessíveis, a fim de que a prática comunicacional seja experienciada enquanto dinâmica social transformadora, atuando simultaneamente como meio de conscientização, mobilização, educação e agenciamento cultural.

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É esse processo de construção da cidadania que propicia e aponta para o desenvolvimento local, mediante a combinação eficiente das potencialidades de cada território, de seus recursos e de sua força empreendedora. CONCLUSÃO Objetivo deste trabalho foi identificar, na teoria e na prática, o direito fundamental à liberdade de expressão e a inter-relação que este possui, numa realidade midiatizada, com o direito à comunicação. Como poderia se desenvolver democraticamente ao prescindir do acesso aos veículos através dos quais essa comunicação se dá? Intentou-se discutir, portanto, a situação da comunicação – enquanto direito - em um cenário em que poucos grupos empresariais controlam os veículos de imprensa no país, privatizando e restringindo o acesso a um espaço de fala qual se constitui como principal lócus de desenvolvimento da própria opinião pública. Ademais, objetivou-se compreender de que forma poderia se desenvolver um marco regulatório para a comunicação no Brasil, por meio do qual fossem regulamentados os artigos 5, 21, 220, 221, 222 e 223 da Constituição Federal, efetivando a força normativa constitucional por eles ostentada, promovendo o direito à comunicação como direito fundamental e corolário da liberdade de expressão, para que a comunicação social seja orientada por princípios outros, devidamente positivados em conformidade à exegese constitucional, que não o poderio econômico e político dos locutores. Desde 2013, movimentos sociais, organizações que compõem o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) e ativistas pelo direito à comunicação, recolhem assinaturas para apresentação ao Congresso de um projeto de lei de iniciativa popular para a criação de um marco regulatório para a comunicação no Brasil, que regulamenta os artigos 5, 21, 220, 221, 222 e 223 da Constituição Federal. Inspirada nos tratados internacionais já ratificados pelo Brasil e em experiências regulatórias de países como a França e a Espanha, a Lei da mídia democrática propõe mecanismos de implementação dos mencionados dispositivos constitucionais, quais são objeto de retumbante omissão legislativa, carecendo de legislação infraconstitucional que os regulamente. Entre os principais dispositivos presentes no projeto de lei estão o veto à propriedade de emissoras de rádio e TV por políticos, a proibição do aluguel de espaços da grade de programação, a definição e delimitação de regras para impedir a formação de oligopólios, a criação de um Conselho Nacional de Comunicação e de um Fundo Nacional de Comunicação Pública. Para além da elaboração de um novo marco regulatório que reorganize a comunicação como um todo, uma série de propostas e teses vem sendo publicadas por instituições, associações e movimentos sociais sobre o tema “sistema púbico de comunicação”. É possível listar alguns horizontes ou diretrizes que vem sendo apontadas e reforçadas através dessas manifestações: ampliação do número de emissoras e fortalecimento das já existentes no campo público (estatais, culturais, comunitárias, educativas); aumento da participação civil nas empresas públicas de comunicação, através de instâncias deliberativas, com participação de representantes da sociedade civil criteriosamente estabelecida e objetivada; estipulação de metas em torno de percentuais a serem cumpridos quanto ao desenvolvimento entre os sistemas público, privado e estatal (seja através de cotas na concessão de canais, seja através de fomento e políticas públicas de desenvolvimento para atingir tal equilíbrio); fomento à produção independente e fortalecimento da cadeia produtiva entre os canais e emissoras do campo público; criação de fundos para fomento do sistema público de comunicação; criação de tributos ou redirecionamento de tributos já existentes para financiamento direto da comunicação pública; tributação do sistema comercial para financiamento do sistema público, dentre várias outras. Segundo GRAMSCI (2002), o enfrentamento da hegemonia só é possível quando o grupo social subalternizado possui condições de superar seus patamares de subalternidade até que seja capaz de “sair da fase econômico-corporativa para elevar-se à fase da hegemonia político-intelectual na sociedade civil e política” (1999, p. 460). Ao identificar o poder de palavra e da participação nos meios de políticos, grupos historicamente excluídos da esfera pública e, consequentemente das decisões políticas, através da comunicação, são capazes de mudar a estrutura das representações sociais e mobilizar debates e iniciativas, integrando, de fora efetiva, as movimentações populares que lutam por transformação social.

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REPENSANDO A AUTOTUTELA ADMINISTRATIVA: A (IM)POSSIBILIDADE DE INCIDÊNCIA DO “ABATE-TETO” SOBRE REMUNERAÇÃO, SUBSÍDIO OU PROVENTO DA APOSENTADORIA DE AGENTE PÚBLICO CUMULADOS COM BENEFÍCIO DE PENSÃO POR MORTE DO CÔNJUGE/COMPANHEIRO SERVIDOR DO ESTADO

Carla Cristiane Ramos de Macêdo Bacharela em Direito pela Faculdade ASCES, participante do programa de Iniciação Cientifica da Faculdade ASCES (INICIA), e integrante do Projeto de pesquisa Cidadania e Segurança Pública na Sociedade do/de Risco. E-mail: [email protected] Roberta Cruz da Silva Bacharela e Mestre em Direito, pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Professora de Direito Administrativo e de Prática Constitucional-Administrativa da Faculdade ASCES; da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP), do Centro Universitário de João Pessoa (UNIPÊ) e das pós-graduações da Faculdade ASCES; da ESMATRA/PE e do Complexo de Ensino Renato Saraiva (CERS-Recife). Advogada.

SUMÁRIO: Introdução; 1. Acumulação de remuneração, subsídio ou aposentadoria com pensão por morte como direito, o princípio da autotutela do estado e a obrigação do respeito ao devido processo legal; 2. Enriquecimento sem causa por parte do estado em relação às contribuições previdenciárias na aplicação desarrazoada do “abate-teto”; 3. O entendimento da jurisprudência quanto á aplicação do “abate-teto”; Conclusão; Referências.

INTRODUÇÃO O presente trabalho objetiva fundamentado nos conceitos e entendimentos jurisprudenciais atuais, destacar e demonstrar determinados aspectos do que se entente por devido processo legal, por enriquecimento sem causa por parte do Estado e como se dá a aplicação do “abate-teto”, com ênfase em explicar que a acumulação de remuneração, subsídio ou proventos de agente público com pensão por morte de cônjuge/ companheiro também agente público é possível, pois os valores vem de dois instituidores diferentes, e que é preciso repensar a autotutela administrativa. Por meio dos métodos hipotético–dedutivo, histórico e comparativo será feita a análise dos efeitos no âmbito da Administração e do Judiciário, os princípios constitucionais violados e a recepção deste fenômeno jurídico. Também será feita uma vasta explanação do entendimento jurisprudencial, por intermédio da exposição de súmulas, acórdãos e decisões singulares, pareceres da Controladoria Geral da União (CGU), da Advocacia Geral da União (AGU), do Tribunal de Contas da União (TCU) e doutrinário sobre os temas abordados. Tal tema foi escolhido pela total relevância econômica, para a Administração Pública quanto para os dependentes do servidor instituidor; social, já que esta pratica pode ou não ferir direitos constitucionalmente garantidos, e jurídica, vez há uma disparidade entre o entendimento de todas as instâncias judiciárias e da Administração sobre o assunto, visto que, há diversos julgados, das mais variadas linhas sobre a constitucionalidade ou não da aplicação imediata e sem prévio aviso ao recebedor dos valores, do “abate-teto”.

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Neste contexto, o trabalho, desenvolvido como projeto de Iniciação Cientifica da Faculdade ASCES (INICIA) com foco nas áreas de direito administrativo e constitucional, teve como objeto o estudo sobre a aplicação ou não do abate-teto nestes casos específicos. 1. ACUMULAÇÃO DE REMUNERAÇÃO, SUBSÍDIO OU APOSENTADORIA COM PENSÃO POR MORTE COMO DIREITO, O PRINCÍPIO DA AUTOTUTELA DO ESTADO E A OBRIGAÇÃO DO RESPEITO AO DEVIDO PROCESSO LEGAL O direito à aposentadoria constitui direito fundamental do cidadão, ligado à noção de dignidade da pessoa humana. A Ministra Carmem Lúcia Antunes Rocha esclarece que o ato de aposentadoria, em verdade, não é uma concessão do Estado, mas um direito que é assegurado ao agente público, formalizado por meio de um processo de reconhecimento de sua aquisição pelo interessado. Sob esse prisma, a aposentadoria visa a garantir os recursos financeiros indispensáveis ao beneficiário, de natureza alimentar, quando este já não tenha condições de obtê-los por conta própria. (ROCHA, 2005. p. 413.) Não se trata, contudo, de nenhum privilégio, favor ou condescendência do Estado, mas sim de um direito fundamental do servidor-trabalhador garantido pela Carta Magna como uma das formas de se assegurar a dignidade da pessoa humana. (BITTENCOURT, 2014.)       Desta feita, a concessão da aposentadoria constitui uma prerrogativa constitucional do servidor formalizada por intermédio de um ato administrativo emanado pelo Estado, em consequência do preenchimento dos requisitos legais não havendo discricionariedade neste ato. Porém, mesmo sendo um direito do recebedor, a Administração Pública tem aplicado o “abate-teto” aos casos de acumulação de remuneração, subsídio ou proventos de um servido com pensão por morte deixada por outro servidor sem a devida análise do caso, sem possibilitar sequer a ciência anterior do beneficiário sobre o fato até o momento que recebe o valor a menor. Muitas vezes com base no parecer do Ministro Benjamim Zymler, que será visto adiante, e não foi acatado pela Corte, a Administração Pública aplica o “abate-teto” na soma de dois valores recebidos pela mesma pessoa, cônjuge/companheiro, mas proveniente de contribuintes distintos e com fatos geradores diferentes. É justamente diante deste acumulo de uma pensão por morte com alguma outra renda própria do servidor beneficiário, que a Administração usa a autotutela. Como se pode observar a autotutela estatal é um princípio administrativo que nesta aplicação em concreto fere a segurança jurídica do beneficiário, que já tinha sua família, incluindo o de cujus, em uma situação estabilizada. A Administração deve garantir o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa (Constituição Federal de 1988, artigo 5º, LIV e LV), visando este fim, tem-se os recursos administrativos são meios formais, previstos em diversas leis, de controle administrativo, por meio dos quais o interessado inconformado postula, junto a órgãos superiores da Administração, a revisão de determinado ato administrativo de órgãos inferiores, lesivos ou não a direito próprio, visando à reforma de determinada conduta, por ilegalidade, inoportunidade ou inconveniência. O recurso tramita pela via administrativa, sem ingerência da função jurisdicional. Há garantia do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa. (MEDEIROS, 2014)  Desse modo, fica evidente que não obstante exista o poder de autotutela ele não pode se sobrepor aos interesses de terceiros, sem que a esses seja garantida a possibilidade de manifestação, aí entendida a ampla defesa e o contraditório. (QUEIROS, 2014) Não se pode admitir que a Administração Pública tome medidas unilaterais que afetem direitos de terceiros sem que o faça mediante o devido processo legal, por meio do qual se oportuniza a manifestação prévia do interessado, fazendo valer os princípios constitucionalmente fixados. (QUEIROS, 2014)

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Desse modo, não se fala em devido processo legal apenas em situações que existam acusados, ou que se vise a aplicação de uma pena, mas sempre que um ato possa atingir direitos de terceiros, garantindo a esses a possibilidade de manifestação prévia. No uso deste poder de autotutela a aplicação do “abate-teto” está sendo feita de maneira automática e sem ao menos haver a comunicação aos dependentes, quiçá a ampla defesa, tudo com base no teto-remuneratório. A doutrina majoritária defende que o dispositivo que abarca o “abate-teto” (artigo 37. XI, CF/88) é flagrantemente inconstitucional, porque fere o direito adquirido à irredutibilidade de vencimentos (artigo 37, XV, CF/88). Tal dispositivo feriu uma cláusula pétrea. O que poderá ser feito pela Administração é manter a remuneração irreajustável até que chegue no limite remuneratório constitucional. (QUEIROS, 2014) Feita as devidas considerações sobre como está se dando o processo para se aplicar o “abate-teto” na Administração e como deveria ser corretamente feito, tratar-se-á agora sobre o entendimento jurisprudências de tal desconto. 2. ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA POR PARTE DO ESTADO EM RELAÇÃO ÀS CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS NA APLICAÇÃO DESARRAZOADA DO “ABATE-TETO” Uma das situações que tem gerado controvérsia no que tange à aplicação do limite remuneratório de que trata o inciso XI do art. 37 da CF/ 88 consiste na acumulação de pensão por morte com outras verbas sujeitas ao referido limite, como a remuneração decorrente do exercício de cargo, função ou emprego público e os proventos de aposentadoria. Pelo que se observa do referido comando constitucional, estão incluídas no chamado teto remuneratório as seguintes verbas: a remuneração e/ou subsídio ou quaisquer outras verbas remuneratórias devidas aos agentes públicos, os proventos de aposentadoria e as pensões, percebidos cumulativamente ou não. Porém, no caso da pensão por morte, tendo em vista que o instituidor é pessoa diversa do beneficiário, entende-se que esse benefício não deveria ser cumulado com verbas remuneratórias ou proventos de aposentadoria, para efeito de incidência do chamado “abate-teto” visto que tal verba, em sua origem, tanto como remuneração e/ou subsídio quanto como aposentadoria do instituidor, já sofreu em sua base de cálculo a incidência do “abate-teto”. Por meio do Acórdão nº 2079/2005 – Plenário do Tribunal de Contas da União, por maioria, concluiu que o servidor que recebe simultaneamente remuneração ou proventos de aposentadoria e pensão por morte instituída por outro servidor público, não se submete ao teto, embora cada verba, individualmente, se submeta à limitação, como dito no parágrafo acima, prevista no art. 37, inciso XI, da Constituição Federal. Diante da divergência quanto à aplicação do teto remuneratório à soma de pensão com eventuais verbas remuneratórias ou proventos de aposentadoria percebidos cumulativamente pelo beneficiário é imprescindível a lição de Couto e Silva: A Administração Pública, quando lhe cabe esse direito [à invalidação] relativamente aos seus atos administrativos, não tem qualquer pretensão quanto ao destinatário daqueles atos. Este, o destinatário, entretanto, fica meramente sujeito ou exposto a que a Administração Pública postule a invalidação perante o Poder Judiciário ou que ela própria realize a anulação, no exercício da autotutela administrativa. (COUTO; SILVA, 2004. pp. 7-59.)

Neste momento faz-se necessário analisar a jurisprudência sobre o assunto.

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3. O ENTENDIMENTO DA JURISPRUDÊNCIA QUANTO Á APLICAÇÃO DO “ABATE-TETO” Há decisões do Tribunal de Contas da União que protegem o direto do beneficiário a receber o que lhe é de direito, como por exemplo, a resposta ao pedido formulado em requerimento administrativo para a Secretaria de Recursos Humanos/MP por uma servidora aposentada no sentido de que não seja aplicado o denominado abate-teto sobre o somatório dos seus proventos de aposentadoria com a pensão por morte deixada por seu esposo, citando em seu favor precedente do Tribunal de Contas da União. (BRASIL,TCU, 2005) A resposta para sua manifestação foi no sentido de que: O abate-teto deverá incidir sobre o montante resultante da acumulação de proventos de aposentadoria com remuneração de cargo comissionado, mas que eventual pensão recebida pela mesma pessoa deveria ser considerada separadamente para efeito de teto salarial. (AGU, 2007, grifo nosso)

Para fundamentar seu entendimento, a Secretaria de Recursos Humanos/MP citou uma decisão administrativa do Conselho Nacional de Justiça, no artigo 6º da resolução nº 13, de 21 de março de 2006, que dispõe sobre a aplicação do teto remuneratório constitucional e do subsídio mensal dos membros da magistratura, segundo a qual o teto remuneratório não deveria incidir sobre a soma da remuneração do servidor com pensão por morte, tomando por base o Acórdão nº 2079/2005 – Plenário, do TCU que firmou entendimento de que o servidor que recebe simultaneamente remuneração ou proventos de aposentadoria e pensão por morte instituída por outro servidor público não se submete ao teto, embora cada verba, individualmente, se submeta à limitação prevista no art. 37, XI, da Constituição Federal. (BRASIL, CNJ, 2006) Resolução nº 13/2006 do CNJ. Art. 6º Para efeito de percepção cumulativa de subsídios, remuneração ou proventos, juntamente com pensão decorrente de falecimento de cônjuge ou companheira(o), observar-se-á o limite fixado na Constituição Federal como teto remuneratório, hipótese em que deverão ser considerados individualmente. (grifo nosso)

Porém diferentemente do entendimento do TCU e da SRH/MP o Advogado-Geral da União entendeu que deve incidir o “abate-teto” nestes casos: Conforme exposto pelo Ministro Benjamim Zymler, em seu Voto Revisor, as limitações do art. 37, XI, da Constituição são destinadas ao recebedor, sem qualquer ressalva à origem dos benefícios que vier a acumular. Neste ponto, cabe transcrever o seguinte trecho do mencionado Voto, às fls. 18 dos autos: “As disposições do art. 37 sobre limite de remuneração são destinadas ao recebedor (aquele que percebe, na forma do texto constitucional) de remuneração e ‘benefícios’, inclusive considerados de forma cumulativa. Creio que se o objetivo da norma fosse restringir a aplicação do teto constitucional em razão da origem do benefício – ou seja, conforme o instituidor -, a redação conferida deveria ser outra. Se houvesse um limite específico para pensões, que não se comunicasse com os demais tipos de renda oriundas do Tesouro, essa circunstância deveria ter sido expressamente prevista, pois não pode ser extraída da redação aprovada”. (Voto prolatado por ocasião do julgamento do qual resultou o Acórdão nº 2079/2005 – Plenário, do TCU.) Ante o exposto, proponho que se responda à consulta em tela no sentido de que o teto constitucional incide sobre o montante resultante da acumulação de benefício de pensão com remuneração de cargo efetivo ou em comissão, e sobre o montante resultante da acumulação do benefício de pensão com proventos da inatividade”. [...] (BRASIL, AGU, 2005)

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Neste ponto o Advogado-Geral da União concorda com o Ministro Benjamim Zymler, que o texto do artigo 37 da CF/ 88 deveria ser diferente para se garantir a não incidência do “abate-teto”. [...] Acerca do rigor do art. 37, XI, da CF/88, assim afirma Celso Antônio Bandeira de Mello: “O rigor quanto à determinação do teto, como se vê, é bastante grande, pois sua superação nem mesmo é admitida quando resultante do acúmulo de cargos constitucionalmente permitido. Aliás, no que concerne a isto, a vedação está reiterada no inciso XVI, última parte, do mesmo art. 37, assim como, no que atine a proventos ou proventos cumulados com vencimentos ou subsídio, no § 11 do art. 40”. (MELLO, 2006. p. 260.) [...] Eduardo Rocha Dias e José Leandro Monteiro de Macêdo tratam do tema em seu livro “Nova previdência social do servidor público” e admitem expressamente a incidência do teto sobre o somatório de pensão com aposentadoria, quando assim afirmam: “Caso o servidor perceba pensão da União e aposentadoria do Poder Executivo do Estado-membro, por exemplo, deverá ser respeitado, no tocante à parcela paga pelo Estado-membro, o teto estadual. Quanto ao valor pago pela União, o teto será o valor do subsídio de Ministro do Supremo. A soma das duas parcelas não poderá exceder este último”. (DIAS; MACÊDO, 2006. p. 155.) [...]

Os autores Celso Antônio Bandeira de Mello, Eduardo Rocha Dias e José Leandro Monteiro de Macêdo reafirmam a opinião de que a soma dos valores percebidos devem se limitar ao teto constitucional e caso o ultrapassem deve sofrer a incidência do “abate-teto”. [...] Por fim, considerando que o presente parecer contrasta com o entendimento majoritário do Tribunal de Contas da União, sedimentado pelo Acórdão nº 2079/2005 – Plenário, entendemos pertinente sugerir que a Advocacia-Geral da União emita Parecer sobre a questão, a fim de que os órgãos e entidades da Administração Federal passem a seguir o posicionamento que vier a ser adotado pela AGU, nos termos do art. 4º, X, da Lei Complementar nº 73/93, ipsis litteris: Art. 4º São atribuições do Advogado-Geral da União: [...] X - fixar a interpretação da Constituição, das leis, dos tratados e demais atos normativos, a ser uniformemente seguida pelos órgãos e entidades da Administração Federal; Ante o exposto, somos pela aplicação do teto salarial fixado no art. 37, XI, da Constituição Federal à soma de pensão por morte com proventos de aposentadoria percebidos pelo mesmo beneficiário, sugerindo o encaminhamento dos autos ao Gabinete do Advogado-Geral da União para que seja fixado entendimento sobre a questão, nos termos do art. 4º, X, da LC nº 73/93, uma vez que o Tribunal de Contas da União adotou posição contrária à defendida no presente Parecer. (BRASIL, AGU, 2005)

É justamente com base neste parecer que a Administração Pública vem aplicando o “abate-teto” indiscriminadamente. Como será mostrado adiante, assim como foi afirmado no próprio parecer do Advogado-Geral da União, o entendimento majoritário não é este que ela adotou e sim um totalmente diverso.

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O Acordão nº 2079/2005 Plenário, do TCU é um marco neste entendimento, da não aplicação do “abate-teto” sobre a acumulação de remuneração, subsídio ou aposentadoria com pensão por morte, pois mesmo com divergências este foi o entendimento majoritário, como se verá a seguir. O Ministério Público, solicitado a se manifestar nos autos deste Acordão 2079/2005, manifesta-se conforme a seguir transcrito, por meio do parecer do Procurador Marinus Eduardo de Vries Marsico: A consulta, à primeira vista, reveste-se de singeleza. Entretanto, as nuances envolvidas indicam necessário cuidado e atenção para que a interpretação dos dispositivos se dê conforme a Constituição. A Constituição de 1988 buscou estabelecer um limite máximo de remuneração para o serviço público. Em seu texto original, a Constituição refletia um limite inflexível que era robustecido pela dicção do art. 17 do ADCT, que recusava a invocação de direito adquirido ou a percepção de excesso a qualquer título. O que parecia ser de simples aplicação, no entanto, logo foi modificado por decisões do Supremo Tribunal Federal que entendeu existirem variadas exceções à expressão ‘a qualquer título’. Assim, na esteira de inúmeras decisões judiciais, foram se ampliando as exceções na legislação até que, em 1994, a Lei nº 8.852/94 já contemplava a previsão de dezessete exclusões. O estabelecimento de limites remuneratórios retorna com a edição da EC nº19/98, fixando-se limites máximos intransponíveis ‘a qualquer título’. Pretensão já contornada anteriormente e que, na prática, voltaria a ser inócua ante a não publicação de lei reguladora de iniciativa conjunta do Presidente da República, do Presidente do Supremo Tribunal Federal e dos Presidentes da Câmara e do Senado Federal para definição do valor do teto. (BRASIL, TCU, 2005)

A Emenda Constitucional 41/2003 trouxe as novas regras e tentou esclarecer as dúvidas existentes sobre os limites aos tetos remuneratórios dos servidores públicos. Como será visto adiante, serão analisados julgados que destoam do entendimento da AGU, do Ministro Benjamim Zymler e do Procurador Marinus Eduardo de Vries Marsico, para fundamentar a possibilidade de acumulação sem a incidência do “abate-teto”. Este embargo foi apresentado com a finalidade de contestar de quem é a competência para fazer o desconto do “abate-teto” e esclarecer outras dúvidas. [...] 16.Afirma (o embargante) que o CNJ, em 2007, amadurecendo o entendimento sobre o tema, editou a Resolução nº 42 admitindo a incidência isolada do teto no caso de percepção cumulativa de subsídios, remuneração ou proventos, com pensão. 18.Acrescenta que, ainda que prosperasse tese diversa àquela por ele defendida, a administração estaria diante de dificuldades operacionais para controlar e glosar parte da remuneração daqueles que recebem por mais de uma fonte. A aplicação do dispositivo constitucional depende de definições normativas inexistentes que venham orientar o procedimento do administrador em face de algumas questões, tais como: de quem seria a responsabilidade pelo corte de valores que ultrapassem o teto? da fonte responsável pelo pagamento de maior valor, do órgão com vínculo mais recente ou seria dada a opção ao agente?; no caso de vínculos com órgãos públicos de diferentes esferas de governo, que teto aplicar? que esfera efetuaria o desconto do valor excedente? Deste modo, o administrador, para dirimir estas dúvidas, depende de definições mediante lei. 29. Ele se baseia nas Resoluções nºs 13 e 14/2006 do Conselho Nacional de Justiça e na Resolução nº 10/2006 do Conselho Nacional do Ministério Público, que consideram individualmente, para a

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incidência do teto remuneratório constitucional, as remunerações dos membros da Magistratura e do Ministério Público e dos servidores do judiciário decorrentes do exercício do magistério e da função eleitoral, além da pensão decorrente de falecimento de cônjuge ou companheiro. (BRASIL, TCU, 2009. Grifo nosso)

Além do já exposto há resoluções do Conselho Nacional de Justiça versando sobre o tema. A Resolução nº 13/2006 do CNJ que dispõe sobre a aplicação do teto remuneratório constitucional e do subsídio mensal dos membros da magistratura. (BRASIL, CNJ, 2006.) Há, também, a Resolução nº 14/2006 do CNJ que dispõe sobre a aplicação do teto remuneratório constitucional para os servidores do Poder Judiciário e para a magistratura dos Estados que não adotam o subsídio. (BRASIL, CNJ, 2006.) Por sua vez, a Resolução nº 42, de 11 de setembro de 2007, do Conselho Nacional de Justiça, afirma que o “abate-teto” deve ser aplicado as parcelas de cumulação de subsídio, remuneração ou proventos somados a pensão por morte consideradas individualmente. (BRASIL, CNJ, 2006.) Tem-se, também, a Resolução nº 10/2006 do CNMP que dispõe sobre a aplicação do teto remuneratório constitucional para os servidores do Ministério Público da União e para os servidores e membros dos Ministérios Públicos dos Estados que não adotam o subsídio. (BRASIL, CNMP,2006) Conforme se pode observar destas resoluções, os Conselhos excepcionaram situações muito específicas para a não-incidência do teto, fazendo uma interpretação sistêmica da Constituição que, por um lado instituiu o teto e, por outro, possibilitou o exercício do magistério e, ainda, determinou que os órgãos da justiça eleitoral fossem compostos por membros de outros órgãos do judiciário, então estas pessoas devem receber pelo seu trabalho. Já quanto à norma que dispõe que a pensão decorrente de falecimento de cônjuge deva ser considerada individualmente para observação do teto, acredita-se que a exceção se dá porque o fato gerador ocorreu por pessoa distinta daquela que recebe o benefício. O Agravo de Instrumento 25883 demostra o entendimento do Tribunal Regional Federal da Terceira Região, que concede a antecipação de tutela para que pare de incidir o “abate-teto” no somatório total da acumulação da pensão por morte, relativa ao seu marido, da aposentadoria relativa a cargo público anteriormente ocupado pela requerente e remuneração pela atividade que atualmente desempenha. (BRASIL, TRF-3, 2012) O Tribunal Regional Federal da Primeira Região demonstra na Apelação Cível 4939, não só, o entendimento que o “abate-teto” deve incidir de maneira individual em cada benefício, como ainda estabelece a devolução dos valores já descontados indevidamente, corrigidos monetariamente. (BRASIL, TRF-1, 2010) A Apelação Cível 424834 cível julgada pelo Tribunal Regional Federal da Quinta Região coaduna com o entendimento de que as verbas devem ser consideradas isoladamente, e não cumulativamente, para efeitos de aplicação do “abate-teto”. (BRASIL, TRF-5, 2004) Como já abordado anteriormente, pode-se perceber no relato dos fatos a aplicação unilateral, por parte da Administração Pública, do “abate-teto”, sem possibilidade de ampla defesa ou de contraditório por parte do beneficiário. Também o Tribunal de Justiça de Pernambuco no Agravo de Instrumento nº: 0294.343-7 entende que o “abate-teto” não deve ser aplicado a soma de proventos com pensão por morte pois, a fonte de custeio e o fato gerador das duas verbas tem caráter distintos arcados individualmente por cada um de seus instituidores e por isso devem ser individualmente consideradas. [...] É o que deflui dos julgados infratranscritos: “Teto remuneratório - Cumulação Irredutibilidade - Aposentadoria e Pensão - O pagamento cumulativo de proventos de aposentadoria e pensão por morte cuja soma dos valores

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ultrapasse o teto remuneratório constitucional não viola o artigo 37, inciso  XI da Constituição Federal. Espécies remuneratórias que apresentam fundamento jurídico diverso. A limitação de vencimentos não pode desconsiderar os princípios constitucionais básicos e a garantia da irredutibilidade de vencimentos e proventos. Exige, no mínimo, que seja respeitado o valor pago que resta congelado até que o valor do teto o ultrapasse. Recurso adesivo da autora provido e improvidos o recurso da ré e o reexame necessário.”.(TJ-SP - APL: 424305620108260053 SP 0042430-56.2010.8.26.0053, Relator: Lineu Peinado, Data de Julgamento: 29/11/2011, 2ª Câmara de Direito Público, Data de Publicação: 01/12/2011)”Servidora pública municipal - Cumulação - Aposentadoria e Pensão - Teto remuneratório - O pagamento cumulativo de proventos de aposentadoria e pensão por morte cuja soma dos valores ultrapasse o teto remuneratório constitucional não viola o artigo 37, inciso XI da Constituição Federal. Espécies remuneratórias que apresentam fundamento jurídico diverso. Recursos improvidos.”.(TJ-SP - -....: 21736020108260191 SP , Relator: Lineu Peinado, Data de Julgamento: 14/12/2010, 2ª Câmara de Direito Público, Data de Publicação: 29/12/2010) “[...]. Proventos de aposentadoria e pensão por morte. Acumulção. Possibilidade. Teto constitucional. Verbas analisadas individualmente. Recurso desprovido. [...]. 2. Na linha da jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral, do Conselho Nacional de Justiça e do Tribunal de Contas da União, a soma dos valores percebidos a título de pensão por morte e de proventos de aposentadoria podem ultrapassar o teto constitucional. [...].”(Ac. de 13.8.2009 no REspe nº 28.307, rel. Min. José Delgado.) Ante todo o exposto, DEFIRO A ANTECIPAÇÃO DE TUTELA RECURSAL ALMEJADA, para fins de suspender os descontos decorrentes do “excedente de remuneração unificado” incidente sobre o montante global dos proventos de aposentadoria e pensão percebidos pela demandante. (PERNAMBUCO, TJPE, 2007. Grifo nosso.)

Foi com base nestes julgados, que o Tribunal de Justiça de Pernambuco prolatou a sua decisão da não aplicabilidade do “abate-teto” sobre as somas da pensão por morte com a renda própria do cônjuge sobrevivente. O Ministro-Relator Ubiratan Aguiar explana em seu voto o entendimento da Corte. Cada servidor, mediante desconto mensal para a seguridade social, conforme parâmetros fixados em lei, contribui para o fundo, genericamente falando, que, no futuro, arcará com os desembolsos decorrentes do pagamento de sua aposentadoria ou da pensão de seus beneficiários. O fato gerador do direito à pensão é a morte do segurado. Já no caso da remuneração e da aposentadoria é o exercício do cargo público e o preenchimento dos requisitos definidos para a inatividade. Nesse sentido, a cada servidor são assegurados esses benefícios. [...]; (BRASIL,TCU, 2005.)

Um dos fundamentos que o Ministro Relator Ubiratan Aguiar, do Tribunal de Contas da União, utilizou para lastrear seu voto, foi que o instituidor da pensão já havia pago as contribuições necessárias para garantir o direito de sua esposa a receber o benefício de pensão por morte, quando assim afirmou: [...]Não há, portanto, que se confundir servidores distintos, detentores de direitos distintos, constitucional e legalmente garantidos. A cada um, individualmente, aplicam-se todos os dispositivos relacionados à acumulação de cargos e ao teto de remuneração, em especial quando se fala daqueles de natureza restritiva. Todavia, não é plausível querer extrapolar essas restrições para o somatório dos direitos individuais. A prevalecer essa tese, estaríamos restringindo direitos que a Constituição Federal não restringiu.

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Tomemos como exemplo marido e mulher, ambos servidores públicos, percebendo remunerações próximas ao teto. Quando na atividade, a cada um se aplicam as restrições anteriormente mencionadas. As respectivas remunerações devem observar o teto constitucional. Só são permitidas as acumulações de cargos que a Constituição Federal considera legais. Portanto, no exercício do cargo público, ou ao desfrutar da aposentadoria, a cada um será permitido receber a remuneração/provento, ou o somatório de remunerações/proventos de cargos legalmente acumuláveis, até o limite fixado no art. 37, inciso XI, da Constituição Federal. Qual o fundamento, portanto, para concluir que, na hipótese de um dos dois vir a falecer, passando o outro a ser beneficiário de pensão, nos termos da lei, estaria criada uma nova situação em que seriam desconsiderados os fatos geradores da remuneração/provento a que cada um tem direito? Não encontro amparo legal para prosseguir em tal linha de raciocínio, pois não se trata de verificação de renda familiar em face do teto constitucional. Caso contrário, estaríamos admitindo a hipótese absurda de ser mais vantajoso ao beneficiário da pensão exonerar-se de seu cargo. (BRASIL, TCU, 2005. Grifo nosso)

Este entendimento se coaduna com o artigo 75 da Lei n° 8.213 (BRASIL,1991), que trata justamente deste tema: Art. 75: O valor mensal da pensão por morte será de cem por cento do valor da aposentadoria que o segurado recebia ou daquela a que teria direito se estivesse aposentado por invalidez na data de seu falecimento, observado o disposto no art. 33 desta lei. (grifo nosso)

Continua o Ministro Ubiratan Aguiar: [...]Por essas razões, entendo que os dispositivos da Constituição Federal só permitem a compreensão de que todas as restrições referem-se sempre a uma única pessoa. Quer dizer: remuneração, proventos e pensões decorrentes do exercício de cargo ou emprego por uma determinada pessoa estão submetidos ao teto constitucional. Por outro lado, quando se trata do recebimento de pensão, que é a única situação em que pessoa diferente do instituidor receberá seus benefícios, cumulativamente com remuneração ou com proventos de aposentadoria, verifico que a Constituição Federal não contém dispositivo que permita extravasar o entendimento da aplicação do teto, pois se trata de situações de servidores distintos que geraram direitos distintos. E, como se trata de direito, não cabe ao intérprete adotar entendimento restritivo quando a própria lei não o fez. (BRASIL, TCU, 2005.)

Pode-se perceber com esta leitura que a Constituição Federal de 1988 não abarcou todas as situação da aplicabilidade do teto constitucional, se propositalmente ou não, não se sabe, mas com as palavras do próprio Ministro Ubiratan Aguiar “como se trata de direito, não cabe ao intérprete adotar entendimento restritivo quando a própria lei não o fez”. (...) Entendo que as conclusões acima representam a aplicação de restrição quando a Constituição Federal não quis restringir, pois, como busquei demonstrar, todas as menções ao limite constitucional referem-se à remuneração e proventos de uma mesma pessoa, inclusive nos casos de acumulação previstos na Carta Magna. Ao contrário da percepção do ilustre Representante do Ministério Público, verifico que a aplicação do teto às situações objeto da presente Consulta é que representaria mutação constitucional, haja vista que a Carta Magna não contempla dispositivo nesse sentido.

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O beneficiário da pensão não receberá melhor tratamento do que o instituidor. Da relação estabelecida em vida pelo instituidor com o Estado resulta o direito do beneficiário à pensão, cujo valor submete-se ao teto constitucional. De outra relação, constituída por outro servidor com o Estado, resulta o direito à remuneração, quando na atividade, e ao provento de aposentadoria, quando na inatividade. A cada uma das relações constituídas aplica-se, isoladamente, o teto constitucional. Ademais, esse entendimento não pretende excluir as pensões do teto, até mesmo porque, com a edição da Emenda Constitucional n° 20/98, o provento de pensão passou a constar expressamente do limite estabelecido no art. 37, inciso XI, da Constituição Federal. (BRASIL, TCU, 2005.)

A Corte de Contas da União acompanha o voto do Ministro Ubiratan Aguiar com o entendimento que não deve ser despendido melhor tratamento para o recebedor da pensão por morte, como também não deve este ser tratado de forma pior que o instituidor da pensão, haja vista que as verbas recebidas por este já sofriam a limitação do teto constitucional. Devido ao elevado número de julgados, em todas as esferas de jurisdição, com o mesmo entendimento da não incidência do “abate-teto” sobre a soma da pensão por morte com remuneração/ subsídio ou proventos, faz-se necessário parar esta análise e demonstrar outros pontos controversos do objeto de estudo. Ao se falar em enriquecimento sem causa tomar-se-á como conceito para este trabalho a definição de enriquecimento sem causa como a situação na qual o Estado aufere vantagem indevida em face do empobrecimento de outro, sem motivo que o justifique. O conceito será melhor demonstrado, fazendo-se necessária antes uma análise do instituo no âmbito geral. O enriquecimento sem causa tratado pelo artigo 884 da lei 10.406 (BRASIL,2002) que instituiu o novo Código Civil, configura-se pela existência de um enriquecimento obtido as custas de outrem sem uma causa justificativa para o enriquecimento. O enriquecimento sem causa, tem o condão de fazer com que o enriquecido restitua o empobrecido com aquilo que se locupletou somente, sendo o foco central a vantagem auferida, e não o empobrecimento necessariamente, sendo a restituição ao empobrecido uma espécie de reparação indireta, não se falando, portanto em verba indenizatória, perdas e danos e etc. (SOUSA, [2015]) Como pode-se verificar no voto do Ministro relator Cezar Peluso, no recurso extraordinário, o Superior Tribunal Federal condena o enriquecimento sem causa por parte do Estado: Processo: RE-AgR239552.Relator (a): Min. CEZAR PELUSO. Tribunal: STF. Data da Decisão: 31/08/2004. Data da Publicação:17/09/2004. EMENTA: RECURSO. Extraordinário. Inadmissibilidade. Servidor público. Aposentadoria. Férias e licença-prêmio não gozadas na atividade. Indenização. Direito reconhecido. Vedação do enriquecimento sem causa e responsabilidade civil do Estado. Fundamentos autônomos infraconstitucionais. Ofensa indireta à Constituição. Agravo regimental não provido. Precedentes. A questão de indenização, na aposentadoria de servidor público, por férias e licença-prêmio não gozadas na atividade, fundada na proibição do enriquecimento sem causa da Administração e na responsabilidade civil do Estado, é matéria infraconstitucional, insuscetível de conhecimento em recurso extraordinário. (BRASIL, STF, 2004. Grifo nosso)

E é com embasamento no enriquecimento sem causa que o Ministro Relator Ubiratan Aguiar, do Tribunal de Contas da União, embasou seu Voto, quando afirmou que o instituidor da pensão já havia pago

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as contribuições necessárias para garantir o direito de sua esposa a receber o benefício de pensão por morte, não podendo o Estado se apropriar destes valores: (...) 20.Concordo com o Ministro Benjamim Zymler quando afirma que o caráter contributivo é relativo, tanto é que o servidor que acumula remunerações, e proventos, tem sua renda limitada pelo teto. Mas, extrapolar esse entendimento é desvirtuar totalmente o caráter contributivo da contribuição. Ademais, em se tratando de regime acima de tudo contributivo, interpretação distinta, mais que proteger os cofres públicos estaria, de fato, ocasionando enriquecimento sem causa da União, uma vez que as contribuições de toda uma vida laboral, cujo objetivo do instituidor foi amparar a si ou a seus dependentes na hora devida, passará a ser apropriada pelo Estado. Defendo, sim, o estado de direito, mas não o abuso do poder estatal. (BRASIL, TCU, 2005. Grifo nosso)

Por fim, observa-se que ao aplicar o “abate-teto” sem os devidos procedimentos legais e sem a análise necessária por parte da Administração Pública, além de toda a ofensa, já comentada, que é cometida contra o beneficiário, o Estado ainda enriquece às custas das contribuições pagas pelo servidor falecido. CONCLUSÃO Inicialmente é necessário esclarecer que o entendimento do TCU é que, devido ao caráter contributivo dos benefícios, previsto no art. 40, caput, da Constituição Federal de 1988, o teto constitucional aplica-se à soma dos valores percebidos pelos instituidores individualmente, mas não para a soma de valores percebidos de instituidores distintos, portanto não incide o teto constitucional sobre o montante resultante da acumulação de benefício de pensão com remuneração de cargo efetivo ou em comissão, e sobre o montante resultante da acumulação do benefício de pensão com proventos da inatividade, por serem decorrentes de fatos geradores distintos, em face do que dispõem os arts. 37, XI, e 40, § 11, da Constituição Federal de 1998. (BRASIL, TCU, 2005 De acordo com as pesquisas que fundamentaram a elaboração deste trabalho, foi possível destacar a importância do tema em debate, pois, explanando suas características, requisitos e evolução, pode-se entender a importância da criação do teto remuneratório e da aplicação legal do “abate-teto”. Sendo este, um assunto bastante polêmico e atual, pois é prática adotada na Administração Pública, com habitualidade, de modo que desnatura o escopo previsto pela lei, ou seja, de ter a retribuição pecuniária paga em razão do trabalho caráter alimentício, e que não deveria sofrer nenhum desconto, principalmente sento este desconto proveniente de um fato gerador diverso do que está sendo adotado como razão para a sua aplicação. Podendo-se afirmar, assim, que a reiteração desta prática, está tomando força, o que vem sendo, inclusive, repudiado por decisões judiciais, que reconhecem o acordo entre o instituidor da pensão por morte e o Estado, já que, em vida, o servidor contribuía com a sua previdência para garantir a sua aposentadoria ou pensão por morte para seu/sua cônjuge/companheiro(a) e a segurança econômica de sua família. O “abate-teto” surgiu e se firmou por meio do estabelecimento do teto remuneratório com a advento a Emenda Constitucional 41/2003, que em seu artigo 9º reestabelece o artigo 17 do Ato de Disposições Constitucionais Transitórias. Inquestionável é a sua aplicabilidade ao subsídio/remuneração ou proventos de um servidor público, porém o que se questiona é a sua aplicação sobre à renda de um servidor cumulada na pensão deixada por outro. Ainda que não haja dispositivo legal expresso quanto a esse ponto, restou demonstrado que tanto a doutrina quanto a jurisprudência dominantes reconhecem a invalidade desta postura da Administração Pública. Mas em que pese toda a evolução do ordenamento pátrio no que se refere ao reconhecimento e

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determinação dos efeitos do instituto, faz-se necessária a positivação de normas de como o Estado deve agir neste sentido. O Brasil é um país com dimensões continentais, em que muitos entes administrativos alegam não fazer o devido desconto ou fazer desarrazoadamente por não ter o controle de quantos vínculos o servidor tem e qual os valores percebidos por ele. Ante o exposto, conclui-se que as limitações constitucionais relativas ao teto remuneratório do serviço público e o entendimento doutrinário e jurisprudencial não permitem a aplicação automática do “abate-teto”, e quando isso é feito, está se desrespeitando o devido processo legal, sem se garantir ampla defesa e contraditório, sobre benefícios com fontes de custeio distintas na cumulação de subsídio/remuneração ou proventos de aposentadoria com pensão por morte em valor que supere o subsídio mensal dos Ministros do Supremo Tribunal Federal. Como se tal fato já não fosse o suficiente para a não aplicação automática do “abate-teto”, ainda ocorre o locupletamento dos valores por parte da Administração Pública sobre as contribuições do servidor falecido, visto que este contribuiu para com o Estado com a promessa de no futuro, em caso de idade avançada ou de sua morte, receber ele mesmo os proventos ou o seu cônjuge/companheiro(a) vir a receber a sua pensão por morte para garantir a subsistência e o padrão de vida de sua família, visto que com esta finalidade o contribuinte trabalhou a vida inteira. Por conseguinte, não deve ser aplicado o chamado “abate-teto” sobre a soma de pensão por morte com proventos de aposentadoria, subsídio ou remuneração decorrente do exercício de cargos, funções ou empregos públicos, quando percebidos cumulativamente pelo mesmo beneficiário: a autotutela é legal, mas a seara pública deve respeito ao devido processo legal. REFERÊNCIAS BITTENCOURT, Isabela Cristina Pedrosa. Acumulação de duas aposentadorias pelo servidor e a decadência para a administração rever seus atos. Disponível em:< http://www.conteudojuridico.com.br/artigo,acumulacao-de-duas-aposentadorias-pelo-servidor-e-a-decadencia-para-a-administracao-rever-seus-atos,48771.html#_ftn9>. Acesso em 22/11/2014. BRASIL. Lei n° 8.213/1991, de 24 de Julho de 1991. __________. Lei 10.406/2002, DE 10 de Janeiro de 2002. __________. ADVOCACIA-GERAL DA UNIÃO (AGU). Consultoria Jurídica do Ministério Do Planejamento, Orçamento e Gestãoparecer/Mp/Conjur/Fnf/Nº 1077 - 3.22 / 2007. __________. CONSELHO NACIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO (CNMP). Resolução Nº 10, de 19 de junho de 2006. Disponível em: . Acesso em 01/01/2015. __________. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ). RESOLUÇÃO Nº 13, DE 21 DE MARÇO DE 2006. Disponível em: < http://www.cnj.jus.br>. Acesso em 01/01/2015. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 21 ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 260. __________. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ). RESOLUÇÃO Nº 14, DE 21 DE MARÇO DE 2006. Disponível em: . Acesso em 01/01/2015.

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TRANSEXUALIDADE E DIGNIDADE: OS DESAFIOS JURÍDICOS E SOCIAIS PARA A GARANTIA PLENA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Carlos Henrique Felix Dantas Aluno graduando do curso de direito da Universidade Católica de Pernambuco [email protected] Raissa Lustosa Coelho Ramos Aluna graduanda do curso de direito da Universidade Católica de Pernambuco. [email protected]

SUMÁRIO: Introdução; 1. A pessoa transexual, o movimento transgênero e a busca por direitos fundamentais; 2. Contexto da medicina em relação à transexualidade; 3. Do direito à mudança de nome independentemente da cirurgia de transgenitalização; Considerações finais; Referências.

INTRODUÇÃO Sem dúvidas, o “fenômeno transexual” indica grandes modificações históricas da percepção científica, cultural e política da identidade sexual durante a história (CASTEL, 1995). Significa uma quebra de paradigmas históricos que definem homens e mulheres a partir de uma genitália feminina ou masculina, sem meio termos, em que pessoas nascem e se adaptam com sua forma biológica sem se questionar a respeito do que é gênero e o que é papel social. A pessoa transexual é aquela que não se identifica com o seu sexo biológico; em outras palavras, um homem que se sente “preso” no corpo de uma mulher, ou vice-versa. Uma adequação justificada pelo fato de que a genitália e os aspectos fenótipos e genótipos de um indivíduo podem não corresponder à personalidade psíquica com a qual ele se sente representado. Adaptar-se em sociedade quando se é um indivíduo transexual passa pelo constante preconceito e desrespeito que emana do exterior. O direito à identidade, que é inerente a todo ser humano, passa a ser, em parte, negado para aqueles que se identificam como pessoas transexuais. E, considerando que a identidade é o elo que liga o indivíduo e o resto da sociedade (BITTAR, 2015), não poder exercer sua personalidade e identidade em conjunto representa uma agressão significativa. Esse preconceito pode ser percebido de formas mais sutis, como o significativo afastamento de algumas pessoas do indivíduo tendo como motivo sua transexualidade, ou mesmo de formas mais enérgicas, como a própria agressão física ou verbal, ou proibir a entrada desse indivíduo em determinados ambientes, dentre outras ações. É neste ponto que o Direito deve atuar como um defensor dos interesses individuais nessas situações de vulnerabilidade. É um princípio da Constituição do Brasil promover o bem de todos, independentemente de condição social, financeira, raça, ou outra condição de vulnerabilidade, o que deve ser estendido à transexualidade (ARAÚJO, 2000). 1. A PESSOA TRANSEXUAL, O MOVIMENTO TRANSGÊNERO E A BUSCA POR DIREITOS FUNDAMENTAIS.

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Os quatro pilares da sexualidade humana são: Gênero, orientação sexual, papel sexual e identidade sexual. O gênero é o sexo biológico do indivíduo, a orientação sexual tem a ver com o desejo, com atração, o papel sexual tem a ver com o comportamento – por exemplo, um homem que pinta as unhas está num papel feminino –, o papel sexual não tem nada a ver com a orientação sexual, ou seja, um homem dito como “afeminado” ou uma mulher “masculinizada” não necessariamente são homossexuais e por fim, a identidade sexual é como o indivíduo se percebe, alguns chamam de “sexo cerebral”. Transexual é o indivíduo que nasce biologicamente pertencente a um determinado sexo, mas sente-se, percebe-se e tem a vivência psíquica de pertencer ao outro sexo. A identidade de gênero (homem ou mulher) não é congruente com o sexo anatômico, biológico, ou seja, o que define o transexual é que o seu corpo é de um sexo, mas seu cérebro é de outro. São mulheres presas num corpo de homem, ou vice-versa. A sigla LGBTTT tem sido utilizada hoje para designar o grupo de pessoas lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, transgêneras e travestis, respectivamente. O termo transgênero se refere a uma pessoa que se identifica psiquicamente com o gênero oposto ao seu de nascimento, ou que pertença a ambos ou nenhum dos dois sexos, estando incluídas nessa classe travestis, pessoas intersexuais, pessoas transexuais, e mesmo Drag Queens e Drag Kings. É importante frisar que o Movimento Transgênero (Transgender Movement) é distinto do do Movimento LGBTTT, que difere por reivindicações próprias (ÁVILA; GROSSI, 2012). A diferença entre transexuais e transgênero pode ser definida, de maneira básica, porque o Transgênero, apesar de possuir uma identidade de gênero distinta da biológica, como ocorre com os transexuais, não visa enquadrar-se de forma completa em um só gênero, ou deseja transitar entre esses, como é o caso das Drag Queens e Drag Kings, pois acreditam que essa é a melhor forma de expressar sua identidade e dignidade. Infelizmente, atitudes homofóbicas e transfóbicas ainda estão arraigadas na construção de valores sociais pelo mundo todo. E isso se agrava quando o preconceito é o que diferencia aqueles que têm acesso aos seus direitos básicos daqueles que não têm. É função primordial do Direito impossibilitar disparidades no que diz respeito à efetivação de direitos, garantia constitucional de todos. É claro que não se pode englobar e enumerar, em um texto apenas, todas as violações e agressões sofridas pela comunidade LGBTTT, pois estas são, infelizmente, demasiadas. Mas tentaremos, na perspectiva da dignidade e da autonomia de tomar decisões e ter acesso à direitos básicos, exemplificar algumas questões que merecem a atenção do Estado e da população. 2. CONTEXTO DA MEDICINA EM RELAÇÃO À TRANSEXUALIDADE. Atualmente, no Brasil, o grupo de pessoas que corresponde aos transexuais possui a extensão de seus direitos em eminência. No entanto, ainda não se sabe quando alguns direitos fundamentais serão finalmente garantidos, não sendo somente visto na teoria, mas, sim, também na prática. Nesse sentido, pode-se dizer que o respeito a diferença não é algo impossível ou inalcançável, mas, sim, que pode ser trabalhado e processualmente aferido pela parcela da população que a rejeita, através da educação e do discernimento. A partir disso, poderá ser falado que os direitos individuais poderão ser garantidos através da dignidade da pessoa humana, como também através do princípio da autonomia da vontade, isonomia e do direito à liberdade. Muitas pessoas não fazem ideia de como é a perspectiva de mundo das pessoas transgêneras. Viver numa condição incompatível com o gênero que se tem é um fardo extremamente traumático. Isso ocorre porque a sociedade tem necessidade em enquadrar as pessoas em papeis sociais, de acordo com a cultura de cada lugar (EDWARDS, 1991). A não identificação emana não só da composição biológica, do corpo em si, como muitos pensam, mas do próprio status de homem ou mulher. Desde os primeiros anos de vida, a pessoa transgênera tem que conviver com todo o estereótipo do sexo oposto ao qual se identifica. Quando se entra em lojas para produtos infantis, a separação é bem clara: o polo rosa, e o polo azul. Menino, menina. A diferenciação se faz bem marcante, como se a sociedade impusesse, mesmo que de formas subjetivas, a necessidade de separar e distinguir um gênero do outro, desde cedo. Os meninos com carrinhos, e as meninas com suas bonecas. Portanto, o sofrimento da pessoa “trans” começa desde cedo, vivendo num mundo que não é

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seu, cercada por rótulos que a sociedade imprime e com o eterno sentimento de deslocamento psicológico, e isso é um problema sociológico (BENTO, 2012). Por causa do desconforto com o gênero biológico, algumas pessoas podem optar pela intervenção médica para o processo de transformação em seu corpo. Os profissionais da medicina analisam e proferem o diagnóstico clínico às pessoas transexuais de transexualismo, termo que designa transtorno psíquico de gênero. Uma vez dado esse diagnóstico, um psicólogo ou psiquiatra deve estudar o paciente e emitir um parecer que comprove o estado no qual vive o indivíduo, ou seja, diferente em gênero de sua natureza biológica. Depois disso, feitos todos os requisitos e análises, é preciso tratar com um profissional endocrinologista para que se inicie o tratamento hormonal, sempre acompanhado de terapia psicológica. Quando o indivíduo decide realizar a cirurgia de transgenitalização, aceita passar por todas essas etapas de transformação conhecidas popularmente por “mudança de sexo”. A cirurgia de redesignação sexual tem finalidade terapêutica de proporcionar ao paciente a identificação com seu corpo biológico e bem-estar. O Conselho Nacional de Medicina é responsável pela autorização dos profissionais aptos a realizar o procedimento, e é necessário que os estabelecimentos (hospitais, clínicas, consultórios) possuam uma equipe preparada e multidisciplinar para realizar todas as etapas do processo. Vale ressaltar, ainda, como bem entendem alguns estudiosos da área, que as pessoas transexuais se dividem, também, entre as que são operadas e as que não são operadas. Desse modo, existem pessoas transexuais que tem interesse de fazer a transgenizatalização e as que não tem interesse em fazer a cirurgia de mudança de sexo, devido às consequências possíveis da operação, como mutilação genital ou a possibilidade, se a cirurgia for mal feita, de que o indivíduo que passou pela mudança de sexo não venha mais a sentir prazer. Nesse sentido, parte do grupo de pessoas transexuais sofrem, pelo medo de fazer a cirurgia, hiperpotencializando, assim, um sofrimento comum que se alicerça com o sofrimento que é fruto da sociedade. O campo da Medicina guarda a polêmica de estar constantemente batendo de frente com a ideologia transexual, ao qualificar tal fenômeno como transtorno. Os métodos de análise e diagnóstico funcionam como se, efetivamente, se tratasse como uma doença. E a comunidade “trans” ainda não se decidiu, de forma una, o que pensar sobre isso. Há um medo muito grande de que se perca o direito de realizar o tratamento e a cirurgia popularmente tratada como “mudança de sexo”, como cada passo é lento e conquistado através de muita luta, é normal que a população transexual sinta-se intimidada. E no campo jurídico não se há uma resposta sobre o problema. Quando se pleiteia que esse tratamento seja gratuito e custeado pelo Estado, verifica-se um choque no que diz respeito ao tratamento dessa condição como doença. Presencia-se dentro da própria comunidade transexual e transgênera ideias opostas nesse sentido, o que é normal por se tratar de uma questão polêmica. Afinal de contas, nem todo mundo tem condições financeiras para arcar com os custos desse procedimento e, sendo realizado pelo meio de saúde pública, seria necessário o enquadramento do fenômeno como uma doença. E uma das lutas defendidas pelo Movimento Transgênero é justamente contra a medicalização e patologização da transexualidade (ÁVILA; GROSSI, 2012), pois acreditam que o contexto de doença não os representa, ou representa sua verdadeira condição como pessoa humana digna. A transexualidade – tratada como transexualismo na Medicina – foi enquadrada no Manual Diagnóstico e estatístico das Desordens Mentais desde 1987 (CASTEL, 2001), sendo considerada, portanto, uma doença atribuída para pessoas com “disforia de gênero”, que demonstrassem vontade de transformar o seu sexo corpóreo e gênero social, vontade esta que só seria concedida após o acompanhamento do paciente durante dois anos por profissionais da área, tendo o aval clínico para tal. O fenômeno chamado pela Medicina de transexualismo também pode ser encontrado na Classificação Internacional de Doenças como “transtorno de identidade de gênero”. É claro que não é aceitável, no âmbito dos Direitos Fundamentais, que um indivíduo seja enquadrado como “doente” porque é transgênero, sem qualquer debilidade ou incapacidade física ou psicológica. O processo de precisar de um tratamento, de ter que se submeter à avaliação e às decisões de um profissional para decidir se o indivíduo pode ou não pode submeter-se a uma cirurgia de transgenitalização e ao tratamento hormonal é uma violência gravíssima. Não poder viver adequadamente sua identidade de gênero já é uma violação à dignidade, e passar por todas essas etapas torna-se uma violação ainda maior (BUTLER, 2006).

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3. DO DIREITO À MUDANÇA TRANSGENITALIZAÇÃO.

DE

NOME

INDEPENDENTEMENTE

DA

CIRURGIA

DE

É fato que qualquer questão relacionada à sexualidade e suas nuances, inadequações, modificações não condizentes com os padrões heteronormativos e cisgêneres, desperta rejeição social. Épocas transcorreram na história da humanidade sem que as diferenças fossem aceitadas ou mesmo ouvidas. Os registros históricos da humanidade trazem a informação de que a sexualidade foi estigmatizada e moldada segundo padrões de comportamento que não dizem respeito a um sentimento unânime – embora majoritário –, deixando dessa maneira classes de pessoas à margem da aceitação social. Desde a Idade Média, os avanços da Ciência costumam aborrecer o conservadorismo e a área jurídica, e não só o Clero e a Igreja, como muitos pensam. É fato que, durante muito tempo e talvez até hoje, o ordenamento jurídico tenha tendência a seguir os padrões sociais e os preconceitos populares, as preferências majoritárias, por assim dizer. Hoje, a biologia afirma que a determinação do gênero de uma pessoa não é necessariamente decorrente da formação de uma genitália externa feminina ou masculina, e suas características anatômicas. Embora existam, doutrinariamente, dentro da psicologia e medicina, explicações diferentes para o fenômeno da não identificação psíquica com o corpo biológico – seja causada pelos próprios genes da pessoa, seja uma formação diferenciada do feto justificada na diferença temporal entre o período de formação do cérebro e o período de formação da genitália – o entendimento de que a transexualidade existe é irrefutável. Ainda que a pessoa transexual reúna em si fisicamente todos os atributos do seu sexo biológico, pode sentir-se psiquicamente direcionada com o sexo oposto. É um fato recente a possibilidade de uma pessoa transexual poder alterar seu nome nos registros públicos, direito este que passou muito tempo sendo negado pelo Estado. Fechar os olhos a uma realidade explícita não vai fazê-la desaparecer e a omissão legal conseguirá apenas fomentar ainda mais a discriminação e o preconceito (DIAS, 2011.). O importante é perceber que nem sempre a vontade da maioria deve ser sobreposta a interesses individuais, principalmente se estes estão ligados a direitos fundamentais inerentes à pessoa humana. “Minorias” devem ser respeitadas também, independente de aprovação social. Na lei Lei 6015/73 de Registros Públicos, há a disposição de que qualquer pessoa pode mudar seu prenome (primeiro nome) caso prove que seu “apelido público notório” – a forma como ela é popularmente conhecida – é diferente desde prenome civil. O que não limita, semanticamente, que se interprete de forma inclusiva ao nome social no caso das pessoas transexuais. Tal lacuna possibilita, dessa forma, que é válido o entendimento de que este dispositivo pode ser voltado ao direito da pessoa transexual de substituir seu prenome de nascença pelo seu nome social, que condiz com o gênero com a qual ela se identifica e não a provoca sofrimento ou constrangimento. Infelizmente, como o ordenamento jurídico brasileiro ainda se faz demasiadamente omisso à causa transexual, é necessário conquistar os direitos da população transexual através de analogias e interpretações do texto legal já existente, além de jurisprudências. Sem nenhuma menção expressa no Código Civil ou na Lei de Registros Públicos. Nada mais justo, portanto, que seja permitido à pessoa transexual alterar seu nome para adequar-se ao gênero correto, mesmo sem antes ter efetuado a cirurgia e o tratamento para a mudança física. Não se poderia exigir isso das pessoas, em primeiro lugar, porque se feita completamente de forma privada, esse tipo de procedimento médico pode facilmente ultrapassar a marca de 40 mil reais. Em segundo, caso se opte por pleitear a realização da cirurgia através do serviço médico público, seria necessário entrar numa fila imensa que pode durar anos, ou mesmo décadas para ser realizada. Até porque, para que uma pessoa possa passar por esse tipo de procedimento cirúrgico, precisaria de laudos médicos e psiquiátricos comprovando seu estado de desconexão com o sexo biológico, um procedimento que também requer tempo, como informa a resolução 1955/2010 do Conselho Federal de Medicina.   O processo de mudança de gênero com intervenção cirúrgica, hormonal e terapêutica é uma das opções para que a pessoa transexual se sinta melhor sobre si mesma. Apesar de algumas preferirem permanecer com o aspecto físico e biológico que já possuem, exigindo apenas a mudança jurídica e social, boa parte da população “trans” tem necessidade dessa intervenção. Entretanto, muitos ainda não fazem ideia a

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quem recorrer quando tomam essa decisão. Todo o procedimento de cirurgias de transgenitalização no Brasil é muito complicado e burocrático. Por esse motivo, muitos transexuais procuraram ajuda médica em outros países, o que é um privilégio para poucas pessoas que integram esse segmento de indivíduos, o que, em face a isso, acarreta uma procura de maneiras ilícitas de transgenitalizações, ora trazendo resultados esperados, ora ocasionando mutilações no corpo ou mesmo morte. Nesse sentido, a ilegalidade carrega um escopo jurídico que precisa ser superado, que seria a facilidade procedimental de mudança e adequamento desse indivíduo em fiel conexão com sua personalidade. Exigir a comprovação de que a pessoa transexual passou por todas essas etapas antes de concedê-la o direito de ter um nome social é ignorar toda a realidade composta por barreiras pela qual essa comunidade é forçada a conviver durante anos, por bem dizer, ás vezes vida inteira. Superado esse obstáculo, felizmente, várias jurisprudências com o objetivo de Ação de retificação de registro público para alterar o nome de nascença da pessoa transexual já estão sendo aplicadas em cartórios e tribunais em todo o País, depois de muita luta. Porque se torna cada vez mais claro, com o passar do tempo e das lutas reivindicatórias da classe LGBTTT, a regra que sempre predominou que o sexo é ditado pela genitália – e seria a genitália a responsável por separar um homem de uma mulher – tornou-se um pensamento ultrapassado. O que faz um homem, afinal? O que faz uma mulher? Antes de nascermos, a primeira coisa que todos querem saber é: É um menino, ou uma menina? Parece uma necessidade urgente da sociedade definir o sexo da criança antes mesmo que ela saiba se reconhecer como um indivíduo. E quando nasce uma criança hermafrodita – com a combinação dos dois sexos – imediatamente os médicos e a família sentem-se compelidos a reduzir sua ambiguidade através de uma intervenção cirúrgica, para que seja determinado um sexo apenas (MYERS, 1999). A mensagem que fica é de que nós temos, obrigatoriamente, que ter um sexo designado, nada que fique no meio, nada que misture ambos. Segundo o psicólogo norte-americano David Myers: Entre o dia e a noite há o crepúsculo. Mas entre homem e mulher, em termos sociais, não há nada. A sociedade é muito radical em sua necessidade de definir um binarismo de gêneros, e gêneros esses determinados exclusivamente por uma genitália. Tal pensamento não condiz mais com a realidade de muitas pessoas, portanto não pode ser representada pelo Direito, que deve ser um instrumento de todos. Essa cultura de papeis sociais predefinidos por gênero (EDWARDS, 1991.) é nociva para aquelas pessoas que não estão dispostas a adaptar-se a todo custo a uma sociedade que não as aceita ou define. O GADvS – Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e a ABGLT – Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Travestis e Transexuais protocolaram uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI nº. 4275), movida pela Procuradoria-Geral da República em 2009 pedindo o reconhecimento do direito das pessoas transexuais mudarem seu nome e sexo sem que seja necessário realizar a cirurgia de transgenitalização, mas mediante a apresentação de laudos psiquiátricos comprovando a transexualidade do indivíduo. Paulo Iotti, advogado e constitucionalista e atual diretor-presidente do GADvS, representou o GADvS e ABGLT no processo referido. Sua proposta de levar para o Supremo Tribunal Federal uma visão contemporânea de sexualidade e gênero, conseguiu grande repercussão nacional. O direito de ratificar o nome, adequando-se à condição psíquica do indivíduo está ligado intimamente à identidade pessoal e social da pessoa, sendo indispensável para obtenção da sua qualidade de vida e bem-estar. Ademais, pode ser citado como uma vitória para a comunidade transexual o Decreto 49476, de 15/8/2012, que instituiu a Carteira de Nome Social para Travestis e Transexuais no Estado do Rio Grande do Sul. Embora tal decreto apenas vincule um estado, em todo o Brasil esse direito deve ser respeitado, como dita as jurisprudências sobre esse tema. Segundo a avaliação do presidente da ABGLT, Toni Reis, essa é a forma correta de julgar os pedidos. Para visar conforto à população e atender suas necessidades, ao conceder nome adequado, diferente do de nascença, à pessoa transexual, sob a alegação de que essas pessoas são cidadãs, que merecem o respeito da mesma forma que outras pessoas. Também vale ser citada a Lei 3/2007, de 15 de março, que regula os requisitos de acesso para alterar o registro do sexo de uma pessoa no cartório, quando esse registro não reflete a sua identidade de gênero. CONSIDERAÇÕES FINAIS

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Os avanços na área do Direito da Diversidade têm aumentado não só no Brasil, como no mundo. No entanto, ainda sim é preciso que se faça mais, que se estude mais. As constituições e códigos ainda são muito arcaicos, e não só em relação à comunidade LGBTTT, mas às novas formas de se relacionar das sociedades em geral. A pessoa transexual, bem como a transgênera, precisa ter mais visibilidade dentro da sociedade, pois muitos ainda tratam o tema como um “tabu”. E, quando essas pessoas estão numa posição dentro do Governo, a vulnerabilidade se torna evidente pela falta de políticas públicas inclusivas, pela falta de legislação sobre o tema, mas, especialmente, pelo ódio e medo do diferente que ainda assola as sociedades pelo mundo. É necessário que se complemente as leis já existentes com medidas novas que acompanhem as necessidades atuais. É importante que se continue fazendo, dentro dos tribunais, o papel importante de retificação de nome para as pessoas da comunidade “trans”, o que foi uma grande vitória para a Justiça brasileira. A urgência não começou há pouco tempo, é uma questão que vem sendo há muito tempo debatida e requerida pelo povo. É ao povo que o legislador deve servir e atender, afinal de contas. No mais, além de no âmbito jurídico, é necessário que se mude o jeito de pensar das pessoas, e isso é feito com campanhas, atos públicos, ajuda da mídia e de veículos de comunicação em geral, mecanismos públicos, ações direcionadas a reduzir o preconceito também. Nenhum padrão é rompido facilmente, mas, para o bem de uma sociedade bem estabelecida e preparada para acolher a diversidade, faz-se necessário uma construção coletiva de um novo pensar. Ademais, o direito de mudança de nome social, o direito de ser e existir, assim como outros direitos fundamentais, são tidos, por muitos, como novos direitos; mas será que são novos, ou sempre existiram e nunca foram “ouvidos”? Nesse sentido, não são novos direitos porque são novos, são novos direitos porque sempre foram tidos como direitos inexistentes. São novos direitos, portanto, porque historicamente há um fluxo maior de pessoas a impulsionar respaldo jurídico e estatal a respeito da questão da transexualidade. É um direito de ser e existir que deve ser considerado como infungível, fundamental e inalienável. Não há mais como negar a existência e a voz das pessoas transexuais. REFERÊNCIAS ARAÚJO, Luiz Alberto David. A proteção constitucional do transexual. São Paulo, SP: Saraiva, 2000. ÁVILA, Simone; GROSSI, Miriam Pillar. Transexualidade e Movimento Transgênero na Perspectiva da Diáspora Queer. Universidade Federal de Santa Catarina. Publicado em Cadernos Pagu (38), Janeiro-Junho de 2012; 441-451. Disponível em: Acesso em: 7 nov. 2015. BENTO, Berenice. A diferença que faz a diferença: corpo e subjetividade na transexualidade. Rio de Janeiro, 2012. BITTAR, Carlos Alberto. Os direitos da personalidade – 8° ed. São Paulo: Saraiva, 2015. BUTLER, Judith. Deshacer el gênero. Barcelona: Paidós, 2006. CASTEL, Pierre-Henri. 2001. Algumas Reflexões para estabelecer a cronologia do “fenômeno transexual” (1910-1995). Revista Brasileira. vol. 21, nº 41, p. 77 – 111. Disponível em www.scielo.br/scioelo. Acesso em 20.09.2015. Acesso em 29.10.2015 CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Código de ética profissional do psicólogo. Disponível em < www. pol.org.br/legislacao/pdf/cod_etica_novo.pdf >. Acesso em 28.10.2015.

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DIAS, Maria Berenice. Diversidade Sexual e Direito Homoafetivo. Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 2011. EDWARDS, C. P. Behavioral sex diferences in children of diverse cultures: The Case of Nurturance to Infants. In M. Pereira & L. Fairbanks (Eds.), Juveniles Comparative Sociology. Oxford: Oxford University Press, 1991. NÁCIO, Marlene; VERDUGUEZ, Elisa del Rosario Ugarte. Experiência em Avaliação Psicológica da Transexualidade no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. In: VIEIRA, Tereza Rodrigues; PAIVA, Luiz Airton Saavedra de. (Org). Identidade Sexual e Transexualidade. São Paulo: Roca, 2009, p. 64. MYERS, David G. Social Psychology. The McGraw-Hill Companies, INC, 1999.

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PERSONALIDADE JURÍDICA DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA E TOMADA DE DECISÃO APOIADA: DESAFIOS E PROPOSTAS PARA UM EFETIVO ACESSO À JUSTIÇA

Carlos Henrique Felix Dantas Aluno graduando do curso de direito da Universidade Católica de Pernambuco. [email protected] Raissa Lustosa Coelho Ramos Aluna graduanda do curso de direito da Universidade Católica de Pernambuco. raissa. [email protected]

SUMÁRIO: Introdução; 1. Interpretação e evolução histórica do início da personalidade jurídica no brasil e no mundo; 1.1. Distinção lógica entre personalidade jurídica e capacidade civil; 2. Personalidade jurídica da pessoa com deficiência; 3. Tomada de decisão apoiada: desafios e propostas para um efetivo acesso à justiça; 4. O acesso à justiça da pessoa com deficiência como ferramenta efetiva para a busca da garantia dos direitos fundamentais; Considerações finais; Referências.

INTRODUÇÃO Ao decorrer da vida do indivíduo que possui algum tipo de deficiência, a interatividade com o coletivo se apresenta de maneira diferenciada; seu espaço no núcleo social, por diversas vezes, é limitado, restando a esse indivíduo a posição de passividade ou impotência atrelada a sua deficiência. Essa lógica, no entanto, nos parece um pouco controversa e insatisfatória. Em plenitude, entende-se, graças ao modelo social, gradualmente implantado, que o assistencialismo, caractere principal do modelo médico, precisa ser mitigado e transformado num processo de capacitação, para dar ensejo ao pleno desenvolvimento da capacidade de agir e da capacidade de exercício da pessoa com deficiência, para garantir, então, que esse seja um cidadão em plenitude, capaz de praticar atos na vida civil acompanhados ou não da tomada de decisão apoiada. Nesse sentido, é necessário o debate acerca dos direitos intrínsecos a personalidade das pessoas com deficiência e de que forma eles precisam, em plenitude, ser garantidos tanto na esfera dos interesses privados, como na esfera de interesses coletivos, por conseguinte, salvaguardado na ideia dos direitos fundamentais. Ademais, o verdadeiro sentido por trás da lógica dos direitos fundamentais e dos direitos da personalidade, são a inexcusábilidade e a inalienabilidade desses direitos ora tidos como individuais, ora tido e visto como coletivos, “são direitos que se relacionam com atributos inerentes à condição da pessoa humana”. (BITTAR, 2015, p. 38). A partir dessa lógica, deve-se ater a noção de respeito à diferença e a plena intenção de garantir os direitos disponíveis de cada indivíduo. Ademais, desde a Convenção da ONU, sobre os direitos da pessoa com deficiência, que existe a clara intenção de garantir direitos fundamentais, fragmentados pela noção de dependência e da ideia de falta de capacidade das pessoas com deficiência em gerir determinados atos em autonomia de suas vidas. Os direitos da personalidade, pois, surgem a partir do nascimento do indivíduo,

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isto é, desde a sua concepção com vida. No entanto, a intolerância e a falta de um olhar humanitário para o outro tornaram de muita importância a ratificação de direitos tidos como óbvios, como o direito à autonomia, direito à reprodução, direito pleno de ser e existir, assim como direito à pratica de determinados atos que não sejam até negociais. Esses direitos, portanto, não novos, sempre existiram, e contemplam a plena noção de direitos da personalidade. Esse artigo, desse modo, procura abordar de que maneira há uma inclinação, a partir do Estatuto da pessoa com deficiência, em reconhecer esses direitos imprescindíveis e inalienáveis. Diante disso, vale ressaltar que o respeito aos direitos da personalidade, de qualquer indivíduo, se iniciam a partir do modo de tratamento que se dá o outro. Logo, é necessário falar a respeito do uso correto de tratamento da pessoa que possua qualquer tipo de deficiência. Entende-se atualmente, por exemplo, que não se é mais correto o uso do termo deficiente, sendo necessário, portanto, o uso do termo pessoa, afrente do termo deficiência. Atualmente, a expressão utilizada é “pessoa com deficiência”. A idéia de “porta”, “conduzir” deixou de ser a mais adequada. A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, que ingressou no sistema constitucional brasileiro por força do Decreto-Legislativo n. 186 de 09 de julho de 2008 e do Decreto de Promulgação n. 6949, de 25 de agosto de 2009, utiliza-se da expressão contemporânea, mais adequada. A pessoa (que continua sendo o núcleo central da expressão) tem uma deficiência (e não a porta). Com a aprovação da Convenção, que tem equivalência com a Emenda à Constituição, por força do parágrafo terceiro, do artigo quinto, da Constituição Federal, a terminologia nova revogou a antiga. Assim, apesar de os textos impressos trazerem a expressão “pessoa portadora de deficiência”, a aprovação da Convenção, com status equivalente a Emenda Constitucional, tratou de alterar o dispositivo constitucional. Assim, a Constituição deveria já estar retificada para “pessoa com deficiência”, nome atual, constante de norma posterior, convencional, de mesmo porte de uma emenda. Sendo assim, a Constituição já foi alterada neste tópico. (ARAÚJO, 2011, p. 16)

Percebe-se, portanto, que além de qualquer deficiência que o indivíduo possa ter, há a necessidade de usar o termo “pessoa” como indispensável, afim de garantir o respeito aos direitos da personalidade, mais precisamente, ao direito de identidade, à honra e ao respeito, por exemplo. É imprescindível para garantir a noção de igual, humanamente igual, perante o direito de qualquer ser humano. Desse modo, se é possível perceber que não é mais correto o uso do termo portador de enfermidade ou o uso do termo doente mental. O primeiro é incorreto pelo simples fato de que a pessoa com deficiência não porta a sua deficiência, mas sim vive com ela. Nesse sentido, “portar” traz a ideia de transitoriedade, algo que alguém porta num momento, mas que pode simplesmente deixar de portar, como uma camisa. O segundo, é incorreto pelo simples fato de “deficiente” carregar consigo a noção de algo negativo, de menos, de algo incompleto ou vicioso. 1. INTERPRETAÇÃO E EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO INÍCIO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO BRASIL E NO MUNDO. Há uma controvérsia entre o pensamento dos autores de diferentes Estados nacionais que delimitam a respeito do começo da personalidade civil do indivíduo. Essa diferente percepção acompanha cronologicamente uma perspectiva de pensamento que segue em modificação e, em alguns casos, que segue na insistência da manutenção do pensamento, dentro do ensejo do meio jurídico de cada país. Particularmente o Estado brasileiro, que é o foco desse trabalho, se apegou a noções do direito romano – que em tese influenciou de grande maneira boa parte do mundo ocidental – além de outras teorias que em breve serão explanadas. O direito romano parte da perspectiva de que a personalidade jurídica coincidiria com o nascimento, antes do qual não seria possível falar a respeito de sujeito de direito ou objeto do mesmo. Para tal corrente de pensamento, o feto, dentro da mãe, corresponderia a uma parte dela, “portio mulieris vel viscerum”, e não a um ente ou um corpo, como bem explana o autor Caio Pereira (2002). Somado a isso, não significa que o feto

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não teria seus interesses assegurados. Como particularidade, a mesma corrente pontua que mesmo sendo necessário o nascimento para a adesão de direitos, enuncia, também, a regra da antecipação presumida de seu nascimento, “nasciturus pro iam nato habetur quoties de eiues commodis agitu”. Desse modo, farar-se-á uma equiparação do feto ao já nascido, não para considera-lo pessoa, mas com o propósito de assegurar seus interesses novamente. Observando o Código Civil brasileiro de 2002, que trata do surgimento da personalidade civil no seu artigo 2º, percebe-se que o legislador abre espaço para diversas discussões doutrinárias, pois o texto aborda o tema de maneira vaga. Fica entendido a partir do dispositivo que a personalidade civil de uma pessoa só pode começar a partir de seu nascimento com vida, mas, ao mesmo tempo, a lei assegura desde o momento da concepção os direitos do nascituro, o que dá uma certa ideia de confusão. A controvérsia reside justamente no fato de o nascituro ter alguns direitos assegurados, e ao mesmo tempo ter o reconhecimento de uma personalidade negado expressamente pelo Código Civil. A questão é que esse tema é extremamente subjetivo e não se pode ainda afirmar uma verdade absoluta sobre ele, e por esse motivo é que existem correntes doutrinárias distintas. A discussão a respeito das teorias Natalista e Concepcionista são trazidas também pelo Código Civil. A que possui maior relevância, é claro, é a que em abrangência o Código Civil brasileiro adotou, entretanto, é de extrema relevância se falar a respeito da outra, já que se fez necessário a discussão. A Natalista se refere a ideia de que a personalidade só seria adquirida a partir do nascimento com vida, de tal forma, o nascituro só seria pessoa em meio extrauterino, gozando antes, apenas, de mera expectativa de direito. Ao contrário dessa conotação, a concepcionista parte do princípio de que o nascituro já é pessoa. Logo, adquire personalidade desde a concepção, inclusive no que tange a certos direitos patrimoniais. Ainda os concepcionistas afirmam que, quanto ao direito à herança não há consolidação desse direito, exigindo-se o nascimento (se abortar não haverá transmissão). Dentre ambas teorias abordadas, evidentemente, a adotada pelo Código Civil foi a Natalista. Representando essa linha de pensamento, Carlos Roberto Gonçalves define que o nascimento ocorre no momento em que a criança é separada do corpo da mãe, seja através de parto natural ou por meio de intervenção cirúrgica, sendo essencial apenas que se desfaça a unidade biológica que vincula os dois corpos – o cordão umbilical – sendo que os dois corpos possuam, depois disso, vida orgânica separada. Outro ponto que carece de ser bem explanado, como bem coloca o autor Salvo Venosa (2003), seria o de que o nascituro é um ser já concebido, isto é, ele se difere daquele que não foi, obviamente, mas que poderá ser sujeito de direito no futuro, dependendo de uma “prole eventual”. Um ponto característico dessa afirmação, seria a noção de direito eventual, que seria um direito em mera potencialidade. Logo, no Brasil, entendemos que a concepção do nascituro extrapola a concepção da expectativa de direito. Sob o prisma da ideia de direito eventual, pode-se entender que a questão está longe de estar pacífica na doutrina, tanto é que a teoria Concepcionista é de extrema importância, como foi dito anteriormente, por em diversos pontos do sistema brasileiro ser sentida a sua influência, “na medida que o nascituro é tratado como se fosse pessoa” (BEVILÁQUA, 1975, p. 98). A partir do que foi ressaltado, pode-se perceber que a então ideia do começo da personalidade jurídica do indivíduo, começa a partir do nascimento com vida, baseada na ideia da Teoria Natalista e do Direito romano. Mas, para aprofundar-se, o que corresponderia a vida e o nascimento para a concepção do Código Civil brasileiro? Para Caio Pereira (2002), nascimento ocorreria quando o feto é separado do ventre materno, quer seja a partir do parto natural, induzido ou artificial. O mesmo afirma que não há o que cogitar a respeito de gestação, ou indagar se o nascimento ocorreu nos termos ou antecipadamente, seriam questões desnecessárias. Para o Direito Civil é suficiente e necessário apenas que se desfaça a unidade biológica, de modo a serem mãe e filho, dois corpos com economia orgânica próprios.

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Já a vida se espelharia na ideia do momento em que se opera a primeira troca oxicarbônica com o meio ambiente. De acordo com o autor, viveu a criança que tiver inalado ar atmosférico, mesmo que morra instantes depois; ou seja, depois de ter respirado, viveu: a entrada de ar nos pulmões denota vida, mesmo que não tenha sido cortado o cordão umbilical e as suas provas serão feitas através da visualização do choro, movimentos e mais especificamente, quando houver padecimento, nos processos técnicos de que se utiliza a medicina legal. 1.1 DISTINÇÃO LÓGICA ENTRE PERSONALIDADE JURÍDICA E CAPACIDADE CIVIL

A noção de personalidade se atrela a ideia de começo, de início de vida, findo o que já foi conversado, portanto, e a direitos inerentes a personalidade da pessoa jurídica, sendo essa física ou natural, por exemplo. A personalidade jurídica, por conseguinte, é a aptidão para ser titular de direitos e contrair obrigações na órbita jurídica. É importante falar, também, que é o atributo do sujeito de direito. Para o direito o sentido de personalidade tem um sentido técnico, é a qualidade do sujeito de direito. A pessoa física e a pessoa natural, portanto, é dotada dessa aptidão genérica. A pessoa jurídica também é dotada desse atributo, dessa personalidade jurídica. Logo, o sujeito de direito é dotado de personalidade jurídica. (GAGLIANO, 2010, p. 124). Diante disso, a ideia de personalidade jurídica carrega consigo a ideia de direitos inerentes a própria constituição do indivíduo, sendo lhe carregado de direitos e obrigações que devem ser cumpridos para melhor permitir o desenvolvimento interpessoal daquele indivíduo sujeito de direitos e obrigações, e é a partir dessa lógica que se encaixa a ideia de capacidade civil. A capacidade civil está atrelada a lógica de possibilidade de exercício de direitos e obrigações. O indivíduo, por exemplo, que obtiver personalidade jurídica, será aquele que em potência poderá praticar atos jurídicos. No entanto, nem todo ato jurídico é possível, existem atos ilícitos que contemplam e viciam a celebrações de negócios jurídicos. Um indivíduo, que, em pleno exercício de sua capacidade civil desejar praticar atos patrimoniais, diz o Código Civil, deverá ser capaz, possuir capacidade civil para constituir ato jurídico válido. Mas o que seria ato válido e de que forma ele atrelaria a lógica de possibilidade e eficácia na celebração de um ato jurídico? Um ato possível e que produza eficácia, precisa, primeiramente, existir. É necessário que o indivíduo seja capaz, que possua validade e haja boas intenções e ausência de má-fé. A capacidade, portanto, está atrelada também, a lógica de idoneidade da celebração de qualquer ato jurídico. Em gênese, a ideia de capacidade, antes da lógica da Lei N° 13.146, colocava na figura do curador prerrogativas que, por vezes, alienavam a capacidade de dizer e manifestar vontade do indivíduo que tivesse deficiência. A partir da alteração da nova lei, houve uma tentativa de devolver a autonomia para esse indivíduo, respaldada, obviamente, ainda de uma assistência, de um acompanhamento, assunto que será tratado adiante. Nesse sentido, a ideia de capacidade é a possibilidade de ditar direito de acordo com a vontade do promitente, do indivíduo dotado de personalidade que deseja praticar, provocar ou se eximir de qualquer possibilidade de direito atinente a sua personalidade. Nesse sentido, a capacidade civil é classificada em capacidade de direito e capacidade de exercício. A capacidade civil de direito, também conhecida como capacidade jurídica, é a aptidão para adquirir e transmitir direitos e para a sujeição a deveres jurídicos. Já a capacidade de exercício, é a também conhecida por capacidade de fato, entendida como a capacidade de agir ou a capacidade negocial, isto é, a capacidade de a pessoa também agir com eficácia jurídica, em especial a capacidade de produzir, mediante negócio jurídico, efeitos jurídicos. (LÔBO, 2013, p. 107, p.108). 2. PERSONALIDADE JURÍDICA DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Em verdade, se é possível ratificar que ao longo da história da humanidade houverem inúmeros momentos em que a pessoa com deficiência foi tratada de maneira desumana, sendo, inapropriadamente, colocada na condição de animal, na condição de menos, na condição de pouca importância, como em sociedades da Idade Antiga, por exemplo. Nesse período, havia a predominância do antropocentrismo, que é um olhar

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do mundo voltado para o homem, também marcado pelo equilíbrio e a perfeição. A partir dessas características se é possível, entender, por exemplo, que era nada mais do que comum o olhar para o outro em busca de uma perfeição que, em tese, era de difícil encontro. Diante disso, ora as pessoas com deficiência eram na História Antiga e Medieval tratadas com uma política assistencialista e ora com uma eliminação sumária de outro – políticas essas adotadas veemente em muitos estados soberanos ainda hoje. Em Esparta, por exemplo, os bebês e as pessoas que adquirissem algum tipo de deficiência eram descartados dentro da lógica cultural de utilidade e perfeição do período. (SILVA, 1987). O conceito de perfeição e utilidade dentro de uma lógica político-cultural segue em um performático dinamismo até os dias de hoje. Nesse sentido, por exemplo, a tutela jurídica do direito incide nesses indivíduos nos dias de hoje, graças a uma evolução histórico-cultural, principalmente a partir da idade moderna, de que existe, sim, um lugar, uma utilidade, o que revela uma triste realidade que associa a vida e a existência da pessoa com deficiência no tempo condicionada a necessidade de utilidade definida por padrões genericamente impostos. A ideia de personalidade jurídica, portanto, se atrela a noção de vida. Por conseguinte, uma série de direitos e obrigações são constituídos como inerentes ao indivíduo concebido a partir da simples troca oxicarbônica. Nesse sentido, a ideia de personalidade jurídica da pessoa com deficiência nada se diferencia com a personalidade jurídica de qualquer outro indivíduo que não possua qualquer deficiência, apesar do diferente tratamento concebido historicamente pelas sociedades primitivas até as sociedades contemporâneas. Há, portanto, um olhar associado a utilidade e trabalho daquele que seria o ideal de produção. A existência condicionada a realidade de, do que vale nascer homem, se não tem utilidade prática associada a produção? Diante disso, não importa quais seriam os elementos entendidos como diferentes para constituir com a ideia de deficiência atribuído ao homem. O que importa seriam os mecanismos desenvolvidos pela sociedade para tentar minimizar e melhorar a qualidade de vida das pessoas que possuam qualquer barreira atitudinal ou física. Hoje, entende-se que o conceito de pessoa com deficiência está conectado a relação com o meio, com o ambiente, e não com a deficiência propriamente dita, sendo ela genética ou em consequência do dia a dia. A deficiência seria uma atribuição do meio. O meio que precisa se readequar. Essa lógica é permitida a partir da noção do modelo social quanto a deficiência. Por muito tempo se entendeu, graças ao modelo já em uma processual transgressão e desuso, de que a pessoa com deficiência precisava ser colocada numa posição de tutela assistencialista, o que muitas vezes não permitia em potência o pleno desenvolvimento de todas as habilidades possíveis daquela pessoa que estava sendo curatelada. A partir da evolução desse pensamento, de modelo social, houve um processual amadurecimento da sociedade civil brasileira, que ainda sim precisa aprender muito, que a deficiência em sí não o que em grau dificulta a inserção da pessoa com deficiência no meio, o que dificulta seriam as barreiras que em grau de qualidade permitiriam o pleno desenvolvimento da personalidade daquele indivíduo que muitas vezes teve a sua pessoalidade negada. Diante disso, se carece de um resguardo dos pais. Existe uma Responsabilidade Civil inerente ao poder familiar de cada família que existe uma pessoa com deficiência de permitir o pleno desenvolvimento de todos os direitos inerentes a personalidade jurídica daquele indivíduo, como o direito à sexualidade, dando respaldo o direito a reprodução, o direito a educação efetiva, assim como o acesso à justiça, constitucionalmente assegurado. Apesar da Convenção dos Direitos da Pessoa com deficiência (2009) ratificar esses direitos expostos aqui, assim como outros, foi necessário a partir do Estatuto da Pessoa com Deficiência (2015) tentar ratificar mais uma vez esses direitos que existem, mas continuam sendo taxados pelos juristas e pela sociedade civil como invisíveis, por mais dizer, inexistentes, apesar de assegurados pelo ordenamento jurídico. São direitos novos, que na verdade sempre existiram. São necessários, portanto, a partir da ideia da tutela do direito à liberdade, que sejam assegurados, para demonstrar que não existe nenhum direito que seja menos importante do que outro e que toda humanidade deve ser em plenitude observada e assegurada para todos em plena igualdade. 3. TOMADA DE DECISÃO APOIADA: DESAFIOS E PROPOSTAS PARA UM EFETIVO ACESSO À JUSTIÇA.

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A ideia de tomada de decisão apoiada é inserida na Lei N° 13.146, que visa reafirmar os direitos que já haviam sendo explorados a partir da Convenção sobre os direitos da pessoa com Deficiência (2008). No entanto, foi somente a partir do Estatuto da pessoa com deficiência (2015) que, ironicamente, a sociedade civil e alguns juristas passaram a se aperceberem melhor do assunto atinente as pessoas com deficiência. O conceito de tomada de decisão apoiada tem um cunho assistencialista, mas não um assistencialismo que poda a autonomia do exercício da vontade da pessoa com deficiência. O sentido associado se baseia na ideia de que pessoas idôneas, ou seja, sem pré-disposição de desfavorecer ou prejudicar, ou que tenha vontade viciada, contribuam para uma escolha positiva do indivíduo que esteja sendo assistido. Nesse sentido, há, sim, um avanço na lei quanto a disposição de autonomia e legitimidade para o exercício de direitos e deveres da pessoa com deficiência. Existe, nesse sentido, um aprimoramento e uma assistência de duas pessoas, e não somente uma, decidindo e “roubando” a vontade da pessoa curatelada. Há, portanto, um acompanhamento, de duas pessoas, que devem melhor orientar a pessoa com deficiência na tomada de sua decisão sobre os atos da vida civil, fornecendo-lhes os elementos de informação necessários para que possa exercer a sua capacidade. É, portanto, a tomada de decisão apoiada, um mecanismo que reforça a validade dos negócios praticados pelas pessoas com deficiência, o que não implica numa necessária perca de capacidade da pessoa que a requer. A tomada de decisão apoiada é o processo pelo qual a pessoa com deficiência elege pelo menos 2 (duas) pessoas idôneas, com as quais mantenha vínculos e que gozem de sua confiança, para prestar-lhe apoio na tomada de decisão sobre atos da vida civil, fornecendo-lhes os elementos e informações necessários para que possa exercer sua capacidade. (BRASIL. Lei 13.146, 2015, art. 1.783-A, caput)

A lei prevê ainda que a escolha de indicação dos apoiadores será feita pela pessoa com deficiência, cabendo a ela escolher a quem delegar esse papel. Além disso, ainda para garantir que sua vontade seja melhor representada, os escolhidos poderão ser pessoas com quem mantenham vínculos e confiem. Será traçado também, afim de garantir a idoneidade do processo e legitimidade da tomada de decisão apoiada, para não findar desrespeito ou talhamento de direitos, que em juízo seja delimitado os limites do apoio a ser oferecido e os compromissos dos apoiadores, inclusive o prazo de vigência do acordo e o respeito à vontade, aos direitos e aos interesses da pessoa que deve apoiar, findado na lógica de respeito dos direitos à personalidade jurídica da pessoa com deficiência, sempre visando um completo desenvolvimento intersubjetivo da pessoa em questão. Ademais, afim de garantir o pleno exercício da tomada de decisão apoiada, o Estatuto da Pessoa com deficiência, traz, também, a noção de que se o apoiador agir com negligência, não adimplir com as obrigações devidas ou chegar a exercer pressão indevida, poderá a pessoa apoiada ou qualquer outra pessoa prestar denúncia ao Ministério Público ou ao Juiz de ofício. Ouvida a denúncia, sendo ela procedente, o juiz destituirá o apoiador e nomeará, ouvida a pessoa com deficiência, e se for do seu interesse, outra pessoa para lhe prestar apoio. Por demais, a pessoa com deficiência, pode, a qualquer tempo, decidir cessar o acordo firmado do processo de tomada de decisão apoiada. Existe ainda, a noção de que o apoiador também pode solicitar ao juiz a exclusão de sua participação do processo de tomada de decisão, sendo seu desligamento condicionado à manifestação do juiz. Aplica-se, portanto, a noção de autonomia, resguardado numa preocupação em devolver a pessoa com deficiência a titularidade de seus direitos, de modo a lhe fazer parte de suas decisões e escolhas na prestação de apoio a que lhe deve, sendo-lhe facultada sempre, a permanência ou não dos indivíduos firmados no processo de prestação de tomada de decisão apoiada. A noção de curatela associada unilateralmente a vontade do curador está mitigada e transformada na noção de em potência o exercício da capacidade da pessoa curatelada em gozo e dignidade dos seus desejos, respeitando a noção de dignidade e de tutela à liberdade da pessoa humana.

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Por a lei estabelecer que os limites da tomada de decisão apoiada deve ser definida em acordo, vale ressaltar, por conseguinte, que haverá modelos distintos. A tomada de decisão apoiada poderá ser diferente para cada indivíduo que a utilize como mecanismo eficaz de acesso aos seus direitos disponíveis. Além disso, é mister destacar que para parte dos doutrinadores brasileiros, no campo de Direito Civil, a tomada de decisão apoiada ainda é um ponto de incógnita. Para alguns, a hipótese de substituição não seria nada mais do que óbvio, baseado na ideia de que a tomada de decisão apoiada não surge em substituição, de modo a excluir a curatela. Ela surgiria de modo a coexistir com a curatela, em caráter concorrente. Nesse sentido, haveria a possibilidade de que a curatela entre em desuso ou não com o tempo. Outra parte dos doutrinadores brasileiros, no entanto, acredita que a interdição seria medida excepcional, a regra passaria a ser, portanto, a Tomada de Decisão apoiada, que se trata de um processo em que a pessoa com deficiência solicitará, como foi visto, duas pessoas de sua confiança, para dar mais visibilidade a sua autonomia de decisão. Ainda há dúvidas também sobre de que modo se daria a tomada de decisão apoiada em casos em que haveria incapacidade total do sujeito quanto a expressão de vontade, devido a algum tipo de deficiência. A ideia que nos parece mais lógica ainda sim seria a tomada de decisão apoiada, visto que mesmo não havendo a nítida expressão de vontade, haveria a possibilidade de auxílio de profissionais especializados, como psicólogos e afins, para auxiliar, em percepção de modo haveria um maior benefício daquele indivíduo a partir de determinada tomada de decisão. O apoiador, de acordo com a nova lei, não impede que seja, por exemplo, um dos apoiadores um profissional especializado. Ademais, é fato que a regra geral se basearia na afirmativa de que a pessoa com deficiência deveria escolher as pessoas que lhes pareça mais adequadas a partir da sua confiança, no entanto, essa escolha passa por aval de um juiz togado e adequado para o caso em questão. O mesmo juiz, portanto, num caso de tomada de decisão apoiada em que haja um indivíduo que possua incapacidade absoluta, poderá nomear, a partir da verocimidade das relações afetivas entre a pessoa com deficiência e o apoiador aquele que melhor represente o indivíduo na respectiva decisão. 4. O ACESSO À JUSTIÇA DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA COMO FERRAMENTA EFETIVA PARA A BUSCA DA GARANTIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS O Estado Moderno, em especial o brasileiro, adotou para si o princípio do monopólio estatal de justiça, trazendo, dessa forma, um modo de solução de conflito pacífico, marcado por heteronomia, isto é, a jurisdição é marcada por um juiz imparcial e sem pré-disposição para favorecer uma das partes. Nesse sentido, através da Ação, há uma tentativa de efetivo encontro entre a prestação jurisdicional e a satisfação da pretensão insatisfeita de uma das partes. Além disso, se é possível falar, que apesar da tentativa de se estabelecer um modo de solução pacífico de conflito, há também, um problema inerente a própria constituição do modo de solução de conflito: como atender a todos que possuem um direito subjetivo que precisa ser satisfeito? Afim de responder a essa pergunta, há, atualmente, assegurado na constituição brasileira, alguns princípios decisivos que buscam consagrar o livre acesso ao judiciário, como o princípio da proteção judicial efetiva (art. 5°, XXXV), do juiz natural (art 5°, XXXVII e LIII) e do devido processo legal (art. 5°, LV), que tem influenciado decisivamente o processo organizatório da justiça, especialmente no que concerne as garantias da magistratura e à estruturação independente dos órgãos (MENDES, 2013). Ademais, ainda se é possível falar que existem obstáculos que precisam ser ultrapassados para garantir um pleno e efetivo acesso à justiça tanto das pessoas com deficiência, como das pessoas que não possuem quaisquer barreiras para um pleno e efetivo desenvolvimento psicossocial. A Lei Brasileira de Inclusão, também conhecido por Estatuto da Pessoa com Deficiência, no seu Art. 3°, IV, define barreira como qualquer entrave, obstáculo, atitude ou comportamento que limite ou impeça a participação social da pessoa com deficiência no meio social, bem como impeça o gozo, a fruição ou o exercício de seus direitos à acessibilidade, à liberdade de movimento e de expressão, por exemplo. A Lei N° 13.146 ainda procura definir, taxativamente, que existem cinco tipos de barreiras, tais quais: Barreiras: [...]

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a) barreiras urbanísticas: as existentes nas vias e nos espaços públicos e privados abertos ao público ou de uso coletivo; b) barreiras arquitetônicas: as existentes nos edifícios públicos e privados; c) barreiras nos transportes: as existentes nos sistemas e meios de transportes; d) barreiras nas comunicações e na informação: qualquer entrave, obstáculo, atitude ou comportamento que dificulte ou impossibilite a expressão ou o recebimento de mensagens e de informações por intermédio de sistemas de comunicação e de tecnologia da informação; e) barreiras atitudinais: atitudes ou comportamentos que impeçam ou prejudiquem a participação social da pessoa com deficiência em igualdade de condições e oportunidades com as demais pessoas; f) barreiras tecnológicas: as que dificultam ou impedem o acesso da pessoa com deficiência às tecnologias; (BRASIL. Lei N° 13.146, 2015, art. 1°, IV)

Diante disso, se é possível falar que o processo de tomada de decisão apoiada, a partir da noção da Lei Brasileira de Inclusão, é uma das medidas que visa ir de encontro a uma acessibilidade quanto aos direitos da pessoa com deficiência.

O acesso à justiça, atualmente, é um dos maiores paradigmas da sociedade moderna. Cada sociedade, a seu modo, procura eximir a linha tênue que é a efetiva prestação jurisdicional e a pretensão insatisfeita de cada cidadão. No entanto, além das barreiras comuns, que atingem a maior parte dos cidadãos, como o acesso à informação, o acesso ao local, etc., as pessoas com deficiência, como a Lei N° 13.146 procura ressaltar, enfrentam barreiras a mais, estas, no entanto, fruto de uma sociedade corporativista, tal qual procura voltar a sua atenção para os cidadãos que não possuam quaisquer tipo de deficiência que limitem a sua relação com o meio social. A partir dessa noção, é nítida a percepção egoística de exclusão para qual é voltada cerca de 45,6 milhões de brasileiros que declaram ter alguma deficiência, segundo o censo do IBGE de 2010. Essa parcela, corresponde a cerca de 23,9 % da população brasileira. Esse percentual representa cerca de um quarto da população brasileira total, o que significa que se deve haver maior atenção pública para essas pessoas que são sectarizadas e tratadas ora de maneira desigual, ora de maneira a inferiorizar. O respeito a diferença é o primeiro passo de encontro ao acesso à justiça das pessoas com deficiência. A proposta de melhora de vida para essas pessoas, mais frisada neste artigo, é através da ideia de capacidade relacionada com a autonomia, que é almejada através da tomada decisão apoiada, como ferramenta que impulsiona, a seu modo, o acesso à justiça. Consideramos que o direito de manifestar a própria vontade não deve ser violado, pois a capacidade de pensar da pessoa com deficiência deve ser considerado, independente da deficiência, contrariando a lógica de interdição, o qual talha esse direito à autonomia e o direito à manifestação de vontade. Dessa forma, preservar os direitos inerentes à personalidade, assim como os direitos fundamentais, são de mister importância para preservar em essência a humanidade daquele indivíduo muitas vezes visto como inválido ou menos humano. CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir do presente estudo, observou-se que há uma necessidade de respeito à diferença. Esse respeito perpassa, ainda, na ideia da garantia de direitos inerentes à personalidade jurídica do indivíduo que possua qualquer tipo de deficiência que venha dificultar a sua interação com o meio social. Nesse sentido, o respeito à diferença e a garantia dos direitos da personalidade da pessoa com deficiência, representam o que de mais óbvio deve ser garantido a qualquer ser humano, para que em igualdade de oportunidade esse possa a vir, equitativamente, desempenhar um papel de agente modificador de seu próprio destino, e não mais um agente passivo, perante o velho sistema de interdição que incapacita e coloca na condição de sujeito inválido, imprestável, a pessoa com deficiência que pode, sim, praticar atos na esfera civil com maior autonomia, através do auxílio da Tomada de Decisão apoiada ou não.

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Findo essa ideia, se é necessário, ratificar ainda, que há uma necessidade instransponível de qualquer cidadão, assim como dos juristas, de observar um fenômeno tão importante, como o acesso à justiça. O acesso à justiça é um processo dinâmico e indispensável para garantir uma efetiva prestação jurisdicional de qualidade em qualquer sociedade. Nesse sentido, observar de que forma cada seguimento da sociedade pode vencer as suas barreiras é indispensável. Bem como aponta a Lei 13.146, existem, para as pessoas com deficiência, algumas barreiras específicas, que acompanham esse agrupamento, além das que já existem para qualquer cidadão. Nesse sentido, um olhar cuidadoso e mais humanitário é indispensável para que o acesso à justiça jamais seja confundido com utopia ou displasia atitudinal. REFERÊNCIA ARAÚJO, Luiz Alberto David. A proteção constitucional das pessoas portadoras de deficiência. Brasília: Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência – 4 ed. Brasília: 2011. Disponível em: . Acessado em 18/01/2016. BEVILÁQUA, Clovis. Teoria Geral do Direito Civil. Rio de Janeiro: Rio, 1975. BITTAR, Carlos Alberto. Os direitos da personalidade – 8° ed. São Paulo: Saraiva, 2015. BRASIL, Código Civil (2002). Lei N° 13.146, de 6 de julho de 2015. Brasília: Senado. Disponível em: Acesso em: 05/12/2015. DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro, volume 1: teoria geral do direito – 28. Ed. – São Paulo: Saraiva, 2011. FERRAZ. Carolina Valença. LEITE. Glauber Salomão. Manual dos Direitos da Pessoa com Deficiência. São Paulo: Saraiva, 2012. ______. Direito à diversidade. São Paulo: Atlas, 2015. GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo curso de Direito Civil, volume 1: parte geral. – 12 ed. rev e atual. – São Paulo: Saraiva, 2010. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil brasileiro, volume 1: parte geral. - 5 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007. LÔBO, Paulo. Direto civil: parte geral. São Paulo: Saraiva: 2013. ______. Direto civil: famílias. São Paulo: Saraiva, 2015. MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional – 8 ed. São Paulo: Saraiva, 2013. NADER, Paulo. Curso de direito civil, parte geral – vol. 1 / Paulo Nader. – Rio de Janeiro: Forense, 2004. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. Rio de Janeiro, Forense, 2002. SILVA, Otto Marques da. Epopéia Ignorada – a História da Pessoa Deficiente no mundo de ontem e de hoje. São Paulo: 1987. VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: parte geral. 3. Ed. – São Paulo: Atlas, 2003.

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LEI MARIA DA PENHA: UMA ANÁLISE SOBRE A EXPANSÃO DO DIREITO PENAL NO ÂMBITO DOS CONFLITOS DOMÉSTICOS

Carolina Salazar l’Armée Queiroga de Medeiros Mestre em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Professora da graduação em Direito da Universidade Maurício de Nassau Hallane Raissa dos Santos Cunha Estudante da graduação em Direito da Universidade Católica de Pernambuco, vinculada ao Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC), orientada pela Profa. Dra. Marília Montenegro Pessoa de Mello Túlio Vinícius Andrade Souza Estudante da graduação em Direito da Universidade Católica de Pernambuco, vinculado ao Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC), orientado pela Profa. Dra. Marília Montenegro Pessoa de Mello.

SUMÁRIO: Introdução; 1. A lei 11.340/2006 e suas implicações no âmbito criminal; 2. Considerações sobre uma pesquisa de campo; 3. A atuação da vara de violência doméstica e familiar contra a mulher da cidade do recife (vvdfmr); 4. A (re)vitimização da mulher; 5. Violência doméstica e a seletividade da clientela penal; 6. Lei maria da penha, teorias da pena e a revitalização do penal; Considerações finais; Referências.

INTRODUÇÃO No Brasil cada vez mais é possível a observação de uma sociedade punitivista, que cada dia mais solicita a aplicação de um sistema penal como alternativa para reduzir a criminalidade. Essa requisição é alimentada pelo sentimento de impunidade e sensação de insegurança, frequentemente expostos pela mídia como conteúdo de exigências criminalizantes. Diante disso, o que se questiona é se o sistema de justiça criminal promove, verdadeiramente, a contenção da criminalidade, uma de suas funções declaradas. Em nome da proteção da família, da defesa da honra e da garantia do pátrio poder, desenvolveu-se uma sociedade machista, onde os padrões atribuídos pelo sistema penal legitimavam exigências de determinados comportamentos femininos, sobretudo no que diz respeito à sexualidade e, ainda, ressaltaram as diversas formas de controle sobre as mulheres (BARATTA, 1999, p. 19-80). No passado, em razão da desigualdade legal entre homens e mulheres, a maioria dos crimes de gênero não era alvo de reconhecimento das autoridades e, assim, acarretavam no que se denomina “cifra oculta” do crime. Consequentemente, tinha-se a sensação de que não existia violência contra a mulher. Todavia, com a Constituição Federal Brasileira de 1988, os direitos entre os homens e mulheres se equipararam e, assim, a violência contra a mulher começou a ocupar um espaço diferente no sistema de justiça do Brasil. Quando o assunto é violência doméstica e familiar, a ineficiência do sistema para combater ou prevenir a criminalidade fica evidente. Aqui, a justiça criminal se mostra inapropriada para a resolução dos conflitos domésticos, complexos socialmente, principalmente após as medidas despenalizadoras serem descar-

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tadas com o argumento de que elas eram insuficientes. Com a regulação da conduta por uma norma penal severa, espera-se não só a proteção da vítima, mas uma “pena exemplar” para o agressor. Diante desse cenário, tentou-se comprovar que um sistema incapaz de cumprir com suas próprias funções, atuando de modo diverso, não seria capaz de tutelar um conflito doméstico, que é muito mais complexo do que a norma penal pode prever. Indo mais além, buscou-se desconstruir o argumento de que o sistema de justiça de criminal é o grande responsável por dar fim ao ciclo de violência doméstica e familiar sofrido pela mulher.

1. A LEI 11.340/2006 E SUAS IMPLICAÇÕES NO ÂMBITO CRIMINAL. Primeiramente, é importante observar que, através da Lei 9.099/1995, foram criados os Juizados Especiais Criminais, nos quais, dentre outras inovações, permitiu-se a aplicação dos institutos despenalizadores aos crimes de menor potencial ofensivo, como a ameaça e lesões corporais leves. Foi também dentro destes Juizados, por intermédio dos indicadores oficiais, que se evidenciou a alarmante presença de inúmeros casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, até então desconhecidos (ou ignorados) na sociedade brasileira. Constatou-se, pois, que a família, espaço de proteção onde laços de amor e afeto são construídos, é também, paradoxalmente, um local de violência e violação. No contexto da violência doméstica, então, o homem, marido e companheiro passou a ser confundido com o suposto agressor (ANDRADE, 2005, p. 95). Criada para julgar os crimes de menor potencial ofensivo e tendo como paradigma o comportamento individual violento masculino, a Lei 9.099/95 acabou por recepcionar não a ação violenta e esporádica (...), mas a violência cotidiana, permanente e habitual (...). Assim, os crimes de ameaças e de lesões corporais que passaram a ser julgados pela “nova” Lei são majoritariamente cometidos contra as mulheres e respondem por cerca de 60% a 70% do volume processual dos Juizados. (CAMPOS; CARVALHO, 2006, p. 4-5).

Houve, portanto, uma modificação no tratamento normativo dispensado à “violência conjugal”, assumindo a caracterização de crime de menor potencial ofensivo, o que garantiu uma nova sistemática de resolução de tais práticas delitivas. O enquadramento dos casos de “violência conjugal” como sendo um crime de menor potencial ofensivo acabou levando para a Justiça um crime que até então raramente chegava ao Judiciário, e fez com que esses casos representassem o maior volume de processos nos Juizados (MORAES; SORJ, 2009, p.52). No entanto, o tratamento oferecido pelos Juizados sofreu inúmeras críticas, principalmente de alguns setores dos movimentos feministas, cujas pressões por respostas estatais mais incisivas contra a criminalidade no âmbito doméstico, juntamente com a de outros setores da sociedade, resultaram na promulgação da Lei 11.340/2006. A então nova legislação, que ficou conhecida como Lei Maria da Penha, criou os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher e ficou conhecida pelo rigor punitivo dispensado aos crimes de menor potencial ofensivo cometidos contra a mulher no contexto doméstico, já que lhes vedou a aplicação da lei 9.099/95 e, consequentemente, dos institutos despenalizadores. A dogmática jurídico-penal cumpre uma das mais importantes funções que tem encomendada à atividade jurídica geral em um Estado de Direito: a de garantir os direitos fundamentais do indivíduo frente ao poder arbitrário do Estado (ANDRADE, 2006, p.170). No entanto, analisando essas funções declaradas em confronto com a realidade, observa-se que elas não são o foco do sistema de justiça criminal. Como bem afirma Vera Regina de Andrade (2006, p.175): Há, no âmbito do sistema penal, um profundo déficit histórico do cumprimento das funções declaradas da dogmática penal ao mesmo tempo em que

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o cumprimento excessivo de outras funções não apenas distintas, mas inversas às oficialmente declaras.

Assim, surgem questionamentos acerca da ineficácia/deslegitimação do sistema em questão, pois se percebe uma clara atuação oposta a sua real proposta declarada. Nesse sentido, é possível afirmar que é um sistema de justiça que se sustenta meramente sobre suas funções simbólicas, que constrói uma imagem ideal para ocultar a sua real funcionalidade. Dessa maneira, no contexto da violência doméstica e familiar contra as mulheres, percebe-se que uma quantidade significativa de mulheres que recorre às delegacias para apresentar à queixa ou à denúncia contra o suposto agressor, em seguida, desiste de prosseguir o inquérito policial, objetivando, somente, utilizar o poder policial para renegociar a relação conjugal, ao invés de buscar a criminalização do agressor. As inovações que a Lei 11.340/2006 trouxe são divergentes em relação à proposta minimalista da Criminologia Crítica, alterando os tipos penais incriminadores com o aumento de penas e nas circunstâncias de aumento das sanções com as agravantes e a obstrução dos institutos “diversificacionistas”, como a composição civil, transação penal e suspensão condicional do processo. No entanto, tal argumentação de aumentar as penas e obstruir as medidas diversificadoras, vem consolidando uma visão extremamente punitivista da administração da justiça. De tal modo, a Lei 11.340/2006 retrocedeu ao propor o encarceramento, assim como, foi de encontro às propostas do movimento feministas, visto que as medidas alternativas apresentam maior eficácia em relação à prisão, além de demonstrar maior possibilidade de solucionar os conflitos domésticos e familiares. Foucault (1999) afirma que as prisões não diminuem a taxa de criminalidade: pode-se aumentá-las, multiplicá-las ou transformá-las, a quantidade de crimes e de criminosos permanece estável, ou, ainda pior, aumenta. Assim, constata-se que o sistema penal é falho e a maior prova disso é o índice de reincidência cada vez mais alto. Onde, ao invés de haver uma redução da criminalidade, ressocializando o condenado, produz efeitos contrários a uma ressocialização, isto é, a consolidação de verdadeiras carreiras criminosas (ANDRADE, 2006). Dessa forma, é notório que se este sistema, aclamado por uma sociedade movida pelo medo, é incapaz de proteger bens jurídicos, de reduzir a criminalidade ou ressocializar o preso, também não atuará com eficácia no âmbito da violência doméstica, pois não considera o grau de subjetividade e de afinidade dessas mulheres com seus agressores. 2. CONSIDERAÇÕES SOBRE UMA PESQUISA DE CAMPO. Para o desenvolvimento do presente artigo foram utilizadas duas técnicas de pesquisas, a bibliográfica, com a realização em análise de livros, revistas especializadas, jurisprudências; e a técnica empírica, que analisa os assuntos críticos e interpretativos a respeito do tema em questão, fazendo-se o levantamento de dados da pesquisa de campo. Em outras palavras, essas técnicas, apesar de serem distintas, são complementares, já que uma fornece elementos para a possível construção da outra: a documentação indireta e a documentação direta (LAKATOS; MARCONI, 1991, p. 174-183). Não é seguro afirmar que a utilização dessas técnicas aconteceu em momentos distintos e sucessivos, pois elas foram empregadas simultaneamente. Para a obtenção dos dados quantitativos da pesquisa, optou-se por realizar uma pesquisa documental, a qual, como o próprio nome já sugere, compreende a coleta e análise de documentos, considerados fontes de informações que ainda não passaram pela sistematização, contemplação e tratamento científicos (SANTOS, 2007, p. 27-29). As fontes documentais escolhidas foram processos criminais sentenciados na 1º Vara de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher do Recife (VVDFMR). Trataram-se, pois, de documentos jurídicos, tal que seu conteúdo está previsto, ordenado e procedimentalizado pelo Direito.

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Nesse contexto, para fins de aproximação representativa da realidade da VVDFMR, pareceu razoável a limitação da pesquisa à análise de todos1 os processos criminais com sentenças prolatadas ao longo de 01 ano na VVDFMR, precisamente, de 01 de junho de 2013 a 31 de maio de 2014. Mencionado recorte foi escolhido pelas seguintes razões: atualidade dos resultados, possibilidade de retratação de uma realidade, facilidade de acesso ao material da pesquisa e, por fim, possibilidade e viabilidade da análise do material de pesquisa em tempo de entregar o presente trabalho dentro dos prazos estabelecidos2. Dessa forma, pretendeu-se obter, através dessa análise documental, o perfil socioeconômico das partes, bem como particularidades do relacionamento familiar dessas pessoas envolvidas no conflito doméstico e se a persecução criminal tem respondido aos interesses da mulher. Desses processos analisados, dados específicos foram colocados em um formulário antecipadamente elaborado para análise. Assim, por existirem uma série de meios informáticos que, a depender das necessidades do pesquisador, facilitam a manipulação e processamento de dados levantados em pesquisa, optou-se, para o armazenamento, gestão e tratamento do conjunto de dados obtidos e posterior análise estatística, pela utilização do programa SPSS (Statistical Package for Social Sciences), software especialmente projetado para estes fins em pesquisas na área de Ciências Sociais. 3. A ATUAÇÃO DA VARA DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER DA CIDADE DO RECIFE (VVDFMR). A 1º Vara de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher do Recife está localizada no bairro de Santo Amaro, bairro onde se localiza também a delegacia especializada de atendimento a mulher. É fundamental ressaltar que as mulheres que procuram a Vara, por serem a maioria de baixa escolaridade e pertencerem a uma classe mais abastada da sociedade, normalmente desconhecem todo o rito concernente a um processo judicial, especialmente ao processo penal. Por isso, ao descobrirem que não podem retirar mais desistir do processo ou que seus agressores estão/serão presos, sentem-se ainda mais vitimizadas por não terem suas vontades atendidas. Então, se por um lado as mulheres que chegam à Vara na esperança de serem ouvidas e terem seus desejos atendidos – os quais normalmente não estão voltados para a prisão de seus agressores, mas para o rompimento dos ciclos de agressão – por outro, findam por se sentirem frustradas quando descobrem que suas pretensões frente ao conflito doméstico são olvidadas e suas falas são moldadas de acordo com as pretensões dos agentes criminais. Nesse contexto, muitas vezes acabam por modificar na audiência seus depoimentos em detrimento das informações prestadas na delegacia; muitas vezes, chegam até a se culpar pelas lesões sofridas. No mais, com frequência, tentam minimizar a gravidade dos fatos ocorridos; tudo com a intenção de livrar o ente familiar querido – que podem ser, dentre outros, ex-companheiros, companheiros, namorados, maridos, ex-maridos, pais e filhos – da persecução criminal. Dessa forma, os atores penais da Vara tratam essas mulheres com certo desdém, já que estas são rotuladas como “mentirosas” ou como “mulheres que gostam de apanhar”, porque mudam suas versões dos fatos, para que seus agressores não sejam punidos com a privação de liberdade. Com isso, os atores penais desconsideram todo o grau de afeto por trás da relação violenta que existe entre mulheres e homens. Nesse contexto, percebe-se, por parte do poder judiciário, uma atuação tradicional, apartada das peculiaridades que envolvem a violência de gênero no contexto doméstico e familiar. 4. A (RE)VITIMIZAÇÃO DA MULHER. 1  No total, 177 processos criminais foram sentenciados no recorte temporal determinado, no entanto, 09 deles não foram encontrados na Vara, apesar dos inúmeros esforços para sua procura, tanto por parte dos pesquisadores, quanto dos funcionários do Tribunal. Assim, foram analisados 168 processos criminais. 2  A presente pesquisa foi desenvolvida pelos autores no âmbito do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC), exercício 2014/2015, da Universidade Católica de Pernambuco, orientados pela Profa. Dra. Marília Montenegro pessoa de Mello. Ademais, está ligada à dissertação de mestrado da Ma. Carolina Salazar l’Armée Queiroga de Medeiros, tal que representa um recorte de sua pesquisa empírica realizada na Vara de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher do Recife.

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No Direito Penal comum, o “homem agressor” é denunciado pela “mulher agredida” e esse fato é tipificado como crime e, existindo indícios de autoria e materialidade, deve ser iniciado o processo para impor uma pena justa ao violador da lei. Assim, Hulsman (1993, p. 82) afirma que o sistema coloca o acontecimento sob o ângulo extremamente limitado do desforço físico, vendo apenas uma parte dele, mas para o casal que viveu o fato, o que verdadeiramente importa: este desforço físico ou tudo aquilo que houve na sua vida em comum? A vítima, ao entrar na Justiça Criminal tradicional, passa a não ser mais detentora do conflito, configurando a primeira consequência. Não poderá deter a ação pública, nem opinar sobre a medida que deve ser aplicada ao agressor, bem como ignorará tudo o que acontecerá a ele depois do processo. Para o agressor, configura-se um processo de despersonalização, pois tudo o que acontecerá será friamente abstrato, baseando-se no fato praticado, ignorando a sua história de vida (MEDEIROS; MELLO, 2015, p. 219). A busca pelas funções declaradas do sistema de justiça criminal é o que leva a mulher a procurar uma solução no sistema penal, funções essas: a defesa de bens jurídicos, a repressão da criminalidade, o condicionamento e a neutralização das atitudes dos infratores reais ou potencias de forma justa. Operando o sistema, desde o encaminhamento à autoridade policial até o término da instrução e julgamento, que pode ou não culminar com a pena, a mulher é literalmente deixada de lado; a pena, quando aplicada, em nada minora seus conflitos e em nada alenta a sua dor. O sistema punitivo, portanto, termina por implicar, acredita Baratta (1997, p. 302): “[...] mais problemas de quantos pretende resolver. Em lugar de compor conflitos, os reprime e, aos poucos, estes mesmos adquirem um caráter mais grave em seu próprio contexto originário ou também por efeito da intervenção penal, podem surgir conflitos novos.”.

Quanto maior o distanciamento entre as partes envolvidas no conflito, menor é o envolvimento e a compreensão da dor da aplicação da pena. Diferentemente ocorre quando existe aproximação entre as partes, pois nesses casos mais facilmente se compreende os efeitos da pena e a estigmatização por essa produzida, configurando tipicamente os casos de violência doméstica e familiar. Em 73,7% dos casos de violência doméstica que chegaram a VVDFMR, homem ou mulher eram ou já tinham sido parceiros íntimos. Nesses casos, inclusive, os relacionamentos de longa duração (aqueles com mais de sete anos) foram os mais frequentes (52,6%) e, nos processos em que o casal estava separado na data do registro da ocorrência (52,3%), essa separação, normalmente, tinha ocorrido há pouco tempo (46,6% das separações haviam ocorrido há, no máximo, seis meses). Adicione-se, por fim, que 64% dos homens e mulheres que chegaram a ter um relacionamento íntimo, tiveram filhos, e que 89,8% desses filhos eram menores de idade na data da ocorrência da violência. Nos casos de violência doméstica, a vítima passa a ter a real ideia das consequências negativas da prisão na vida daquele homem, pois é ela, geralmente, a primeira pessoa que vai visitá-lo no sistema prisional. Na violência doméstica a intervenção estereotipada do Direito Penal age duplamente sobre a vítima, pois não leva em conta a sua singularidade, os seus laços com o suposto agressor. O sistema penal visualiza todas as vítimas, seja de um roubo, de uma lesão corporal ou de uma injúria, da mesma maneira, independente das idiossincrasias. Assim, existe essa dupla vitimização da mulher, principalmente nos casos em que ocorrerem à prisão provisória. A mulher passa a se sentir culpada pela prisão do seu companheiro, e ela é diretamente atingida com isso, tanto nos aspectos emocionais como financeiros, desestabilizando a organização social (MEDEIROS; MELLO, 2014, p. 458-460). 5. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E A SELETIVIDADE DA CLIENTELA PENAL. Como previsto nas análises bibliográficas, quanto ao perfil socioeconômico, observou-se que as partes envolvidas nesse conflito representam a seletividade da clientela do sistema penal, pois, em sua grande maioria, pertencem a classes sociais economicamente pouco abastadas, já que possuem baixo grau de escolarida-

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de (31% das mulheres que chegaram a VVDFMR sequer completaram o ensino fundamental e apenas 10% possuem o ensino superior completo; no que diz respeito ao grau de escolaridade dos homens, 37,5% deles sequer chegaram a completar o ensino fundamental e apenas 6,5% possuem ensino superior completo). Ademais, moram em bairros da periferia e têm empregos com expectativa de baixa remuneração (observou-se que 25,6% das mulheres se dedicam unicamente à atividade doméstica, circunstância que indica, muitas vezes, a ausência de independência econômica da mulher; no caso masculino, 13% eram vendedores, seguido de 8% de pedreiros). Com relação à cor dos homens e mulheres, ressalte-se que, na maioria dos processos (85% para as mulheres e 75,6% para os homens), não havia informação sobre a sua cor, prevalecendo, entre ambos, porém, nos casos informados, a cor parda (11% para as mulheres e 16,7% para homens). Essa seletividade corrobora com a afirmação de Alessandro Baratta (1997, p. 167) ao apresentar que o cárcere representa, em suma, a ponta do iceberg que é o sistema penal burguês, o momento culminante de um processo de seleção que começa ainda antes da intervenção do sistema penal, com a discriminação social e escolar, com a intervenção dos institutos de controle do desvio de menores. O cárcere representa, geralmente, a consolidação de uma carreira criminosa. Esse processo de seleção referido por Baratta criminalizará (primariamente e secundariamente) os setores vulneráveis, permitindo a ampla imunização daqueles setores resistentes ao sistema. Esta vulnerabilidade é inversamente proporcional à detenção de poder, seja ele político, econômico ou científico. Estes setores imunes, que mesmo assim praticam as condutas tidas como socialmente negativas, farão parte da chamada criminalidade oculta. Com base nos dados acima, as funções declaradas da pena e, por extensão, do próprio sistema penal que se evidencia através dela, serão basicamente reproduzir a desigualdade e o status quo. O sistema penal não possui eficácia quanto aos seus objetivos declarados, mas sim em relação ao que não diz, ou seja, quanto as suas funções latentes. Em verdade, o sistema punitivo atua na sua forma mais tradicional, selecionando a sua clientela e reproduzindo violência e dor (MEDEIROS, 2015, p. 60-61). 6. LEI MARIA DA PENHA, TEORIAS DA PENA E A REVITALIZAÇÃO DO PENAL. Buscar uma explicação para a aplicação das Penas Privativas de Liberdade como formas de resolução de conflitos é, no mínimo, ponderar e avaliar os fundamentos de “punir”. Nesse sentido, Salo de Carvalho (2010, p. 83), incita um desconhecimento dos fundamentos da pena. Então, faz uma análise sobre os diversos institutos penais e quais deveriam ser as suas consequências com relação a sua aplicação. No entanto, em seus estudos, ao observar que as penas privativas de liberdade não conseguem atingir sua função declarada, ou seja, realmente ressocializar os indivíduos (e, analogicamente, no contexto da violência doméstica, sanar os problemas decorrentes), ou trazer uma prevenção, seja ela geral ou especial (SANTOS, 2002), surge o questionamento do por que da aplicação de penas tão desestruturadoras quanto a Pena Privativa de Liberdade. Juarez Cirino dos Santos (2002, p. 53-57), por sua vez, mostra, basicamente, o que justificaria a aplicação de tais penas, que seria a retribuição da culpabilidade, a prevenção geral e a prevenção especial. No entanto, também observa a ineficácia da pena para atingir tais objetivos. Nesse mesmo cenário, Ferrajoli (2006), com sua teoria do garantismo penal, incita a técnica do estranhamento ao sistema penal, para que possamos observar o seu caráter segregador e a aplicação da “Culpabilidade por Vulnerabilidade”, criada por Eugenio Raúl Zaffaroni (2004). Assim, parte-se da ideia de que a Vulnerabilidade é responsável pela conceituação do criminoso. No entanto, uma das ideias despertadas pelos estudos da criminologia crítica é que não existem apenas sujeitos criminosos, na verdade são os sujeitos criminalizados que estão vulneráveis a esse tipo de sistema. Quando falamos de violência doméstica, a pesquisa de campo apontou que praticamente todas as infrações penais (99,5%) que foram processadas na VVDFMR se encaixam no conceito de baixa lesividade descrito na Lei n.º 9.099/95, dentre as quais se destacam a ameaça (55%) e as lesões corporais leves (23%). Ademais, o meio percentual (0,5%) restante é referente a um crime de médio potencial ofensivo (incêndio),

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abarcado, pois, pela redação do artigo 89 da Lei 9.099/95 a qual viabiliza, em geral, a suspensão condicional do processo. Nesse sentido, os resultados encontrados na pesquisa desenvolvida comprovam as expectativas de que as infrações penais que seriam encontradas se tratariam, sobretudo, daquelas que se encaixam no conceito legal de baixa potencialidade lesiva. Todavia, mesmo se tratando desse tipo de infrações, observou-se que elas têm como consequência uma razoável quantidade de prisões, pois, em 17% dos casos analisados, o réu esteve preso durante todo ou parte do processo. Além disso, muito embora 38% desses presos tenham sido posteriormente condenados, a pena que lhe foi imposta, na maior parte dos casos (67%), sequer chegou a lhes privar da liberdade, já que suas penas foram substituídas por restritivas de direito, suspensas condicionalmente ou declaradas extintas já que haviam sido cumpridas durante a prisão provisória. Percebe-se, também, que o tempo dessas prisões processuais concentrou-se principalmente na faixa entre 03 (três) e 04 (quatro) meses. Nesse contexto: A tendência, pois, é atuar em nome de uma suposta prevenção mediante uma contenção provisória, que consiste efetivamente numa pena antecipada, ocasionando uma inversão do sistema penal onde tudo é motivo para a privação de liberdade (MEDEIROS, 2015, p. 136).

Do mesmo modo, foi também em razão desses crimes de baixa lesividade, que um quarto dos processos pesquisados terminou com a condenação do réu. No entanto, embora tenham se reservado quase exclusivamente a penas privativas de liberdade de curta duração (95,4%), as sentenças chegaram a ocasionar o encarceramento de 15% dos condenados; os remanescentes (85%) tiveram suas penas suspensas condicionalmente ou substituídas por restritivas de direitos. Imprescindível, assim, realizar uma análise mais aprofundada com o objetivo de não gerar conclusões simplórias. De início, necessário lembrar que são principalmente os crimes de menor potencial ofensivo que ocasionam esse encarceramento. Assim, como abarcados pela Lei nº 9.099/95, dificilmente ocasionariam um processo criminal. Segundamente, ainda considerando que são crimes de baixa lesividade, ressalta-se a necessária cautela anunciada por Christie (1998, p. 15-17) quando da interpretação de números sobre o encarceramento, os quais, segundo o autor, são extremamente relativos, tal que uma cifra baixa de encarceramento tanto pode indicar muitos presos com penas de curta duração, como também poucos presos com penas muito altas. De acordo com a pesquisa realizada, 95,4% das penas privativas de liberdade dos condenados na VVDFMR sequer superaram um ano; havendo, ainda, um grande percentual de penas que não superou a faixa dos três meses (20,9%) ou dos seis meses (41,9%). Nesse contexto, os dados relacionados ao encarceramento na Lei Maria da Penha se tornam alarmantes e levam ao entendimento de que a proibição da utilização dos institutos despenalizadores, em geral, deixou de contemplar a crise do atual sistema punitivo, uma vez que não considerou a possibilidade da utilização de alternativas, evitando penas encarceradoras desumanas. Apesar das críticas que podem ser feitas aos institutos despenalizadores, eles surgiram com a finalidade de descentralizar e minimizar a pena privativa de liberdade. Então, muito embora se entenda que os institutos diversificacionistas tenham aumentado o âmbito do controle social penal, é inegável que qualquer aprisionamento é menos vantajoso que sua aplicação (CARVALHO, 2010, p. 47-49). Percebe-se, com isso, na tentativa de enfrentamento a violência doméstica, uma maior utilização de medidas penais, em contradição ao apoio às mulheres, com as idealizadas medidas não penais, aparentemente mais adequadas. CONSIDERAÇÕES FINAIS A Lei Maria da Penha (11.340/2006) trouxe inovações em relação ao combate à violência doméstica e familiar contra a mulher, porque, através de sua redação, além de reconhecer e institucionalizar esse tipo de violência conseguiu dedicar grande atenção à assistência e proteção das mulheres vítimas. No entanto, no

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que se refere ao aspecto penal, tem se observado certo desvio de finalidade, uma vez que as mulheres quando procuram o sistema, nem sempre desejam punir o agressor, mas sim, conseguir alguma proteção em relação aos comportamentos violentos sofridos, assim como formas alternativas de resolução do conflito. As relações de afeto e intimidade existente entre vítimas e acusados, com a expansão do Direito Penal, deixaram de ser contempladas, bem como as expectativas e necessidades das mulheres violadas, que, preocupadas com o bem-estar da família e almejando a cessação da violência e o restabelecimento da harmonia familiar, não se voltam para persecução penal de seus agressores. Logo, quando conhecem da possibilidade de privação da liberdade do sujeito ativo, as vítimas têm dificuldades em denunciar o abuso sofrido. Com efeito, a irreversibilidade do procedimento processual penal, findará por inibir a procura do auxílio judicial e contribuirá para o ressurgimento das “cifras ocultas” da violência doméstica contra a mulher, pois o próprio instrumento reservado à proteção feminina irá penalizá-la. De tal modo, considerando a ineficácia do Direito Penal, entende-se que sua aplicação deve ser subsidiária, pois não é a forma mais adequada para resolver os conflitos familiares e domésticos, principalmente, por causa da sua função seletiva e simbólica. Assim, o Estado precisa investir na atuação social, na prevenção equilibrada da reprodução de um ambiente doméstico e familiar saudável, para que, posteriormente, não precise reprimir o conflito social por meio do controle penal repressivo e arbitrário, sabendo que o Direito Penal, através do punitivismo, vem se afastando do seu referencial minimalista, tornando-se incapaz de resolver os referidos conflitos. O Direito Penal além de não recuperar, não ressocializa o agressor. Observando a incapacidade da superação dos conflitos interpessoais pela via formal da justiça criminal, visto que ela se apropria do conflito das vítimas, fugindo aos propósitos das partes envolvidas, não apresentando soluções e efeitos positivos sobre os envolvidos ou sequer prevenindo as situações de violência, resta, então, reconhecer a violência doméstica e familiar contra a mulher como um problema social, o que não implica que o Direito Penal seja a melhor solução. Nessa perspectiva, é importante a discussão de meios alternativos para a solução de conflitos, principalmente transferindo a responsabilidade para outros ramos do Direito, como também pela utilização de medidas pedagógicas, psicoterapêuticas e conciliadoras, rompendo com o paradigma penalista tradicional de que só se resolve o problema da criminalidade com rigor penal. No entanto, para os comportamentos mais lesivos, pode se pensar ainda na criminalização, porque não se defende a prática de crimes realizados contra a mulher no âmbito doméstico e familiar, contudo, pretende-se que seja encontrado um meio mais adequado do que o direito penal, priorizando a intervenção mínima, ou seja, colocando o direito penal como um meio subsidiário para as respostas ao conflito. Enquanto o direito penal pregar uma eficácia garantidora simbólica, ele continuará sendo ineficaz. Isso acarreta em um discurso simbólico que visa à segurança jurídica, com igualdade e justiça nas decisões para exercer um controle cada vez mais arbitrário e seletivo sobre a camada social mais vulnerável, tendo uma ajuda muito importante da mídia nesse processo, pois ela superficializa as realidades sociais e distorce o modo de enxerga-las, de modo que a essência dos problemas passa a ser ignorada. Além disso, é perceptível que esse discurso punitivista pregado pelo sistema se propaga rapidamente e, fazendo uso dele, o movimento feminista não só conseguiu dar uma maior visibilidade à violência doméstica contra mulher através da Lei Maria da Penha, mas também possibilitou um maior debate sobre as peculiaridades trazidas pela lei e sobre os seus efeitos, que, para a surpresa das feministas, divergiram do esperado pela ausência do desejo das vítimas de criminalizar seus agressores. Portanto, fica claro que a Lei 11.340/06, apesar da sua importância, se mostra como mais uma forma de o Estado aumentar o seu poder, possuindo legitimidade clamada mais uma vez pela própria sociedade, devido as suas inseguranças, seus anseios e seus medos. No que tange aos resultados alcançados com a pesquisa de campo na 1º Vara de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher do Recife, fica claro quem são essas mulheres e seus agressores, ou seja, mais uma vez, o sistema penal possui seus atores pré-selecionados, com cor e perfil socioeconômico determinado, atuando com seu discurso falacioso e sua máscara de proteção a essas mulheres que acabam sendo revitimizadas, pois diferentemente do caso ocorrido à Maria da Penha, as verdadeiras “Marias do Recife” sofrem mais uma vez ao terem suas vozes silenciadas e seus anseios arrancados pelos punhos fechados do Estado.

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Necessário pontuar, ainda, que não se defende que os crimes praticados contra a mulher no contexto doméstico sejam ignorados, mas, até que outro sistema menos famélico seja encontrado, é preciso que o Direito Penal seja utilizado conforme os princípios que o regem, no caso específico, os da intervenção mínima, da subsidiariedade e o da fragmentariedade, de modo que haja uma máxima contenção do paradoxal sistema punitivo. As políticas de prevenção e combate à violência contra a mulher devem focar na construção de um ambiente doméstico e familiar equilibrado, superando, de tal modo, os empecilhos da ultrapassada, medieval e maniqueísta inquirição do suposto agressor culpado e de uma eterna vitimização feminina. Por fim, é válido compreender que as questões familiares, a relação vítima e agressor, não devem necessariamente passar pelo tratamento do sistema penal, pois a ampliação do Direito Penal deixou de contemplar as relações de intimidade e afeto existentes na família, bastante complexas. Ele também não superou os interesses e expectativas das vítimas que almejam o fim da violência e o restabelecimento dos laços familiar, e, principalmente, o bem-estar da família, que não está direcionado a criminalização do agressor, justificando, assim, os dados encontrados na pesquisa de campo realizada na 1º Vara de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher do Recife. Assim, é necessária, portanto, a superação e não disseminação, no intelecto social, dos preconceitos, ainda existentes, decorrentes de uma sociedade patriarcal e machista, que levam à ideia da mulher como um ser passivo e desigual que se pode dominar e de quem se pode dispor. Logo, é preciso se voltar às origens do problema, essencialmente familiar e de origens históricas, da violência doméstica e, definitivamente, a máxima intervenção punitiva do Estado não é a solução para isso. REFERÊNCIAS ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A soberania patriarcal: o sistema de justiça criminal no tratamento da violência sexual contra a mulher. Revista Sequência, Florianópolis, ano XXV, n. 50, p. 71-102, julho, 2005. ______. Minimalismos e abolicionismos: a crise do sistema penal entre a deslegitimação e a expansão. Seqüência. Florianópolis, ano XXVI, n. 52, julho, 2006. BARATTA, Alessandro. O paradigma do gênero: da questão criminal à questão humana. In: CAMPOS, Carmen Hein de (org.). Criminologia e feminismo. Porto Alegre: Sulina, 1999. BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Freitas Bastos: Instituto Carioca de Criminologia, 1997. BEST, J. W. Como investigar en educación. 2. Ed. Madrid: Morata, 1972. CARVALHO, Salo de. O papel dos atores do sistema penal na Era do punitivismo – Col. Criminologias. Editora Lumen Juris, 2010. CHRISTIE, Nils. A indústria do controle do crime: a caminho dos GULAGs em estilo ocidental. Rio de Janeiro: Forense, 1998. FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2. ed. São Paulo: RT, 2006. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. 20. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1999. GARLAND, David. A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: Revan, 2008. HULSMAN, Louk. CELIS, Jacqueline Bernat de. Penas perdidas. O sistema penal em questão. Trad. Maria Lúcia Karam. Niterói: Luam, 1993.

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DIÁLOGO INTERJUDICIAL: REALIDADE GLOBAL NO BRASIL E A EXIGÊNCIA DE NOVOS DIREITOS ATRAVÉS DO SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS

Caroline Alves Montenegro Advogada. Mestra em Direitos Humanos pela Universidade Católica de Pernambuco – Brasil - na linha de pesquisa Jurisdição e Direitos Humanos. Especialista em Direito Processo Civil e Ciências Criminais pela UNIPÊ. Especialização em jurisdição constitucional pela Universidade de Pisa/Itália. [email protected] Renata Santa Cruz Coelho Advogada. Mestranda em Direitos Humanos pela Universidade Católica de Pernambuco – Brasil - na linha de pesquisa Jurisdição e Direitos Humanos. Bolsista da CAPES. Especialista em Direito do Trabalho pela UFPE. Contato – [email protected]

SUMÁRIO: Introdução; 1. Natureza jurídica dos tratados internacionais de direitos humanos no ordenamento jurídico brasileiro; 2. Controle de convencionalidade e a tutela multinivel de direitos fundamentais; Considerações finais; Referências.

INTRODUÇÃO O nosso trabalho está organizado em três partes. Inicialmente, pretendemos abordar o Brasil no contexto histórico de nossa Constituição de 1988 em razão de uma crescente preocupação com os direitos fundamentais dos cidadãos, assim como, a proteção dos direitos humanos como formas de reconhecer e consolidar a democracia. Em seguida, como tem sido a atuação do nosso país no Sistema Interamericano de Direitos Humanos, as novas interpretações jurisprudências no ambiente interno em razão de uma releitura de determinados casos com enfoque no que diz a Convenção Americana de Direitos Humanos (Daremos destaque aos casos do depositário infiel e a audiência de custódia). Enfim, pretendemos analisar o diálogo multinível de direitos fundamentais que pode gerar uma teoria constitucional dinâmica, já que as diversas ordens podem acolher e reelaborar os direitos previstos nos diversos níveis, seja a partir da verificação das suas normatividades, seja a partir da influência da própria jurisprudência das Cortes. Os direitos humanos suscitam um processo de lutas e reivindicações sociais em busca da promoção da dignidade humana. Assumem destaque, com a Declaração Universal de 1948, a partir da qual o respeito à dignidade humana passou a ser objeto de todos os tratados e declarações de direitos humanos, que integram o Direito Internacional dos Direitos Humanos (PIOVESAN, 2011). A Constituição Federal do Brasil possui cláusulas abertas aos direitos e garantias previstos em tratados internacionais de proteção dos direitos humanos, que complementam o texto constitucional. Alguns países latinos americanos, que fazem parte do Sistema Regional Interamericano deram passos dinâmicos e evoluídos com relação ao reconhecimento dos tratados internacionais de direitos humanos no ambiente constitucional de cada Estado. Esses países foram muito influenciados não apenas pelas jurisprudências da CrIDH1,

1  CrIDH, neste texto, quer dizer Corte Interamericana de Direitos Humanos

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como também, pelas recomendações da CIDH2, e também pelas consultas encaminhadas ao sistema que deram origem a importantes modificações legislativas em seus ambientes jurídicos internos. A Competência jurisdicional da CrIDH foi reconhecida pelo Brasil através do Decreto legislativo nº89, de 03/12/1998. O Brasil tem o caso do depositário infiel e edição da Súmula Vinculante n. 25 que por força da Convenção Americana de Direitos Humanos considera a prisão civil do depositário infiel ilegal, qualquer que seja a sua modalidade do depósito. Há também o caso da audiência de custódia – preso levado imediatamente à presença do juiz. Repetição do depositário infiel. Influência da Convenção Americana (art.7º, §5º). Ainda não há discussão no STF sobre esse caso. O CNJ quer implementar em todo o país, o preso passará imediatamente a ser levado a uma audiência de custódia e não ser mais apenas comunicado por meio de um papel ao juiz. 1. NATUREZA JURÍDICA DOS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO3 Segundo Piovesan (2013), não é demais recordar que os tratados internacionais são considerados obrigações assumidas espontaneamente pelos Estados, portanto, após a sua constituição, precisa haver o seu adequado cumprimento, em razão do seu caráter obrigatório e vinculante. Em termos mais específicos, aqueles acordos internacionais podem ser considerados como convenções, pactos, cartas, etc. Não é demais ressaltar, o posicionamento de Ramos (2013) sobre a internacionalização dos direitos humanos e as obrigações internacionais, a saber: [...] a internacionalização dos direitos humanos é uma realidade incontornável. Graças a ela, temos obrigações internacionais vinculantes na seara ora dominada pelas Constituições e leis locais. O descumprimento de uma obrigação internacional pelo Estado torna-o responsável pela reparação dos danos porventura causados (RAMOS, 2013, p.31).

Ainda com base em Piovesan (op. cit.), existe um processo de formação dos tratados internacionais na Constituição Brasileira de 1988, cuja competência privativa é do Presidente da República, art.84, VIII, mas precisa do referendo do Congresso Nacional. É um processo complexo constituído pela celebração do Chefe do Executivo nacional e aprovação mediante decreto legislativo do Congresso Nacional. O procedimento para a incorporação de um tratado de direito internacional no ordenamento jurídico brasileiro é desenvolvido da seguinte maneira: inicialmente, o tratado necessita da assinatura de um dos representantes legislativos4; em seguida, é levado ao Presidente da República, que encaminha ao Congresso Nacional um requerimento de aprovação, então, é submetido para aprovação ou reprovação no Senado. Se esta casa legislativa o aprovar, segue para aprovação ou reprovação na Câmara Federal. Caso seja aprovado, compete ao Presidente do Senado elaborar um decreto legislativo para o Presidente da República, que, discricionariamente, pode ratificar5 o tratado. Quando este confirma, o tratado é conduzido para publicação

2  CIDH, neste texto, significa Comissão Interamericana de Direitos Humanos 3  Uma versão anterior de parte deste tópico está disponível em: dissertação – Montenegro, Caroline Alves. STF e CrIDH: Anistia dos Crimes por motivação política no Brasil no período da ditadura militar. p.91-92 e 94-95, jun.2014 4  Os representantes legislativos deste procedimento no Brasil são os seguintes: 1- Chefe de Estado – no nosso país é um dos atributos do Presidente da República (privativamente – art.84, VIII da CF/88); 2- Pleni Potenciário – pessoa escolhida pelo Chefe do Estado e do governo (Brasil Presidente da República) com a confirmação do Ministro das Relações Exteriores – geralmente corresponde a um diplomata – que possui seus poderes plenos, mas restrito ao que dispõe a carta, que aquele recebe; 3- delegação nacional – a forma de escolha é igual à do pleni potenciário, corresponde a um grupo em missão especial para negociar e assinar um tratado internacional, que tem seus poderes submetidos ao que dispõe a carta e 4- Ministros das Relações Exteriores – ele prescinde da carta de pleno poderes. 5  O Presidente poderá deixar de ratificar um tratado internacional se houver perda de interesse, quando não cuida de interesse ao Brasil, ou, outra norma de direito internacional mais benéfica for aprovada anteriormente. O decreto legislativo apenas autoriza a ratificar, não o obriga.

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no Diário Oficial da União. A partir de então, já existe, possui vigência, validade e obrigatoriedade no direito estatal, ou seja, está apto a produzir os efeitos jurídicos. Para Piovesan (op. cit.): [...] Há, portanto, dois atos complementares distintos: a aprovação do tratado pelo Congresso Nacional, por meio de um decreto legislativo, e a ratificação pelo Presidente da República, seguida da troca ou depósito do instrumento de ratificação. Assim, celebrado por representante do Poder Executivo, aprovado pelo Congresso Nacional e, por fim, ratificado pelo Presidente da República, passa o tratado a produzir o efeito jurídico (PIOVESAN, 2013, p. 138).

Por outro lado, ainda com base em Piovesan (op. cit.), os tratados internacionais de direitos humanos, por serem considerados normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais, não necessitam do processo de formação legislativo, como os tratados internacionais tradicionais, nem do decreto de execução. Aqueles tratados internacionais de direitos humanos são automaticamente incorporados ao ordenamento jurídico brasileiro, enquanto estes tradicionais necessitam se submeter ao processo não automático. Convém ressaltar que Piovesan (2011) e também Cançado Trindade são adeptos de uma corrente minoritária, os quais entendem que para os tratados de direitos humanos se adota o sistema de recepção automática, pois estes tratados seriam self- executing, ou melhor, eles se incorporam ao direito brasileiro assim que ratificados. Para a professora citada, o Brasil adota a concepção dualista para a vigência interna dos tratados em geral, mas no que se refere aos de direitos humanos a concepção monista, que não necessita da promulgação, em virtude da eficácia imediata que o art.5º, §1ºe 2º, lhes outorga. O professor André Carvalho tem um posicionamento distinto e para ele a incorporação de um Tratado Internacional de Direitos Humanos no ordenamento jurídico interno, não é distinto do comum, portanto, necessita obedecer às quatro fases descritas acima. Esse é o entendimento da doutrina majoritária, e, assim, estes doutrinadores são adeptos ao sistema de recepção legislativa. Observa-se, assim, que o nosso país passou por um processo de progressivo crescimento quanto ao reconhecimento dos tratados internacionais no cenário jurídico interno. Além disso, desde a promulgação da Constituição cidadã, inúmeras interpretações surgiram, atribuindo um tratamento diferenciado aos tratados relacionados aos direitos internacionais dos humanos, em razão do §2º e 3º do art.5º da CF/88. Ab initio, o STF sustentava6 que os tratados internacionais incorporados no ordenamento jurídico brasileiro gozavam de status equivalentes ao de uma lei ordinária. O grande inconveniente desta posição hierárquica consiste no fato de as leis ordinárias serem passíveis de perda de eficácia, quando surgem leis posteriores tratando do mesmo assunto de forma idêntica ou contrária. Sendo assim, o Brasil não ficava obrigado a cumprir o tratado internacional anterior, pois não possuía nenhuma validade interna. Todavia, em 20087, o pleno do STF, em uma maioria apertada (dos 9 ministros presentes – a votação encerrou em 5x4), consagrou caráter supralegal e infraconstitucional aos tratados de direitos humanos internacionais ratificados antes da EC n°45/04. Definiu-se, a partir de então, que os direitos fundamentais não estão apenas no artigo 5° da CF/88, mas em outros dispositivos do próprio texto constitucional, de normas infraconstitucionais e de tratados de que a República Federativa do Brasil faça parte. Com isso, esses tratados internacionais de direitos humanos incorporados no direito brasileiro, como direitos fundamentais, são cláusulas pétreas, correspondem aos do artigo 5°§ 2°8 da CF/88 e também possuem o mesmo quórum de uma lei ordinária.

6  Posicionamento firmado em 1977, quando o STF julgou o RE 80.004/SE. 7  Posicionamento firmado em 2008, quando o pleno do STF julgou o RE 466.343. 8  § 2º do artigo 5°da CF/88 - Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

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Para Piovesan (2013), esses tratados de direitos humanos do artigo 5º § 2º, através de uma interpretação sistemática e teleológica, como possuem um caráter especial, são considerados normas constitucionais de aplicabilidade imediata. A jurista justificou seu posicionamento em razão do jus cogens, ou seja, esses tratados de direitos humanos constituem um direito cogente e inderrogável. Caso os tratados firmados pelo Brasil sejam tão somente internacionais, são considerados supralegais e de hierarquia infraconstitucional, em razão do princípio da boa-fé e do que diz o artigo 27 da Convenção de Viena. Partindo-se do posicionamento de Piovesan (2013), constata-se que os tratados de direitos humanos, mesmo ratificados antes da EC/45, que excederam o quorum necessário para tornar-se uma Emenda Constitucional, seriam recepcionados como normas materialmente constitucionais. O quorum qualificado tão somente reforça a natureza constitucional, fundamentada em razão de o tratado ser considerado internacional de direitos humanos. Neste sentido: [...] Com efeito, nunca é demais lembrar que a tese da paridade entre a Constituição e os tratados de direitos humanos é anterior à EC45 e encontra sustentação já no teor do §2º do mesmo artigo, que, na sua condição de norma inclusiva, consagrando a abertura material do catálogo constitucional de direitos fundamentais, já vinha- e a doutrina já colacionada em prol da hierarquia constitucional assim já o sustenta há tempos – sendo interpretado como recepcionando os direitos humanos oriundos de textos internacionais na condição de materialmente constitucionais (SARLET, 2010, p.90).

Não restam dúvidas o crescimento progressivo das questões relacionadas aos direitos humanos, assim como, a necessidade dos países membros dos sistemas internacionais e regionais se comprometerem com a consolidação destes direitos, para evitar qualquer forma de enfraquecimento, debilidade, restrição da potencialidade daqueles sistemas. O Brasil, enquanto um Estado democrático de direito, vem adotando, a partir da Constituição cidadã (CF/88), atos relacionados à sua soberania externa como: tratados, acordos e convenções regionais e internacionais relacionadas aos direitos humanos. Ademais, em conflitos de normas de direitos internacionais dos direitos humanos há uma tendência de se faz valer a primazia da norma mais favorável à dignidade humana, quer dizer, o princípio internacional pro homine, não importa se é um decreto, ou, qualquer tipo de lei, assim como, o princípio da proibição do retrocesso. Em síntese, o que se constata é que há quatro correntes com relação à natureza jurídica do Tratado Internacional de Direitos Humanos, antes da EC/45, a saber: 1ª corrente – supraconstitucionalidade 2ª corrente – constitucionalidade 3ª corrente – supralegalidade 4ª corrente – legal Convém ressaltar que, a tese atual do STF é da natureza jurídica supralegal às normas internacionais de direitos humanos anteriores a EC/45. Ademais, já se decidiu no STF que, a Convenção Americana quando amplia direito das pessoas deve ser aplicada, ainda que a CF/88 ofereça uma proteção menor, seja pela tese da supralegalidade, seja pela tese da norma mais benéfica. 2. CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE E A TUTELA MULTINIVEL DE DIREITOS FUNDAMENTAIS O Brasil é detentor de direitos e obrigações na área de direitos humanos que devem ser cumpridos sob pena de ofensa as normas positivadas na Constituição e na Convenção Americana, já que o nosso país não

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apenas é membro da OEA assim como, ratificou a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) em 1992, reconheceu a jurisdição da Corte Interamericana9, e também é signatário de tratados de direitos humanos tanto no âmbito interamericano quanto universal (leia-se das Nações Unidas). A importância da internacionalização dos direitos humanos no Brasil se justiça também através do art.7º do ADCT10. Constata-se como afirma Ramos (2013) que o “Diálogo das Cortes” entre órgãos internacionais de direitos humanos não consiste em uma obrigação que deve ser realizada pelos juízos nacionais, sob pena de ofensa a independência funcional e ao Estado Democrático de Direito. No entanto, deve-se ter em mente que, o Controle da Constitucionalidade cabe ao STF e nosso país deve também se submeter a um controle de convencionalidade, como um mecanismo interno do cumprimento de obrigações internacionais, decorrentes da Convenção Americana. A existência de um controle de convencionalidade no país – leis comuns (ordinárias e complementares) e a obediência também dos tratados internacionais de direitos humanos, da Convenção Americana. O controle de convencionalidade possui dois efeitos: 1- revogam as normas infraconstitucionais contrárias à Convenção Americana e 2- impedem que normas infraconstitucionais contrárias à Convenção ingressem no sistema normativo. Para Ramos (2013), um exemplo do duplo controle (Constitucionalidade e Convencionalidade) existente no Brasil corresponde a ADPF nª153 e o Caso Gomes Lund vs.Brasil. Com a decisão do STF, houve por maioria de votos, uma anistia dos agentes da ditadura militar no Brasil. Já, para CrIDH: não se pode invocar a anistia pelos mesmos agentes. Constata-se que para ocorrer um diálogo entre a jurisdição nacional e a internacional é preciso que ocorra uma interpreção dinâmica, ficando a cargo dos tratados internacionais esclarecerem e desenvolverem os princípios e regras neles estabelecidos. A partir do momento em que há um cumprimento das obrigações internacionais, observa-se também, uma maior abertura para a utilização das jurisprudências dos órgãos internacionais de proteção de direitos humanos, consequentemente, uma tendência à formação de um diálogo multinível de proteção destes direitos. A tutela multinível de direitos fundamentais e/ou humanos tem sido um assunto de tendência internacional e de grande importância para o direito constitucional. Por meio deste estudo, podem-se introduzir novas formas de jurisdição, quer seja por meio de uma constitucionalização de direitos, ou, de uma internacionalização de direitos fundamentais previstos nas Constituições. Podem-se citar, como uma forma de reflexão sobre a proteção multinivel dos direitos fundamentais, debatendo-se a atuação do nosso país no Sistema Interamericano de Direitos Humanos, as novas interpretações jurisprudenciais no ambiente interno em razão de uma releitura de determinados casos com enfoque no que diz o Pacto de São José da Costa Rica. O caso do depositário infiel e da audiência de custódia serão abordados. A audiência de custódia é oriunda de um projeto de lei do Senado Federal (PL nº554/2011) com a finalidade de alterar a redação do §1º do art.306 do CPP, como uma tentativa de combater a tortura e maus tratos dos presos em flagrante, permitindo um contato imediato do preso com o juiz, na presença do Ministério Público e com defensor, o preso não mais será apenas comunicado por meio de um papel ao juiz. Há também a ADPF nº347, em que o Supremo Tribunal Federal (STF) concedeu parcialmente cautelar, solicitada, que pede providências para a crise prisional do país. O Supremo Tribunal Federal (STF) concedeu parcialmente cautelar, solicitada na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 347, que pede providências para a crise prisional do país, a fim de determinar aos juízes e tribunais que passem a realizar audiências de custódia, no prazo máximo

9  O Brasil reconheceu a jurisdição da CrIDH em dezembro de 1998 por meio do decreto legislativo n.89 de 3 de dezembro de 1998. 10  Art. 7º. O Brasil propugnará pela formação de um tribunal internacional dos direitos humanos.

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de 90 dias, de modo a viabilizar o comparecimento do preso perante a autoridade judiciária em até 24 horas contadas do momento da prisão. Na ADPF 347 postulou-se, em síntese, que o STF reconheça e declare o estado de coisas inconstitucional do sistema prisional brasileiro, e, diante disso, imponha a adoção de uma série de medidas voltadas à promoção da melhoria das condições carcerárias do país e a contenção e reversão do processo de hiperencarceramento que o Brasil vivencia. Mesmo sem ainda ter sido aprovado no Congresso Nacional, a audiência de custódia tem sido utilizada como uma sugestão do CNJ para ser implementada em todo país, com garantia do que dispõe a Convenção Americana em seu §5º, art. 7º. Nesse sentido, observa-se o que trata Lima (2015), a saber: Apesar de tal projeto ainda não ter sido aprovado pelo Congresso Nacional, o Conselho Nacional de Justiça e alguns Tribunais de Justiça dos Estados já vem adotando resoluções e procedimentos com o objetivo de implementá-la, porquanto se trata de garantia convencional decorrente da própria Convenção Americana sobre os direitos humanos (Dec.678/92), dotada de status normativo supralegal, cujo art.7º, §5º, dispõe que:”toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade pela lei que exercer funções judiciais.”[...] (LIMA, 2015, p.927)

No Brasil tem o caso do depositário infiel e a edição da Súmula Vinculante n. 25, que por força daquela Convenção considera a prisão civil do depositário infiel ilegal, qualquer que seja a sua modalidade do depósito. Há interpretações no sentido de que a partir de então, houve uma mutação informal na constituição, não admitindo a prisão civil no caso citado, com sucedâneo na Convenção Americana. Para estes juristas a natureza jurídica dos tratados internacionais de direitos humanos seria constitucional. Tese não admitida no STF, pois o posicionamento atual da Suprema Corte é de que as normas internacionais de direitos humanos anteriores a EC/45 tem natureza jurídica supralegal. CONSIDERAÇÕES FINAIS A proteção do dos Direitos Humanos tem se ampliado, complementando o sistema jurídico nacional, não sendo causa de antinomias, nem sendo forma de ofensa à soberania nacional, mas conferindo maior cooperação à efetividade destes direitos, frente às violações mundiais, principalmente após as Guerras Mundiais do século passado e as arbitrariedades dos regimes nazista e fascista, não deixando de lado as ditaduras da América na década de 70. O Sistema Interamericano é formado pelos países das Américas, que fazem parte da OEA, possui como principal instrumento a Convenção Americana de Direitos Humanos ou Pacto de San José da Costa Rica, além de alguns protocolos e tratados de direitos humanos. Alguns Estados partes deram passos dinâmicos e evoluídos com relação ao reconhecimento dos tratados internacionais de direitos humanos em suas constituições internas, o que é muito importante, pois associado a esse pressuposto deve existir instituições democráticas e Estados de direito, para evitar qualquer forma de enfraquecimento, debilidade, restrição da potencialidade do Sistema no continente americano. O controle de convencionalidade no Brasil representa um importante avanço no constitucionalismo interno, sendo uma das formas de se concretizar o desejado Estado constitucional e humanista de direito, assim como, ser uma forma de validade normativa nacional. Ademais, leva ao Estado brasileiro e demais países da América, membros da OEA e signatários do Pacto de San José da Costa Rica, a adequarem a sua produção legislativa às obrigações internacionais ajustadas, caso contrário, eles se tornam sujeitos de responsabilidade internacional. Há uma tendência ao tratamento diferenciado dos direitos e garantias fundamentais na Constituição de 1988, por conseguinte, uma maior abertura em relação às normas internacionais, resultando em uma

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ampliação do “bloco de constitucionalidade”. Esse fato é importante para a aplicação da tutela multinível de direitos fundamentais e/ou humanos que tem sido um assunto de tendência internacional e de grande importância para o direito constitucional. REFERÊNCIAS CASA CIVIL. 1988. Constituição da Republica Federativa do Brasil. Brasília. Senado Federal. Disponível em: Acesso em: 10.01.16. LIMA, Renato Brasileiro. Manual de Processo Penal. Bahia: Editora JusPodvim, 2015. MONTENEGRO, Caroline Alves. STF e CrIDH: Anistia dos Crimes por motivação política no Brasil no período da ditadura militar. CDU 342.7(81). p.91-92 e 94-95, defesa em jun.2014 NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009. PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e Direito Constitucional Internacional. 12ed. São Paulo: Saraiva, 2011. ___________________. Manual de Direito Internacional Público. 19ed. São Paulo: Saraiva, 2011. ___________________. Temas de Direitos Humanos. 6 ed. São Paulo: Saraiva 2013. RAMOS, André de Carvalho. Processo Internacional de direitos Humanos. 3ed. São Paulo: Saraiva, 2013. SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos Fundamentais e Tratados de Direitos Internacionais em matéria de Direitos Humanos: Revisitando a Discussão em torno dos Parágrafos 2º e 3º do art.5º da Constituição Federal de 1988. In: NEVES, Marcelo (Coord.). Transnacionalidade do Direito: Novas Perspectivas dos Conflitos entre Ordens Jurídicas. São Paulo: Quartier Latin, 2010.

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A CRISE CONTEMPORÂNEA DOS REFUGIADOS, DIREITOS HUMANOS E POLÍTICAS PÚBLICAS David Cavalcante Mestre em Ciência Política-UFPE e Graduando em Direito-UNICAP

SUMÁRIO: Introdução; 1. Os refugiados e os direitos humanos no pós-segunda guerra; 2. O brasil e os direito humanos dos refugiados; Considerações finais; Referências.

INTRODUÇÃO Há anos um tema humanitário internacional não chamava tanta atenção da sociedade civil, dos governos e da imprensa mundial quanto o tema dos refugiados, oriundos principalmente da Síria para a Europa. O  Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) responde pela assistência internacional prestada aos refugiados e, sob determinadas condições, aos deslocados internos e apátridas. Em 2012, o número de pessoas com necessidade de apoio no mundo atingiu 45,2 milhões, número que vem crescendo com o recrudescimento da Guerra Civil na Síria. O Brasil é signatário da Convenção Internacional sobre o Estatuto dos Refugiados de 1951 e do Protocolo de 1967 – além de integrar o Comitê Executivo do ACNUR, desde 1958. Esses tratados normatizam a relação do país com os refugiados e apátridas que poderão solicitar refúgio no Brasil, devido a fundado temor de ser perseguido por motivos de raça, religião, nacionalidade, pertencimento a grupo social específico ou opinião política, encontrem-se fora de seu país de nacionalidade e não possam devido a tais temores, ou não queiram retornar ao país de origem, buscando preservar suas vidas. A política brasileira para o acolhimento de refugiados avançou bastante nas últimas duas décadas, após a promulgação do Estatuto do Refugiado (Lei nº 9.474, de 22 de julho de 1997). Essa lei instituiu as normas aplicáveis aos refugiados e aos solicitantes de refúgio no Brasil e criou o Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE) – órgão responsável por analisar os pedidos e declarar o reconhecimento, em primeira instância, da condição de refugiado, bem como por orientar e coordenar as ações necessárias à eficácia da proteção, assistência e apoio jurídico aos refugiados. Este trabalho busca analisar o avanço do marco jurídico no trato da questão dos refugiados, ao passo que analisa de forma crítica a insuficiência de políticas públicas reais para recepcioná-los com mais ênfase na agenda contemporânea governamental brasileira, principalmente diante do cenário na crise do Oriente Médio. 1. OS REFUGIADOS E OS DIREITOS HUMANOS NO PÓS-SEGUNDA GUERRA A temática do refúgio humanitário internacional não chamava tanta atenção da sociedade civil e da imprensa mundial, desde a Segundo Guerra Mundial. Jornais, revistas, sites, declarações de governos e instituições evidenciam a progressiva e dolorosa travessia de milhões de refugiados da África e da Ásia para Europa ou para países vizinhos oriundos das regiões em conflitos violentos, guerras civis e drásticas crises econômicas.

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O fator mais emblemático dos últimos anos para o aumento dos refugiados é a Guerra Civil na Síria onde as informações dão conta que mais de 4 milhões de pessoas já foram expulsas de suas casas e cidades devido aos enfrentamentos militares, ou seja, quase ¼ da população total daquele país. As informações de ativistas de direitos humanos, dentro e fora da Síria, dão conta que o número de mortos no conflito pode passar das 220 mil pessoas, sendo a grande maioria de civis, sendo que mais de 130 mil pessoas teriam sido detidas pelas forças de segurança do governo.  A grande maioria dos 4 milhões de sírios que já teriam buscado refúgio no exterior para fugir dos combates, tentam abrigo nos países vizinhos, como no Líbano, Jordânia, Iraque e Turquia. No entanto, esses países, já atingidos por fortes conflitos internos e sem grandes infraestruturas para receber uma população tão numerosa, acabam por estimular também um corredor migratório para a Europa, mediado pelo tráfico clandestino de pessoas, pelas travessias perigosas do Mar Mediterrâneo até o velho continente, através da Grécia e Itália. Esta nova rota migratória soma-se aos já constantes e massivos fluxos oriundos da África. O fenômeno do refúgio não é novo. Os povos, ao longo da história, sempre se depararam com migrações em massa resultantes das guerras e conflitos militares entre os países e até mesmo intraregionais. O conceito de “refugiados” compreendido de forma lato sensu é um fenômeno histórico e social presente na humanidade desde a antiguidade, mas localizando-o no âmbito jurídico e político do Direito Internacional e dos Direitos Humanos é o tratamento diferenciado que os Estados passam a ofertar às populações migrantes forçadas a se retirarem de suas pátrias originárias por motivos de ameaças iminentes às suas vidas e/ou de proteção familiar. De modo que o estatuto de proteção ao refúgio adquire relevância no âmbito da ascensão contemporânea dos Direitos Humanos: Quando se relacionam refugiados e direitos humanos, imediatamente percebe-se uma conexão fundamental: os refugiados tornam-se refugiados porque um ou mais direitos fundamentais são ameaçados. Cada refugiado é consequência de um Estado que viola os direitos humanos. Todos os refugiados têm sua própria história – uma história de repressão e abusos, de temor e medo. Há que se ver em cada um dos homens, mulheres e crianças que buscam refúgio o fracasso da proteção dos direitos humanos em algum lugar. Os mais de 20 milhões de refugiados acusam esse dado [...] Há assim uma relação estreita entre a Convenção de 1951 e a Declaração Universal de 1948, em especial seu art. 14, sendo hoje impossível conceber o Direito Internacional dos Refugiados de maneira independente e desvinculada do Direito Internacional dos Direitos Humanos. Esses Direitos têm em comum o objetivo essencial de defender e garantir a dignidade e a integridade do ser humano. [...] (PIOVESAN, 2015, p. 254)

A resultante destrutiva das forças produtivas e da humanidade, herdadas da Segunda Guerra Mundial, desenvolveram um nova consciência política-jurídica e iniciativas humanitárias que pudessem acolher às milhões de vítimas do maior conflito bélico já registrado no planeta. Além dos mais de 50 a 70 milhões de mortes, confiscos de propriedades e toda a modificação da geopolítica internacional, os sobreviventes da destruição constituíram as correntezas humanas em busca de países viáveis para trabalhar e viver com suas famílias, já anteriormente desfeitas e abaladas por perdas materiais e de seus parentes. Somente nos Estados Unidos, país que não teve seu território continental atingido pelos conflitos militares, entre os anos de 1945 e 1952, admitiram em seu território 400.000 sobreviventes do nazismo, deslocados de guerra, e entre eles 96.000, cerca de 24%, eram judeus. Nesse contexto, em face da necessidade de acolhimento das migrações dos sobreviventes da II Guerra que cujos países foram destruídos foi aprovada no âmbito da Conferência da Organizações das Nações Unidas – ONU, realizada em 28 de julho de 1951, A Convenção de 1951 relativa ao Estatuto dos Refugiados que constitui um inovador status jurídico para os refugiados. A citada Convenção, em seu art. 1, § 1, alínea c, define que são refugiados as pessoas que se encontram fora do seu país por causa de fundado temor de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade,

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opinião política ou participação em grupos sociais, e que não possam (ou não queiram) voltar para casa. Também são refugiados as pessoas obrigadas a deixar seu país devido a conflitos armados, violência generalizada e violação massiva dos direitos humanos. Naquela data, a Convenção se restringia a contemplar somente os refugiados resultantes dos acontecimentos ocorridos antes de 1º de janeiro de 1951, mas posteriormente essa restrição temporal foi substituída por uma maior amplitude no Protocolo de 1967 Relativo ao Estatuto dos Refugiados, seu Art. 1º, § 2º, ampliando a cobertura temporal e geográfica da Convenção: Para os fins do presente Protocolo, o termo “refugiado”, salvo no que diz respeito à aplicação do §3 do presente artigo, significa qualquer pessoa que se enquadre na definição dada no artigo primeiro da Convenção, como se as palavras “em decorrência dos acontecimentos ocorridos antes de 1º de janeiro de 1951 e...” e as palavras “...como conseqüência de tais acontecimentos” não figurassem do §2 da seção A do artigo primeiro.[...] O presente Protocolo será aplicado pelos Estados Membros sem nenhuma limitação geográfica; entretanto, as declarações já feitas em virtude da alínea “a” do §1 da seção B do artigo1 da Convenção aplicar-se-ão, também, no regime do presente Protocolo, a menos que as obrigações do Estado declarante tenham sido ampliadas de conformidade com o §2 da seção B do artigo 1 da Convenção.

A Convenção e o Protocolo ressignificaram a relação dos Estados que aderiram às mesmas, decisão que foi resultante da Assembleia Geral de 1950 (Resolução n. 429 V), convocando em Genebra, em 1951, a Conferência de Plenipotenciários das Nações Unidas para redigir a Convenção regulatória que atribui um novo status legal dos refugiados. A partir de tal ano, consolidam-se prévios instrumentos legais internacionais relativos aos refugiados, fornecendo a mais compreensiva codificação dos direitos dos refugiados a nível internacional, estabelecendo padrões básicos para o tratamento de refugiados, sem, no entanto, impor limites para que os Estados possam desenvolver esse tratamento, pois o amparo não atenta contra a soberania das nações.   A Convenção somente entra em vigor em 22 de abril de 1954, mas deve ser compreendida no cenário político das pressões da nova consciência planetária sobre as Nações Unidas, que também, já em 1950, constitui o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR). O ACNUR foi criado pela Assembleia Geral da ONU, em 14 de dezembro de 1950, para proteger e assistir às vítimas de perseguição, da violência e da intolerância. Tal agência já ajudou mais de 50 milhões de pessoas, sendo atualmente uma das principais agências humanitárias do mundo. O crescimento contemporâneo dos fluxos de refugiados remete-nos à II Guerra Mundial. As seqüelas humanitárias da II Guerra e do após-Guerra são incomensuráveis, demonstrando que para além das redefinições geopolíticas e da emergência do novo sistema mundial de Estados, as perdas e os desterros humanos são a face mais cruel já registrada na história mundial. Como destaca Paiva: O final da II Guerra Mundial marcou o início da colocação, fora da Europa, de um contingente significativo de pessoas vítimas do conflito. Os números são controversos, mas não seria equivocado afirmar que aproximadamente dois milhões de pessoas estavam fora de suas regiões de origem após o conflito, vítimas de deslocamentos forçados por forças de ocupação. [...] Em sua maioria, eram egressos de países que foram situados, após o conflito, na zona denominada Leste Europeu e, portanto, na órbita política da União Soviética. A organização de campos de refugiados na Alemanha, Áustria, Itália e Grécia, e a posterior inserção desses sujeitos em diversos países, demonstrou quão complexas eram as formas da política internacional a partir da segunda metade do século XX. Entre 1947 até 1951 a Organização Internacional de Refugiados foi a principal responsável pela realocação desse contingente em diversos países do bloco ocidental, dentre eles Israel, Estados Unidos, Austrália, África do Sul, Nova Zelândia, Venezuela, Argentina, Peru, Canadá, etc. (PAIVA, 2009)

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Percebe-se que a principal vítima das Guerras são os Direitos Humanos, onde os direitos fundamentais são pisoteados em nome das conquistas, naquele contexto, das correntes ideológicas nacionalistas, exacerbadas principalmente pelo nazismo alemão e pelo fascismo italiano que desencadearam máquinas assassinas de extermínio humano, principalmente no continente europeu. Assim, localiza-se historicamente o surgimento da Declaração Universal dos Direitos dos Direitos Humanos de 1948 como referência político-jurídica normativa para a constitucionalização dos Direitos Humanos em diversos países bem como para os tratados e convenções internacionais que envolvam a temática dos direitos referidos. Piovesan lembra que: [...] a Declaração de 1948 vem a inovar ao introduzir a chamada concepção contemporânea de direitos humanos, marcada pela universalidade e indivisibilidade desses direitos. Universalidade porque clama pela extensão universal dos direitos humanos, sob a crença de que a condição de pessoa é o requisito único para a titularidade de direitos, considerando o ser humano um ser essencialmente moral, dotado de unicidade existencial e dignidade, esta como valor intrínseco à condição humana. Indivisibilidade porque a garantia dos direitos civis e político é condição para a observância dos direitos sociais, econômicos e culturais e vice-versa. Quando um deles é violado, os demais também o são. Os direitos humanos compõem, assim, uma unidade indivisível, interdependente e inter-relacionada, capaz de conjugar o catálogo de direitos civis e políticos com o catálogo de direitos sociais, econômicos e culturais. (PIOVESAN, 2015, p 49)

A derrota do nazifascismo pela aliança do Ocidente com a URSS foi um marco histórico mundial para a reemergência dos Direitos Humanos como uma pauta universal, já que a guerra, os regimes totalitários e a ideologia da unidade nacional, em detrimento da democracia e dos direitos contra o inimigo externo foi que prevaleceu na pauta política e no regime político da maioria dos países, inclusive onde havia tradição democrática anterior. Sem dúvida a construção de uma nova agenda internacional dos Direitos Humanos é a resultante do sentimento ético mundial em repúdio aos massacres da II Guerra que resultou, a partir da constituição do novo sistema mundial de Estados, na formação da Organização das Nações Unidas, em 1945, como bem define sua Carta de Fundação1: Nós, os povos das Nações Unidas, resolvidos a preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra, que, por duas vezes no espaço da nossa vida, trouxe sofrimentos indizíveis à humanidade, e a reafirmar a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor do ser humano, na igualdade de direitos dos homens e das mulheres, assim como das nações grandes e pequenas, e a estabelecer condições sob as quais a justiça e o respeito às obrigações decorrentes de tratados e de outras fontes de direito internacional possam ser mantidos, e a promover o progresso social e melhores condições de vida dentro de uma liberdade mais ampla [...] E para tais fins praticar a tolerância e viver em paz uns com os outros, como bons vizinhos, unir nossas forças para manter a paz e a segurança internacionais, garantir, pela aceitação de princípios e a instituição de métodos, que a força armada não será usada a não ser no interesse comum, e empregar um mecanismo internacional para promover o progresso econômico e social de todos os povos [...]



As crises humanitárias relacionadas aos fatores políticos, econômicos e militares, são recorrentes e mesmo depois da criação da ONU, logo em seguida, novos fatores geopolíticos de disputas de territórios e recursos naturais no planeta são os grandes causadores dos processos migratórios forçados, principalmente àqueles relacionados com os interesses dos países imperialistas e beligerantes. Basta destacar que, já em 1947, apenas 2 anos após o fim da Segunda Guerra, em seguida à criação do Estado de Israel, mais de 700 mil 1 

http://nacoesunidas.org/conheca. Acesso em 25 de set. 2015.

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palestinos foram expulsos por medo, massacres de civis ou pela Guerra Israel x países árabes.

Os refugiados da Palestina foram as primeiras vítimas, depois da Segunda Guerra, de uma migração forçada em massas. Daí surge a Agência das Nações Unidas para os Refugiados Palestinos - UNRWA, que trabalham com a definição de que os refugiados palestinos são as “pessoas cujo lugar de residência habitual era o Mandato Britânico da Palestina entre junho de 1946 e maio de 1948 e que perderam suas casas e meios de vida como consequência da Guerra árabe-israelense de 1948”, ou seja, aos milhares foram aqueles obrigados a deixar a região da Palestina onde se constituiu o Estado de Israel, refugiando-se nas outras partes da região e países vizinhos. O número de refugiados palestinos chega a mais de 4 milhões de pessoas, sendo que a Resolução 194 da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 11 de dezembro de 1948, seria a primeira de uma série de resoluções da ONU a mencionar a necessidade de se chegar a um acordo justo para o retorno dos refugiados ou para compensá-los pelas perdas e danos sofridos. A ONU considera também os descendentes dos refugiados de 1948, de modo que o número total de refugiados registrados seria, atualmente, superior a população palestina que vive sob os territórios ocupados da Cisjordânia e Faixa de Gaza. No entanto, na contemporaneidade - destacando-se nas últimas décadas a crise do Estado de Bem Estar Social Europeu e a Primara Árabe - o número de refugiados no mundo não pode ser visto sem relações com a economia global que, por um lado, está cada vez mais internacionalizada, informatizada e financeirizada, por outro, cada vez mais excludente e concentradora de riqueza nas mãos de uma pequena minoria de bilionários, principalmente a partir da Crise Financeira desencadeada nos Estados Unidos em 2008, o que aprofundou a crise do capitalismo global, aumentando o número de refugiados no mundo, agregando mais motivações para guerras e migrações também relacionadas aos problemas econômicos, como bem demonstra o gráfico:

Figura 1 - Aumento das migrações forçadas2

No caso dos refugiados sírios, tal tragédia se inicia com a resposta interna que o governo do Presidente Bashar al Assad oferece à revolta popular por democracia e direitos civis ocorrida em vários países do Oriente Médio e Norte da África, conhecida como Primavera Árabe, que ao chegar à Síria, foi respondida por massacres de militares a civis e o uso de armas química. O Presidente Assad governa a Síria desde o ano de 2000, quando sucedeu seu próprio pai, após 30 anos de poder absoluto do genitor, mas o país vive uma guerra civil onde vários grupos internos e externos atuam e controlam parte daquele território, como é demonstrado no mapa da guerra civil, que já dura mais de 4 anos, onde o governo controla apenas uma pequena parte do território e as outras 4 partes são controladas pelos Curdos e suas organizações políticas e militares, pelo Estado Islâmico cujo poder se expande até o Iraque, pelo Exército Livre da Síria e pelo grupo terrorista, Frente Al Nusra/Al Qaeda; entre tantos outros grupos. 2 

Fonte: ACNUR. Disponível em http://www.acnur.org/t3/portugues/. Acesso em 25 de set. de 2015.

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A guerra civil agravou algumas rotas de fuga para os refugiados aos países vizinhos, mas também para a Europa como bem evidencia o noticiário internacional. A rota de migração para a Europa passa pela Turquia, Grécia e Itália de forma que as viagens são extremamente perigosas e submetem famílias inteiras, incluindo crianças, a condições sub-humanas de viagens de milhares de quilômetros à pé, sem alimentação nem direito a acampamentos organizados, submetidos às humilhações, agressões e aos “coiotes” que são os mercenários que organizam as trilhas sob condições extorsivas, sendo que as viagens não-raramente terminam em mortes por afogamento, estupros, doenças ou fome. 2. O BRASIL E OS DIREITO HUMANOS DOS REFUGIADOS O Brasil, partindo de um atraso histórico de desenvolvimento econômico e social, típico da resultante do processo de colonização e desenvolvimento tardio do capitalismo nos países latino-americanos e nesta esteira, também permeado por um anacronismo na edificação de uma sociedade civil ativa bem como de instituições e instâncias de poder estatais modernas e democráticas. Bem ao inverso, a evolução política do país tem como marcas fundantes uma herança monárquica que, ao contrário dos países vizinhos em seus processos de libertação nacional, perdurou por quase 70 anos no Século XIX, resultando ainda numa república oligárquica e elitista em seus primórdios, bem como um retardo na garantia dos direitos civis e mais ainda, dos direitos sociais e coletivos, agravados por toda a herança escravocrata. Neste aspecto, a Constituição de 1988 é considerada a Constituição Cidadã, em razão dos princípios norteadores de sua aprovação pela Assembleia Constituinte de 1987-88 estarem referenciados no primado dos Direitos Fundamentais que foram totalmente vilipendiados pelo regime ditatorial de 1964-84. Sobre o processo de transição à democracia e o papel da Constituição de 1988, o historiador Boris Fausto destaca: Com todos os seus defeitos, a Constituição de 1988 refletiu o avanço ocorrido no país especialmente na área da extensão de direitos sociais e políticos aos cidadãos em geral e às chamadas minorias. Entre outros avanços, reconheceu-se a existência de direitos e deveres coletivos, além dos individuais. A partir daí, a faculdade de impetrar mandado de segurança contra autoridade pública para proteger direitos líquidos foi estendida aos partidos políticos com representação no Congresso e às organizações sindicais. Os constituintes criaram também a figura do habeas-data, pela qual o cidadão pode assegurar a obtenção de informações relativas a sua pessoa, constantes de registros de entidades governamentais. O objetivo desse direito é o de impedir que registros secretos, especialmente de natureza policial, sejam utilizados contra as pessoas, como ocorreu no regime autoritário. No que diz respeito as minorias, um capítulo da Constituição reconheceu aos índios “sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras eu tradicionalmente ocupam. O texto constitucional é bastante abrangente, mas, mais do que em qualquer outro campo, há aqui uma enorme distância entre o que diz a lei e o que acontece na prática. [...] (FAUSTO, 2013, p. 446)

No vácuo do processo de transição desencadeado pelas mobilizações sociais por democracia, liberdade e direitos civis, é promulgada a Carta Magna de 1988 e também com suas contradições e limitações, mas com avanços significativos, incorpora em seus princípios fundamentais o perfil garantista principiológico e normativo dos direitos humanos fundamentais. Neste esteio, é que se erigem no elenco dos direitos constitucionalmente garantidos por força do art. 5º, § 2º, a hierarquia dada aos tratados internacionais de proteção aos direitos humanos, assentados na dignidade da pessoa humana, entre os quais estão incluídos os tratados que abrangem o direito dos refugiados. Porém, somente em 1997 é sancionada a Lei nº 9.474/97 que trata da regulamentação e define mecanismo para implementação do Estatuto dos Refugiados de 1951.

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A partir da Lei nº 9.474/97 nasce o Comitê Nacional dos Refugiados-CONARE, órgão colegiado, vinculado ao Ministério da Justiça, que reúne segmentos representativos da área governamental, da Sociedade Civil e das Nações Unidas, e que tem por finalidade: a) analisar o pedido sobre o reconhecimento da condição de refugiado; b) deliberar quanto à cessação “ex officio” ou mediante requerimento das autoridades competentes, da condição de refugiado; c) declarar a perda da condição de refugiado; d) orientar e coordenar as ações necessárias à eficácia da proteção, assistência, integração local e apoio jurídico aos refugiados, com a participação dos Ministérios e instituições que compõem o Conare; e e) aprovar instruções normativas que possibilitem a execução da Lei nº 9.474/97. O CONARE é composto por representantes do Ministério da Justiça, que o preside; Ministério das Relações Exteriores, que exerce a Vice-Presidência; Ministério do Trabalho e do Emprego; Ministério da Saúde; Ministério da Educação; Departamento da Polícia Federal; Organização não-governamental, que se dedica a atividade de assistência e de proteção aos refugiados no País – Cáritas Arquidiocesana de São Paulo e Rio de Janeiro; e Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados – ACNUR, com direito a voz, sem voto. Percebe-se que no âmbito normativo o Brasil tem sido referência para o continente, no que diz respeito das garantias dos direitos humanos ao estrangeiro refugiado, no entanto como destaca Piovesan, o aspecto normativo deve ser acompanhado de medidas práticas duradouras haja vista as dificuldades de assistência até mesmo para utilização dos recursos jurídicos no âmbito da postulação da inserção social na comunidade nacional. [...] É necessário que a problemática dos refugiados seja enfrentada sob a perspectiva dos direitos humanos. Hoje é amplamente reconhecida a inter-relação entre o problema dos refugiados, a partir de suas causas principais (as violações de direitos humanos) e, em etapas sucessivas, os direitos humanos. Assim, devem os direitos humanos ser respeitados antes do processo de solicitação de asilo ou refúgio, durante ele e depois dele (na fase final das soluções duráveis). Há uma relação direta entre a observância das normas de direitos humanos, os movimentos de refugiados e os problemas da proteção, sendo necessário abarcar a problemática dos refugiados não apenas a partir do ângulo da proteção, mas também da prevenção e da solução (duradoura ou permanente). (PIOVESAN, 2015, p. 257)

Das informações oficiais do Ministério da Justiça, há registros de menos de 5 mil refugiados no país. Número que diante da situação internacional revela-se bastante reduzido haja vista as levas de refugiados noticiados na imprensa mundial que se somam aos milhões. A importância de recepção dos refugiados no território nacional reforçaria nossos laços de intercâmbio culturais e abrangência das relações humanitárias entre a população brasileira e os povos do mundo inteiro, exemplo que deve ser praticado ante a o aprofundamento do processo da globalização onde prevalecem os interesses comerciais e financeiros em detrimento dos interesses da pessoa humana. CONSIDERAÇÕES FINAIS Vimos que no campo normativo há importantes avanços no reconhecimento dos Direitos Humanos que incidem também na esfera internacional pelas resoluções e convenções das Nações Unidas com relação ao tratamento jurídico e acolhimento dos refugiados no mundo, no espírito de que a liberdade constitui um direito humano fundamental universal, tal como o refúgio. Neste âmbito, a detenção de solicitantes de refúgio não deve ser aceita, tendo como referência a Convenção sobre Refugiados. Principalmente quando se incluem pessoas muito vulneráveis – crianças, mulheres sozinhas e pessoas que necessitam de cuidados especiais de caráter médico ou psicológico, como é o caso daqueles que foram objeto de tortura. Os requerentes de asilo não devem ser considerados criminosos, pois sofreram muitos infortúnios e o seu encarceramento é um procedimento abusivo.

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A Convenção de 1951 relativa ao Estatuto dos Refugiados e o Protocolo de 1967 Relativo ao Estatuto dos Refugiados são dois grandes referenciais relevantes universais para a temática mais abrangente dos Direitos Humanos internacionais cujo impacto na constitucionalização dos direitos humanos no Brasil se traduziu também na criação do Conselho Nacional para Refugiados-CONARE. O passo mais difícil são as medidas dos governos conservadores da Europa, os quais muitas vezes fecham as fronteiras e acabam dificultando ainda mais as condições de travessia ou permanência dos povos refugiados em busca de um lar para viver. O outro passo é desenvolver políticas públicas internacionais e nacionais que possam acolher os refugiados nos países receptores para incluí-los em condições de tratamento igualitário aos migrantes legais, onde possam ter moradia, trabalho, saúde e escolas. Este último é o mais distante em vista de que diante de uma profunda crise econômica internacional os governos apelam para os sentimentos nacionalistas e xenófobos para dificultar e impedir a permanência dos povos refugiados. Daqui se deduz o papel que deve o papel da sociedade civil, organizações sindicais, movimentos sociais, organizações não-governamentais e de solidariedade, governos estaduais e locais, no sentido de pressionar os parlamentos e os governos, bem como as instituições e eventos internacionais para que busquem superar as boas intenções e tratem de efetivar orçamentos e políticas públicas reais para apoiar os refugiados do mundo inteiro. O Brasil pela sua tradição política e jurídica pode ampliar suas políticas públicas, envolvendo a sociedade civil, no sentido de receber uma maior quantidade de refugiados, bem como desenvolver mecanismos de inserção dos refugiados na comunidade e na economia locais com vistas ao cumprimento dessa missão humanitária tão relevante nos dias atuais. REFERÊNCIAS BRASIL. Presidência da República. Lei nº 9.747, de 22 de julho de 1997. Define mecanismos para a implementação do Estatuto dos Refugiados de 1951, e determina outras providências. FAUSTO, Boris. História do Brasil. 14ª Ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2013. MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais: teoria geral, comentários aos arts. 1º ao 5º da Constituição de República Federativa do Brasil, doutrina e jurisprudência. 9ª ed. São Paulo: Atlas, 2011. PAIVA, Odair da Cruz. Refugiados da Segunda Guerra Mundial e os Direitos Humanos. Disponível em http:// diversitas.fflch.usp.br/node/2180. Acesso em 25 de set. de 2015. PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2015.

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LEI MARIA DA PENHA: UMA ANÁLISE CRÍTICA DA OCORRÊNCIA DE PRISÕES PREVENTIVAS E DAS FORMAS DE RESOLUÇÃO DE CONFLITOS DOMÉSTICOS

Débora de Lima Ferreira Mestranda-bolsista CAPES-PROSUP do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Católica de Pernambuco. Pesquisadora do Grupo Asa Branca de Criminologia. Advogada

Marília Montenegro Pessoa de Mello Doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Professora do programa de Mestrado em Direito da Universidade Católica de Pernambuco e da Graduação em Direito da UNICAP e UFPE. Coordenadora do Grupo de Pesquisa Asa Branca de Criminologia.

SUMÁRIO: 1. O movimento feminista no Brasil e a luta no combate a violência contra mulher; 2. As estratégias punitivas da Lei Maria da Penha para o enfrentamento da violência doméstica contra a mulher e o simbolismo penal; 3. Investigando a realidade da aplicação das prisões preventivas e das formas de resolução dos conflitos domésticos à luz da criminologia crítica; Conclusão; Referências.

1. O MOVIMENTO FEMINISTA NO BRASIL E A LUTA NO COMBATE A VIOLÊNCIA CONTRA MULHER No Brasil, o reconhecimento das mulheres enquanto novo sujeito social deveu-se, essencialmente, ao estabelecimento do feminismo, um movimento que visa consagrar não só os direitos das mulheres, mas também os direitos sociais, humanos e políticos. Neste sentido, as feministas têm um desafio político e pedagógico - o da formação de mulheres conscientes da experiência de ser mulher sob o sistema patriarcal e o capitalista (CAMURÇA, 2007, p. 37). O feminismo como movimento social busca a transformação de um nascer mulher, para um tornar-se “mulher”1, baseando-se no enfrentamento das questões de gênero, um termo identificado como categoria de análise para demonstrar e sistematizar as relações de dominação e subordinação, que envolvem homens e mulheres, em que aqueles se impõem sobre estas (TELES, 2003, p. 16).

Sobre a construção do conceito de gênero Joan Scott destaca: Na sua utilização mais recente, “gênero” parece primeiro ter feito sua aparição entre as feministas americanas que queriam insistir sobre o caráter fundamentalmente social das distinções fundadas sobre o sexo. A palavra indicava uma rejeição ao determinismo biológica implícito no uso de termos 1  Paráfrase à famosa assertiva de Simone de Beauvoir em “O Segundo Sexo” que identifica a construção social do gênero como meio de estabelecimento das divisões sociais.

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como “sexo” ou “diferença sexual”. O gênero enfatizava igualmente o aspecto relacional das definições normativas da feminilidade. Aquelas que estavam preocupadas pelo fato de que a produção de estudos femininos se centrava sobre as mulheres de maneira demasiado estreita e separada utilizaram o termo “gênero” para introduzir uma noção relacional em nosso vocabulário de análise (1990, p. 5).

A perspectiva de gênero para a mulher enquanto sujeito político pode ser sintetizada: “Para nós, trata-se de uma categoria de análise sobre como se constroem e se manifestam as relações de poder na sociedade, fundamentadas na percepção das diferenças entre os sexos” (LARANJEIRA, 2008, p. 13). As ideias feministas partem do pressuposto de que a sociedade patriarcal sempre usou a violência como mecanismo de contenção da mulher no âmbito privado, em que o homem, dominando-a, impunha-lhe o regramento da vida, subordinando as potencialidades femininas às pretensões culturais patriarcais em que homem e mulher exerciam papéis sociais definidos. Sobre o patriarcado, Saffioti apresenta a seguinte compreensão: [...] patriarcado como um conjunto de relações sociais que tem uma base material e no qual há relações hierárquicas entre homens, e solidariedade entre eles, que os habilitam a controlar as mulheres. Patriarcado é, pois, o sistema masculino de opressão das mulheres (Apud. CASTILLO-MARTÍN; OLIVEIRA, 2005, p. 41).

Não obstante a realidade patriarcal, o anseio dos movimentos feministas é o da libertação das mulheres de seus cativeiros privados ou públicos e da luta pela igualdade entre homens e mulheres. Maria Betânia Ávila resume bem o propósito, “O feminismo, como movimento político, nasce confrontando a relação entre liberdade pública e dominação privada” (2007, p. 6). As dimensões das relações na sociedade inferiorizaram a mulher, tendo em vista os pilares de seus estabelecimentos: o patriarcalismo e o capitalismo. Reservou-se a elas os aspectos estáticos e privados, em razão de um controle social neutralizado, que reflete padrões e comportamentos construídos e aceitos culturalmente. O poder exercido sobre as mulheres é reflexo de fundamentos ideológicos e não naturais e condiciona a repartição dos recursos e a posição superior de um dos sexos (BARATTA, 1999, p. 19), estabelecendo, assim, limites específicos para as mulheres exercerem sua cidadania e autonomia. A violência doméstica, como exemplo dessa subordinação tem fundamento em causas eminentemente sociais. Segundo Maria Berenice Dias Ninguém dúvida que a violência sofrida pela mulher não é exclusivamente culpa do agressor2. A sociedade ainda cultiva valores que incentivam a violência, o que impõe a necessidade de tomar a consciência que, na verdade, a culpa é de todos. O fundamento é cultural e decorre da desigualdade no exercício do poder, que levam a uma postura de dominante e dominado. [...] Daí o absoluto descaso de que sempre foi vítima a violência doméstica (2010, p.18).

O movimento feminista, em contrapartida aos modelos e padrões que vitimizam e exercem opressão sobre as mulheres, objetiva estabelecer uma “reconstrução social do gênero” (BARATTA, 1999, p. 22) a fim de garantir espaços sociais, políticos e econômicos através de práticas cidadãs e democráticas. 2  Entretanto, não se quer dizer com isso que se assume uma postura de considerar a mulher como corresponsável pelas agressões, assim como propõem parcela da vitimodogmática.

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A história das “mulheres” como novo sujeito social, entendidas assim como um movimento, um grupo de transformação social, é marcada por uma série de barreiras e preconceitos, baseados em apenas uma característica: ser do sexo (biológico) feminino, ter nascido mulher. Na esteira das evoluções dos direitos das mulheres, salienta-se a importância do feminismo brasileiro na realização de políticas públicas a fim de estabelecer cidadania e democracia. Sabe-se, ademais, que a luta dos movimentos feministas são continuas e árduas, pois as injustiças e mazelas causadas em nossa sociedade como consequência de uma colonização patriarcal capitalista fragmentam-se no espaço e no tempo, atingindo gerações. A “cartografia da opressão nunca está terminada, nem mesmo agora” (CAMURÇA, 2007, p. 15). No entanto, os movimentos feministas passam a ganhar reconhecimento e a partir da década de setenta se organizaram no país, empreendendo muitas lutas em favor da emancipação da mulher e da igualdade entre os sexos (ANDRADE, 2003a, p. 133-134). O ano de 1975 tem sido considerado um momento inaugural do feminismo brasileiro. Até então o movimento estava restrito a grupos muito específicos, fechados e intelectualizados, chegando mesmo a se configurar mais como uma atividade privada, que acontecia na casa de algumas pessoas. Todavia, os interesses do movimento feminista da década de 70 já não correspondiam mais aos da maioria das mulheres, ou porque já tinham sido atendidos, ou porque as mulheres pretendiam debater assuntos mais específicos sobre a condição feminina, como sexualidade, direito ao corpo e violência doméstica (MANINI, 2011, p. 56).

Neste sentido, a década de 80 foi um marco para o movimento feminista e, inclusive, para a democratização do país. Surgiram pelo Brasil inúmeras organizações de apoio à mulher vítima de violência; a primeira delas foi a SOS Mulher, inaugurado no Rio de Janeiro em 1981. A trajetória desse tipo de ação feminista é particularmente interessante na medida em que aponta para uma tendência que será predominante no movimento na década de 1980. O objetivo dos SOS Mulher era constituir um espaço de atendimento de mulheres vítimas de violência e também um espaço de reflexão e de mudança das condições de vida dessas mulheres. No entanto, logo nos primeiros anos, as feministas entraram em crise, pois seus esforços não resultavam em mudanças de atitude das mulheres atendidas, que, passado o primeiro momento de acolhimento, voltavam a viver com seus maridos e companheiros violentos, não retornando aos grupos de reflexão promovidos pelo SOS Mulher. Em verdade, esses movimentos, em todos os países, sempre estiveram comprometidos com o combate a todas as formas de discriminação e opressão, sobretudo, as que eram julgadas resultantes das relações de gênero (RORIZ, 2010, p. 41). A partir de 1985, a questão da violência contra a mulher toma outros rumos com a criação da primeira delegacia especializada. As DEAMs constituíram política pública de combate e prevenção à violência contra a mulher no Brasil, especialmente a violência conjugal (MORAES; SORJ, 2009, p. 14). Entretanto, percebeu-se, com sua criação, que muito embora tenha possibilitado demonstrar os verdadeiros índices de agressão, a sua função legal de usar o poder policial para reduzir tais violências não estava sendo e nem poderia ser cumprida. Os anseios dessas vítimas, contraditoriamente à expectativa feminista, eram apenas de não serem mais agredidas. As mulheres que tomavam a frente dos movimentos eram “cultas e politizadas” e geralmente não eram vítimas desse tipo de violência (MELLO, 2009, p. 48). Mas, o feminismo pretendia criminalizar a violência doméstica e assim, conscientizar tanto agressores como vítimas dos direitos das mulheres. Segundo asseveram Aparecida Fonseca e Bila Sorj: O uso das DEAMs pelas mulheres parece seguir uma lógica diversa da lógica da instituição policial e da inspiração do movimento feminista, uma vez que a mais freqüente motivação das mulheres em procurar as delegacias especializadas consiste em usar o poder policial para renegociar o pacto conjugal

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e não para criminalizar o parceiro. [...] a polícia é procurada, predominantemente, como forma extraoficial de arbitragem com vistas à renegociação dos pactos domésticos (2009, p.14).

Essas delegacias se popularizaram por todo o país e, em 1992, já somavam 141, nas mais diversas regiões. Essa foi uma política pública bem-sucedida que, em primeiro lugar, atendia a uma demanda das feministas, ou seja, a criação de um espaço na polícia no qual o ambiente não fosse hostil à mulher agredida. A grande queixa dos delegados de polícia é a mesma, apenas em outra esfera, das feministas do SOS: as mulheres vão às delegacias no momento da agressão, mas dificilmente mantêm a queixa; o que realmente elas desejam do órgão policial é que o agressor seja chamado e se comprometa a não prosseguir na conduta agressiva. O feminismo, as feministas e as delegacias da mulher não resolveram a questão da violência contra a mulher. Houve uma tendência nas últimas décadas de um aumento generalizado da violência tanto contra as mulheres como contra todas as pessoas que se encontram em posição de fragilidade, mesmo que circunstancial. Mesmo assim, para a mulher houve um avanço fundamental quanto à questão da violência: ela se tornou reconhecida como vítima, daí ter direito ao tratamento dado pelos órgãos públicos às demais vítimas (PINTO, 2003, p. 82).

O feminismo brasileiro, e também mundial, mudou, e não somente em relação àquele movimento sufragista, emancipacionista do século XIX, mudou também em relação aos anos 1960, 1970, até mesmo aos 1980 e 1990. Na verdade, vem mudando cotidianamente, a cada enfrentamento, a cada conquista, a cada nova demanda, em uma dinâmica impossível de ser acompanhada por quem não vivencia suas entranhas. O movimento feminista brasileiro, enquanto “novo” movimento social, extrapolou os limites do seu status e do próprio conceito. Foi mais além da demanda e da pressão política na defesa de seus interesses específicos. Entrou no Estado, interagiu com ele e ao mesmo tempo conseguiu permanecer como movimento autônomo. [...]. No espaço do movimento, reivindica, propõe, pressiona, monitora a atuação do Estado, não só com vistas a garantir o atendimento de suas demandas, mas acompanhar a forma como estão sendo atendidas (COSTA, 2009, p. 75).

O movimento feminista, portanto, representou um grande marco na história do Brasil e de importância indiscutível no combate à violência contra mulher. 2. AS ESTRATÉGIAS PUNITIVAS DA LEI MARIA DA PENHA PARA O ENFRENTAMENTO DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER E O SIMBOLISMO PENAL Na perspectiva de emancipação da mulher e seu respectivo empoderamento, um dos importantes pleitos dos movimentos feministas foi uma novel legislação – Lei nº 11.340/2006 - a título de equilíbrio, que pretende proteger a mulher nas situações em que ela possa ser fragilizada pela violência. Cabe à lei ordinária tratar desigualmente os desiguais em determinadas situações excepcionais e específicas (MELLO, 2009, p. 474). A Lei Maria da Penha nasce no sentido de atender esta demanda feminista, e a despeito de inúmeras críticas que foram lançadas, afastou do âmbito do JECRIM o julgamento dos crimes perpetrados com violência doméstica e familiar contra a mulher. Assim, todas as infrações, quando cometidas em razão de vínculo de natureza familiar, estão sob a égide da Lei Maria da Penha. Nesses casos há possibilidade de aplicação de penas restritivas de direitos, exceto as de natureza pecuniária, e penas privativas de liberdade.

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As pretensões de inibição das formas de violência doméstica e familiar contra a mulher fundamentaram o discurso criminalizador, isto é, a estratégia penal, em falência no cenário atual, foi selecionada como maneira de enfrentamento daquelas formas, representando, portanto, o falacioso discurso oficial de emancipação da mulher. Percebe-se, assim, que as modificações nos tipos penais incriminadores surgiram conforme a atual tendência política de se recorrer ao sistema penal (criando novos crimes ou aumentando a pena de delitos preexistentes) para solucionar um problema social, muito embora pesquisas não consigam demonstrar a relação entre o aumento do rigor penal e a diminuição de determinada criminalidade (CID; LARRAURI, 2009). Como a grande maioria dos crimes praticados contra a mulher no contexto doméstico e familiar é, notadamente, de menor potencial ofensivo, a vedação de aplicação da Lei n.º 9.099/95 implicou na impossibilidade de utilização da transação penal, suspensão condicional do processo e composição civil em incontáveis casos onde, prioritariamente, seriam possíveis. Nesse contexto, a proibição de utilização dos institutos descriminalizadores, em sentido amplo, deixou de contemplar a crise do atual sistema punitivo, tal que desprogramou a possibilidade de utilização de alternativas capazes de evitar a ampliação da intervenção penal e aplicação de penas encarceradoras e desumanas. No entanto, até mesmo o poder Judiciário, capaz de oferecer resistência às estratégias expansionistas do Direito Penal, cedeu às pressões populares (especialmente de alguns setores do movimento feminista) e, ao julgar a ADI 44243, optou por limitar as possibilidades de diálogo e escolheu a regra da ação pública incondicionada à representação da ofendida, no caso da violência doméstica. A Lei Maria da Penha nasce a partir deste discurso a depeito de inúmeras críticas que foram lançadas sobre a Lei dos Juizados Especiais no tratamento dos conflitos domésticos e familiares. No entanto, resta questionar: as aspirações de emancipação feminina viabilizadas via discurso criminalizador têm sido atendidas? As situações de violência domésticas e familiar contra a mulher reduziram desde a promulgação da Lei Maria da Penha? Ou vislumbra-se, ainda que por meio dessa nova legislação penal específica, que as situações de violência doméstica contra a mulher ganharam outras formas, “fazendo funcionar a ordem social como uma imensa máquina simbólica tendente a ratificar a dominação masculina sobre a qual se alicerça, condenando tudo que pudesse ofuscar tal dominação, já que os discursos não mudaram muito do final do século XIX até hoje?” (BOURDIEU, 2003, p.18). Com efeito, as soluções contemporâneas dadas ao crime ganham um novo semblante bastante paradoxal, visto que na tentativa de se tutelar bens jurídicos, garantir a segurança populacional e educar a moral societária, são utilizadas leis penais. Contudo, tais legislações são simbólicas, pois não conseguem cumprir, sequer minimamente, as funções que lhes são atribuídas, como também, muitas vezes, põem em risco os próprios bens que pretendem proteger (FAYET JÚNIOR; MARINHO JÚNIOR, 2009, p. 86-89). Diante do exposto, a Lei Maria da Penha, no contexto das legislações de emergência, trouxe muitas alterações recrudescedoras para o mundo jurídico-penal, de modo que foi bastante aclamada pelos militantes em prol dos direitos das mulheres e tida como um marco para autonomia e segurança feminina. No entanto, as pretensões da criminalização provedora são tidas como falaciosas e inócuas. Nesse sentido, Marília Montenegro assegura: O uso simbólico do direito penal foi sem dúvida um forte argumento do movimento feminista para justificar a sua demanda criminalizadora. É certo que as normas penais simbólicas causam, pelo menos de forma imediata, uma sensação de segurança e tranquilidade iludindo os seus destinatários por meio de uma fantasia de segurança jurídica sem trabalhar as verdadeiras causas dos conflitos. Daí a afirmação que mais leis penais, mais juízes, 3  O STF, no dia 09/02/2012, julgou em plenário a Ação Direta de Constitucionalidade, proposta pela Procuradoria Geral da República, e decidiu pela constitucionalidade da Lei 11.340/2006 e pela ação penal pública incondicionada do crime de violência doméstica. A decisão tomada possui caráter vinculante.

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mais prisões, significam mais presos, mas não menos delitos. O direito penal não constitui meio idôneo para fazer política social, as mulheres não podem buscar a sua emancipação através do poder punitivo e sua carga simbólica (MELLO, 2010b, p. 940).

A legislação, portanto, trouxe, através de sua redação, a simbólica criminalização de complexos problemas sociais, a qual legitima a ação do sistema penal. No entanto, os estudos de criminologia crítica comprovam o quanto esse sistema está deslegitimado por produzir um falso discurso de erradicação da violência e promoção da segurança (CASTILHO, 2007, p. 104-106). 3. INVESTIGANDO A REALIDADE DA APLICAÇÃO DAS PRISÕES PREVENTIVAS E DAS FORMAS DE RESOLUÇÃO DOS CONFLITOS DOMÉSTICOS À LUZ DA CRIMINOLOGIA CRÍTICA Visando compreender a realidade da aplicação da Lei Maria da Penha, foi realizada pesquisa de campo no Juizado da Mulher da cidade do Recife a fim de compreender em que medida aquelas pretensões do movimento feministas foram atendidas, isto é, a pesquisa de campo trouxe um estudo com relação à aplicabilidade das penas mais rigorosas previstas na Lei Maria da Penha, seja durante o processo, através da prisão preventiva, seja ao final do processo, através da prisão pena. A abordagem acerca dos dados coletados será realizada à luz do discurso da criminologia crítica, o qual atribui “o fracasso histórico do sistema penal aos objetivos ideológicos (funções aparentes) e identifica nos objetivos reais (funções ocultas) o êxito histórico do sistema punitivo, como aparelho de garantia e de reprodução do poder social” (SANTOS, 2008, p. 88). A vertente criminológica parte do pressuposto de que o Direito deve declarar a função de proteger a ordem social e assim o fazer, sem mistificações a essa pretensão. Investiga-se essa coerência por meio de uma metodologia dialética a qual visa identificar funções latentes, não declaradas, ideologicamente encobertas para “assegurar a realização das funções que ela tem no interior do conjunto da estrutura social” (BARATTA, 2004, p. 95) e as declaradas, que no caso dos movimentos feministas se dá pela emancipação da mulher e a diminuição dos crimes de violência doméstica e familiar contra a mulher. Mais especificamente, a criminologia feminista surge no âmbito da criminologia crítica com o objetivo de trazer a crítica feminista ao direito e à ciência penal. No entanto, tendo em vista a crescente tendência dos movimentos feministas de buscarem no sistema penal um suporte para a defesa dos direitos das mulheres, essa criminologia percebeu-se também no papel de trazer para esses movimentos uma base teórica, que possa orientá-los em suas opções político-criminais (ANDRADE, 1999, p. 111), pois parte do pressuposto de que esse sistema não está apto a garantir direitos, uma vez que atua simbolicamente, criando a sensação apenas ilusória de segurança jurídica. É neste sentido que a criminologia afirma que o Direito reproduz desigualdade como mecanismo de reprodução da realidade social, e o pior, legitimando as relações de produção a partir de um consenso seja ele real ou artificial. Ou seja, a reprodução social da imagem de vítima em busca do apoio penal, por meio do enrijecimento normativo em nada contribui para um projeto de emancipação da mulher. Tal incoerência entre o poder que se busca para as mulheres e o reforço a sua imagem de sujeito vitimado também evidencia, de certo modo, o “engano” que envolve o substrato dessas legislações, o qual é tão caracterizador do direito penal simbólico (RORIZ, 2009, p. 48). Nesse contexto, assevera Vera Andrade: A pretensão de que a pena possa cumprir uma função instrumental de efetivo controle (e redução) da criminalidade e de defesa social na qual se baseiam as teorias da pena deve, através de pesquisas empíricas nas quais a reincidência é uma constante, considerar-se como promessas falsificadas ou, na melhor das hipóteses, não verificadas nem verificáveis empiricamente. Em geral, está demonstrado, nesse sentido, que a intervenção penal estigma-

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tizante (como a prisão) ao invés de reduzir a criminalidade ressocializando o condenado, produz efeitos contrários a uma tal ressocialização, isto é, a consolidação de verdadeiras carreiras criminosas (ANDRADE, 1999, p. 291).

As estratégias de empoderamento, via enrijecimento penal até as suas últimas consequências, defendidas pelos movimentos feministas supostamente retribuiriam o mal ao homem e evitaria a violência doméstica contra a mulher. No entanto, esses resultados não são alcançados na realidade brasileira. Na pesquisa de campo (técnica da documentação direta), pretendeu-se conhecer o andamento\desfecho de 30 processos criminais sentenciados no ano de 2014 na I Vara de Violência Doméstica e Familiar do Recife, número este que representa a metade de todas as sentenças do referido ano. A pesquisa empírica possuiu um caráter quantitativo, pois foi traçado um quadro com o número de penas privativas de liberdade e respectivo regime, referente aos processos crimes das mulheres vítimas da violência doméstica que procuram o auxílio estatal, no ano de 2014. Dos 30 processos-crimes analisados, em apenas 2 foi aplicado o regime fechado de cumprimento de pena privativa de liberdade e, em apenas 1 processo aplicou-se o regime semi-aberto. Nos demais casos, foi aplicado o regime aberto, em virtude das penas privativas de liberdade determinadas ao caso concreto. A amplíssima aplicação do regime aberto aos casos de violência doméstica justifica-se em virtude das penas mais brandas aplicadas aos crimes de lesão corporal leve, ameaça e crimes contra a honra, mais comuns no âmbito em estudo. Importante, através destes dados, reconhecer a violência doméstica e familiar contra a mulher como um problema social, que vai além do Direito Penal. Por isso a importância da discussão dos objetivos declarados e não declarados da Lei Maria da Penha, a fim de que haja o rompimento com o paradigma penalista tradicional de que só se resolve o problema da criminalidade com rigor penal. A abordagem utilizada na análise dos dados da presente pesquisa reflete o discurso da criminologia crítica, o qual atribui o fracasso histórico do sistema penal aos objetivos ideológicos (funções aparentes) e identifica nos objetivos reais (funções ocultas) o êxito histórico do sistema punitivo, como aparelho de garantia e de reprodução do poder social (SANTOS, 2008, p. 88). Em seguida, a pesquisa voltou-se para a análise do número de prisões preventivas nos 30 processos-crimes sentenciados no ano de 2014 na I Vara de Violência Doméstica e Familiar. Apesar de o discurso declarado ou o conteúdo programático do direito processual brasileiro erigir a presunção de inocência a princípio fundamental, com assento na Constituição Federal e, portanto, como regra que impede o tratamento de culpado àqueles que não tenham sido condenados pela prática de um crime, mais de 50% (cinquenta por cento), dentre todos os processos analisados, experimentaram prisão preventiva, número que chama a atenção de criminólogos, mas também de pesquisadores de diversas outras áreas, bem como de uma parcela da sociedade civil, para a opção feita pelo sistema de justiça criminal de privação da liberdade anterior à condenação. Esse número causou estranhesa, senão, um verdadeiro contrasenso em relação á programação normativa da legislação do país. Prender é, sem dúvidas, penar, causar dor e mortificação. Ocorre, portanto, antes da condenação, o fenômeno do encarceramento em massa que destrói vidas e famílias. Existe uma contradição estrutural ou eficácia invertida do sistema penal entre aquilo que a legislação declara e aquilo que efetivamente se cumpre. Neste sentido, a seletividade policial realizada, como demonstram os estudos da criminologia crítica sobre os extratos mais débeis e precários da sociedade, é chancelada pela seletividade judicial, que contribui decisivamente para que o sistema penal realize suas reais funções de neutralização e disciplina das classes sociais inferiores. CONCLUSÃO

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Por tudo, conclui-se que o direito penal teoriza funções declaradas – combater a violência e estabelecer a paz social – e realiza outras funções não declaradas, mas, na verdade, a qual perpetua aquela, o que Vera Andrade denomina de eficácia invertida, pois a eficácia das funções não declaradas sobrepõe-se à das declaradas (ANDRADE, 2003, p. 74). O manejo do sistema punitivo para assegurar a emancipação feminina é ferramenta ineficaz no âmbito das políticas, uma vez que esse reproduz o sistema social no qual está inserido - em sendo a sociedade culturalmente patriarcalista, naturalmente o sistema o será. Esses dispositivos recrudescedores trazidos pela Lei Maria da Penha não causaram mudanças na realidade da violência ora tratada, apenas instituíram uma percepção social limitada e limitadora do problema, forjando uma falsa imagem de que as mulheres, agora, estão protegidas. Enfim, o sistema penal é só mais umas das instâncias do controle social, inclusive sobre as mulheres, resproduzindo desigualdades, razão pela qual esse sistema não pode favorecer qualquer processo de emancipação. O processo de empoderamento que as mulheres têm buscado construir nas últimas décadas e a associação à figura da vítima, de sujeito passivo, em nada contribui, antes ratificam a imagem da mulher como ser frágil, carente de proteção especial, reproduzindo, assim o papel social que lhe foi historicamente determinado, esclarecendo a real fundamentação da política criminal de combate a violência contra a mulher. Nesse contexto, é urgente que se ampliem as discussões a respeito das melhores formas de resolução dos conflitos domésticos para além do sistema penal. Importante, assim, que sejam discutidos e apresentados meios alternativos para a solução de conflitos, principalmente através transferência da responsabilidade para outros ramos do Direito, como também pela utilização de medidas psicoterapêuticas, conciliadoras e pedagógicas, rompendo assim com o paradigma penalista tradicional de que só se resolve o problema da criminalidade com rigor penal. A partir dos dados, constatou-se a contradição ou disfunção entre o discurso legal declarado e o mundo dos fatos, no que respeita ao encarceramento de pessoas que não foram ainda julgadas e, estão, portanto, presas “preventivamente”. Segundo Zaffaroni (2011, p. 67), esta região do globo optou pelo exercício do poder punitivo por meio de medidas de constrição antecipadas, ou seja, com a determinação de prisão antes do julgamento definitivo e prolação de sentença. Observa-se na realidade da violência doméstica a necessidade, por parte do poder punitivo, mesmo que antecipada, da imposição de sofrimento irreparável e de consequências irreparáveis. Grande contradição do sistema de justiça criminal, tendo em vista que a prisão não é aplicada ao final do processo (amplíssima aplicação do regime aberto). Todo encarceramento tem, ontologicamente, natureza punitiva, importando (em todos os casos) em um tratamento como culpado, contribuindo para o controle social e construção estigmatizante e seletiva da criminalidade. REFERÊNCIAS ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Criminologia e feminismo: da mulher como vítima à mulher como sujeito. In: CAMPOS, Carmen Hein de. Criminologia e Feminismo. Porto Alegre: Sulina, 1999. ____, Vera Regina Pereira de. A ilusão da segurança jurídica: do controle da violência à violência do controle penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003a. ____, Vera Regina Pereira de. Sistema penal máximo x cidadania mínima: códigos de violência na era da globalização. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.

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O DIREITO PENAL SIMBÓLICO: DA PROMESSA DE PROTEÇÃO À EFICÁCIA INVERTIDA – UM OLHAR SOBRE A PROTEÇÃO À VÍTIMA

ÉRICA BABINI LAPA DO AMARAL MACHADO Doutora em Direito pela UFPE. Mestre em Direito Penal pela UFPE. Professora de Direito Penal e Criminologia da Universidade Católica de Pernambuco –UNICAP - Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Asa Branca de Criminologia ANDRIELLY S. GUTIERRES SILVA Graduanda em Direito na Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP. Bolsista do Programa de Iniciação Científica – PIBIC/UNICAP. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Asa Branca de Criminologia WILLAMS FRANÇA SILVA Graduando em Direito na Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP. Bolsista do Programa de Iniciação Científica – PIBIC/UNICAP. Pesquisador do Grupo de Pesquisa Asa Branca de Criminologia

SUMÁRIO: Introdução; 1. Do liberalismo radical ao intervencionismo excessivo: a relação problemática entre Estado de Polícia e o Estado de Direito; 2. Política Criminal e o Estado Democrático de Direito; 3. Uma política criminal dirigida à proteção da vítima; 4. A necessidade de uma política criminal racional e os efeitos do realismo de esquerda; Considerações finais; Referências.

INTRODUÇÃO O poder punitivo, caracterizado pelo confisco do conflito pelo Estado, foi e é exercido de acordo com certas decisões arbitrárias do poder (estado de polícia) ou disposições legais igualitárias (Estado de Direito). Essa divisão, de simples fim pedagógico, não pode ser entendida como características ou temporalidades separadas ou puras, já que o Estado de Direito sempre encerra em seu interior um Estado de Polícia, gestando um jogo de forças relacional-dialético: o primeiro aspira conter o exercício real do poder punitivo; o segundo pretende ampliá-lo (ZAFFARONI, 2007). O substrato temporal – político, social e cultural – é fundamental para a compreensão da relação incessante entre o Estado de Direito e o Estado de Polícia e assinala o modelamento maleável deste, na medida em que pode acomodar e apropriar, ideologicamente, discursos, no seio do estado penal mínimo, tornando-os, paradoxalmente, úteis à expansão punitiva. Importante observar como a ampliação do discurso de combate à violência mostra-se aqui em sua tessitura mais sutil: pode, disfarçadamente, sugerir um suposto empoderamento de certos grupos ou seguimentos sociais considerados frágeis. Na estreiteza desse arcabouço, esse trabalho discute como o conceito de vulnerabilidade da vítima é redimensionado e posto à serviço do Estado Penal máximo, especialmente na lógica política de movimentos sociais, o que se denominou de esquerda punitiva (KARAM, 2001).

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O objetivo é identificar as reformas penais que perpassam pela questão da criminalização de minorias – justificada a partir da vítima – desde o Código Penal de 1940 até agosto de 2014, de modo a aferir suas tendências político-criminais. Para tanto, utilizou-se do banco de dados produzido pela pesquisa “Descarcerização e Sistema Penal: a construção de políticas públicas de racionalização do poder punitivo”, vinculada ao CNJ Acadêmico e coordenada pelo Grupo de Pesquisa de Políticas Públicas de Segurança e Administração da Justiça Penal (GPESC/PUC/RS) em parceria com o Grupo Candango de Criminologia (UnB) e o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Criminalidade, Violência e Políticas Públicas de Segurança (UFPE). O banco de dados contém todas as reformas penais aprovadas no Brasil entre 1940 e 2010 (totalizando 320 legislações), bem como as justificativas dos projetos de leis que as originaram. Ora, as problemáticas trabalhadas a partir da análise supracitada não podem caminhar sem a compreensão das dificuldades que circundam e subscrevem a Política Criminal. Levando-se em consideração a sua importância no corpo das ciências criminais, a falta de definição clara do seu campo de conhecimento e, consequentemente, o modo como ela “serve” às gamas variadas de concepções e interesses, impõe-se como obrigação necessária lançar um olhar questionador e crítico sobre sua natureza e função (FREITAS, 2008). Ultimamente, a doutrina nacional faz alusões recorrentes à Política Criminal sem, no entanto, haver um consenso mínimo entre os doutrinadores do que realmente seja ela, exigência básica para a postulação de um estatuto teórico. Assim, no lugar da rigidez científica, há a preponderância de uma Política Criminal marcadamente empirista e entregue à baila do jogo de forças político-ideológicas de cada época. A Política Criminal, carente de um arcabouço teórico, encontra-se imersa na dimensão propriamente prática. Essa completa indefinição e incerteza que circunda a Política Criminal tem sido um instrumento útil à maximização do Estado de Polícia em detrimento do Estado de Direito, galgado, entre outras coisas, no uso (ideológico) da vulnerabilidade da vítima. A pergunta é se o Congresso Nacional, orientado por uma Política Criminal sem qualquer delineamento, não tem se apropriado de discursos tradicionalmente identificados como de esquerda para expandir o controle penal sob o pressuposto ideológico de proteção às vítimas consideradas vulneráveis, seja por condições biológicas, sociais ou históricas. 1. DO LIBERALISMO RADICAL AO INTERVENCIONISMO EXCESSIVO: A RELAÇÃO PROBLEMÁTICA ENTRE ESTADO DE POLÍCIA E O ESTADO DE DIREITO. Apontando a necessidade da exigência de uma política criminal, necessário se faz retomar a discussão sobre a relação incessante entre Estado de Polícia e Estado de Direito, ressaltando o percurso histórico, ainda que brevemente, para viabilizar a compreensão do acentuado intervencionismo penal na atualidade. Ora, é impossível compreender satisfatoriamente o direito concebendo-o como simples fenômeno desapegado do contexto histórico no qual foi produzido e ao qual é útil (MIAILLE, 1978). O direito desempenha funções concretas de e para uma sociedade que concretamente se organizou de determinada maneira. É imperioso lançar um cuidadoso olhar sobre a conjuntura histórica que condiciona e é condicionada pelo modelamento do aparelho punitivo estatal dentro das relações interativas – conflitivas ou não – de cada momento. Nesses termos, é importante perceber que em cada modelo de conjuntura sócio-política subjaz construções ideológicas sustentadoras e fins a serem operacionalizados. O Estado politicamente absoluto, por exemplo, ensejou um sistema de punição que funcionou como instrumento de manutenção da ordem social e defesa do príncipe ancorado por discursos que exigia “a transmissão total do poder dos indivíduos ao soberano” (HOBBES, 2006). As práticas punitivas concretizaram-se com completa arbitrariedade, o que corroborou para a difusão de um clima de incerteza, insegurança e injustificado terror. O iluminismo – século XVIII – agrupou alguns pensadores em torno de ideias fundamentadas na liberdade e dignidade da pessoa humana e na separação necessária entre o público e o privado, reduzindo ao máximo a intervenção do Estado na vida de cada indivíduo. Aqui, a crítica viabilizada pelas percepções liberais

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de Montesquieu, Rousseau e Locke, dentre outros, abalou definitivamente as estruturas do Absolutismo: na perspectiva econômica, o liberalismo buscou a defesa da propriedade privada dos meios de produção e a economia de mercado, baseada na livre iniciativa e competição; no aspecto político, o liberalismo se baseou nas teorias contratualistas para assentar as formas de legitimação do poder como expressão do consentimento dos cidadãos; do lado ético, o liberalismo pregou a garantia dos direitos individuais, tais como liberdade de pensamento e expressão, o que supõe um estado de direito em que seja evitado o arbítrio, as prisões sem culpa provada, a tortura e as penas cruéis (ARANHA, 2009). Com a base da Ilustração surge um Estado cuja atuação está circunscrita pelo campo da necessidade. O poder estatal, de forma geral, e mais ainda em sua vertente punitiva, só pode atuar quando as circunstâncias concretas exigirem tal intervenção e quando os direitos individuais não forem ameaçados de violação por tal intromissão. Nasce daí o que se costuma conceituar por Estado de Direito, isto é, um Estado cujo poder está limitado formal e substancialmente pelos direitos e garantias fundamentais dos indivíduos (FERRAJOLI, 2002). Mas o liberalismo não concretizou todas as suas promessas de valorização do ser humano e liberdade do indivíduo. Nos grandes centros da Europa, apesar da difusão das ideias democráticas, permaneceram sem solução questões econômicas que afligiam a crescente massa de operários: pobreza, jornada de trabalho de quatorze a dezesseis horas, mão-de-obra mal paga de mulheres e crianças. As gravíssimas crises econômicas no inicio do século XX apontaram para a necessidade urgente de uma reviravolta no plano político, econômico e social. O “Estado Mínimo” não contou com a ajuda milagrosa da “mão invisível”: a perspectiva formal, e porque não dizer, ideológica de liberdade, não logrou êxito no campo das relações concretas da maioria dos indivíduos. As contradições aprofundaram-se ainda mais com o aumento da concentração de renda, o aprofundamento da pobreza e da violência urbana, além da precarização do trabalho. Em razão disso, o Estado Liberal de Direito se transmuta, a partir da primeira metade do século passado, em Estado Social-Democrático de Direito ou, simplesmente, Estado Social de Direito. Este toma como ponto de partida os valores e princípios políticos liberais, visando ampliá-los e afirmando a necessidade de maior intervenção do Estado no sentido de assegurar proteção e igualdade social aos indivíduos, mas sem o sacrifício de seus direitos civis. O Estado Intervencionista duramente criticado pelos filósofos liberais revivifica-se, não mais para conservar a ordem político-social, mas para proteger a grande massa de vulneráveis. O Estado agora, sob essa nova roupagem, é convidado a interferir ativamente no plano social realizando prestações positivas. Ou seja, a sociedade exige a participação estatal efetiva por considerá-la fundamental para a promoção e garantia dos direitos individuais (legado liberal), bem como para a proteção e fortalecimento dos grupos hipossuficientes (perspectiva social). Assim, o Estado se expandiu demarcando presença nos mais diversos campos considerados fundamentais ao bem estar e à dignidade da pessoa humana. O combate à pobreza e à miséria, a criação de postos de trabalhos, a garantia de moradias, a limpeza urbana, os serviços públicos de saúde, educação e segurança – em tudo isso a incumbência majoritária recai sobre o Estado que deve fazê-los sem ofender a liberdades individuais. O desafio de harmonizar tais perspectivas apresenta-se problemática diante de um Estado que, em nome da segurança e da paz social, tornou-se um ente, em certo sentido, onipresente. Em nome da garantia das liberdades individuais de certos grupos considerados mais vulneráveis, e legitimados pelos mais diversos seguimentos sociais, o poder estatal protege para envolver, promove para expandir-se. Espraia-se num contínuo até a realização de sua onipresença. Afirma-se. Maximiza-se não só o Estado garantidor e protetor: o discurso de combate à criminalidade se robustece ao usar como âncora, entre outras coisas, o conceito de vulnerabilidade (GARLAND, 2008). Se os valores que fundamentam e perpassam o Estado Social Democrático de Direito dirigem-se à contemplação, promoção e proteção das minorias profundamente desapoderadas, o discurso estatal assistencial de defesa (principalmente penal) dessas minorias, apodera-se. Se ao Estado cabe intervir em favor dos

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grupos historicamente fragilizados, caber-lhe-á ainda mais reprimir qualquer tipo de violência ou ameaça de violência intentada contra tais grupos. Esta nova perspectiva torna-se extremamente problemática diante da seguinte proposição: o modelo de punição hodierno carece de justificação. Os coletivos, os movimentos sociais e as instituições de direitos humanos conhecem e denunciam isso. É inquestionável a verdade de que o sistema punitivo necessita da mais elementar legitimação constitucional para continuar existindo num Estado Democrátivco de Direito. É sabido que o Sistema de Justiça Criminal é, estruturalmente, racista, sexista e classista e que é com base nessa estrutura que ele seleciona sua “clientela” (BARATTA, 2002). É indiscutível que as prisões são depósitos de almas e corpos “indesejados” e condenados ao etiquetamento atroz, mortífero e desumano. É notório que o Direito Penal não evita e, em geral, não diminui, nem põe termo à violência. É verificável que os instrumentos processuais de punição trazem, por baixo do seu figurino, mecanismos de nova vitimização da vítima, ao silenciá-la completamente (ANDRADE, 2005). Mesmo assim, nos últimos anos, tem-se demandado, em montantes assustadores, a intervenção desse mesmo sistema de violência estatal para proteger grupos historicamente vulneráveis, através da aniquilação da violência e punição dos agressores. O que assusta é que grande parte desses demandantes é oriunda de movimentos sociais que esboçam uma visão desconstrutivista das prisões (KARAM, 2001). A lógica operante é a seguinte: o Sistema de Justiça Criminal é ineficaz, duplicador da violência, desumano e, num Estado Democrático de Direito, essencialmente ilegítimo. Porém, goza, mesmo mantendo todas essas características, de uma legitimidade exógena: a condição de vulnerabilidade da vítima. Se o cárcere, por um lado, não é o lugar de seres humanos, ainda que rotulado de criminosos, poderá ser – e deverá ser – o lugar de certos seres humanos agressores de determinados grupos vulneráveis. A favor desses, a proteção, ainda que inócua; contra aqueles, a punição, ainda que mortificadora. O problema do intervencionismo penal agrava-se ainda mais pelo fato de não haver, como foi sinalizado acima, um arcabouço epistemológico que defina e circunscreva os limites e as condições de possibilidade de uma Política Criminal. Vale ressaltar que a política criminal está umbilicalmente ligada à configuração da política em geral (BARATTA, 2002) e, na inexistência de um conteúdo bem definido, colonizada por esta. Entregue aos devaneios doutrinários, ao oportuno populismo legislativo e ao fortíssimo apelo midiático, a Política Criminal se apresenta como instrumento por meio do qual se espraia o Estado Penal Máximo. 2. POLÍTICA CRIMINAL E O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO. Não é possível oferecer uma definição única à Política Criminal. O esforço por conceituá-la exige, necessariamente, estabelecer as características mais gerais e essenciais extraídas do universo das diversas contribuições doutrinárias nesse sentido (FREITAS, 2008). Aqui basta fazer referências a duas classificações: Política Criminal em sentido amplo e estrito e Política Criminal em sentido teórico e prático. A primeira classificação denota a abrangência e amplitude da atuação da Política Criminal. Assim, no sentido estrito ou rigoroso do termo, ela é o conjunto de “princípios ou recomendações para a reforma ou transformação da legislação criminal e dos órgãos encarregados de sua aplicação, compreendendo a política de segurança pública, a política judiciária e a política penitenciária” (BATISTA, 2007). No seu aspecto amplo, a Política Criminal não se limita aos problemas propriamente penais de controle do desvio (direito penal, direito processual penal, direito penitenciário), mas alcança reflexões, elaborações e execuções de políticas mais extensas de intervenção social (FREITAS, 2008). Fala-se aqui, portanto, em políticas sociais gerais de enfretamento às causas do fenômeno criminal, sendo a intervenção essencialmente penal (política criminal em sentido estrito) seu elemento último e mais gravoso. Nota-se, pois, que há uma relação do tipo gênero-espécie entre a política criminal em sentido amplo e política criminal em sentido estrito, conforme verificamos na lúcida explicação de Ricardo de Brito (2009):

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Ao englobar o conjunto das políticas sociais e econômicas de controle social, a política criminal em sentido amplo mantém com a política penal uma relação do tipo gênero/espécie, sendo que esta última se ocupa apenas dos meios penais de contenção da criminalidade. Enquanto a política penal consiste numa resposta à questão criminal circunscrita no âmbito do exercício da função punitiva do Estado, a política criminal em sentido amplo é uma política de transformação social.

A segunda classificação coloca no centro da discussão a existência ou não de um estatuto teórico, e, portanto, científico, da Política Criminal. No sentido prático, a política criminal se configura como o universo de atividades dirigidas ao enfretamento racional à criminalidade. O sentido teórico denota o estudo e a elaboração de princípios teóricos que se destinariam a nortear e racionalizar as atividades práticas de combate à criminalidade. No primeiro caso, a política criminal é considerada eminentemente prática e, assim, destituída de caráter científico. No segundo sentido, a política criminal é definida como atividade teórica destinada a fins práticos e por isso passível de ser considerada uma ciência criminal (FREITAS, 2008). Note-se que há um entrecruzamento entre ambas as classificações: a política criminal como saber teórico tem como objeto, tanto a política criminal sentido amplo, como a política criminal em sentido estrito. A partir dessa sistemática se compreende o contexto atual marcado pela inflação legislativa no campo penal: o Congresso Nacional, ante uma política criminal sem diretrizes, regra geral, despreza as contribuições de pesquisas e estudos científicos, rendendo-se ao “populismo penal” midiático e invocando práticas demagógicas que se amparam no sentimento de vingança e exploração do medo da população. Os momentos de instabilidade são mais notáveis nesse sentido, vez que neles, invariavelmente, aparecem respostas milagrosas, rápidas e viáveis administrativamente, mesmo que ineficazes do ponto de vista da redução da criminalidade ou de resolução dos conflitos sociais. Essas medidas legislativas que nascem sem qualquer discussão que tenha o mínimo de rigor teórico e científico, recrudescem ainda mais a política criminal nacional quando se abastece da condição de vulnerabilidade da vítima. Se a política criminal prática é vazia de conteúdo e, por isso, incapaz de limitar o exercício do poder punitivo estatal, o discurso assentado sobre a condição desfavorável da vítima aguça ainda mais o “populismo legislativo” e possibilita a composição de uma “legislação penal do terror” e, como tal, mitigadora dos direitos e garantias fundamentais (CARVALHO, 2010). A análise às legislações aqui apresentadas, portanto, aponta para um Congresso Nacional que trabalha incansavelmente e com total discricionariedade no campo da repressão penal – sobretudo em razão da falta de uma teoria própria à política criminal que circunscreva limites à atuação estatal nesse campo – e cujo efeito inevitável é a superposição do Estado de Polícia ao Estado de Direito. O resultado é, como se pode ver no gráfico abaixo, uma elevação exponencial das legislações penais – 320 leis no período de 1940 a 2010:

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3. UMA POLÍTICA CRIMINAL DIRIGIDA À PROTEÇÃO DA VÍTIMA. O banco de dados formulado pela pesquisa que ora se apresenta mostra uma inflação legislativa ocorrida ao longo dos anos. O recorte temático da proteção à vítima, perpassado pela justificação de situação de vulnerabilidade desta, pode ser observado no universo de 44 leis, distribuídas, em termos de ano, da seguinte maneira: Todas essas legislações têm iniciativa no Congresso Nacional e perpassam diversas matérias, desde tipos penais que visam proteger a vida, a honra e a dignidade da pessoa humana, a tipos penais que propõem a proteção `a mulher, a igualdade racial... São todas legislações punitivas, porque prevêm em seu bojo ou a criação de um tipo penal ou a majoração de pena. O fato é que os argumentos que justificam a lei trazem sempre uma suposta intenção de defesa efetiva do bem jurídico tutelado, especialmente para as pessoas que apresentam algum tipo de hipossuficiência. A título de exemplo, a justificativa da Lei n.º 10.886 de 2003, que trata da violência doméstica, caminha no sentido de sustentar que “não se deve tratar da mesma maneira um delito praticado por um estranho e o mesmo delito praticado por alguém de estreita convivência”, e prossegue aprofundando os apelos com fins explícitos de materializar o agravamento penal quando diz: O delito praticado por extranhos em poucos casos voltará a acontecer, muitas vezes agressor e vítima se quer voltam a se encontrar, já o delito praticado por pessoa da convivência tende a acontecer novamente, bem como, pode acabar em delitos de maior gravidade, como é o caso de homicídio de mulheres inúmeras vezes espancadas anteriormente – esta especificidade da violência doméstica exclui os delitos decorrentes dessa forma de violência da classificação “menor potencial ofensivo”. Embora tecnicamente levando-se em consideração a pena – no caso de lesões corporais leves e da ameaça – a classificação seja menor potencial ofensivo, as circunstâncias que cercam o delito majoram esse potencial.

Vê-se aqui, portanto, construções jurídico-penais aparentemente bem intencionadas e sofisticadas, com argumentos que favorecem o agravamento penal em razão da proteção de vítimas que, por sua condição de convivência com o agressor, apresentam certa vulnerabilidade. Em nenhum momento, porém, a justificativa problematiza acerca das consequências reais da intromissão do Estado penal nas relações intersubjetivas e privadas, tampouco indaga se a lei tem o potencial necessário à resolução concreta do conflito real. A justificativa da Lei n.º 11. 340 de 2006, intitulada simbolicamente de “Lei Maria da Penha” segue esse mesmo caminho argumentativo, quando propõe que, É contra as relações desiguais que se impõem os direitos humanos das mulheres. O respeito à igualdade está a exigir, portanto, uma lei específica que dê proteção e dignidade às mulheres vítimas de violência doméstica. Não haverá democracia efetiva e igualdade real enquanto o problema da violência doméstica não for devidamente considerado. Os direitos à vida, à saúde e à integridade física das mulheres são violados quando um membro da família tira vantagem de sua força física ou posição de autoridade para infligir maus tratos físicos, sexuais, morais e psicológicos.

Não há ao longo da argumentação justificadora da criação da supracitada lei nenhum fundamento minimamente crítico e comprometido com a extensão da probabilidade de realização fática da afirmação de que uma mera lei pode garantir dignidade e proteção às mulheres vítimas de violência doméstica.

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O que se percebe, na verdade, são construções argumentativas com signos linguísticos em certo sentido até coerentes, mas sobrecarregados de elementos simbólicos, e por isso ideológicos, sem qualquer compromisso com a realidade interativa e conflitiva da dinâmica social. O que importa, para além de qualquer função declarada da lei, é a perpetuação e a expansão do Direito Penal como fórmula tradicional de controle social. E aqui o direito penal expancionista mostra sua feição mais perversa: apropria-se de conceitos, causas, lutas e pautas sociais, historicamente ligadas aos movimentos políticos, ideologicamente de esquerda, e sob o pressuposto de defesa de indivíduos desapoderados, realiza o efeito reverso: maximiza o Estado policialesco. Ora, a sociedade contemporânea é transpassada por uma infinitude de questões caracterizadoras do que se passou a denominar “a sociedade do risco” (BECK, 2009). O medo distribuído indiscriminadamente, sobretudo pela mídia, gesta no imaginário geral, a impressão de que ser vítima de violência é uma possibilidade mais que real, algo iminente. Resultado disso é uma sociedade marcada pela incerteza, cujos membros, pelo menos potencialmente, se veem identificados com qualquer pessoa que esteja em situação vitimatória. Nesse contexto, e em nome da proteção, sobretudo, dos hipossuficientes, o rigor do direito penal não vê limites: se os riscos (virtuais ou não) no convívio social são incalculáveis e múltiplos, a multiplicação de leis penais rigorosas está legitimada. 4. A NECESSIDADE DE UMA POLÍTICA CRIMINAL RACIONAL E OS EFEITOS DO REALISMO DE ESQUERDA . Ocorre que essas leis têm razoável conotação simbólica, uma vez que o impacto carcerário que provocam não é significativo, pois, como é claramente divulgado, os principais tipos penais que têm levado ao hiperencarceramento é tráfico de entorpecentes e crimes contra o patrimônio. Importante pontuar que o simbolismo não é uma qualidade exclusiva do Direito Penal. Mesmo assim, chama a atenção a grande produção legislativa com forte caráter simbólico. O direito penal simbólico denota uma disparidade entre a realidade e a aparência, o implícito e o explícito, entre o que é querido e o que de outra forma é aplicado. É possível dizer que o simbolismo penal visa satisfazer a pressão social e produzir confiança na capacidade de atuação do Estado, por meio da distribuição (desigual) da punição, sem atentar, necessariamente, para a resolução dos problemas. As normas penais, nesse sentido, tendem a produzir um engano, vez que não são criadas para serem aplicadas com toda efetividade, nem muito menos para por fim aos conflitos concretos, mas para gerar resultados e alcançar fins não declarados. Não se trata aqui do simbolismo (denominado positivo) manejado pelo Direito Penal para reforçar a função instrumental de controle de condutas desviadas, protegendo valores selecionados como os mais importantes pela coletividade, tal como “O Direito Penal ganha legitimidade quando se reveste da função de proteger bens jurídicos, por isso é uníssono na doutrina afirmar-se que tutelar os bens jurídicos é a missão do Direito Penal” (BRANDÃO, 2007, p. 7). Como se vê, sendo a função instrumental voltada aos fins do Direito Penal, no caso, a proteção de bens jurídicos, a função simbólica (positiva) volta-se à função de transmitir à sociedade certas mensagens ou conteúdos valorativos com poder de influenciar as consciências com representações mentais para a conformidade com a norma e que o faz através da criminalização. Todavia, quando se constata que não é capaz de operacionalizar, sua capacidade legislativa perderá toda a credibilidade, de modo que a aparência não poderá sustentar a função declarada do sistema de proteger bens jurídicos. Trata-se, desse modo do uso do Direito Penal em desacordo com o próprio discurso legitimador do jus puniendi estatal, sendo a adjetivação “simbólico” sinalizadora de um direito penal cuja função de proteger bens jurídicos é corrompida, levando ao descrédito da justiça estatal. Logo, sob esse viés, é Direito Penal simbólico aquele no qual a função de prevenção geral positiva, ou seja, a função de formação de con-

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vicções jurídicas é exacerbada, visando à imposição de valores morais através do progressivo agravamento da ameaça penal, configurando-se numa apelação na qual a função estabilizadora dos conflitos sociais é apenas aparente. A caracterização de um direito penal simbólico é, pois, decorrente da predominância, ou mesmo, da exclusividade dessas pretensões ideológicas. A estratégia de aparente eficácia não é à toa, é destinada a acalmar a demanda social, alarmada, e exonerar o Estado de ampliar e realizar políticas sociais. Isto é, as políticas punitivas têm o traço comum de serem alarmistas e causar uma ansiedade difusa, de modo que ao canalizá-la à figura do delinquente de rua, a severidade penal que passa a ser uma necessidade vital, desvia a atenção daquilo que não consegue realizar: uma política social eficaz. No Brasil, tais problemáticas ganham dimensões ainda maiores, dada a fragilidade da política criminal eminentimente prática, cujo conteúdo e alcance são determinados, com certa prepoderância, pela superesposição midiática com respaldo no forjado consenso popular sedento por segurança pública e punição. Por outro lado, parcela da “esquerda” nacional não se dá conta dos efeitos reversos maléficos que, inevitavelmente, resulta da opção pelo Direito Penal como fórmula e remédio para resolução os conflitos sociais. Por tudo já dito, percebe-se a urgente necessidade de se pensar em uma política criminal fundamentada em saberes teóricos roubustos e racionais, de modo a evitar a expansão desregrada do Estado penal com a consequente mitigação das liberdades individuais e a flexibilização dos direitos fundamentais. CONSIDERAÇÕES FINAIS No decorrer do século XX nasce uma outra modalidade de Estado chamado Estado Social de Direito, que teria o propósito de agir como motor ativo na vida da sociedade, modificando efetivamente as relações sociais, sem, contudo, abandonar as conquistas do Liberalismo. Do Estado Liberal dito “imparcial” se passa a um Estado Social “intervencionista”. No que diz respeito aos seus caracteres básicos, o Estado Social Democrático de Direito defende, ao menos em tese, a observância do princípio da legalidade, da igualdade e a supremacia da lei, como garantia máxima de segurança jurídica para todos os cidadãos. Como já fora discutido mais acima, a relação entre Estado de Direito e Estado Social Democrático de Direito é complexa e delicada, de modo a exigir moderação quando da necessidade de reivindicar recuos ou ações prestacionais positivas desse mesmo Estado. Assim, e com base em todas as reflexões aroladas no corpo desse trabalho, se faz necessário está completamente em alerda nesse momento em que se demanda em montantes assustadores a intervenção estatal por meio do Direito Penal. Põe-nos sob alerta o fato de que ultimamente vem crescendo movimentos reividincatórios por uma ainda maior intervenção do Direito Penal para efetivar uma transformação social ou para promover a emancipação e proteção dos oprimidos ou vulneráveis. Adimira que tais “solusões” sejam requeridas por setores políticos de esquerda, aqueles usualmente atentos às desigualdades que definem e caracteriza historicamente o Estado brasileiro. Esta “esquerda punitiva” (KARAM, 2008), contraditoriamente, contribui no sentido da fragilzação das bases do próprio Estado de Direito, reivivicando o denebroso Estado de Polícia, ao tentar dar feições positivas a um instrumento que, pela sua natureza e poder, se contrapõe as liberdades individuas, dentre outras conquistas históricas. Assim, a título de conclusão, como bem lucidamente conclui Maria Lúcia Karam (2008), O rompimento com a excludente e egoística lógica do lucro e do mercado, há que ser acompanhado do rompimento com qualquer forma de autoritarismo, para que a bens econômicos socializados corresponda a indispensável garantia da liberdade individual e do direito à diferença, para que a solidariedade no convívio supere e afaste a crueldade da repressão e do castigo, para que um exercício democratizado do poder faça do Estado tão somente um instrumento assegurador do exercício dos direitos e da dignidade de cada indivíduo.

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ENTRE RETRIBUIÇÃO, NEUTRALIZAÇÃO, SOCIALIZAÇÃO E CONTROLE – A REPRESENTAÇÃO DOS MAGISTRADOS SOBRE A FINALIDADE DA MEDIDA SOCIOEDUCATIVA DE INTERNAÇÃO EM PERNAMBUCO Érica Babini L. do Amaral Machado Doutora pela Universidade Federal de Pernambuco - UFPE. Professora de Direito Penal e Criminologia da Universidade Católica de Pernambuco - UNICAP. Pesquisadora do Grupo Asa Branca de Criminologia. Maurilo Miranda Sobral Neto Mestrando no Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Católica de Pernambuco - UNICAP, vinculado à linha de pesquisa Jurisdição e Direitos Humanos. Pesquisador do Grupo Asa Branca de Criminologia. Vitória Caetano Dreyer Dinu Mestranda no Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Católica de Pernambuco - UNICAP, vinculada à linha de pesquisa Jurisdição e Direitos Humanos, com bolsa da CAPES/PROSUP. Pesquisadora do Grupo Asa Branca de Criminologia.

SUMÁRIO: Introdução; 1. A doutrina da proteção integral e seus paradoxos na realidade latino americana; 2. Análise dos dados; Considerações finais; Referências.

INTRODUÇÃO A Doutrina da Proteção Integral marca a transição do paradigma tutelar de menores para o da emancipação de sujeitos de direito, a partir da inserção desses sujeitos nas bases dos Direitos Humanos. No entanto, a prática dos agentes das instituições formais de controle não corresponde a essa mudança de lentes. Pesquisas recentes apresentam uma dicotomia entre passado e presente. Desde a década de 80, as pesquisas sobre violência, criminalidade, segurança pública e sistema de justiça se tornaram temáticas institucionalizadas nas contribuições sociológicas (KANT DE LIMA, MISSE, MIRANDA, 2000). Antes mesmo, na década de 70, com o trabalho pioneiro sobre delinquência juvenil de MISSE (1973), discutiu-se a forma de responsabilização de adolescentes conduzida pelo Judiciário, que, à época, não cumpria os preceitos estabelecidos na legislação menorista. Atualizando a problemática, com estudo em sede de recursos, pesquisa encomendada pelo Ministério da Justiça, na Série Pensando O Direito, em 2010, também aponta sérias críticas aos fundamentos das medidas socioeducativas de internação dados pelo Poder Judiciário. A execução das medidas socioeducativas de internação, na prática, reproduz as problemáticas do sistema prisional (seletividade e estigmatização), e é possível comprovar tal afirmativa em trabalhos específicos de dissertações e teses, como a de MELLO (2004), que constatou, na realidade das unidades de internação de Pernambuco, que o caráter pedagógico da medida não a torna mais branda que a pena, porque privar a liberdade de pessoa em desenvolvimento, no auge da conquista do gozo da liberdade, é uma resposta pior do que a própria pena. FACHINETTO (2008) se debruçou sobre a realidade do sistema socioeducativo de adolescentes do sexo feminino no Rio Grande do Sul; MALLART (2014), em versão antropológica, retratou a

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realidade de unidade de internação de adolescentes do sexo masculino em São Paulo, e MACHADO (2014) se debruçou sobre a realidade da unidade de internação de adolescentes do sexo feminino em Pernambuco, apontando as mesmas conclusões: a medida socioeducativa de internação, em essência, em nada se diferencia da pena privativa de liberdade. Institucionalmente, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ, 2015), com o objetivo de atualizar pesquisa de 2012 que já apontava diversas formas de violações de direitos no âmbito da Justiça da Infância e da Juventude, mapeou a realidade das instituições de internação para adolescentes do sexo feminino em PE, PA, SP, DF e RS, apontando que O Estado, no exercício da proteção e diretos, falha na consagração dos direitos mínimos à cidadania e na execução das medidas socioeducativas, faz das unidades de internação depósitos de contenção de adolescentes demonizadas em suas trajetórias, rotuladas como incapazes de viver socialmente. Sob esse prisma, a medida socioeducativa de internação tem o mesmo sentido da prisão: castigo (CNJ, 2015, p. 212).

Diante de várias pesquisas já realizadas, percebe-se a manutenção da dicotomia entre tutela e emancipação de sujeitos. Nesse sentido, a pesquisa busca identificar o que os magistrados entendem sobre as finalidades da medida socioeducativa de internação, por meio da análise dos fundamentos de sentenças de aplicação de medida de internação proferidas no Estado de Pernambuco para adolescentes do sexo feminino. O corpus da pesquisa é constituído por 28 sentenças de adolescentes internadas no Centro de Atendimento Socioeducativo (CASE) Santa Luzia em abril/20121, sendo que, dessas, a análise se deteve sobre 9 (32% do total) que utilizaram o argumento da finalidade da medida, dentre outros, para justificar a internação. Para tanto, utiliza-se a metodologia da Análise de Conteúdo, de forma a possibilitar aos pesquisadores encontrar o latente nas sentenças, em um estudo exploratório, descritivo e qualitativo de documentos (BARDIN, 1977). Daí se inferiu que, quando os magistrados aludem às finalidades da medida, constroem basicamente dois raciocínios: ou a internação tem por fim a pura retribuição/neutralização – bastando autoria, materialidade, e o ato infracional ser grave –, ou serve à retribuição/socialização – mesmo que não reste comprovado o cometimento do ato infracional – supostamente, como julga, colmatando lacunas de educação deixadas pela família e pela comunidade. Considerando que o objetivo é identificar representações de magistrados sobre a finalidade da medida socioeducativa de internação, nada melhor do que compreender os discursos que permeiam o texto. É importante ponderar que representação é “algo que alguém nos conta sobre algum aspecto da vida social” (BECKER, 2009, p. 18). São informações que orientam as práticas e relações humanas, construídas através de comunicações sociais e apreendidas socialmente (MOSCOVICI apud ANCHIETA; GALINKIN 2005), além de variar em função dos extratos econômicos e culturais em que se inserem os indivíduos ou grupos (PORTO, 2006). As representações sociais funcionam como princípios orientadores e indutores de condutas de indivíduos, grupos ou instituições, de modo que, compreender como a magistratura representa a finalidade das medidas socioeducativas de internação importa desvendar o que se pensa sobre o instituto, captando seus significados, expondo seus sentidos. Deste modo, o estudo da representação social da magistratura acerca da finalidade da medida socioeducativa de internação não se dirige ao juiz, mas aos conteúdos que eles simbolizam. O magistrado, ausente enquanto tal, está presente como expressão de padrões de organização social, de modelo de comportamento 1  Esse número refere-se à quantidade de adolescentes internadas no Centro de Atendimento Socioeducativo (CASE) Santa Luzia em abril de 2012, momento no qual a pesquisa etnográfica na unidade, realizada pela primeira autora, no âmbito do doutoramento, teve início. Na verdade, existiam 35 adolescentes, porém, 7 delas estavam na modalidade de internação sanção, o que não compõe o universo da pesquisa.

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interpessoal e de um certo tipo de saber. É certo que o quadro organizacional de que se fala está a associado a modelos de comportamentos interpessoais que nele se inspiram e se reproduzem. Enfim, a representação social do magistrado veicula um modelo de homem e de sociedade. A partir daí, problematizam-se esses argumentos à luz da Criminologia Crítica e das diretrizes da Sociedade de Controle. Enquanto a primeira demonstra que o Sistema de Justiça Criminal – ou, no caso, o Sistema de Justiça Juvenil –, embora não declare funções de defesa social, é esse o valor que norteia as avaliações judiciais2; o marco da Sociedade de Controle aduz que indivíduos identificados como constantes agentes de “riscos”, seja por serem inseridos em uma classe economicamente excluída, ou por possuírem um padrão vida que não interessa aos mecanismos de produção da sociedade, são comumente alvos de intervenções das inúmeras instituições de controle do Estado. Siga-se adiante. 1. A DOUTRINA DA PROTEÇÃO INTEGRAL E SEUS PARADOXOS NA REALIDADE LATINO AMERICANA. Com o objetivo de compreender como se desenvolveu o atual paradigma do trato jurídico sobre a infância e a juventude, não se pode deixar de expor brevíssimo aporte histórico3. Ao se olhar para o passado, não se pretende explicar o presente como uma mera e inescapável evolução da humanidade; pelo contrário, objetiva-se estabelecer diálogos entre as racionalidades de ontem e de hoje. Nesse sentido, a dicotomia teórica da Doutrina da Proteção Integral com um ranço prático da Doutrina da Situação Irregular nos operadores do Direito pode ser explicada na realidade latino-americana. Primeiramente, é preciso acabar com a ideia de que o “novo” suplanta totalmente o “antigo”. Afinal, a história vai muito além de simples divisões binárias. Nessa linha, elucidativa a colocação de Patrice Schuch: [...] ao colocarmos o ECA numa economia geral discursiva que vem configurando o domínio jurídico-estatal da infância e juventude, no Brasil, desde o início do século XX, poderemos tentar problematizar as rupturas maniqueístas entre o ‘ontem’ e o ‘hoje’, que contribuem para um obscurecimento das relações de poder vivenciadas no presente (2005, p. 70).

Anteriormente, o controle incidente sobre a juventude era justificado pela Doutrina da Situação Irregular, fundamento do Código de Menores de 1979, que se estruturava em torno da categoria menor. Foi uma tendência nascida da corrente filosófica do positivismo, segundo a qual a situação de abandono criava uma necessidade protetiva, ao considerar o menor objeto de compaixão e repressão ao mesmo tempo (TUARDES DE GONZÁLEZ, 1996). A teoria considerava que os menores sempre estariam em situação irregular e, por isso, mereceriam a segregação, sem nenhuma preocupação com o seu desenvolvimento, incapacidades de socialização e potencialidades. Na sua vigência, as garantias individuais eram desprezadas sob o falacioso argumento de que incidiam apenas no processo de adultos, não tendo razão para sua incidência no campo do Direito do Menor. Menores eram aqueles supostamente4 abandonados, excluídos, ao passo que os incluídos em famílias e suas escolas eram crianças e adolescentes, a partir de um processo de construção estigmatizante. Assim, as 2  Até porque, além do sistema penal em sentido estrito, existem outros paralelos, compostos por agências de menor hierarquia, destinado a operar com punição a menor, razão pela qual goza de maior discricionariedade e arbitrariedade. Porém, tal qual o punitivo, admite técnicas (ilícitas) subterrâneas normalizadas em termos estatais, dado o fim que promete cumprir (ZAFFARONI, 2003). 3  Nesse ponto, seguindo o alerta de Luciano Oliveira, não se pretende descrever a evolução histórica como um simples ritual e demonstrar uma visão simplória das mudanças de concepção ao longo do tempo (2015, p. 163). 4  Supostamente porque o estado de abandono era decretado por juízes rotineiramente, apenas fazendo uma relação com a carência de recursos materiais, independentemente de fatos infratores. Não é por outra razão que os textos clássicos da cultura

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infrações dos incluídos eram resolvidas no âmbito da esfera privada, mesmo se constituísse um delito, posto que a amplitude judicial e o poder direcional do juiz resolveriam de forma particular; mas, se fosse um ato de menores, é porque estes estavam em situação irregular e demandavam a tutela do Estado para serem corrigidos, educados. Se encontrados em “situação irregular” – o que era definido, primordialmente, em função da situação de pobreza (SCHUCH, 2005, p. 59) – poderiam ser levados para internação, de forma indistinta. O referido processo de internação, no Brasil do início do século XX, chegou inclusive a apresentar um viés civilizatório, fazendo parte das preocupações de construção da nova República brasileira (SCHUCH, 2005, p. 57). Desta feita, por mais que fossem declarados os objetivos de salvar as crianças, de protegê-las do perigo moral, havia esse viés de controle e de verdadeira salvaguarda mais eficaz da sociedade (MÉNDEZ, 2004, p. 31). Diversas foram as críticas a esse modelo, mormente pela primazia da internação, pelo tratamento indiferenciado de crianças abandonadas e crianças supostamente criminosas, bem como pela imposição de padrões comportamentais aos “menores” com o propósito de proteger a sociedade de futuros delinquentes – sendo esta última característica presente até hoje. Sobre a temática, precisas são as palavras de Edson Passetti: A integração se dá pelo avesso na ilegalidade; a vida austera mortifica individualidades e dispõe os indivíduos enfileirados para ações delinquenciais. E mesmo com a falência dos internatos, eles se transformaram no estandarte dos amedrontados que clamam por mais segurança, muitas vezes exigindo prisões de segurança máxima e até a pena de morte (2010, p. 356).

A Doutrina da Situação Irregular passou a ser abalada no contexto pós Segunda Guerra Mundial, com a proclamação de direitos universais, acima de qualquer identidade, bem como com a constatação de que a atitude paternalista dos Tribunais de Menores vilipendiava esses direitos, desrespeitando a legalidade em nome de uma suposta proteção. Assim, as crianças e adolescentes também passaram a ter os seus direitos fundamentais enumerados. Daí surge a primeira característica do novo paradigma, a Doutrina da Proteção Integral: as crianças e adolescentes não mais são objetos de compaixão e repressão, mas sim sujeitos de direitos. Além disso, outro grande marco do novo paradigma foi o término da confusão na gestão dos abandonados e dos adolescentes transgressores (BARATTA, 1995, p. 5). De forma sintética, as grandes características da Doutrina da Proteção Integral – albergadas juridicamente pela Convenção Internacional dos Direitos da Criança, pelas Regras de Beijing, pelas Regras Mínimas das Nações Unidas para os Jovens Privados de Liberdade e pelas Diretrizes de Riad – são as seguintes: as normas são para o conjunto da categoria infância, e não apenas para aqueles indivíduos em situações difíceis (“menores”); presença obrigatória de advogado e papel de controle do Ministério Público; não é mais a criança ou o adolescente que se encontra em situação irregular, mas a pessoa ou instituição responsável pela ação ou omissão; eliminação das internações não vinculadas ao cometimento de ato infracional; crianças e adolescentes como sujeitos plenos de direitos; incorporação dos princípios constitucionais de segurança (MÉNDEZ, 2004, p. 13). No Brasil, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) foi o responsável pela introdução da nova doutrina no ordenamento, dividindo a infância e juventude entre aqueles que estão no exercício da cidadania, as crianças e adolescentes sujeitos a medidas de proteção (abandonados), e os adolescentes sujeitos a medidas socioeducativas (em virtude do cometimento de atos infracionais). No que tange a este último grupo, a ideia da Doutrina da Proteção Integral é a de introduzir uma pedagogia de responsabilidade e a assunção de direitos por parte dos menores, de forma que o adolescente seja um ator social (RODRIGUES, 1999).

menorista referem-se ao juiz como um pai de família que, não podendo forçar o estado em suas políticas públicas, deve institucionalizar a criança para protegê-la.

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Todavia, todo o exposto é o que se vislumbra do ponto de vista normativo. A superação da Doutrina da Situação irregular não é tão clara e simples assim, em virtude da existência de aparatos de poder e controle mesmo que sob a égide da Proteção Integral. Como alertou Patrice Schuch, a troca de paradigma é um processo complexo, em que estão em jogo vários fatores, dentre eles a permanência e/ou mudança de valores (2005, p. 81). Daí que se utilizará o marco teórico da Criminologia Crítica, a fim de desvelar o que está por trás das funções declaradas do novo paradigma – mormente no que tange ao julgamento de adolescentes acusados do cometimento de atos infracionais –, bem como da Teoria da Sociedade do Controle, para entender o real objetivo da incidência das normas sobre determinados adolescentes, e não outros. Sim, pois a juventude brasileira tem sido cada vez mais o maior alvo do sistema punitivo (formal e informal), especialmente quando diante da atuação das polícias brasileiras. O Anuário Brasileiro de 2014, apresentando dados de 2013, aponta um total de 809 casos de pessoas mortas pelas Polícias militar e civil brasileiras, quando em serviço no ano de 2013. Isso significa cinco pessoas mortas pela Polícia por dia no Brasil (FBSP, 2014). Em 2015, esse número é 3.022, com aumento de 37% (FBSP, 2015). Entretanto, o relatório da Anistia Internacional, analisando tão somente a realidade do estado do Rio de Janeiro, discute a ausência de transparência e sistematização desses dados. Esse cenário é repetido nos dados sobre as mortes violentas intencionais em todo o país. O Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2014 aponta o crescimento da vitimação juvenil, chegando a representar, com os dados de 2012, 53,4% dos homicídios ocorridos (FBSP, 2014). Portanto, é possível perceber o extenso número de mortes com autorização social de uma população quemuito além do descaso histórico em relação à precariedade das condições de vida e da indiferença social, essas populações sofreram toda sorte de violência, em especial a física, perpetrada pelos muros da internação e pela arbitrariedade policial materializada sob a forma de tortura e maus tratos que por vezes terminam em morte (VARGAS, 2011, p. 30). Essa continuidade, porém, tem uma peculiaridade. A reatualização da dicotomia abandonado/delinquente da Doutrina da Situação Irregular: ontem, os considerados pivetes estavam vinculados à prática de furto e roubo, hoje, estão vinculados ao tráfico. Os dados apresentados por Joana Vargas (2011) indicam os argumentos empíricos da atuação das polícias no sentido da dezumanização do humano. Por outro lado, o Poder Judiciário parece alheio a todo esse processo, não impondo resistências aos arbítrios do controle repressivo da ordem pública, deixando evidente que o Estado ainda convive com a incapacidade do controle da violência ilegal, a manutenção de uma imensa desigualdade social e econômica, além de baixíssima legitimidade das instituições representativas, envolvidas em processos de corrupção, ilegalidades, violências etc. O fato é que, levando em conta o alto índice de seletividade do sistema punitivo, os adolescentes de classes sociais mais baixas, com histórico de desvantagens econômicas, são mais punidos do que os adolescentes de classes mais avantajadas, de modo que o sistema protege aqueles que têm mais chance de socialização e é injusto e viola a dignidade daqueles que têm menos chance (COUSO, 2006). Esse quadro é esquizofrênico, pois as vítimas do sistema punitivo são os mais débeis e são exatamente os que precisam do poder público para representá-los e atuar por eles, porém este poder público não tem tido a capacidade de responder à questão – quem custodiará os custodiados? (MELOSSI, 1996) Não obstante a crise, não se pode parar de exigir, como dever cívico de garantia da vida democrática, menos violência. São os adolescentes autores de atos infracionais jovens-resultados. Resultados de um somatório de fracassos - de suas famílias, de suas comunidades, das políticas sociais públicas... resultado do insucesso do projeto de desenvolvimento do país (KONZEN, 2005), mas sujeitos de direito que não podem ser revitimizados no sistema infracional, cabendo aos representantes do Estado juiz, no momento da prolação das sentenças, reconhecer esta realidade, e não se reduzir à retórica da percepção da realidade presumida. Assim, no que tange aos adolescentes, por mais que a divisão entre abandonados e jovens em conflito com a lei tenha sido importante em termos de conferir um tratamento jurídico adequado para cada grupo, o

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refinamento dessa dicotomia acabou por recrudescer o estigma de criminoso dos adolescentes selecionados pelo sistema que cometem atos infracionais, sobre os quais recai todo um discurso punitivista. Por mais que haja um discurso de “infância universal”, una, com direitos garantidos a todos, a prática evidencia a dicotomia entre crianças “em perigo” e “perigosas”, sendo que estas, em nome da “defesa da sociedade”, estão tendo direitos suprimidos. Para enfrentar os desafios dessa “via de mão dupla” da Proteção Integral, é preciso relembrar, como aduz Baratta (1995, p. 10), que o trato dos adolescentes em conflito com a lei não deixa de ser uma espécie de responsabilização penal, com diferença de grau e nas sanções aplicadas. Desta feita, todos os filtros para a imposição do poder punitivo sobre os adultos também devem atuar na definição das medidas socioeducativas para os adolescentes, sob pena de violação das garantias penais e processuais penais. Com esse alerta sobre a Proteção Integral em mente, é que se passará, mais adiante, à análise das sentenças objeto desse trabalho. 2. ANÁLISE DOS DADOS. Nas 28 sentenças integrantes do corpus desta pesquisa, quando se trata de ato infracional que não é grave ou não há indícios de autoria e materialidade, a principal fundamentação da imposição da medida socioeducativa de internação assenta-se no que os magistrados definem como deficiências, entendidas essas as referentes à pessoa da adolescente e a sua história pessoal, fazendo uma retrospectiva da sua vida que, mais a frente, vai justificar (ou não) a medida socioeducativa. Todas as vezes que estes elementos aparecem nas sentenças, são utilizados para justificar a necessidade da medida socioeducativa, sem qualquer discussão quanto à prática do ato infracional, como se ela fosse responsabilizada pela sua conduta de vida, sua personalidade a até de seus familiares, como se verá adiante, independentemente do que tenha praticado. Conforme já indicado, das 28 sentenças, 9 delas (32%) apresentam como argumento para a imposição da internação a finalidade da medida socioeducativa – apontada de forma ambígua nas diversas sentenças –, sendo possível definir dois grandes grupos sobre este item. O primeiro grupo trata a medida de internação como retribuição do mal praticado, e assim o faz naquelas situações em que exclusivamente só foi analisada materialidade e autoria e o ato infracional é grave, sem nenhuma consideração dos itens referentes à pessoa e à trajetória da adolescente. Neste grupo inserem-se as sentenças que veem na medida de internação um instrumento de neutralização da adolescente, para proteger a sociedade e a própria adolescente. O segundo grupo indica as medidas socioeducativas como instrumentos de supressão das deficiências de socialização do adolescente, mencionando, inclusive, incapacidades educacionais da família, cabendo ao poder público ensinar os pais como educar. Isso não exclui o fato de que, na grande maioria das vezes, também menciona a retributividade da medida de internação. No primeiro grupo, a consideração sobre a gravidade do ato infracional é que justifica a medida, tanto que as sentenças tratam dos atos infracionais de homicídio (5), roubo (3), tráfico (2) e lesão corporal (1) – essa última foge à regra da gravidade, mas, considerando ter sido realizada com o irmão e com faca, esse dado pode ter sido levado em consideração. A perspectiva da retribuição é verificada na pretensa compreensão do mal praticado que se espera que a medida possa instrumentalizar, como se vê neste trecho: “reconhecer as consequências de seus atos, que chegou ao extremo de atingir o bem mais precioso de todo o ser humano, a vida, necessitando medida mais severa” (SENTENÇA 3). Em muitos momentos, são evidentes a ansiedade para a neutralização da adolescente e até a exemplificação (prevenção geral), mas, como isso não pode ser reconhecido, o eufemismo se apresenta, como neste trecho: “ao mesmo tempo que a internação protege a sociedade, também resguarda a integridade física do adolescente infrator que na grande maioria das vezes encontra-se envolvido com quadrilha e

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traficantes” (SENTENÇA 13). Ou seja: no caso, proteger a adolescente justificou a internação, quando não há sentido em alguém ter a liberdade cerceada para a própria proteção. Mais uma vez, tem-se o discurso da proteção como uma via de violação de direitos. Estes trechos apresentam a seguinte visão da magistratura: “A adolescente tem tendência para a prática de ato infracional, sendo imperativa a retirada da comunidade onde vive justificando a aplicação da medida socioeducativa de internação” (SENTENÇA 8). Daí, os juízes passam a narrar a gravidade dos atos infracionais como as piores coisas da humanidade - o tráfico ilícito é conduta grave, tem como vítima a sociedade, sendo dever do Estado, como medida de proteção, afastar os menores da vivência da marginalidade (SENTENÇA 13). O trecho abaixo exemplifica esta visão: É sabido que o tráfico vem sendo considerado o flagelo da humanidade, crescendo cada vez mais, destruindo famílias, sem contar com a cooptação de crianças e adolescentes para as trincheiras do tráfico, sempre ao argumento e que, por não constar no rol daqueles atos infracionais passíveis de internação, são postos, imediatamente em liberdade, retornando as crianças e adolescentes seu lugar de destaque no tráfico de entorpecentes [...] a medida é a mais recomendável a ser aplicada, considerando a conduta dos mesmos e para que não voltem a delinquir, tornando-se profissionais dos tráfico; afastá-los do perigo iminente de serem resgatados pelo tráfico é que tenho a medida como imprescindível (SENTENÇA 25).

No caso de um ato infracional relativo a roubo, praticado pelo namorado da adolescente, que, segundo as testemunhas, ela só chegara, procurando-o (porque estava grávida e intuíra que algo estava acontecendo, narra a adolescente), quando o roubo já estava consumado, a opinião judicial é que “trata-se de ato infracional de natureza grave, praticado mediante violência e grave ameaça contra a pessoa, sendo conduta extremamente reprovável, reclamando, portanto, rígida intervenção estatal” (SENTENÇA 21). Em relação à prática de homicídio em que a magistrada reconhece não ter sido a adolescente a disparar a arma de fogo, e que coube a ela, somente, “atrair a vítima para emboscada”, tem-se que: A conduta infracional praticada pelo representado demonstra um comportamento totalmente primitivo e reprovável, exorbitando os padrões normais aceitáveis do adolescente médio. A população intimidada, chega a desacreditar das autoridades, porque muitas vezes desconhecem os trâmites processuais e as dificuldades com que trabalha o aparato policial. [...] entretanto ressalto que fundamento precípuo da medida socioeducativa é a ressocialização do adolescente em conflito coma lei, com a finalidade de reintegrá-lo ao contexto da comunidade, para o seu desenvolvimento e amadurecimento social e não como simples punição (SENTENÇA 23).

Após todo o exposto, observa-se o quanto o fato de o crime ser grave foi decisivo para a imposição da medida socioeducativa de internação. Ou seja, a finalidade retributiva da medida acabou sobressaindo na fundamentação das sentenças, seja esse argumento explicitamente verbalizado ou não. Todavia, dar ênfase a um caráter retributivo não se coaduna com a ideia de Proteção Integral. Mesmo que o Estatuto não tenha um dispositivo indicando as finalidades da medida socioeducativa – diferentemente do Código Penal, o qual aponta as funções de reprovação e prevenção da pena (art. 59 do CP) –, é possível inferir, pelo escopo da Proteção Integral, que o foco deve ser a integralização do adolescente à vida coletiva. Aliás, aqui se justifica a próxima crítica, baseada na teoria da sociedade do controle. Ora, se a infância é “universal”, a “proteção integral” conferida às crianças e adolescentes sujeitos às medidas de proteção especial deve ser equivalente à conferida aos adolescentes sujeitos às medidas socioeducativas. Daí ser possível afirmar que, em paralelo ao estatuído pelo art. 100 do Estatuto (relativo às

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medidas de proteção), a aplicação das medidas socioeducativas também deve levar “em conta as necessidades pedagógicas, preferindo-se aquelas que visem ao fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários”. Ou seja, no que tange à medida socioeducativa de internação, deve ela – além de ser excepcional (conforme o art. 121 do ECA) – se afastar de uma ideia retributiva, não indicada em nenhum momento pelo Estatuto. Pelo contrário, se o foco é fortalecimento de vínculos, a meta é a integração social, e não punição. Por mais que o ECA fale que é preciso analisar a gravidade da infração para imposição da medida (art. 121, §1º), outras questões devem ser sopesadas – como as circunstâncias e a capacidade de cumprir a medida socioeducativa, indicadas no mesmo dispositivo –, sob pena de uma espécie de bis in idem: se o adulto não pode ser submetido a regime de pena mais severo por conta da gravidade da infração, por si só (Súmula 718 do STF), porque o adolescente deveria o ser? Portanto, impor internação porque o crime é grave, sem considerações sobre o que seria melhor para a integralização da adolescente à vida coletiva, no caso concreto, ou sobre a sua “culpabilidade”5, não coaduna com a Proteção Integral – ou melhor, é prática que se opera sob o pretexto da referida doutrina. Prevalece, assim, uma prevenção especial negativa, em seu caráter de neutralização da adolescente. No segundo grupo, as considerações sobre a finalidade da medida socioeducativa são diversas. Na grande maioria, volta-se à moralização e à necessidade de controle, o que fica claro quando reiteradamente se fala em fiscalização: “a menor seja submetida a controle e fiscalização do seu comportamento” (SENTENÇA 22); “o que sinaliza a necessidade de conduta mais enérgica, para que surta efeito pedagógico esperado, através do acompanhamento sistemático em meio fechado” (SENTENÇA 6); “acompanhamento sistemático para que seja demonstrado orientação no sentido de reconhecer as consequências dos seus atos, necessitando de medidas mais enérgicas” (SENTENÇA 3). Este trecho exemplifica uma situação: levando em consideração a gravidade do ato infracional contra a pessoa e o perfil da adolescente, que não demonstrou arrependimento pelo fato, convenço-me de que a internação é a medida socioeducativa ideal, pois implica, além da apreensão do desvalor do ato perpetrado, uma obrigatória escolarização/profissionalização da adolescente (SENTENÇA 5).

O fato de haver menção às questões pessoais das adolescentes não exclui considerações sobre a gravidade do ato, de forma semelhante como feito no item anterior, mas nesse caso, com sentença proferida por magistrado de outra comarca: deve-se destacar a extrema gravidade do tráfico ilícito de entorpecentes que muito contribui para o aumento desenfreado da violência vivenciado pela sociedade e tão veemente repelida. Sabe-se que a droga não só danifica a seu usuário, mas atinge famílias e seu mal se espalha de forma incontrolável, vindo a destruir lares, vidas, estando a sociedade cada vez mais contaminada por esta destruição. Assim, qualquer ato que venha contribuir para a proliferação deste mal deve ser repreendido e levado muito a sério, a fim de evitar que mais pessoas venham ser atingidas e destruídas (SENTENÇA 1).

E, em razão dessa gravidade, encerra a avaliação: “não nos é permitido deixar de aplicar a medida socioeducativa, visto ser necessário que a representada pare para pensar e sentir as consequências da prática infracional” (SENTENÇA 1). 5  É bem verdade que inexiste, no âmbito da análise do ato infracional, a culpabilidade, que em si representa o elemento na teoria do delito responsável pela avaliação do autor do fato. Porém, é ela imprescindível para gerar a responsabilização socioeducativa de adolescentes em conflito com a lei, devendo ser entendida como especial capacidade de culpabilidade, fundada no princípio da autonomia ética da pessoa humana que não pode ser utilizada como meio para outro fim, e tão somente fim em si mesma Portanto, a imposição da medida socioeducativa “depende não apenas do desvalor do resultado, mas, principalmente, do desvalor da ação ou omissão do adolescente, ou seja, do comportamento consciente ou negligente” (CILLERO BRUÑOL, 2011, p. 20).

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Então, por ora cabe à medida “interferir na realidade familiar e social do adolescente, tencionando resgatar, mediante apoio técnico a sua potencialidade” (SENTENÇA 20) e, por ela, possa a adolescente “dar direcionamento à sua vida” (SENTENÇA 4), na medida em que oferece “uma obrigatória escolarização e profissionalização” (SENTENÇA 5), tornando-se portanto “cidadão útil” (SENTENÇA 18); por ora, cabe à retribuição do mal praticado e até mesmo, por vezes, cabe a ela oferecer “terapias psicológicas” (SENTENÇA 16), quando a adolescente é diagnosticada por profissionais da saúde como portadora de transtornos mentais. Todas essas situações justificam a medida, mesmo quando ela não é cabível, pois não inserida nas hipóteses do art. 121, ECA; como foi o caso de tráfico, já tantas vezes mencionado, e o caso de um ato infracional equiparado à ameaça que “por si só” não justificaria a internação, “entretanto, diante” (SENTENÇA 10) do risco pessoal, das ameaças de traficantes e dos distúrbios de conduta agravados pelo uso de drogas, a medida está justificada. Todas as confusões possíveis entre socioeducar, neutralizar, retribuir, são resumidas nesta passagem: “ser necessário que a representada pare para pensar e sentir as consequências de sua prática infracional [...] conduta mais enérgica para que surta o efeito pedagógico esperado através de acompanhamento mais sistemático em meio fechado” (SENTENÇA 11). Ou será melhor percebido neste trecho?! “Considerando a capacidade da adolescente cumprir a medida, as circunstâncias e a gravidade da infração, assim como sua personalidade e a possibilidade de entender o efeito pedagógico da medida e a ilicitude do ato pratico, tenho por bem aplicá-la” (SENTENÇA 20). Enfim, o que realmente quer dizer este efeito pedagógico – castigo pelo mal que fez ou complementação das problemáticas relativas à socialização? Para uma ou outra coisa, há enorme arbitrariedade. Caso a educação seja via retribuição, o efeito da media socioeducativa é penal, sendo que este é aplicado sem qualquer discussão sobre a culpabilidade. Por outro lado, se a finalidade educacional da medida busca suprir lacunas de sociabilidade, abre-se espaço para as práticas “menoristas”, com violações aos direitos fundamentais dos adolescentes; mas parece que, neste caso, as ilegalidades seriam justificadas em nome da proteção... Essas contradições são repetidas, na medida em que a maioria das sentenças nega o caráter penal da medida, porém indicam veementemente a necessidade de ser compreendido o desvalor da ação, em clara perspectiva retribucionista. A ideia de retribuição está presente nesta passagem: “para que possa pensar e sentir as consequências de sua prática infracional”. Mas também a indicação da necessidade pedagógica é evidenciada neste outro trecho que se mistura com a retribuição: “implica além de compreensão do desvalor, uma obrigatória escolarização/profissionalização” (SENTENÇA 5). Este último caso é interessante porque não trabalha qualquer fundamento sobre a necessidade da medida, como se homicídio fosse tão grave e suficiente por si só. Mas depois aplica a medida afirmando que a adolescente necessita de escolarização, sem fazer qualquer referência sobre a condição escolar dela – isto é, sem nada saber sobre a realidade da mesma, pelo menos em termos da sentença. É como se presumisse que a medida é necessária, afinal “A medida socioeducativa deve ser pautada na ressocialização do adolescente, com a finalidade de reintegrá-lo ao convívio da comunidade para o seu amadurecimento e desenvolvimento” (SENTENÇA 9). No segundo grupo, portanto, a finalidade da medida socioeducativa de educação/ressocialização é um dos fundamentos para a escolha pela internação. A nosso ver, essa função socializadora da medida consubstancia uma representação falaciosa dos magistrados quanto à internação, demonstrando a falta de conhecimento deles da realidade das instituições, com grandes dificuldades para a efetivação de uma prática pedagógica. Nas duras palavras de Juarez Cirino dos Santos, as medidas privativas de liberdade (art. 120 e 121 do ECA) podem ser qualquer coisa, menos socioeducativas (2001). 3. CONSIDERAÇÕES FINAIS.

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Qual seria, então, o significado de ressocialização, no contexto do Estatuto, em consonância com o princípio basilar de Proteção Integral? Neste ponto, importante destacar que coadunamos com a concepção de Jaime Couso (2006) sobre o papel desse escopo de ressocialização: não se trata de um “fundamento” das medidas socioeducativas, mas de um limite à aplicação delas. Isso significa que, quando da análise de qual medida socioeducativa deve ser aplicada, é preciso ter em mente que é impossível ressocializar uma pessoa apartando-a da sociedade, conforme é denunciado pela Criminologia Crítica há tempos. Com efeito, denuncia-se inclusive a potencialidade criminógena do encarceramento, com “efeitos dessocializantes devastadores” (RODRIGUES, 1999, p. 290). Consequentemente, a ideia de ressocialização deve promover a redução da gravidade da medida aplicada (constituindo, pois, limite à medida), de forma que a internação, de fato, constitua exceção. Caso se busque uma verdadeira socialização, o que deve haver é desencarceramento, e não a prática de fundamentar o encarceramento sob pretextos educacionais. Essa “educação”, em verdade, ao invés de promover o aprendizado para a vida na sociedade, com respeito às individualidades, apresenta-se como direcionamento de comportamentos, em que a tônica é o controle social (COUSO, 2006). Como se percebe, as representações dos magistrados sobre as medidas socioeducativas de internação consistem no controle da juventude, daquilo que eles consideram como sendo uma “juventude normal”. A evidência está nas sentenças que, sob o argumento de que as adolescentes precisam das finalidades da internação em suas vidas, a fim de que haja a Proteção Integral, descumprem o devido processo legal e ignoram a condição de sujeitos de direito, em claro desrespeito às diretrizes constitucionais. Na verdade, a construção metódica que concede racionalidade ao ato judicial, revestido do método silogístico da dogmática, encobre que a imposição de medida socioeducativa tem por base questões relativas à socialização da adolescente. Se a finalidade da medida é castigo, tem-se o efeito penal e, se é penal, está sendo aplicada medida sem nenhuma observância da culpabilidade da adolescente; por outro lado, se o efeito pedagógico é para complementar as deficiências, está-se diante de um direito de menores, com violações à legalidade, ao devido processo legal e à presunção de inocência, ao se impor um verdadeiro direito penal do autor. Nesta prática, não se tem educação, mas apenas controle social. Esses argumentos serão melhor tratados adiante. Assim, os magistrados ignoram a realidade, bem como violam a Proteção Integral, ao utilizarem-se do projeto preventivo-especial das medidas de internação se limitando à simples constatação de autoria e materialidade, para, ao cabo, determinar a internação. Não obstante o art. 122 do ECA indicar como requisito da internação ato cometido com grave ameaça ou violência à pessoa ou reiteração de infrações graves, isso não quer dizer que, obrigatoriamente, adolescentes os quais se encaixem nessas hipóteses devam ser internados, até por conta da excepcionalidade da medida. Quanto aos atos infracionais mais leves, o ideal de ressocialização, ao invés de impedir que a adolescente tenha sua liberdade privada, acaba exercendo um papel inverso, justificando a internação como possibilidade salvadora de educação da jovem. Todavia, conforme exposto ao longo deste trabalho, é preciso refletir sobre que educação para sociabilidade é essa, cuja execução se dá em ambiente de privação de liberdade, em um inegável paradoxo. Embora a ressocialização devesse buscar manter vínculos familiares e comunitários, o que acaba por emergir é uma espécie de direito penal juvenil do autor. Desta forma se acredita que o argumento ressocializador deva ser usado para a redução da intensidade da intervenção estatal na vida dos adolescentes em conflito com a lei. Nesse contexto, evidencia-se como o ideal de Proteção Integral, por mais que tenha efetuado uma ruptura histórica com o paradigma da “menoridade”, presta-se a possibilitar supressão de direitos, sob o véu de que tudo está sendo feito em favor dos adolescentes. Diante de uma estrutura normativa tão fluida, mais do que nunca os juristas devem estar atentos e repensar quais são suas representações sobre as finalidades da medida socioeducativa, a fim de que a prática não se aparte das diretrizes constitucionais, e os adolescentes, “sujeitos de direitos”, não tenham suas garantias penais e processuais penais olvidadas.

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Nesse sentido, mesmo que a Doutrina da Proteção Integral represente, normativamente, um avanço na tutela dos direitos humanos, no Brasil, a categoria menor é reatulizada, sob a perspectiva do controle. Não obstante a mudança, para Liana de Paula (2015), a pobreza6 é uma categoria catalizadora do tratamento do adolescente em conflito com a lei, que, em si, tornou-se um campo de discursos e práticas, organizado em torno da criminalidade urbana. De fato, é isso que os dados apontam. Por mais que haja uma legislação avançada, como é indicado por vários autores os quais se debruçam sobre a matéria, a ampla discricionariedade permitida pelas normas, bem como a mentalidade jurídica no Brasil – que permanece penalizadora e cada vez mais contrária ao ECA (PASSETI, 2010, p. 371) –, acabam fazendo com que haja a permanência de estruturas de controle sobre os adolescentes em conflito com a lei. Imprescindível, pois, o cuidado no trato com a Doutrina da Proteção Integral, que pode se prestar a esconder violações de direitos fundamentais sob a retórica de proteção desses mesmos direitos. REFERÊNCIAS ANCHIETA, Vânia Cristine Cavalcante; GALINKIN, Ana Lúcia. Policiais Civis: representando a violência. Psicologia & Sociedade, n. 17 (1), p. 17-28, Jan/abr, 2005. BARATTA, Alessandro. Elementos de um nuevo derecho para la infância y la adolescência. Capítulo criminológico, v. 23, n. 1, Maracaibo, enero-junio 1995. BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1977. BECKER, Howard. Outsiders: studies in the sociology do desviance. Nova York: The Free Press, 1963. _______. Falando da sociedade: ensaios sobre as diferentes maneiras de representar o social. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009. CILLERO BRUÑOL, Miguel. Nulla Poena Sine Culpa. Un límite necesario al castigo penal de adolescentes. Revista Pensamiento Penal, n. 124, Santiago del Chile, 2011. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Relatório de Pesquisa. Dos espaços aos direitos: a realidade da ressocialização na aplicação das medidas socioeducativas de internação das adolescentes do sexo feminino em conflito com a lei nas cinco regiões. Brasília, 2015. COUSO, Jaime. Principio educativo y (re) socialización en el derecho penal juvenile. In: UNICEF. Justicia y derechos del niño, n. 8. Chile, 2006. DE PAULA, Liana. Da “questão do menor” à garantia de direitos. Discursos e práticas sobre o envolvimento de adolescentes com a criminalidade urbana. Civitas, Porto Alegre, v. 15, n. 1, p. 27-43, jan.-mar. 2015. FACHINETTO, Rochele Fellini. A “casa de bonecas”: um estudo de caso sobre a unidade de atendimento sócio-educativo feminino do RS. Dissertação. UFRGS. Programa de Pós Graduação em Sociologia. Porto Alegre, 2008. FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. 8º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. São Paulo: FBSP, 2014.

6  Como salienta Michel Misse (2011), pobreza e criminalidade são variáveis, tidas, pelas ciências sociais, como causas a partir do século XIX, substituindo a patologia médica (lombrosiana) pela patologia social.

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DEMOCRACIA, EFETIVIDADE E DIREITOS SOCIAIS: UM OLHAR SOBRE OS CONSELHOS MUNICIPAIS DE EDUCAÇÃO E A CONSTRUÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS – A PARTICIPAÇÃO COMO CONCRETIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL.

Erika Patrícia Ferreira dos Santos Bacharelanda em Direito pela Faculdade ASCES Isabel Cristina Souza Queiroz Bacharelanda em Direito pela Faculdade ASCES Marco Aurélio da Silva Freire Bacharel em Direito pela Faculdade ASCES e em Ciência Contábeis pela FAFICA. Mestrando em Direitos Humanos pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), professor universitário na Faculdade ASCES.

SUMÁRIO: Introdução; 1. Direitos Sociais; 1.1. Democracia; 2. Conselhos de políticas públicas; Conclusão; Referências.

INTRODUÇÃO O presente trabalho tem o escopo de analisar os Conselhos Municipais de Educação como meio de concretização da cidadania, da democracia e, por conseguinte, do fortalecimento dos direitos sociais. Para isso, foi feita uma pesquisa bibliográfica e documental. Inicialmente, tratar-se-á da transformação e fortalecimento dos direitos sociais, estes, que como veremos mais adiante, passaram por várias etapas resultantes de vários momentos históricos. Com isso podemos dizer que os direitos sociais são produtos de um longo processo de constitucionalização que se estende até o período atual, onde os direitos são garantidos, mas nem todos são efetivados, necessitando, por vezes, do acionamento do Poder Judiciário ou até mesmo de normas infraconstitucionais que garantam sua eficácia plena. Pois, sabemos que a ativação dos direitos sociais é um meio para se atingir um mundo econômico, sócio-político e ético-cultural melhor e mais justo. Logo mais adiante, abordar-se-á a democracia e os tipos de exercê-la, ressaltando os prós e os contras da democracia representativa e apresentando a democracia participativa como um escape para uma democracia representativa, esta que está perdendo o respeito da sociedade. Apresentar-se-á também alguns tipos de democracia participativa, destacando, por sua vez, os conselhos de políticas públicas. Dentre os conselhos, merecerá destaque o Conselho Municipal de Educação, visto que a educação apresenta resultados para além de si e podendo ser, se bem administrada, a solução para muitos dos problemas sociais e estruturais enfrentados pelo Brasil – como, por exemplo, as drogas, a violência e a corrupção. No decorrer do trabalho também trataremos a respeito do funcionamento dos conselhos municipais de educação, sua formação, como se dão as reuniões entre os membros da sociedade civil e representantes do Estado, estas que podem ser de cunho deliberativo ou consultivo, além de analisar sua eficácia. Soma-se a isso que serão expostos alguns dos problemas enfrentados pelos conselhos tendo em vista que muitas vezes estes são objetos de clientelismo e coronelismo, resultam na escolha de conselheiros mal informados e pouco representativos.

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1. DIREITOS SOCIAIS Os direitos sociais, são direitos de 2ª (segunda) dimensão, referentes à igualdade. Segundo José Afonso da Silva os direitos sociais são: Prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais. São, portanto, direitos que se ligam ao direito ao direito de igualdade. Valem como pressupostos do gozo dos direitos individuais na medida em que criam condições materiais mais propícias ao aferimento da igualdade real, o que, por sua vez, proporciona condição mais compatível com o exercício efetivo da liberdade. (SILVA, 2010, p. 286-287)

Ao analisar a história dos direitos sociais, no Brasil, percebe-se que os mesmos sofreram constantes transformações devido aos contextos históricos diversos, as mudanças demográficas e as variações nas concepções político-econômicas. Sabe-se que na década de 30, o Brasil, passava por transformações estruturais. Os altos níveis de migrações para os centros urbanos ocasionaram problemas sociais e atingiram diretamente a infraestrutura do país. Neste mesmo período histórico, a posse do poder estava com a elite e o Estado tinha o domínio sobre quase tudo, instaurando um estado hobbesiano, ou seja, uma política de controle. Esse dirigismo estatal prevaleceu até o governo Dutra, pois, surgem nesse período histórico movimentos sociais e associações civis que tinham, dentre outros objetivos, reivindicar ao Estado, a ampliação dos direitos sociais. Instala-se no Brasil, então, um resquício de democracia, onde será marcado por grandes conquistas como, por exemplo, ampliação dos direitos trabalhistas e previdenciários. Porém, em 1964, com a instalação do regime ditatorial, ocorre a extinção dos direitos políticos e civis, que, por conseguinte, prejudicou a manutenção de alguns direitos sociais. Ainda no ano 1967, grande parte da sociedade não tinha acesso aos seus direitos fundamentais, mesmo estes sendo garantidos no artigo 150 da Constituição de 1967, e dos direitos sociais previstos no artigo 158. Em 1988 foi promulgada a atual Constituição Federal, garantindo a redemocratização. Porém, como é sabido, nem todos direitos sociais por ela ofertados foram implementados, tornando-se um período de “política social sem direitos sociais” (VIEIRA, 1997, p. 14). Sabe-se que até os dias atuais alguns direitos sociais não são efetivados necessitando, por vezes, acionar o Poder Judiciário para concretização desses direitos. De acordo com Barroso: O judiciário é o guardião da Constituição e deve fazê-la valer, em nome dos direitos fundamentais e dos valores e procedimentos democráticos, inclusive em face dos outros Poderes. Eventual atuação contramarjoritária, nessas hipóteses, se dará a favor e não contra a democracia (BARROSO, 2009, p. 346).

Para Peter Häberle, há uma relação umbilical entre a democracia e os direitos sociais na constituição de um Estado Democrático de Direito, sendo exigidos pela democracia os direitos sociais, além destes serem necessários para participação política. Infere-se, portanto, que os direitos sociais devem servir para o controle da política por parte dos cidadãos, sendo assim o pressuposto básico da democracia. 1.1 DEMOCRACIA

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Entende-se por democracia o exercício dos princípios da cidadania e da soberania popular. Ou seja, democracia é o governo do povo, pelo povo e para o povo1. Segundo Norberto Bobbio em “O Futuro da Democracia”, a democracia é caracterizada: Por um conjunto de regras (primárias ou fundamentais) que estabelecem quem está autorizado a tomar as decisões coletivas e com quais procedimentos. Mas até mesmo as decisões de grupo são tomadas por indivíduos (o grupo como tal não decide). Por isto, para que uma decisão tomada por indivíduos (um, poucos, muitos, todos) possa ser aceita como decisão coletiva é preciso que seja tomada com base em regras (não importa se escritas ou consuetudinárias) que estabeleçam quais são os indivíduos autorizados a tomar as decisões vinculatórias para todos os membros do grupo, e à base de quais procedimentos (BOBBIO, 1986).

Podemos classificar a democracia de modo geral em: direta, indireta ou semidireta. Na democracia indireta ou representativa, o povo, o soberano, escolhe seus representantes, outorgando-lhes poderes para que por eles e para eles governem o país. Enquanto que na democracia direta o poder é exercido pelo povo, sem representações. Já na democracia semidireta ou participativa, haverá representatividade e a participação direta do povo nos atos estatais. De acordo com Robert Dahl é possível definir alguns critérios de um processo democrático: • Participação efetiva. Antes de ser adotada uma política pela associação, todos os membros devem ter oportunidades iguais e efetivas para fazer os outros membros conhecerem suas opiniões sobre qual deveria ser esta política. • Igualdade de voto. Quando chegar o momento em que a decisão sobre a política for tomada, todos os membros devem ter oportunidades iguais e efetivas de voto e todos os votos devem ser contados como iguais. • Entendimento esclarecido. Dentro de limites razoáveis de tempo, cada membro deve ter oportunidades iguais e efetivas de aprender sobre as políticas de aprender sobre as políticas alternativas importantes e suas prováveis consequências. • Controle de programa de planejamento. Os membros devem ter a oportunidade exclusiva para decidir como e, se preferirem, quais as questões que devem ser colocadas no planejamento. Assim, o processo democrático exigido pelos três critérios anteriores jamais é encerrado. As políticas da associação estão sempre abertas para a mudança pelos membros, se assim estes escolherem. • Inclusão dos adultos. Todos ou, de qualquer maneira, a maioria dos adultos residentes permanecentes deveriam ter o pleno direito de cidadãos implícito no primeiro de nossos critérios. Antes do século XX, este critério era inaceitável para maioria dos defensores da democracia. Justificá-lo exigiria que examinássemos por que devemos tratar os outros como nossos iguais políticos. (DAHL, 2001)

Pode-se perceber, porém, que muitos desses critérios elencados por Dahl ainda não são plenamente concretizados, precisando, por vezes, democratizar a democracia. No Brasil criou-se uma cultura onde os políticos são vistos pela população como uma classe superior e inatingível, distanciando, desta forma, o político do contexto social. Tal fato atinge então a democracia representativa, visto que com o distanciamento do representante, político, do representado, sociedade, aquele usa o poder como meio de satisfação dos próprios anseios ou até

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mesmo como instrumento de dominação da classe dominante, esta que lhe rendeu ou renderá mais votos para que possa ser reeleito. Quanto a isso Norberto Bobbio faz uma crítica direta: As democracias representativas que conhecemos são democracias nas quais por representante entende-se uma pessoa que tem duas características bem estabelecidas: a) na medida em que goza da confiança do corpo eleitoral, uma vez eleito não é mais responsável perante os próprios eleitores e seu mandato, portanto, não é revogável; b) não é responsável diretamente perante os seus eleitores exatamente porque convocado a tutelar os interesses gerais da sociedade civil e não os interesses particulares desta ou daquela categoria. (BOBBIO, 1986)

Sendo assim, forma-se uma nova classe, a dos políticos de profissão. Estes vivem para política e da política, buscando sempre a manutenção do poder e os interesses particulares, esquecendo-se, por sua vez, das necessidades do soberano, o povo. Como escape para uma democracia representativa em crise, tem-se a democracia participativa ou direta, onde os cidadãos poderão participar ativamente das políticas públicas e fiscalizar os atos estatais. De acordo com Fernando Novelli Bianchini, entende-se por democracia participativa: O processo político que possibilita e estimula a participação do cidadão e de sua comunidade, via de regra de forma direta e por vezes de forma semidireta, na elaboração da vontade e dos atos próprios do governo já construído, em suas tarefas legais e administrativas, descartando a representação por meio de uma assembleia eletiva para tanto. Em sua essência a democracia participativa é caracterizada por um conjunto de pressupostos normativos que incorporam a participação da sociedade civil na regulação da vida coletiva dentro de uma agenda previamente determinada de assuntos. Pode-se afirmar que a democracia participativa impõe o exercício da cidadania nos atos de governo, significando, em última análise, um sistema no qual os cidadãos possam efetivamente participar das decisões políticas fundamentais. (BIANCHINI, 2009, p. 15)

Há alguns instrumentos para efetivação da democracia participativa. Os mais comuns citados pela ciência política e jurídica são: referendo, projeto de lei de iniciativa popular, orçamento participativo, audiências públicas, ação popular, conselhos de políticas públicas, entre outros. Merecerá destaque e será abordado mais adiante, os conselhos de políticas públicas, mais especificamente, os conselhos municipais de educação. Insta salientar, todavia, que a democracia participativa e a democracia representativa devem ser desenvolvidas respectivamente, visto que são complementares. Dessa forma, haverá a concretização dos princípios da soberania, da cidadania e da democracia, instaurando assim um legítimo Estado Democrático de Direito. 2. CONSELHOS DE POLÍTICAS PÚBLICAS A participação da sociedade nos atos do governo é algo recente, principalmente, na gestão de políticas públicas. Como já foi dito, a democracia sempre esteve muito limitada ao voto direto e após essa decisão a população passava apenas a agir de forma passiva dentro das relações estatais. Políticas públicas são aqui entendidas como ações do governo que objetivam a inclusão social, seus elementos principais são: possibilitam a distinção entre o que o governo pretende fazer e o que, de fato faz; envolvem vários níveis de atores e decisões, incluindo participantes informais; são abrangentes e não se limitam a leis e regras; são ações intencionais, com objetivos e metas a serem cumpridas; costumam produzir impacto em logo prazo.” (SOUZA, Celina. 2006, p. 24).

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Com o déficit de participação advindo da democracia representativa, a partir da década de 90 começam a surgir outros mecanismos de participação que iriam além do voto. podemos citar como exemplo os conselhos, que devem ter preferencialmente formação paritária entre membros da sociedade civil e membros do poder público. Deu-se a esses conselhos competência para programar e fiscalizar políticas públicas desenvolvidas pelo governo.

A participação do povo na gestão da coisa pública reflete algumas implicações:

1. A participação social promove transparência na deliberação e visibilidade das ações, democratizando o sistema decisório. 2. A participação social permite maior expressão e visibilidade das demandas sociais, provocando um avanço na promoção da igualdade e da equidade nas políticas públicas; e 3. A sociedade, por meio de inúmeros movimentos e formas de associativismo, permeia as ações estatais na defesa e alargamento de direitos, demanda ações e é capaz de executá-las no interesse público.2 O conceito mais apreciado dos conselhos de políticas públicas é o de Maria da Glória Gohn, onde são definidos como “canais de participação que articulam representantes da população e membros do poder público estatal em práticas que dizem respeito à gestão de bens públicos”. (GOHN, 2001, p. 7). A nossa análise permeia na relação desses conselhos com a efetivação da democracia, percebemos até aqui que esses órgãos permitem de fato a presença de entes não governamentais, que se caracterizam como atores informais e que são garantidores da participação que concretiza os direitos sociais constitucionalmente dispostos. Dessa forma, a constituição Federal de 1988 estabeleceu em diversas normas a obrigatoriedade da cooperação entre a sociedade civil e as instâncias de governo, que ocorre ordinariamente por meio dos Conselhos de Políticas Públicas, para: (1) o planejamento municipal (art. 29, XII); (2) a gestão da seguridade social que compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinado a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social, deve se pautar pelo caráter democrático e descentralizado da administração, mediante gestão quadripartite, com participação dos trabalhadores, dos empregadores, dos aposentados e do Governo nos órgãos colegiados (inciso IV, parágrafo único, art. 194); (3) assegurar a participação da comunidade na gestão das ações e serviços públicos de saúde que devem integrar uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único (art. 198, III); (4) a participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis, das ações governamentais na área da assistência social realizadas com recursos do orçamento da seguridade socialv(art. 201, II); (5) a gestão democrática do ensino público (art. 206, VI); (6) participação de entidades não governamentais em programas de assistência integral à saúde da criança, do adolescente e do jovem, promovidos pelo Estado, mediante políticas específicas (art. 227, parágrafo 1º.). (ALVES, 2013, p. 234.)

Com isso podemos afirmar que os Conselhos de Políticas Públicas são órgãos do poder público de composição preferencialmente paritária entre o governo e a população, estão previstos na constituição e garantem a participação social efetivando direitos sociais. São várias as áreas de atuação desses conselhos, podemos destacar o Conselho Nacional do Meio Ambiente, Conselho Nacional de Política Criminal e Previdenciária, Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, Conselho Nacional de Educação entre outros. Decidimos especificar nosso estudo ao Conselho de Educação no âmbito municipal. Esclareceremos aqui que nossa escolha tem fundamento na grande importância da educação, não só no contexto social atual, mas também, 2  SILVA, Frederico Barbosa da, JACCOUD, Luciana, BEGHIN, Nathalie. Políticas Sociais no Brasil: Participação Social, Conselhos e Parcerias. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/sites/000/2/livros/questaosocial/Cap_8.pdf. Acesso em 06 dez. 2015. P. 375.

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no futuro, já que os resultados originados das deliberações feitas nesse conselho são de caráter mediato, ou seja, têm um longo prazo para se efetivar e atinge a maior parte da população, tanto quem está diretamente ligado às questões educacionais, (pais, alunos e professores), quanto os que indiretamente são atingidos por meios de reflexos, pois, a educação é importante para se construir um mundo sócio-político, econômico e cultural melhor. Além das áreas de atuação os conselhos podem ser analisados a partir de sua função, destacamos as mais importantes na esfera do CME, função deliberativa, quando os conselheiros podem decidir de forma direta sobre matérias específicas e elaborar normas de estruturação das políticas sociais no respectivo âmbito de atuação, e a função consultiva, quando os membros emitem parecer, quanto às questões propostas, que vão influenciar nas decisões que serão tomadas mais a frente, é uma maneira de assessorar as deliberações. O exercício dessas funções permite que, de forma direta, a população possa interferir na construção e tomada de decisão por parte do Estado. Faz-se necessária a existência de discussões dentro desse conselho, pois só assim podemos subentender que está havendo ponderação de direitos, não se preza o consenso rápido e imediato, e sim, a forte deliberação, pois, por ser formado pela sociedade e pelo poder público esse órgão tem por princípio de constituição a representatividade e o respeito às diferentes vontades. Entretanto, não podemos inferir que a existência do conselho efetiva e concretiza de fato a democracia, é preciso analisar a eficácia de sua atuação, “quando se compreende eficácia como capacidade de deliberar, controlar e fazer cumprir suas decisões”. (CARVALHO E TEIXEIRA, 2000, P. 93). Sabe-se que a escolha dos conselheiros não é feita através do voto, dessa forma eles não se sentem obrigados a deliberar e correspondendo anseios sociais como forma de recompensa ao voto. Quanto à representatividade, é difícil assegurar que a escolha dos conselheiros seja democrática, sob a perspectiva da sociedade civil, da mesma forma que os membros não estão sujeitos a quaisquer processos de controle e responsabilização. Os representantes populares nos conselhos não são submetidos a qualquer procedimento de legitimação substantiva, já que não são eleitos pelo voto universal, e por isso não recebem uma delegação explícita, como seria desejável em qualquer regime democrático. (ALVES, 2013, p. 238.) Sendo escolhidos por sua relação com as entidades ou setores da sociedade representados, com os quais devem manter um processo de interlocução permanente, os conselheiros representantes da população devem corresponder com as necessidades apresentadas pelo setor social, já que, estes estão ligados e são beneficiados com as escolhas tomadas. Então, em contraposição ao que foi trazido pelo autor, acreditamos que a escolha dos conselheiros pode beneficiar a efetivação democrática, mas, se esses representantes deliberam conforme sua vontade a eficácia estará será reduzida. Somado a isso, é importante analisar se há um conhecimento por parte da sociedade sobre a existência desse órgão, muitas vezes a falta de eficácia está atrelada ao pouco envolvimento da sociedade civil no conselho, isso pela falta de divulgação das reuniões e da importância funcional do mesmo. CONCLUSÃO A implementação de uma política pública por parte do Estado, faz garantir um direito de cidadania, por meio da participação da sociedade civil, que assegura a manifestação da vontade social ante as decisões da coisa pública. É perceptível que esse direito é um direito político, mas precisamente a democracia, pois: considerando que a democracia só pode acontecer em contextos igualitários, em que as condições de participação e deliberação pública são precedidas por condições materiais assecuratórias de que a esfera pública irá se constituir a partir de atores não meramente formais, os direitos fundamentais sociais se constituem em verdadeira condição material de ocorrência do político. (ALVES, 2013, p. 256).

Dessa forma, podemos olhar para os conselhos municipais de educação e enxerga-los como órgãos que permitem a participação popular e concretizam os direitos dispostos na Constituição Federal, como traz

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Leonardo Avritzer (2009, p. 146) “a criação de conselhos como mecanismo institucional para dar concretude ao direito constitucional à participação, entendida, assim, como a intervenção efetiva da sociedade na formulação, implementação e controle da política pública”. Os conselhos podem ser considerados como uma das mais avançadas formas de exercício da democracia, ele garante a participação e a interferência da população, que por um longo tempo foi agente passiva na política de decisão, e que agora é vista como ativa dentro do processo de formação e tomada de decisão de assuntos que dizem respeito à gestão da coisa pública. Entretanto não podemos nos prender tão somente a existência do conselho, é preciso verificar como está se dando sua atuação e assim, confirmar se a concretização dos direitos sociais é garantida através desse órgão, que permite um diálogo permanente entre a sociedade civil e o poder público. É de grande importância a construção desses conselhos no âmbito municipal, porém, ainda mais valioso é o interesse da sociedade em procurar manter a eficácia desse órgão, seja por meio da fiscalização ou por meio da participação direta dos conselheiros da sociedade civil, que podem garantir essa eficácia deliberando conforme as necessidades da população que tem relação com a área de atuação do conselho. Portanto, os conselhos devem constituir-se “como o espaço legítimo de interlocução e de deliberação, com presença constante nas reuniões, e o devido respeito à autonomia dos membros da sociedade civil”. (AVRITZER, 2009, p. 150) No que diz respeito à eficácia dos conselhos, os grandes obstáculos apresentados são justamente a escolha dos conselheiros e a falta de envolvimento por parte da sociedade civil, é notável ainda que a forte presença autoritária do Estado muitas vezes orienta as relações estatais sociais, esse é um problema presente nas mais diversas formas de efetivação da democracia participativa. Por fim acrescentamos a necessidade de movimentos sociais para a construção de políticas públicas que realmente funcionam, pois, aquelas que veem de forma imposta pelo Estado na maioria das vezes apresentam caráter de anexos da atuação do poder público. A pressão social é responsável também pelas ações do Estado, e quando esse se compromete a atender a demanda social a população deve continuar agindo para que essa ação continue com efeito qualitativo. REFERÊNCIAS ALVES, Fernando de Brito. Constituição e participação popular: a construção histórico-discursiva do conteúdo jurídico-político da democracia como direito fundamental./ Curitiba: Juruá, 2013. AVRITZER, Leonardo. Experiências nacionais de participação social. Cortez Editora, 2009. BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. 4ª edição. São Paulo, Saraiva, 2009; BIANCHINI, Fernando Novelli. Democracia Representativa sob a crítica de Schmitt e democracia participativa na apologia de Tocqueville. Campinas/SP, Millennium, 2014. BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia; uma defesa das regras do jogo. 6ª edição. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1986. DAHL, Robert Alan. Sobre a democracia. Brasília, Universidade de Brasília, 2001. GOHN, Maria da Glória. Conselhos Gestores e Participação Sociopolítica. Cortez São Paulo, 2001. HÄBERLE, Peter. Dignita dell’uomo e diritti social nelle costituzioni degli Stati di Diritto. In: BORGHI, Marco. Costituzione e Diritti Sociali: per um approccio interdisciplinare. Fribourg (Suiça): Institut du fédéralisme, 1990.

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SILVA, De Plácido. Vocabulário jurídico. 31ª edição. Rio de Janeiro, Forense, 2014. SILVA, Frederico Barbosa da, JACCOUD, Luciana, BEGHIN, Nathalie. Políticas Sociais no Brasil: Participação Social, Conselhos e Parcerias. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/sites/000/2/livros/questaosocial/ Cap_8.pdf. Acesso em 06 dez. 2015. SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional positivo. 33ª ed. atual. São Paulo. Malheiros, 2010. SOUZA, Celina. Políticas Públicas: uma revisão de literatura. Sociologias, Porto Alegre, ano 8, n. 16, jul./ dez. 2006. TEIXEIRA, Elenaldo Celso. Efetividade e eficácia dos Conselhos. In: CARVALHO, Maria do Carmo A. A., TEIXEIRA, Ana Cláudia C. (orgs.) Conselhos Gestores de Políticas Públicas. São Paulo, Pólis, 2000. VIEIRA, Evaldo. Políticas sociais e direitos sociais no Brasil. Comunicação & Educação, São Paulo, 1997.

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REAÇÃO LEGISLATIVA FRENTE À JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL NO BRASIL PÓS 88 Eriverton Felipe de Souza Bacharelando em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). Monitor da Disciplina de Direito Constitucional III na mesma Instituição de Ensino. Estagiário da Procuradoria Regional da República da 5ª região.

SUMÁRIO: Introdução; 1. A jurisdição constitucional no Brasil pós 88: breves apontamentos; 2. O Poder Legislativo e a Jurisdição Constitucional: eficácia subjetiva das decisões no controle de constitucionalidade; 3. A reação/superação legislativa; 4. O efeito backlash como impulsionador da reação/ superação legislativa; 5. Considerações finais; Referências

INTRODUÇÃO É de larga sapiência que o Poder Judiciário vem exercendo um protagonismo em relação aos demais Poderes constituídos nas democracias contemporâneas, pelo menos no lado ocidental do globo terrestre, isso vem acontecendo a partir segunda metade do Século XX. Sobretudo no que diz respeito ao exercício da jurisdição constitucional por meio das Cortes Constitucionais ou dos Tribunais Constitucionais. E no Brasil não foi diferente, notadamente após a promulgação da atual Constituição em 1988. Sendo assim, o presente trabalho discute a reação legislativa frente às decisões do controle de constitucionalidade realizado pelo Supremo Tribunal Federal. Buscou-se debater quais os mecanismos utilizados para que haja uma reversão dessas decisões no âmbito do Poder Legislativo. O objetivo deste trabalho é discutir os meios que o Poder Legislativo se utiliza para reverter tais decisões. E quais os limites a serem obedecidos por essas reações. A investigação bibliográfica compõe a principal metodologia utilizada neste trabalho. O tema foi pesquisado em teses, dissertações e artigos disponíveis na internet em revistas especializadas. Bem como se utilizou de livros que tratam direta ou indiretamente sobre a temática. Além de se proceder ao estudo de algumas decisões do STF e os votos de seus ministros. O trabalho começa tratando da jurisdição constitucional e suas características no Brasil pós Constituição de 1988. Segue tratando dos efeitos das decisões no controle de constitucionalidade e sua relação com o Poder Legislativo. Trata também do chamado “ativismo congressual” que nada mais é que a superação legislativa da jurisprudência do STF. E por fim, discute-se o efeito backlash como um impulsionador da reação legislativa. 1. A JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL NO BRASIL PÓS 88: BREVES APONTAMENTOS; Inicialmente convém dizer, em linhas gerais, o que viria a ser a jurisdição constitucional. Entende-se como jurisdição constitucional a outorga de poderes jurisdicionais a determinado órgão, juiz ou tribunal, no afã de conferir a conformidade de um ato normativo com o texto constitucional, que é o centro de onde emana todo o ordenamento jurídico. O controle de constitucionalidade é o meio pelo qual se busca aferir essa conformidade.

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No Brasil vigora um modelo hibrido de controle de constitucionalidade e essa peculiaridade faz com que o modelo vigente aqui seja único. Como dito, o controle de constitucionalidade das leis à brasileira combina aspectos de dois modelos, o desenvolvido nos Estados Unidos da América, chamado de sistema difuso ou concreto, onde qualquer juiz ou tribunal pode declarar a inconstitucionalidade de uma lei. Sendo que nesse caso os efeitos são interpartes. E também combina aspectos do modelo desenvolvido na Europa, idealizado por Hans Kelsen, o sistema concentrado ou abstrato, no qual somente um Tribunal é responsável por declarar a inconstitucionalidade de uma lei. Aqui os efeitos são erga omnes (contra todos) e vinculante. Esse último recebe especial atenção, sobretudo após o advento da Constituição de 1988, porque foi através dela que vieram as inovações que contribuíram para uma expansão da atividade do Judiciário no país, notadamente do Supremo Tribunal Federal (STF). Desde já, alerta-se que esse fenômeno ocorre no mundo todo. Tanto a quantidade de ações do controle concentrado, bem como a variedade de assuntos e o extenso rol de legitimados para propô-las, são fatores que influenciam no ganho de maior atividade do Judiciário em detrimento dos demais poderes. Segundo Luís Roberto Barroso (2014, p.3-4) a jurisdição constitucional compreende duas atuações que são feitas de modo muito particular, A primeira, de aplicação direta da Constituição às situações nela contempladas. Por exemplo, o reconhecimento de que determinada competência é do Estado, não da União; ou do direito do contribuinte a uma imunidade tributária; ou do direito à liberdade de expressão, sem censura ou licença prévia. A segunda atuação envolve a aplicação indireta da Constituição, que se dá quando o intérprete a utiliza como parâmetro para aferir a validade de uma norma infraconstitucional (controle de constitucionalidade) ou para atribuir a ela o melhor sentido, em meio a diferentes possibilidades (interpretação conforme a Constituição). Em suma: a jurisdição constitucional compreende o poder exercido por juízes e tribunais na aplicação direta da Constituição, no desempenho do controle de constitucionalidade das leis e dos atos do Poder Público em geral e na interpretação do ordenamento infraconstitucional conforme a Constituição.

Junte-se a isso outro fenômeno que acontece por aqui, que é a judicialização da política. Este fenômeno faz com que o Tribunal tenha sua atuação expandida para decidir questões que anteriormente eram resolvidas por outros departamentos do poder político, interna corporis. Nas palavras de BARROSO (2014, P. 4) “Judicialização significa que questões relevantes do ponto de vista político, social ou moral estão sendo decididas, em caráter final, pelo Poder Judiciário. Trata-se, como intuitivo, de uma transferência de poder para as instituições judiciais, em detrimento das instâncias políticas tradicionais, que são o Legislativo e o Executivo.” Ainda segundo BARROSO (2014, p.4) as naturezas das causas que explicam o fenômeno da expansão do Poder Judiciário e da Judicialização são diversas, nesse sentido: A primeira delas é o reconhecimento da importância de um Judiciário forte e independente, como elemento essencial para as democracias modernas. Como consequência, operou-se uma vertiginosa ascensão institucional de juízes e tribunais, assim na Europa como em países da América Latina, particularmente no Brasil. A segunda causa envolve certa desilusão com a política majoritária, em razão da crise de representatividade e de funcionalidade dos parlamentos em geral. Há uma terceira: atores políticos, muitas vezes, preferem que o Judiciário seja a instância decisória de certas questões polêmicas, em relação às quais exista desacordo moral razoável na sociedade.

No Brasil o fenômeno ganhou proporções maiores devido às características da própria constituição, a qual é abrangente e analítica, o que gerou a constitucionalização do Direito1. A consequência disso aponta 1  […] constitucionalizar é, em última análise, retirar um tema do debate político e trazê-lo para o universo das pretensões judicializáveis – e do sistema de controle de constitucionalidade vigente entre nós, em que é amplo o acesso ao Supremo Tribunal Federal

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BARROSO (2014, p.6), é que “quase todas as questões de relevância política, social e moral foram discutidas ou já estão postas em sede judicial, especialmente perante o Supremo Tribunal Federal”. Insta diferenciar, neste momento, o fenômeno da judicialização do ativismo judicial, embora não sejam objeto direto deste estudo, mas guardam com ele estreitas relações. A primeira é decorrente do modelo de desenho institucional adotado no Brasil, já este último, em linhas bem gerais, haja vista a dificuldade de sua conceituação, deve ser entendido como uma atitude, uma escolha deliberada do Tribunal de interpretar a Constituição, expandindo seus poderes de atuação. Existe, nesse sentido, uma proatividade. E como bem sabido, o ativismo pode ser tanto liberal quanto conservador. Como decorrência da supremacia constitucional e da supremacia judicial, idealizou-se um dogma de que o STF tem a “última palavra” em termos de interpretação constitucional, ou seja, criou-se uma prevalência da concepção juriscêntrica na interpretação da Constituição. Neste trabalho, parte-se da premissa de que não há última palavra em muitos casos. Entende-se que há de fato um pronunciamento provisório do STF em matéria constitucional que, a depender da matéria veiculada ou da repercussão obtida, pode sofrer uma reversão. Como se pretende demostrar. Obviamente, não se quer esvaziar o importante papel que tem o Tribunal na construção do significado da Constituição. Mas, como adverte SARMENTO (2013, p. 136-137), ”Uma decisão do STF é, certamente, um elemento de grande relevância no diálogo sobre o sentido de uma norma constitucional, mas não tem o condão de encerrar o debate sobre uma controvérsia que seja verdadeiramente importante para a sociedade”. SARMENTO (2013, p.136) ainda afirma que a premissa de o STF ter a “última palavra” lhe parece equivocada tanto sob o ângulo descritivo quanto sob o ângulo prescritivo. Pois para ele, não é verdade que o STF dê sempre a “última palavra” sobre a interpretação constitucional, pelo simples fato, de que em muitos casos não há última palavra. Ainda sobre o tema, assevera o referido autor, Sob o ângulo prescritivo, não é salutar atribuir a um órgão qualquer a prerrogativa de dar a última palavra sobre o sentido da Constituição. Definitivamente, a Constituição não é o que o Supremo diz que ela é. Em matéria de interpretação constitucional, a Corte, composta por intérpretes humanos e falíveis, pode errar, como também podem fazê-lo os poderes Legislativo e Executivo. É preferível adotar-se um modelo que não atribua a nenhuma instituição – nem do Judiciário, nem do Legislativo - o “direito de errar por último”, abrindo-se a permanente possibilidade de correções recíprocas no campo da hermenêutica constitucional, com base na ideia de diálogo, em lugar da visão mais tradicional, que concede a última palavra nessa área ao STF. (SARMENTO, 2013, p. 137)

Nesse sentido, não há se falar em última palavra, o que pode haver, em verdade, é uma estabilização do sentido da constituição. Porque, até aquele momento, em virtude da controvérsia que a envolvia, já que os desacordos não haviam cessado. Além de que, quando se fala em “última palavra” somos remetidos a uma ideia de sobreposição, de imposição de vontade de um Poder sobre o outro. Algo que em um ambiente democrático não parece acertado. Como bem salienta Juliano Zaidan BENVINDO (2014, p.81) A tese a ser defendida é que a própria construção argumentativa de algum Poder ‘detentor da última palavra’ é, por si só, uma afirmação que aparece como discurso por mais poder. Até porque não existe, em uma democracia constitucional, que prima pela cidadania, um órgão que possa arvorar-se o detentor da última palavra.

2. O PODER LEGISLATIVO E A JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL: EFICÁCIA SUBJETIVA DAS DECISÕES NO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE.

por via de ações diretas. ( BARROSO,2014, p.6)

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A eficácia subjetiva das decisões do controle concentrado de constitucionalidade é erga omnes (contra todos) e vinculante, segundo previsão do art. 102, § 2º da CFRB/88. Contudo, tais efeitos dizem respeito relativamente, além dos particulares, aos demais órgãos do Poder judiciário e a Administração Pública, direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal. Dessa forma, caso haja algum descumprimento caberá reclamação perante o STF. Deve-se lembrar também que essas decisões não vinculam o próprio Tribunal que, mais tarde, pode rever o seu posicionamento em virtude de mudanças de ordem econômica , política ou até mesmo social. Inclusive, uma mudança na composição do próprio Tribunal. Conforme se nota, o Poder Legislativo, em sua função típica de legislar, não está vinculado às decisões do STF em sede de controle concentrado. Nessa toada, o Legislativo poderia editar nova lei com o conteúdo idêntico ao que fora declarado inconstitucional pelo STF ou, no exercício do poder constituinte reformador, editar uma emenda à Constituição visando a reversão da jurisprudência da Corte. Isso evita que haja um congelamento da Constituição. E atente-se ao fato de que, nesse caso, não é cabível uma Reclamação. Trata-se exatamente do espaço de livre conformação do legislador, o qual não sofre influencia dos efeitos do controle de constitucionalidade. Essa reação legislativa não necessariamente ocasionará na inconstitucionalidade, de pronto, da emenda ou lei editada. Isso porque, como fora dito a pouco, o legislador tem certa liberdade. E além de que ,existe um potencial epistêmico na reação legislativa que contribui para um diálogo entre os Poderes. É claro que o Legislativo pode não vir a contribuir com um melhor entendimento do texto constitucional. Mas também é verdade que a interpretação dada por ele poderá trazer novas luzes a determinada temática de elevada controvérsia constitucional. A esse respeito, transcreve-se o entendimento de Mariana WILLEMAN (2013, p.II-23), que pontua: De fato, reconhecer que juízes e legisladores ostentam condições de partilhar a interpretação constitucional de maneira dialógica, mediante o estabelecimento de uma relação consideração recíproca para o exercício de tal responsabilidade, representa grande avanço em termos interpretativos e de busca por efetividade da Constituição. E assim o é não apenas porque tais instâncias encontram-se situadas institucionalmente de maneira diversa, mas também porque cada uma delas pode trazer perspectivas distintas e valiosas para os conflitos constitucionais exatamente em função dessas características e responsabilidades institucionais distintas.

Dessa forma, frente à reação/superação legislativa da jurisprudência, existem, dois caminhos a serem tomados pelo STF. Ou o Tribunal revê a sua jurisprudência, acatando os novos argumentos apresentados pelo Legislativo ou o Tribunal reafirma sua jurisprudência, fazendo prevalecer seu entendimento. Não se busca defender a ideia de que o Legislativo tem o poder irrestrito e pleno, ao discordar de uma decisão do STF. Pelo contrário, se quer defender o entendimento de que existe a possibilidade do Tribunal errar, e em isso ocorrendo, o Legislativo também é um importante intérprete da Constituição. O que se quer dizer é que toda e qualquer tentativa de superar a jurisprudência do Tribunal é legítima. Há nesse caso, a devolução ao Legislativo da oportunidade de conformação legislativa. E em assim sendo, assevera ROTHEMBURG (2007), Essa atitude pode não revelar apenas um episódio de teimosia, mas uma reapreciação ponderada da situação, com a consideração dos argumentos tecidos em sede de jurisdição constitucional. Se, após o momento 1, em que o Legislativo editara a norma com a qual expressara sua interpretação da Constituição (no espaço de conformação legislativa dado por esta), o Judiciário, no momento 2, declarara a inconstitucionalidade dessa norma, fazendo a sua interpretação da Constituição, o momento 3 pode aparecer como a síntese de um processo democrático de instrução e reflexão, de avaliação das expectativas da sociedade, em que o Legislativo conclui pelo acerto de sua opção original (momento 1), produz outra norma semelhante ou idêntica àquela, e essa opção é enfim aceita pelo Judiciário.

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A prática da superação das decisões constitucionais do STF mostra-se como um instrumento viável de comunicação das preferências do povo e de seus representantes com o STF. Dessa forma, tem-se uma espécie de accountability e uma abertura do processo de interpretação e aplicação da Constituição (BRANDÃO, 2012, p.304-305). 3. A REAÇÃO/SUPERAÇÃO LEGISLATIVA; Tendo em vista que as decisões do controle de constitucionalidade não vinculam o Poder Legislativo, como já mencionado, então entende-se como natural a ocorrência de uma eventual reação com o objetivo de superar tais decisões. Assim, tem-se a chamada Reação ou superação legislativa da jurisprudência. Reação legislativa ou superação legislativa da jurisprudência é o ato praticado pelo Poder Legislativo em contrariedade às decisões do Supremo Tribunal Federal no controle de constitucionalidade. É o que tem sido considerado como sendo uma espécie de “ativismo congressual”. Sob esse ponto de vista o Congresso Nacional visa reverter as decisões de inconstitucionalidade do STF, onde fiquem evidentes situações de autoritarismo judicial ou comportamento antidialógico, incompatível com a separação de poderes. Pode ocorrer por meio de Emenda à Constituição ou por meio de edição de lei ordinária superadora. Sobre a temática assim se pronunciou o Ministro Luiz Fux (2015, p.4) , relator da ADI 51052: Por uma vertente descritiva, há diversos precedentes de reversão legislativa a decisões do Supremo Tribunal Federal, seja por emenda constitucional, seja por lei ordinária, que per se desautorizariam a concepção de última palavra definitiva. Essa práxis dialógica, além de não ser incomum na realidade interinstitucional brasileira, afigura-se perfeitamente legítima – e, por vezes, desejável –, estimulando prodigioso ativismo congressual, desde que, é claro, observados os balizamentos constitucionais.

De início, pode-se entender que uma situação de autoritarismo judicial ou comportamento antidialógico esteja relacionada com uma decisão classificada de ativista, mas nem sempre uma decisão tida por ativista, necessariamente, significa um autoritarismo judicial ou um comportamento antidialógico, já que muitas vezes esses tipos de decisão visam salvaguardar direitos fundamentais ou proteger as regras do jogo democrático. Ou seja, são decisões necessárias às concretizações de determinados direitos. Na decisão supramencionada o Tribunal buscou delimitar o espaço de conformação do legislador para proceder às correções jurisprudenciais. Para tanto, fez uso de dois argumentos, o primeiro foi de que, do ponto de vista do Estado de direito, não se quer deixar vulnerar o conteúdo da Constituição, e o segundo, do ponto de vista democrático, pretende-se não fossilizar o sentido das disposições constitucionais. Percebe-se que foi o próprio Tribunal o responsável por tornar mais clara as limitações à reação legislativa, baseado em sua própria jurisprudência. A Constituição de 1988 confiou ao STF a faculdade de invalidar qualquer lei ou ato normativo proveniente das instâncias políticas majoritárias. Nesse caso, o Tribunal exerce uma de suas funções que é a contra majoritária. O que sob a ótica formal tornaria o Tribunal o detentor da última palavra. Tudo isso porque, de um ponto de vista democrático, os seus pronunciamentos não se sujeitam a qualquer controle posterior. Ocorre que tal entendimento se mostra equivocado, como bem salienta o Ministro Luiz Fux (2015, p.4) em seu voto, e assevera: Sucede que, a despeito desse arranjo, não se pode advogar que o arquétipo constitucional pátrio erigiu um modelo de supremacia judicial em sentido 2  As disposições impugnadas na referida ADI decorreram de superação legislativa da interpretação conferida pelo Supremo Tribunal Federal ao art. 47, § 2º, II, da Lei nº 9.504/97, nas ADIs 4.430 e 4.795, ambas de relatoria do eminente Ministro Dias Toffoli. Naquela oportunidade, o Plenário deu interpretação conforme ao indigitado preceito da Lei das Eleições, no afã de salvaguardar aos partidos novos, criados após a realização de eleições para a Câmara dos Deputados, o direito de acesso proporcional aos dois terços do tempo destinado à propaganda eleitoral gratuita no rádio e na televisão. Meses depois, o Congresso Nacional editou a Lei nº 12.875/2013, a qual veiculava as disposições combatidas na ADI 5105/DF.

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forte ( ou material), de vez que, além de equivocada, sob a ótica descritiva, não se afigura desejável sob o ângulo prescritivo.

Os mecanismos por meio dos quais o Congresso Nacional pratica esse “ativismo congressual” são as Emendas Constitucionais e as Leis Ordinárias, cada qual com suas limitações. No caso das “emendas superadoras”, essas encontram obstáculos, e poderão ser declaradas inconstitucionais, quando não respeitar as cláusulas pétreas ou o procedimento necessário para a sua aprovação, conforme previsão do art. 60 da CFRB/88. Ou seja, quando houver desrespeito aos limites materiais (cláusulas pétreas) , formais, objetivos e subjetivos, e circunstanciais, aos quais o poder reformador está submetido. Aliás, a exemplo do que já acontece normalmente com as emendas. Sendo que no caso ora apresentado, ela visa superar jurisprudência do STF sobre determinada matéria. Poder-se-ia considerar esse como sendo um caminho mais curto para mudar o entendimento firmado no âmbito do STF que tenha causado alguns dissabores. Ocorre que uma “emenda superadora” não pode simplesmente visar tal objetivo sem que para isso apresente significativas justificativas e excelentes argumentos passíveis de contribuir, verdadeiramente, para a solução mais adequada de determinada controvérsia constitucional. Sob pena de ser taxada de puro revanchismo ou de instrumento na disputa por mais poder político. No que diz respeito aos limites materiais, não fica claro no julgamento mencionado, mas entende-se que tal limitação compreende tanto as cláusulas pétreas explícitas quanto as implícitas. Sobre as “emendas superadora”, WILLEMAN (2014, p. II-16), assim se posiciona: À luz do modelo constitucional brasileiro de 1988, fortemente baseado na supremacia judicial da interpretação constitucional, a resposta do legislativo a uma decisão do STF em matéria constitucional demanda, via de regra, a atuação do poder constituinte derivado, por meio da aprovação de emenda à Constituição. Assim, o Congresso Nacional manifesta sua divergência para com a interpretação conferida pelo STF a uma norma mediante a reforma do próprio parâmetro de controle, com a ressalva de que tal expediente apenas se revela possível nos casos em que não haja qualquer cláusula pétrea envolvida.

Em seu voto na ADI 5105/DF o Ministro busca inventariar todas as hipóteses de reação legislativa pela via das emendas superadoras e para isso enumera alguns casos paradigmáticos como as EC’s 41/20033, 52/20064, 57/20085 e a 58/20096. Todas sofreram uma apreciação posterior perante o tribunal, embora não tivessem sido capazes de mudar a jurisprudência firmada e terem sido declaradas inconstitucionais por violarem os limites há pouco mencionados. Mas serviram como tentativas de promoção de superação da jurisprudência do Tribunal que atestam a ocorrência, legítima, da prática da reação legislativa. Há, porém,

3  [...]a EC nº 41/2003 dispôs expressamente que as vantagens pessoais estariam albergadas no cômputo do teto remuneratório, bem como consagrou a autoaplicabilidade do novo teto, em tentativa de superar o entendimento fixado por esta Suprema Corte, que apontava exatamente em sentido oposto. 4  A mencionada EC estabeleceu a plena e imediata autonomia dos partidos políticos de formarem coligações sem vínculos entre as candidaturas em âmbito nacional, estadual, distrital ou municipal e o Tribunal, na ADI nº 3.685, entendeu pela verticalização das coligações partidárias para as eleições gerais de 2006, prestigiando, em consequência, a interpretação fixada pelo Tribunal Superior Eleitoral ao art. 6º da Lei das Eleições, materializada na Resolução nº 21.002/2002 (STF, ADI nº 3.685, rel. Min. Ellen Gracie, DJ de 10/08/2006). 5  Referida emenda exsurgiu no contexto em que reconhecida, pelo STF1, a inertia deliberadi do Congresso Nacional para promulgar a Lei Complementar, a que se refere o art. 18, § 4º, da CRFB (redação dada pela EC nº 15/96), que deveria disciplinar os critérios de criação dos municípios. 6  A Emenda Constitucional nº 58/2009 também representa hipótese de correção legislativa, na medida em que objetivou superar a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal no RE nº 197.917/SP, rel. Min. Maurício Corrêa (Caso Mira Estrela) e, posteriormente, na ADI nº 3.345, rel. Min. Celso de Mello.

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outros casos em que houve a buscada reversão jurisprudencial, são exemplos as emendas 19/19987, 29/20008 e 39/20029. E como não houve ofensas aos limites já mencionados, não restou alternativa ao Tribunal que não a de aceitar a manifestação legítima, do Poder Constituinte reformador como tendo o argumento mais adequado. Em se tratando das leis ordinárias superadoras, essas deverão comprovar que as premissas fáticas e/ ou jurídicas sobre as quais se fundaram a decisão do STF no passado, deixaram de existir. Nesse último caso, em que há colisão com a jurisprudência do Supremo, a lei nasce com uma presunção relativa de inconstitucionalidade que deverá ser aferida por meio próprio, embora mais rigoroso, e não tida por inconstitucional de pronto, tendo em vista o potencial construtivo da espécie. Quando se tratar de lei ordinária superadora como assevera FUX (2015, p.17) “caberá ao legislador o ônus de demonstrar, argumentativamente, que a correção do precedente se afigura legítima”. Deve-se atentar ao fato de que se assim proceder, o Legislativo poderá contribuir para que haja uma mudança de entendimento jurisprudencial ou pode ser que a lei superadora sirva apenas para que o Tribunal possa confirmar que o seu argumento é o mais acertado. O que não se pode negar é esse ambiente de diálogo entre os Poderes. Esse também é o entendimento adotado por Rodrigo BRANDÃO (2012, p.302), in verbis: Desta forma, tanto na hipótese de lei idêntica à declarada inconstitucional pelo STF quanto na de lei que veicule interpretação constitucional diversa da atribuída pelo STF, deveria o Tribunal reexaminar o conteúdo das novas leis, podendo manter o seu entendimento anterior (declarando, portanto, a inconstitucionalidade das leis) ou aderir às novas razões trazidas pelo legislador( pronunciando, assim, a sua constitucionalidade). Contudo, tais leis nasceriam presunção relativa de inconstitucionalidade, diante da sua incompatibilidade com a atual interpretação constitucional do STF.

O relator também menciona um caso paradigmático em que a reação se deu por meio de lei ordinária, como é o caso da Lei nº 10.628/200210 que tivera sua constitucionalidade questionada na ADI 2797, DJE 19/12/2006, cuja relatoria coube ao Ministro Sepúlveda Pertence. O caso merece tal destaque porque na ocasião de seu julgamento foram apresentados vários argumentos e fundamentos, os quais tornam evidente que ao legislador é franqueada a capacidade de interpretação da Constituição, a despeito de decisões de inconstitucionalidade do STF. Da análise dos citados diplomas, o Ministro relator chega a seguinte conclusão:

7 “Por meio da Emenda Constitucional n. 19/98, conhecida como ‘reforma administrativa’, o legislador constituinte derivado claramente pretendeu revisitar a interpretação conferida pelo STF à abrangência do denominado teto remuneratório do funcionalismo público. Isso porque, de acordo com a jurisprudência firmada pelo Supremo Tribunal no julgamento da ADI n. 14, não deveriam ser computadas, para fim de aferição do teto previsto no artigo 37, inciso XI, da CRFB, as vantagens de caráter pessoal. Em resposta, a Emenda Constitucional n. 19/98, dentre outras providências, alterou a norma para deixar expresso que as referidas vantagens de índole pessoal incluem-se no limite máximo remuneratório.” WILLEMAN (2014 p. II-17) 8  “Da mesma forma, a Emenda n. 29/2000 traduziu inequívoca reação legislativa à jurisprudência firme do STF no sentido da inconstitucionalidade de alíquotas progressivas de IPTU que levassem em consideração a capacidade econômica do contribuinte. De acordo com o pacífico entendimento da Corte, sendo o IPTU um imposto de natureza real, a progressividade de suas alíquotas não poderia decorrer de critérios atinentes à capacidade econômica do contribuinte, admitindo-se a progressividade apenas para o fim extrafiscal de assegurar o cumprimento da função social da propriedade (à luz do artigo 182, §4º, inciso II, da CRFB).” WILLEMAN (2014, p. II-17) 9 “ Por fim, também a Emenda Constitucional n. 39/2002 pretendeu reverter um posicionamento do STF, novamente em matéria tributária. Tratava-se, dessa vez, de descontentamento com os precedentes – sumulados no Enunciado n. 67049 – do Tribunal que rejeitavam a possibilidade de o serviço de iluminação pública ser custeado por meio de taxa. Como forma de contornar o entendimento consolidado, aprovou-se a referida emenda que expressamente passou a contemplar a possibilidade de instituição de contribuição para o custeio do serviço de iluminação pública – em franca reação à jurisprudência constitucional que considerava que o serviço deveria ser suportado por meio da receita de impostos.” WILLEMAN (2014, p. II-18) 10  Mencionado diploma alterou o art. 84, §§ 1 e 2º, do Código de Processo Penal, a fim de restabelecer o foro por prerrogativa de função a ex-detentores de cargos ou mandatos eletivos. À época, a orientação consolidada na Corte era no sentido de que o término do mandato implicaria, consequentemente, a perda do foro aos ex-ocupantes de cargos político-eletivos, orientação firmada pelo STF no julgamento da Questão de Ordem no Inquérito nº 687, rel. Sydney Sanchez, DJ de 25/08/1997, e que culminou, como todos sabem, com o cancelamento da Súmula nº 394. Na ocasião, o referido diploma foi declarado inconstitucional por apresentar vício formal.

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[...] (i) o Tribunal não subtrai ex ante a faculdade de correção legislativa pelo constituinte reformador ou legislador ordinário, (ii) no caso de reversão jurisprudencial via emenda constitucional, a invalidação somente ocorrerá, nas hipóteses estritas, de ultraje aos limites preconizados pelo art. 60, e seus §§, da Constituição, e (iii) no caso de reversão jurisprudencial por lei ordinária, excetuadas as situações de ofensa chapada ao texto magno, a Corte tem adotado um comportamento de autorrestrição e de maior deferência às opçõespolíticas do legislador. Destarte, inexiste, descritivamente, qualquersupremacia judicial nesta acepção mais forte. ( ADI 5105-DF,2015, p.10)

Há de se pontuar a diferença existente entre uma emenda constitucional superadora e uma lei ordinária superadora, além de se tratarem de espécies normativas distintas. Na primeira há uma alteração formal, tendo em vista que esse é o mecanismo habitual por meio do qual o Poder Constituinte reformador se manifesta e mantém a Constituição atualizada, enquanto na segunda há uma alteração interpretattiva do sentido que fora atribuído a determinada norma pelo Tribunal, ou seja, uma mutação constitucional por iniciativa do legislador11. A esse propósito, assim se pronunciou BRANDÃO (2012, p.307), in verbis: Note-se, porém, que há diferenças significativas em relação à reversão da jurisprudência do STF por emenda constitucional e por lei ordinária. Na primeira hipótese, há alteração formal da Constituição ,de maneira que ao alterar-se o dispositivo constitucional interpretado pelo STF, modifica-se a interpretação final.

O ministro FUX (2015, p.17), baseado na doutrina de Conrado Hübner Mendes, concebe o STF como um catalisador deliberativo quando se funda em premissa dialógica e plural de interpretação da Constituição. Dessa forma, promove uma interação e o diálogo institucional, maximizando a qualidade democrática na obtenção dos melhores resultados no que diz respeito à apreensão do significado da Constituição. E como bem saliente WILLEMAN (2013, p.II-22), Não parece legítimo, portanto, simplesmente coarctar a atuação legislativa e presumir, antecipadamente, que toda e qualquer lei “corretiva” será inevitavelmente inconstitucional por contrariar a “última palavra” ditada pela Corte Constitucional. Muito pelo contrário, se o legislador ordinário manifesta divergência com a interpretação conferida pelo STF em determinado tema constitucional, essa circunstância não pode ser, de plano, ignorada, merecendo ser encarada como uma forma de se fazer instaurar uma dialética que atue em prol do desenvolvimento do direito constitucional.

Como já fora dito, existe um potencial construtivo na reação/superação legislativa. Isso significa que o fato de haver a colaboração de dois atores, Legislativo e Judiciário, na busca da democratização da construção do sentido da constituição, pode-se chegar a uma solução mais adequada. A esse propósito, registra Mariana WILLEMAN (2013, p. II -22), A compreensão ora preconizada acerca do fenômeno da reação ou da resposta legislativa à jurisprudência constitucional busca enfatizar o potencial construtivo que divergências interpretativas naturalmente apresentam e, nesse sentido, procura maximizar a dinâmica dialógica da jurisdição constitucional criando espaços que propiciem a formulação de melhores respostas para as questões constitucionais, combinando as perspectivas de variados atores de forma a se alcançar equilíbrio em relação ao significado constitucional.

11  “Não se pode desconsiderar a hipótese de o Supremo restar convencido de ter cometido um erro no julgamento anterior, diante da insistência e, especialmente, das novas razões expostas pelo Legislativo. Tratar-se-ia, no caso, de mutação constitucional por iniciativa do legislador, já que o sentido da norma constitucional teria mudado, sem alteração do seu texto, por provocação do legislador.” (BRANDÃO, 2012, p.306)

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4. O EFEITO BACKLASH COMO IMPULSIONADOR DA REAÇÃO/ SUPERAÇÃO LEGISLATIVA; Este ponto do trabalho pretende discutir a partir de qual momento e por quais razões estaria o Congresso Nacional autorizado a buscar a superação de uma decisão proferida pelo STF no controle de constitucionalidade. As decisões do STF, como já fora dito, produzem efeitos para além do mundo jurídico, elas também têm desdobramentos políticos e sociais. Da mesma forma, como já fora mencionado, além de ser o órgão de cúpula do Poder Judiciário brasileiro, o STF é um Tribunal Constitucional e como tal, tem atuação política. Sendo assim, o que autorizaria o Congresso Nacional a reagir de modo a reverter o que fora decido no âmbito daquele Tribunal? Do ponto de vista democrático, essa reação seria legítima? Vimos que sim, essa reação é legítima. Mas quais as motivações que levariam a uma eventual reação legislativa? Algo que pode ser considerado um motivador para que se opere a referida reação legislativa é o que o constitucionalismo democrático norte-americano12 chamou de Efeito Blacklash13 14. O Backlash é uma forma de resistência contra decisões judiciais que divergem profundamente dos anseios do povo e expressa o desejo desse povo, que é livre, de influenciar o conteúdo de sua constituição (POST, SIEGAL, 2007 p; 376). Como salientam Robert Post e Reva Siegal (2007, p. 374), “If courts interpret the Constitution in terms that diverge from the deeply held convictions of the American people, Americans will find ways to communicate their objections and resist judicial judgments.”15 Nas palavras de Mariana Montebello WILLEMAN ( 2013, p.5), o efeito Backlash deve ser “[…] assim considerado, no contexto do direito constitucional, o movimento de intensa reprovação ou rejeição de uma decisão judicial, acompanhado da adoção de medidas de resistência tendentes a minimizar ou a retirar sua carga de efetividade.”. Deve-se salientar que a resistência por traz do efeito backlash não alcança toda e qualquer decisão judicial, é preciso esclarecer que são as decisões proveniente das Cortes ou Tribunais Constitucionais e que tenham alta carga de controvérsia constitucional. O estudo do efeito backlash não é uma total novidade no cenário internacional, pois o fenômeno da reação social ou institucional a uma decisão originária do Tribunal Constitucional tem merecido especial atenção na elaboração doutrinária americana dedicada ao estudo desse fenômeno (VALLE, 2015). O Backlash desempenha uma importante função, pois desconstrói a presunção usualmente aceita de que as decisões judiciais em matéria constitucional devem ser objeto de deferência sem protesto do Poder Legislativo (WILLEMAN, 2013, p.6). Nesse sentido, reconhece-se que o povo pode influenciar no conteúdo da Constituição, como dito, através seja da sociedade civil organizada, da opinião pública, de agentes governamentais ou de seus representantes no Poder Legislativo. Aliás, esses últimos, por excelência legítimos representante do povo, com grandes chances de colher bons resultados na construção do significado da 12  “A premissa sobre a qual se baseia o constitucionalismo democrático considera que a autoridade da Constituição depende de sua legitimidade democrática, ou seja, de sua capacidade para fazer com que seus destinatários a reconheçam como a sua constituição. Nessa linha de raciocínio, eventuais resistências a interpretações judiciais podem atuar em fortalecimento da legitimidade democrática da Constituição e, portanto, a partir de tal perspectiva, o fenômeno do backlash ostenta um potencial construtivo que não deve ser ignorado.”( WILLEMAN, 2013, p.7) 13  “É de Stern (1965, p. 156-157), ainda na década de 60, o registro da rotinização do emprego da palavra backlash na arena política norte-americana a partir de reações às decisões da Suprema Corte envolvendo a proteção a direitos civis havidas na década de 60. Post e Siegel (2007, p. 1-66) por sua vez apontam que a expressão passou a designar contra forças libertas por mudanças tidas por verdadeira ameaça ao status quo numa reprodução bastante fiel ao conceito metajurídico acima exposto.” (VALLE, 2013) 14  “No plano coloquial, a palavra backlash tem como significado primário um súbito e intenso movimento de reação, em resposta a uma mudança igualmente brusca na trajetória do movimento. O conceito inicial tem origem na física, aludindo à dinâmica, e se identifica com a enunciação da terceira Lei de Newton - a toda ação corresponde uma reação igual e em sentido contrário. Esse mesmo princípio se viu transposto para a realidade social, igualmente associado a uma forte e violenta reação a uma mudança também intensa e expressiva no ambiente, nas regras de convívio, etc. A transposição desse significado verdadeiramente naturalístico da palavra para o campo do direito foi um desdobramento natural de sua incorporação ao universo de relações humanas: mudanças bruscas num padrão de comportamento têm a aptidão de determinar reação de mesma intensidade, no mais das vezes em sentido contrário.” (VALLE, 2013) 15  Tradução Livre “Se a corte interpreta a Constituição de modo que divirja profundamente das convicções mantidas pelo povo americano, eles podem encontrar maneiras de expressar suas objeções e resistir às decisões judiciais.”

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Constituição, haja vista os mecanismo que tem a sua disposição (emendas constitucionais e leis ordinárias superadora) e a possibilidade de trazer novos argumentos à discussão constitucional. De acordo com George Marmelstein (2015), o efeito backlash é uma espécie de efeito colateral das decisões judiciais constitucionais polêmicas, decorrente de uma reação do poder politico contra a pretensão do poder judiciário de controla-lo. Assim resume o autor o processo do efeito backlash:  (1) Em uma matéria que divide a opinião pública, o Judiciário profere uma

decisão liberal, assumindo uma posição de vanguarda na defesa dos direitos fundamentais. (2) Como a consciência social ainda não está bem consolidada, a decisão judicial é bombardeada com discursos conservadores inflamados, recheados de falácias com forte apelo emocional. (3) A crítica massiva e politicamente orquestrada à decisão judicial acarreta uma mudança na opinião pública, capaz de influenciar as escolhas eleitorais de grande parcela da população. (4) Com isso, os candidatos que aderem ao discurso conservador costumam conquistar maior espaço político, sendo, muitas vezes, campeões de votos. (5) Ao vencer as eleições e assumir o controle do poder político, o grupo conservador consegue aprovar leis e outras medidas que correspondam à sua visão de mundo. (6) Como o poder político também influencia a composição do Judiciário, já que os membros dos órgãos de cúpula são indicados politicamente, abre-se um espaço para mudança de entendimento dentro do próprio poder judicial. (7) Ao fim e ao cabo, pode haver um retrocesso jurídico capaz de criar uma situação normativa ainda pior do que a que havia antes da decisão judicial, prejudicando os grupos que, supostamente, seriam beneficiados com aquela decisão.

O autor associa a ocorrência do efeito backlash ao ativismo judicial, para ele o referido efeito ocorre a medida em que o Tribunal decide de modo mais liberal. Acredita que haverá sempre uma reação conservadora a essa decisão ativista. De modo que, do seu ponto de vista, uma decisão ativista é sempre liberal e uma reação ou superação legislativa é sempre conservadora. Em que pese o brilhantismo e a inteligência do autor, tal entendimento não merece prosperar, pois olvidou o mesmo que existe o ativismo liberal e o ativismo conservador. Assim, nem sempre uma reação/superação legislativa será conservadora. Um outro importante aspecto do efeito backlash é que a possibilidade de sua ocorrência pode ser levado em consideração pelos Tribunais e Cortes constitucionais como um mecanismo influenciador nas suas decisões. Desse modo, tendo em vista os vários efeitos causados pelas decisões no judicial review, entre eles o backlash, o Tribunal poderá ter uma postura mais ativa ou mais minimalista a depender do grau do efeito backlash que elas podem causar. Convém destacar que no Brasil o efeito backlash tem ocorrido, sobretudo como resposta ao aumento do protagonismo judicial exercido pelo STF. Mas por uma questão de espaço e por não ser o principal objeto do presente trabalho, não será aprofundado. CONSIDERAÇÕES FINAIS O presente trabalho demonstrou que não é acertado se falar em “última palavra” sobre a interpretação da Constituição, pelo menos não materialmente. E que as decisões do controle de constitucionalidade não vinculam o legislador a ponto de impedi-lo de buscar reverter a jurisprudência do STF no controle de constitucionalidade. Também ficou demonstrado que além de legítima, a prática da reação legislativa buscando reverter a jurisprudência do STF, é um instrumento viável de comunicação das preferências do povo e de seus representantes com o Tribunal. Registra-se da mesma forma que existe um potencial epistêmico quando ocorre a reação legislativa. E por fim, entendeu-se que o efeito backlash pode ser tido como um fator impulsionador para que haja uma eventual reação legislativa.

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Em conclusão, o propósito principal deste trabalho foi discutir, sem pretensão exaustiva, os mecanismos que o Poder legislativo se utiliza para reagir à jurisdição constitucional. Bem como a potencialidade dessa reação para o fortalecimento de um quadro de diálogo entre os Poderes Legislativo e Judiciário, notadamente sobre o sentido da Constituição. Verificou-se que tanto por meio de emenda constitucional quanto pode meio de lei ordinária, essa reação pode ocorrer, e as vezes de modo eficiente, vindo a contribuir significativamente para a construção do significado da Constituição.. E que há limitações para ambas as espécies normativas no que diz respeito ao tema por elas tratados. REFERÊNCIAS BARROSO, Luís Roberto. Jurisdição constitucional: a tênue fronteira entre o direito e a política. Disponível em : Acessado em : 03/12/2015. BENVINDO, Juliano Zaidan. A última palavra, o poder e a história. Ano 51 Número 201 Jan./Mar.. 2014 BRANDÃO, Rodrigo. Supremacia Judicial versus diálogos constitucionais: a quem cabe a última palavra sobre o sentido da constituição? Rio de Janeiro; Lumen Juris, 2012. BRASIL. Constituição Federal da República Federativa do Brasil de 1988. Promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em . Acessado em 03/01/2016. _________. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5105/ DF. Relator: Min. LUIZ FUX, Data de Julgamento: 1/10/2015, Tribunal Pleno, Informativo nº 801. MARMELSTEIN, George. Efeito Backlash da jurisdição Constitucional: reações políticas à atuação judicial. < http://direitosfundamentais.net/2015/09/05/efeito-backlash-da-jurisdicao-constitucional-reacoes-politicas-a-atuacao-judicial/> Acessado em 22/12/15. POST, Robert C.; SIEGEL, Reva B. Roe Rage: democratic constitutionalism and backlash. Faculty Scholarship Series. Paper 169 (2007). Disponível em: http://digitalcommons.law.yale.edu/fss_papers/169. ROTHEMBURG, Walter Claudius. “A dialética da democracia: entre legisladores e jurisdição constitucional”, do livro “Direitos humanos e democracia”, coordenado por Clèmerson Merlin Clève, Ingo Wolfgang Sarlet e Alexandre Coutinho Pagliarini (Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 429-440 – ISBN 978-85-3092488-1) SARMENTO, Daniel. DE SOUZA NETO, Claudio Pereira. Notas sobre jurisdição constitucional e democracia:

a questão da”última palavra” e alguns parâmetros de autocontenção judicial – ANO 2013 - Revista Quaestio Iuris - vol.06, nº02. ISSN 1516-0351. Disponível em :< http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/quaestioiuris/article/view/11773> Acessado em :20/01/2016

VALLE, Vanice Regina Lírio do. Backlash à decisão do Supremo tribunal Federal: pela naturalização do dissenso como possibilidade democrática. Disponível em: < https://www.academia.edu/5159210/ Backlash_%C3%A0_decis%C3%A3o_do_Supremo_Tribunal_Federal_pela_naturaliza%C3%A7%C3%A3o_ do_dissenso_como_possibilidade_democr%C3%A1tica > acessado em : 20/01/2015. WILLEMAN, Marianna Montebello. Constitucionalismo democrático, backlash e resposta legislativa em matéria constitucional no brasil. Nº 33 – janeiro/fevereiro/março de 2013 – Salvador – Bahia – Brasil - ISSN 1981-187X.

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NEGOCIADO X LEGISLADO: O DIREITO DO TRABALHO EM PERIGO

Fábio Túlio Barroso Advogado. Pós-Doutor em Direito pela Universidad de Granada, Espanha. Doutor em Direito pela Universidad de Deusto, Bilbao, Espanha. Especialista em Direito do Trabalho pela Universidade Católica de Pernambuco-UNICAP. Presidente Honorário da Academia Pernambucana de Direito do Trabalho - APDT. Membro Efetivo do Instituto de Advogados Brasileiros - IAB. Membro Efetivo do Instituto de Advogados de Pernambuco – IAP (Presidente da Comissão de Direito e Processo do Trabalho). Membro da Asociación Española de Salud y Seguridad Social. Professor da Universidade Católica de Pernambuco–UNICAP (Graduação e PPGD). Professor da Faculdade de Direito de Recife - FDR, da Universidade Federal de Pernambuco - UFPE. Professor da Faculdade Integrada de Pernambuco - FACIPE. Líder do grupo de pesquisa Efetividade das Normas Trabalhistas na Pós-modernidade.

SUMÁRIO: Introdução; 1. Contextualização - Disciplinamento da matéria trabalhista; 2. A subversão do Direito do Trabalho; 3. Conclusão; Referências Bibliográficas.

INTRODUÇÃO Como o presente texto tem-se como perspectiva expandir o debate sobre tema atual nas relações de trabalho, cuja ideia mais recente é a aplicação da regulamentação da matéria por meio de negociação coletiva, impondo um novo panorama em que o conteúdo do que for negociado possui maior segurança jurídica do que o legislado, supostamente. A regulamentação autônoma coletiva possui limites e finalidades presentes na estrutura trabalhista e precisa de discussões com maior acuidade, evitando que se tenha como resultado a afronta ao princípio do não retrocesso social. Logo, serão abordados vários elementos de discussão, perpassando o elemento formal e o político-jurídico para que seja possível contribuir e enriquecer o debate. 1. CONTEXTUALIZAÇÃO – DISCIPLINAMENTO DA MATÉRIA TRABALHISTA. Os Direitos sociais nascem na maioria das vezes de demandas e pressões sociais. Com o Direito do Trabalho não foi diferente. Com a revolução industrial e as precárias condições de trabalho que os obreiros eram submetidos, aliado ao abstencionismo estatal e ao contratualismo que permitia que trabalhadores e donos dos meios de produção estabelecessem as regras do pacto laboral, não demorou muito para que houvesse uma insatisfação generalizada que colocou em risco a continuidade da sociedade capitalista. Em uma relação em que os sujeitos são naturalmente desiguais, a igualdade formal não pode ser mantida, em face do natural desequilíbrio da igualdade material.

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Cabe o registro ainda que nas sociedades burguesas do período inicial da revolução industrial, havia o fomento à liberdade individual, com repressão por parte do Estado à liberdade coletiva, motivo pelo qual o associativismo era caracterizado como delito. (SORIA, José Vida e outros, 2011, pág. 17) Destaca-se neste universo de situações políticas e normativas o Combination Act, 1799, no Reino Unido, o Código Penal de Napoleão, em 1810, na França, o Codice Penale Sardo, 1859, na Itália, dentre outras normas, que foram emitidas pelos países, que tinham além do ideal liberal a realidade industrial em plena expansão. Contudo, a mais contundente de todas, foi a Lei le Chapelier, de 1791 na França, que caracterizou as corporações como atentatórias aos direitos do homem e do cidadão. (BARROSO, Fábio Túlio. 2010, págs. 24 e 25)

Logo, o ambiente produtivo era desprovido de regulamentações estatais no sentido de limitar a utilização da mão de obra assalariada, que assumia o risco da atividade empresarial junto com o empreendedor, em uma condição sub-humana de prestação de serviços1. Não obstante, a classe trabalhadora passa a ser reconhecida como sujeito coletivo, sobretudo por meio de elementos ideológicos, como o Manifesto do Partido Comunista de Carl Marx e Friederich Engels de 1848, cujo panfleto proclamava a classe trabalhadora à união e à reforma da sociedade, sem que houvesse mais a exploração dos trabalhadores naquelas condições degradantes. Como aparecimento de uma sociedade de classes, duas obras são de fundamental importância para entender os fenômenos consequentes e a sociedade do trabalho que se instaura a partir de então: O Manifesto do Partido Comunista, de Marx e Engels, em 1848 e a Encíclica Rerum Novarum, do Papa Leão XIII, em 1891.Ambos documentos relatam a situação e a necessidade de mudanças no ambiente do trabalho. O Manifesto do Partido Comunista serve como um instrumento ideológico de agregação da classe trabalhadora contra a exploração proporcionada pelo capitalista. Propõe a extinção da sociedade de classes e o fim do Estado burguês, por meio da tomada do poder e a administração dos meios de produção pelos próprios trabalhadores. O fim do capitalismo.Já a encíclica Rerum Novarum, critica a situação absurda que os trabalhadores eram submetidos, pleiteando uma alteração da forma de utilização da mao de obra, de forma predatória ao passo que criticava as medidas marxistas. (BARROSO, Fábio Túlio. 2010, págs. 26).

Obviamente que a organização dos trabalhadores se sobrepõe a elemento meramente ideológico, mas a união de interesses levou à exigência de reconhecimento de condições dignas de trabalho, o que paulatinamente foi sendo reconhecido pelos Estados industrializados, ao admitir as demandas sociais presentes nas relações de trabalho e suas representações por meio de entidades de classe (CARINCI, Franco e outros, 2015, pág. 30). Na Inglaterra, em 1824, com a criação de entidades coletivas de representação de classes e em 1871, com o Trade Union Act, proporciona-se o movimento sindical mais antigo do mundo. Na França, a lei Waldeck-Russeau de 1884 revoga a lei le Chapelier. Na Alemanha, o Código Industrial Prussiano de 1869, admite associação profissional e em 1919, a Constituição de Weimar expande garantias sociais aos trabalhadores, possibilitando a liberdade de associação profissional e econômica . A Constituição do México, mesmo sem ser um país do centro do sistema capitalista industrial, inova em 1917, sendo o primeiro diploma constitucional a tratar das condições de Trabalho, com proteção ao trabalho assalariado e à organização coletiva de trabalhadores. (BARROSO, Fábio Túlio. 2010, págs. 26)

1  Sobre as condições de trabalho e discussões sobre o porvir das relações industriais, sugere-se a leitura da obra clássica Germinal, de Emile Zola. São Paulo, Martin Claret, 2006.

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Ocorre que finalmente em 1919, se tem a sistematização do Direito do Trabalho como disciplina jurídica, com a criação da Organização Internacional do Trabalho – OIT, no Tratado de Versalhes, que estabeleceu um padrão internacional de comportamentos entre os sujeitos da relação de trabalho, seja no âmbito individual, seja coletivo. Sendo assim, com o intervencionismo estatal cria-se uma sistematização de normas mínimas de proteção social aos trabalhadores para a utilização no âmbito do contrato de trabalho, podendo ser melhorada por meio de elementos negociais presentes nas normas coletivas, que por sua vez, deverão estabelecer condições de trabalho específicas e mais favoráveis aos trabalhadores, que aqui no Brasil são as convenções e os acordos coletivos de trabalho. Desde el entedimiento de la naturaleza contradictória del Derecho del Trabajo, ésta, al legalizar a la clase obrera, expresa la explotación de la fuerza de trabajo y la represión de la acción obrera, al mismo tiempo que expresa y legaliza esta lucha y las ventajas que ha permitido conquistar. La tesis central se resume en la idea de que el Derecho del Trabajo, tal y como existe hoy en los países del capitalismo maduro, es esencialmente Derecho del capitalismo, sector específico del orden jurídico de una sociedad altamente compleja y “pluriconflictual”. (...) el Derecho del Trabajo participa en la misma constitución de las relaciones de producción: expresa y “codifica” las relaciones de producción al mismo tiempo que las enmascara y posibilita su reproducción. (...) el ordenamiento laboral es, asimismo, un elemento y una apuesta de la acción de la clase obrera contra el orden capitalista, y un elemento de lucha de la clase dominante contra la acción de los trabajadores (PÉREZ, José Luis Monereo, 1996, págs. 24 e 25).

Ou seja, o Direito do Trabalho como disciplina jurídica consegue manter a ordem econômica vigente como elemento de manutenção da ordem e da continuidade das relações produtivas, estabelecendo condições mínimas de dignidade e de inserção do trabalhador na dinâmica do sistema econômico, ao passo que, ao reconhecer as entidades representativas de classe, os sindicatos, permite e fomenta um constante diálogo entre os representantes de cada lado da sociedade do trabalho como elemento de pacificação, conhecimento recíproco e redução de conflitos sociais, tudo isso dentro da legalidade: limita o conflito de interesses na perspectiva de implementar uma ordem civilizatória. Evidenciou-se inquestionável, em suma, que a existência de um sistema desigual de criação, circulação e apropriação de bens e riquezas, com um meio social fundado na diferença econômica entre seus componentes (como o capitalismo), mas que convide com a liberdade formal dos indivíduos e com o reconhecimento jurídico-cultural de um patamar mínimo para a convivência na realidade social (aspectos acentuados com a democracia), não pode mesmo desprezar ramo jurídico tão incrustado no âmago das relações de trabalho. (DELGADO, Maurício Godinho, 2015, pág. 104).

Ou seja, o Direito do Trabalho por meio de suas normas estabelece elementos mínimos de proteção social ao trabalhador e estabilidade econômica ao empregador, devendo, em regra, melhorar estas condições mínimas por meio do negociado, que é acessório do legislado. Apenas excepcionalmente, quando o legislador permitir, é que poderá haver a redução destas garantias mínimas previstas em lei ao trabalhador, como no caso das normas do art. 7º, VI, XIII e XIV da Constituição da República. 2. A SUBVERSÃO DO DIREITO DO TRABALHO. Pois bem, pautado o Direito do Trabalho como instrumento mínimo de inserção social com dignidade do trabalhador na dinâmica do sistema capitalista, tem-se uma sistematicidade normativa e principiológico que estabelece os limites mínimos desta proteção social.

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A negociação coletiva é fomentada pelo Estado, pautado em valores de tutela aos hipossuficientes como forma de equilíbrio das relações materiais pelo formalismo legal. Assim, tem-se nos artigos 7º, XVI, 8º, VI, ambos da Constituição da República e 611 e seguintes da CLT os elementos que propiciam a criação de condições específicas e mais favoráveis para os trabalhadores por meio de procedimentos negociais, que deverão ser formalizados nas convenções ou acordos coletivos de trabalho. Estas normas autônomas coletivas servem como instrumento de ratificação da vontade social do Estado, reconhecendo que o legislado é o mínimo assegurado e que o negociado assegurará a melhoria da condição social do trabalhador, como previsto e programado na carta maior. Tal projeção para as normas coletivas deverá ser sistematicamente respeitado e coadunado com os princípios do Direito do Trabalho, em especial, o da indisponibilidade de suas normas. O princípio da indisponibilidade dos direitos ou da irrenunciabilidade de direitos baseia-se no mandamento nuclear protetivo segundo o qual não é dado ao empregado dispor (renunciar ou transacionar) de direito trabalhista, sendo, por conta disso, nulo qualquer ato jurídico praticado contra esta disposição. Tal proteção, que em última análise, visa proteger o trabalhador das suas próprias fraquezas está materializada em uma série de dispositivos da CLT, entre os quais se destaca o seu art. 9º. Esta atuação legal impede que o vulnerável, sob a miragem do que lhe seria supostamente vantajoso, disponha dos direitos mínimos que a custa de muitas lutas históricas lhe foram asseguradas nos termos da lei. (MARTINEZ, Luciano, 2013, pág. 108)

Ou seja, o conteúdo mínimo previsto em lei não poderá ser modificado, salvo o já previsto na Constituição, pois a disponibilidade na aplicação da norma trabalhista retira a sua função social de proteção ao hipossuficiente. Nessa esteira, fica nítido que qualquer proposta que venha a desvirtuar o elemento tutelar do Direito do Trabalho, acaba por desqualificar ou desconstituir sua estrutura normativa e principiológica, em defesa de interesses que desestabilizam a regulação do trabalho sob um supedâneo mínimo de proteção e equilíbrio social. Em momentos de crise como a que o país passa no momento, são vários os argumentos, boa parte deles falaciosos, que a flexibilização das normas trabalhistas trará mais empregos, proteção social e segurança jurídica, dando protagonismo à negociação coletiva para a sua implementação, clamando por uma “modernização” das relações de trabalho. De logo, o sindicato em sua função representativa não possui ferramentas éticas e legais para disponibilizar o direito em que é mero representante, consonante norma fundamental prevista no art. 8º, III da Constituição. Por sua vez, a CLT é uma dos diplomas mais atualizados, com menos de 20% do seu conteúdo original. O desvirtuamento das funções sindicais para que possa negociar o direito dos trabalhadores, no sentido de disponibilizar a sua aplicação vai no sentido unívoco de potencializar a autonomia privada coletiva e reduzir o poder e a eficácia das normas legisladas, que passam a ser meros dispositivos ou instrumentos de combinação de interesses, de acordo com o momento econômico e político que o país atravessa, sem qualquer perspectiva de retorno a elementos tutelares aos hipossuficientes. Ou seja, a ideia de dividir em várias parcelas o gozo das férias e o pagamento do décimo terceiro salário, por exemplo, rompe com o mínimo de proteção social previsto em lei. Se estabelece uma lógica de retorno ao abstencionismo estatal no tocante à aplicação das normas, com um catálogo mínimo de normas trabalhistas que serão utilizadas ao bel prazer das conjunturas, e o mais grave, com sindicatos com enorme dificuldade de representatividade, o que reverbera em um enorme retrocesso social.

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Isso acontece de várias formas, com o estabelecimento de variados modelos de realização. Serve, inclusive para legitimar a execução da política de flexibilidade laboral, como consequência do modelo neoliberal nas relações de trabalho em uma escala jamais vista na história da humanidade, como resultado da globalização.Essa nova realidade acerca das funções, das matérias tratadas, dos sujeitos que compõem a negociação coletiva e da intervenção estatal de forma material e ideológica, estabelece novos fundamentos com práticas diferenciadas ao citado modelo clássico de relações de trabalho, ao se utiliza do princípio da adequação setorial negociada em sua vertente negativa, justamente para estabelecer condições de trabalho in pejus ao trabalhador, levando-se em conta a negociação coletiva de primeira geração ou o modelo industrial de negociação em que são sujeitos as entidades sindicais de base, geralmente. (BARROSO, Fábio Túlio, 2012, págs. 105 e 106)

Naturalmente, que esta nova função designada às entidades sindicais estabelecem um negativa do papel representativo presente na estrutura sindical, inserida na sistematicidade das normas de Direito do Trabalho, pois, caberá a estas entidades defender os interesses, no caso dos trabalhadores, no sentido de melhoria da sua condição social, em paralelo ao princípio do não retrocesso social, o que deixa de ocorrer. Por essa razão, comumente são arrolados dois principais conteúdos do princípio da vedação do retrocesso social: Positivo e o negativo. O conteúdo positivo reside no dever de o legislador perseverar no propósito de ampliar, progressivamente e de acordo com as condições fáticas e jurídicas, o grau de concretização dos direitos fundamentais sociais, “não se trata de mera manutenção do status quo, mas de imposição da obrigação de avanço social”. O negativo, refere-se a imposição ao legislador de, na atividade legiferante, respeitar a não supressão ou a não redução do grau de densidade normativa que os direitos fundamentais já tenham alcançado por meio do arcabouço normativo-positivo. (MESQUITA, Carolina Pereiria Lins, 2012, pág. 176)

No Brasil, foram várias as alterações ocorridas, sobretudo, a partir da década de 1990 do século passado, quando a negociação coletiva viabilizou e legitimou a flexibilização do Direito do Trabalho. A título de exemplo, tem-se o contrato de trabalho por prazo determinado sem causa, pela lei nº 9.601/98, a modificação do contrato ordinário de trabalho para o contrato a tempo parcial por cláusula negocial, art. 58-A, § 2º da CLT e a natureza não salarial dos valores decorrentes da participação nos lucros e resultados da empresa, conforme a lei nº 10.101/00. No plano constitucional, tem-se a possibilidade de redução das garantias mínimas sociais como excepcionalidade, como a redução de salários, a compensação de jornada e a alteração dos turnos ininterruptos de revezamento, como acima indicado os respectivos incisos do art. 7º. Observa-se em todas as medidas que pretendem estabelecer a prevalência do negociado ao legislado a tentativa de ruptura do modelo ordinário de relações de trabalho, implementando uma disciplina jurídica que prima pela falaciosa autonomia e empoderamento das partes negociais, principalmente os trabalhadores, bastante presente na fonte material do direito que se destaca, a ideologia neoliberal. Há uma sistemática crítica à necessária proteção do hipossuficiente, como se fosse um pecado capital a defesa de um sujeito em condição de inferioridade diante do outro. Na prática, tem-se uma proposta de redução do custo do trabalho, da capacidade de organização dos trabalhadores, com o fomento a competitividade entre eles, reduzindo a possibilidade de solidariedade e acuidade do diálogo entre os envolvidos na negociação coletiva. Nos países que utilizaram o modelo flexível de legislação do trabalho de natureza neoliberal foi observado uma ruptura da garantia social presente na legislação do trabalho do modelo anterior.

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A proposta de se utilizar a legislação do trabalho como mero elemento ilustrativo de direitos, com ampla disposição na sua aplicação é uma subversão ao conteúdo humanista e democrático das relações de trabalho o que também vai de encontro com toda estrutura normativa e principiológica da disciplina jurídica que alberga o trabalhador como sujeito de direitos e obrigação, mas com dignidade. 3. CONCLUSÕES. Temas desta natureza não comportam conclusões, visto que a matéria trabalhista é a síntese do conflito de interesses. Contudo, quando se tem perspectiva de retrocesso social diante da desconstrução de um modelo de relações jurídica que acarreta dignidade à pessoa é preciso se chegar a sínteses, ainda que momentâneas, visto que diante de natureza da matéria sempre haverá novas situações dignas de estudo. Assim, não se pode concordar com proposta de utilização da negociação coletiva como instrumento de flexibilização do Direito do Trabalho, visto que o elemento mínimo de proteção social ao trabalhador já está previsto no seu conteúdo legal que não comporta disponibilidade. Qualquer alteração ao conteúdo material e prático das normas desta natureza somente poderá acontecer para trazer melhoria da condição social, em absoluta adequação ao princípio do não retrocesso social. A negociação coletiva não poderá servir como instrumento de legitimação de uma política econômica que desconsidera a hipossuficiência jurídica e a dignidade do trabalhador, já asseguradas nas normas legisladas e que não poderão ser disponibilizadas. Tampouco poderá servir para a desconstrução do Direito do Trabalho. A prevalência do negociado sobre o legislado é a subversão ao conteúdo humanista e democrático das relações de trabalho o que também vai de encontro com toda estrutura normativa e principiológica da disciplina jurídica que alberga o trabalhador como sujeito de direitos e obrigação, mas com dignidade. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARROSO, Fábio Túlio. Manual de Direito Coletivo do Trabalho, LTR, São Paulo, 2010. BARROSO, Fábio Túlio. Novos Parâmetros da Negociação Coletiva na Sociedade Contemporânea, em: BARROSO, Fábio Túlio e MELO FILHO, Hugo Cavalcanti. Direito do Trabalho, Valorização e Dignidade do Trabalhador no século XXI. Estudos em Homenagem ao Professor José Guedes Corrêa Gondim Filho, São Paulo, LTR, 2012. CARINCI, Franco, TAMAJO, Raffaele de Luca, TOSI, Paolo e TREU, Tiziano. Colaboradores: BROLLO, Marina, CAMPANELLA, Piera e LUNARDON, Fiorella. Derecho del Trabajo. 1. El Derecho Sindical. Tradução: AVILÉS, José Antonio fernández, MURRONE, Maria Giovanna, MARTÍNEZ, Luis Angel Triguero, INSUA, Belén del Mar López, BERNANRDINO, Manuela Durán e SÁNCHEZ, Sonia Fernández. Coordenador da tradução José Antonio Fernández Aviléz. Granada, Comares, 2015. DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho, 14ª edição, São Paulo, LTR, 2015. MARTINEZ, Luciano. Curso de Direito do Trabalho, 4ª edição, São Paulo, saraiva, 2013. MESQUITA, Carolina Pereira Lins. Teoria Geral do Direito do Trabalho. Pela Progressividade Sociojurídica do Trabalhador, São Paulo, LTR, 2012. PÉREZ, José Luis Monereo. Introducción al nuevo Derecho del Trabajo. Una Reflexión Crítica Sobre el Derecho Flexible del Trabajo, Valência, Tirant lo Blanch, 1996.

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SORIA, José Vida, PÉREZ, José Luis Monereo e NAVARRETE, Cristóbal Molina. Manual de Derecho del Trabajo, 9ª edição, Granada, Comares, 2011. ZOLA, Emile, Germinal. São Paulo, Martin Claret, 2006.

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NOTAS SOBRE A AUTONOMIA SINDICAL BRASILEIRA Fábio Túlio Barroso INTRODUÇÃO Uma das principais dificuldades dos operadores do Direito Sindical no Brasil após a Constituição da República de 1988 está relacionada à validade das normas sobre a matéria presentes na CLT, visto que o texto constitucional estabeleceu ampla autonomia, quando não cabe ao poder público interferência nem intervenção na organização sindical. Isso quer dizer que após a carta maior ser promulgada, deverá prevalecer o conteúdo dos estatutos das entidades sindicais sobre a lei, em clara obediência à natureza associativa das entidades sindicais. Contudo, alguns institutos do período anterior à Constituição foram mantidos, como a unicidade e a contribuição sindical compulsória que contrariam a ampla liberdade sindical, estabelecendo um modelo de autonomia, visto que estas limitações são de ordem legal, cogentes. Sendo assim, este texto faz uma análise sobre o modelo de autonomia sindical brasileiro, que precisou ser aperfeiçoado em alguns momentos pela jurisprudência, no sentido de estabelecer comportamentos ou limites objetivos à aplicação das normas sindicais no Brasil. O texto não tem a pretensão de esgotar o tema, apenas apresentar alguns elementos científicos sobre esta interessante matéria. 1. O SINDICALISMO À BRASILEIRA – AUTONOMIA SINDICAL. A estrutura sindical brasileira é bastante complexa e por vezes contraditória. Tem-se na sua organização originária um modelo de organização por unicidade sindical, que é um resquício do corporativismo de Estado e sua mais recente atualização foi no sentido de reconhecer formalmente as centrais sindicais que não fazem parte desta estrutura, organizando-se por pluralidade, em absoluto paradoxo técnico entre as formas de associativismo, podendo ser considerado suis generis (BARROSO, Fábio Túlio. 2014). Por sua vez, o Brasil não ratificou a Convenção nº 87 da OIT, que trata da Liberdade Sindical e Proteção ao Direito de Sindicalização, paradigma normativo internacional sobre a liberdade sindical. Contudo, várias de suas normas que tratam da matéria do associativismo foram recepcionadas na própria carta magna, sem que houvesse a necessidade de formalização do teor da referida norma internacional. Nesse espeque, tem-se ainda que o modelo internacional de liberdade sindical está estabelecido em um espectro normativo ainda mais amplo, com a convergência dos postulados presentes nas Convenções nº 981 e 1352 da OIT, respectivamente, ambas ratificadas pelo Brasil. A doutrina internacional é neste sentido, ao reconhecer a amplitude das normas de liberdade sindical além do conteúdo estabelecido em sua norma paradigmática: 1  Aprovação: Decreto Legislativo n. 49, de 27.8.52, do Congresso Nacional. Promulgação: Decreto n. 33.196, de 29.6.53. http:// www.oitbrasil.org.br/node/465. 2  Aprovação: Decreto Legislativo n. 86, de 14.12.89, do Congresso Nacional. Promulgação: Decreto n. 31, de 22.5.91. http:// www.oitbrasil.org.br/node/489

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La aprobación por la OIT del Convenio nº 87, relativo a la libertad sindical y a la protección del derecho de sindicación (1948), y el Convenio nº 98, sobre aplicación de los princípios del derecho de sindicación y negociación colectiva (1949), marcará un cambio radical. Estas normas pueden considerarse, pese a sus carencias y contradicciones, como dos de las piezas normativas más señeras del enterro Derecho Internacional del Trabajo. La preocupación de la OIT por crear los princípios y las reglas de un nuevo modelo de regulación de la autonomia colectiva de los trabajadores se proyectará en otros instrumentos normativos posteriores, tanto en Convenios cuanto en Recomendaciones. (...) Y después con la adicción de nuevos instrumentos, fundamentalmente el Convenio nº 135 (y la Recomendación nº 143), sobre protección y facilidades a otorgar a los representantes de los trabajadores en la empresa (1971), que configuran, en contraste con la posición anterior del próprio movimiento asociativo, la acción en la empresa como un contenido esencial de la libertad sindical. (PEREZ, José Luis e outros, pág. 26)



A liberdade sindical em seu aspecto mais amplo deverá ser entendida como: (...) a impossibilidade de qualquer agente estranho, alheio à entidade sindical, seja ele o Estado ou mesmo qualquer pessoa física ou jurídica, que possa mitigar ou limitar a criação, o exercício de suas atividades negociais, de filiação ou desfiliação, de representatividade e de administração A ordem jurídica deverá garantir uma atividade sindical sem que haja intervenções de agentes estranhos à atividade interna e externa das entidades sindicais, nem tampouco que seja possível a interferência nas suas atividades específicas no seio da sociedade do trabalho, quando o exercício sindical deverá ser desatrelado de compromissos ou limitações que tenham por finalidade desvirtuar a representatividade dos interesses próprios das bases que conformam os coletivos sindicais, econômicos ou profissionais, seja administrativamente ou judicialmente (BARROSO, Fábio Túlio. 2010, pág. 86)

Entendido ainda que a liberdade sindical se estabeleceu como direito fundamental em diversos diplomas internacionais. (CARINCI, Franco e outros, 2015, pág. 110 e DUARTE, Bento Herculano e MORAES, José Diniz de. 2016, pág. 60).

E é justamente neste contexto em que se enquadra o sindicalismo brasileiro no seu aspecto formal, porém, com limitações que serão apresentadas a seguir. Como o país não ratificou a norma paradigma internacional sobre liberdade sindical, possui basicamente os limites do seu modelo de liberdade sindical presentes na unicidade e na contribuição sindical. Não fossem estes limites acima indicado, as demais previsões da referida convenção da OIT foram admitidas no ordenamento. Este poder de autorregulamentar-se foi absorvido pela ordem constitucional brasileira, ao estabelecer na parte final do inciso I do art. 8º, em que estão vedadas ao Poder Público a interferência e a intervenção na organização sindical. Entendido que a interferência é o ato de persuasão, ingerência imaterial e a intervenção é o ato físico de intromissão nos assuntos sindicais, que tem em sua origem a organização, que é própria de uma pessoa jurídica de direito privado e que não cabe em hipótese nenhuma estas formas de participação estatal na vida das entidades sindicais. (BARROSO, Fábio Túlio, 2010, pág. 93) Quanto à autonomia, há impedimento por norma constitucional de a lei exigir autorização do Estado para criação de entidade sindical, não devendo haver qualquer “interferência ou intervenção na organização sindical”, como se tem do art. 8º, I da carta maior. Ou seja, deverá prevalecer o conteúdo do estatuto da entidade sindical sobre a lei, o que também impede que haja a dissolução ou a suspensão da entidade por via administrativa. Naturalmente que a previsão constitucional está relacionada à impossibilidade de qualquer órgão estatal definir limites de criação das entidades associativas sindicais por limitativos legais, como havia no período anterior à Constituição, quando se aplicava o enquadramento sindical do art. 570-577 da CLT. De igual modo, não é possível admitir que a lei venha a exigir autorização do Estado apenas para a criação de entidade sindical de base, sindicatos, visto que a estrutura sindical brasileira está montada em várias entidades de classe, cujo sindicato é apenas uma delas.

Ora, se no sistema confederativo de organização sindical, onde se aplica a unicidade em qualquer grau, tem-se

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os sindicatos como entidades de base e as federações e as confederações como entidades de grau superior (arts. 516, 533-535 da CLT), todas perfazendo uma estrutura nos termos consolidados antes mesmo da Constituição de 1988. Ou seja, a carta maior admitiu que o modelo de organização sindical tanto do setor profissional quanto do econômico se organizam por unicidade, em obediência ao conteúdo do art. 8º, II. Ainda assim, a criação das entidades sindicais caberá aos “trabalhadores e empregadores” interessados, não mais havendo definição dos critérios pré-existentes ao Estado, quando enquadrava as atividades econômicas e profissionais nos termos do anexo ao art. 577 consolidado. Ou seja, mesmo com delimitação quantitativa, qualitativa e territorial de organização sindical para as entidades do sistema confederativo, caberá apenas aos interessados a criação das respectivas entidades, com os limites impostos pela unicidade sindical, o que vai de encontro ao modelo proposto pela OIT, em sua Convenção nº 87. Por sua vez, quando se fala nas garantias ao emprego aos dirigentes sindicais, tema relacionado à liberdade sindical individual, tem-se na estabilidade provisória prevista nos arts. 8º, VIII3 da Constituição e 543, § 3º4 da CLT uma série de limitações estabelecidas pelo Poder Judiciário, em aplicação da autonomia sindical. Inicialmente, porque as normas que tratam tanto do quantitativo de dirigentes, quanto da forma como se dará a manutenção no emprego são anteriores à Constituição e com forte interferência do Estado no comportamento dos sindicatos. Assim, as súmulas de nº 197 do STF e 379 do TST, acabam por delimitar de que forma deverá se dar a apuração da falta grave que justifica a terminação do contrato de trabalho do dirigente estável, como se tem a seguir: Súmula 197/STF - 12/07/2016. Trabalhista. Sindicato. Sindicalista. Estabilidade provisória. Inquérito para apuração da falta grave. CLT, art. 543. O empregado com representação sindical só pode ser despedido mediante inquérito em que se apure falta grave. Súmula nº 379 do TST DIRIGENTE SINDICAL. DESPEDIDA. FALTA GRAVE. INQUÉRITO JUDICIAL. NECESSIDADE (conversão da Orientação Jurisprudencial nº 114 da SBDI-1) - Res. 129/2005, DJ 20, 22 e 25.04.2005 O dirigente sindical somente poderá ser dispensado por falta grave mediante a apuração em inquérito judicial, inteligência dos arts. 494 e 543, §3º, da CLT. Cabe especial registro para o fato de a legislação do trabalho não possuir norma específica que trate do inquérito judicial para o dirigente sindical, utilizando-se as originariamente previstas para os estabilitários decenais. Ainda no tocante à estabilidade provisória dos dirigentes sindicais, chama a atenção o conteúdo da Súmula nº 369 do TST: Súmula nº 369 do TST DIRIGENTE SINDICAL. ESTABILIDADE PROVISÓRIA (redação do item I alterada na sessão do Tribunal Pleno realizada em 14.09.2012) - Res. 185/2012, DEJT divulgado em 25, 26 e 27.09.2012 I - É assegurada a estabilidade provisória ao empregado dirigente sindical, ainda que a comunicação do registro da candidatura ou da eleição e da posse seja realizada fora do prazo previsto no art. 543, § 5º, da CLT, desde que a ciência ao empregador, por qualquer meio, ocorra na vigência do contrato de trabalho. 3  Art. 8º É livre a associação profissional ou sindical, observado o seguinte: (...) VIII - é vedada a dispensa do empregado sindicalizado a partir do registro da candidatura a cargo de direção ou representação sindical e, se eleito, ainda que suplente, até um ano após o final do mandato, salvo se cometer falta grave nos termos da lei. 4  Art. 543 - O empregado eleito para cargo de administração sindical ou representação profissional, inclusive junto a órgão de deliberação coletiva, não poderá ser impedido do exercício de suas funções, nem transferido para lugar ou mister que lhe dificulte ou torne impossível o desempenho das suas atribuições sindicais. § 3º - Fica vedada a dispensa do empregado sindicalizado ou associado, a partir do momento do registro de sua candidatura a cargo de direção ou representação de entidade sindical ou de associação profissional, até 1 (um) ano após o final do seu mandato, caso seja eleito inclusive como suplente, salvo se cometer falta grave devidamente apurada nos termos desta Consolidação.

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II - O art. 522 da CLT foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988. Fica limitada, assim, a estabilidade a que alude o art. 543, § 3.º, da CLT a sete dirigentes sindicais e igual número de suplentes. III - O empregado de categoria diferenciada eleito dirigente sindical só goza de estabilidade se exercer na empresa atividade pertinente à categoria profissional do sindicato para o qual foi eleito dirigente. IV - Havendo extinção da atividade empresarial no âmbito da base territorial do sindicato, não há razão para subsistir a estabilidade. V - O registro da candidatura do empregado a cargo de dirigente sindical durante o período de aviso prévio, ainda que indenizado, não lhe assegura a estabilidade, visto que inaplicável a regra do § 3º do art. 543 da Consolidação das Leis do Trabalho.

Em especial, nos seus itens I, II e V.

Isso porque para as respectivas normas, tem-se muito mais a interpretação teleológica do conteúdo da autonomia, aliado ao formalismo da norma consolidada. Nesses casos, não era possível estabelecer um paradigma restrito à norma consolidada, visto que o teor do § 5º do art. 5435 representa uma clara violação à autonomia. De igual modo, o intervencionismo do art. 5226 consolidado estabelecia limites impensáveis numa realidade de não se ter interferência ou intervenção na organização sindical. Logo, para o TST, deverá haver a comunicação ao empregador para que o mesmo tenha conhecimento da estabilidade do candidato ou dirigente, de qualquer forma inequívoca, desde que durante o vínculo empregatício. Contudo, o limite de validade do aviso no curso do contrato esbarra no aviso prévio, visto que a partir de então não caberá mais pleitear estabilidade, segundo a combinação do conteúdo dos itens I e V da Sumula nº 369. Por sua vez, no tocante ao item II, acabou por estabelecer que o limite que antes era máximo, de 7 (sete) dirigentes, que, levando-se em conta que o conteúdo da sumula possui natureza normativa, impõe um limite mínimo de dirigentes, com seus suplentes, que poderá ser ampliado por norma autônoma coletiva; convenção coletiva de trabalho. Isso se dá pela possibilidade de se estabelecer conteúdo mais favorável aos trabalhadores, estabelecendo um número superior a sete, por meio de autocomposição, com a participação de entidades do setor econômico. A solução acabou sendo normativa pelo limite da razoabilidade, pois não havia qualquer outro paradigma normativo a ser aplicado, ainda que, tal conclusão, stricto sensu, acaba ainda por colidir com a capacidade de autorregulamentação dos sindicatos, a autonomia sindical, visto que um outro órgão estatal, o judiciário, estabelece limites na organização sindical. Outra situação referente a autonomia sindical se deu com o reconhecimento formal das centrais como entidades desta natureza, por meio da lei nº 11.648 de 2008, deveria haver o mesmo respeito aos elementos de autonomia de criação das respectivas entidades. Contudo, o posicionamento legal foi diferente. Como se tem dos arts. 2º a 4º7 da referida lei, o poder público delimitou injustificadamente a qualidade e a quantidade das entidades constitutivas das centrais sindicais, conseguindo 5  § 5º - Para os fins deste artigo, a entidade sindical comunicará por escrito à empresa, dentro de 24 (vinte e quatro) horas, o dia e a hora do registro da candidatura do seu empregado e, em igual prazo, sua eleição e posse, fornecendo, outrossim, a este, comprovante no mesmo sentido. O Ministério do Trabalho e Previdência Social fará no mesmo prazo a comunicação no caso da designação referida no final do § 4º. 6  Art. 522. A administração do sindicato será exercida por uma diretoria constituída no máximo de sete e no mínimo de três membros e de um Conselho Fiscal composto de três membros, eleitos esses órgãos pela Assembleia Geral. 7  Art. 2o Para o exercício das atribuições e prerrogativas a que se refere o inciso II do caput do art. 1o desta Lei, a central sindical deverá cumprir os seguintes requisitos: I - filiação de, no mínimo, 100 (cem) sindicatos distribuídos nas 5 (cinco) regiões do País; II - filiação em pelo menos 3 (três) regiões do País de, no mínimo, 20 (vinte) sindicatos em cada uma; III - filiação de sindicatos em, no mínimo, 5 (cinco) setores de atividade econômica; e IV - filiação de sindicatos que representem, no mínimo, 7% (sete por cento) do total de empregados sindicalizados em âmbito nacional. Parágrafo único. O índice previsto no inciso IV do caput deste artigo será de 5% (cinco por cento) do total de empregados sindicalizados em âmbito nacional no período de 24 (vinte e quatro) meses a contar da publicação desta Lei.

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afrontar ao mesmo tempo tanto o modelo de liberdade sindical brasileiro previsto no art. 8º da Constituição, quanto o proposto pela Convenção nº 87 da OIT.

CONCLUSÕES

Como se observa, a Constituição estabeleceu limites à intervenção do poder público nas atividades sindicais. Contudo na aplicação da autonomia sindical, ainda se tem um formal elemento cultural do sindicalismo de Estado no pais. Tal cultura se observa tanto nas normas interventivas do período anterior à carta maior, quanto na interpretação jurisprudencial, que acaba por estabelecer paradigmas por meio do modelo anterior de sindicalismo. Na mesma seara, normas atuais também acabam por remanescer na cultura controladora do sindicalismo brasileiro, como é o caso da lei que reconheceu as centrais sindicais, que incorre em flagrante inconstitucionalidade, ao afrontar o modelo próprio de liberdade sindical brasileiro e até mesmo o previsto pela OIT..

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARROSO, Fábio Túlio. Complexidades e Contradições do Sindicalismo Brasileiro. http://www.cartaforense.com.br/conteudo/artigos/ complexidades-e-contradicoes-do-sindicalismo-brasileiro/14849. BARROSO, Fábio Túlio. Manual de Direito Coletivo do Trabalho, LTR, São Paulo, 2010. CARINCI, Franco, TAMAJO, Raffaele de Luca, TOSI, Paolo e TREU, Tiziano. Colaboradores: BROLLO, Marina, CAMPANELLA, Piera e LUNARDON, Fiorella. Derecho del Trabajo. 1. El Derecho Sindical. Tradução: AVILÉS, José Antonio fernández, MURRONE, Maria Giovanna, MARTÍNEZ, Luis Angel Triguero, INSUA, Belén del Mar López, BERNANRDINO, Manuela Durán e SÁNCHEZ, Sonia Fernández. Coordenador da tradução José Antonio Fernández Aviléz. Granada, Comares, 2015. DUARTE, Bento Herculano e MORAES, José Diniz de, A liberdade Sindical Como Direito Fundamental e a não ratificação da Convenção nº 87 da OIT pelo Brasil: Os Limites da Negociação Coletiva e a Proteção em Face de Atos Antissindicais. Em: FRANCO FILHO, Georgenor de Sousa Franco e MAZZUOLI, Valério de Oliveira (organizadores). Direito Internacional do Trabalho. O Estado da Arte Sobre a Aplicação das Convenções Internacionais da OIT no Brasil. São Paulo, LTR, 2016. PÉREZ, José Luis Monereo, NAVARRETE, Cristóbal Molina y VIDA, Maria Nieves Moreno. Manual de Derecho Sindical, 9ª edição, Granada, Comares, 2014.

Art. 3o A indicação pela central sindical de representantes nos fóruns tripartites, conselhos e colegiados de órgãos públicos a que se refere o inciso II do caput do art. 1o desta Lei será em número proporcional ao índice de representatividade previsto no inciso IV do caput do art. 2o desta Lei, salvo acordo entre centrais sindicais. § 1o O critério de proporcionalidade, bem como a possibilidade de acordo entre as centrais, previsto no caput deste artigo não poderá prejudicar a participação de outras centrais sindicais que atenderem aos requisitos estabelecidos no art. 2o desta Lei. § 2o A aplicação do disposto no caput deste artigo deverá preservar a paridade de representação de trabalhadores e empregadores em qualquer organismo mediante o qual sejam levadas a cabo as consultas. Art. 4o A aferição dos requisitos de representatividade de que trata o art. 2o desta Lei será realizada pelo Ministério do Trabalho e Emprego. § 1o O Ministro de Estado do Trabalho e Emprego, mediante consulta às centrais sindicais, poderá baixar instruções para disciplinar os procedimentos necessários à aferição dos requisitos de representatividade, bem como para alterá-los com base na análise dos índices de sindicalização dos sindicatos filiados às centrais sindicais. § 2o Ato do Ministro de Estado do Trabalho e Emprego divulgará, anualmente, relação das centrais sindicais que atendem aos requisitos de que trata o art. 2o desta Lei, indicando seus índices de representatividade.

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O “DIREITO AO CONFLITO” NOS CASOS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA: POTENCIALIDADES E RISCOS

Fernanda Fonseca Rosenblatt Doutora em Criminologia pela University of Oxford (Inglaterra). Professora de Direito da Universidade Católica de Pernambuco. Orientadora na Iniciação Científica (PIBIC/ UNICAP). Pesquisadora do Grupo Asa Branca de Criminologia. [email protected]. João André da Silva Neto Graduando em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco, integrante do Grupo Asa Branca de Criminologia e voluntário na Iniciação Científica (PIBIC/UNICAP). joao.law. [email protected] Maria Júlia Poletine Advincula Graduanda em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco, integrante do Grupo Asa Branca de Criminologia e bolsista na Iniciação Científica (PIBIC/UNICAP). [email protected] Pedro Henrique Ramos Coutinho dos Santos Graduando em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco, integrante do Grupo Asa Branca de Criminologia e bolsista na Iniciação Científica (PIBIC/UNICAP). Email: [email protected]

SUMÁRIO: 1. Considerações introdutórias sobre a ineficácia e crise de legitimidade do sistema penal; 1.1. O “Roubo” dos Conflitos pelo Estado e a Necessidade de Devolução destes às Partes Diretamente Envolvidas; 1.2. Do Esquecimento ao Indispensável Protagonismo da Vítima no Processo Penal; 2. O caso específico da violência doméstica no brasil; 2.1. O Surgimento da Lei Maria da Penha; 2.2. A Persistência da Violência Doméstica, a Revitimização Secundária e a (In)Eficácia da Lei 11.340/2006; 2.3. A Ação Direta de Inconstitucionalidade 4424 e mais um “Roubo” de Conflitos pelo Estado; 3. A justiça restaurativa como alternativa aos conflitos de violência doméstica; 3.1. A Experiência Internacional; 3.2. Sobre alguns Riscos da Aposta Restaurativa; 4. Considerações finais sobre o uso da justiça restaurativa em casos de violência doméstica e a sua operacionalização no brasil; Referências.

1. CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS SOBRE A INEFICÁCIA E CRISE DE LEGITIMIDADE DO SISTEMA PENAL. Como bem ressalta Gonçalves (2012, p. 23): O homem é um ente social e gregário. [...] Entre as necessidades humanas mais profundas está a do convívio social, a de estabelecer relações com outros homens, com as mais diversas finalidades e os mais variados graus de intensidade (GONÇALVES, 2012, p. 23).

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Com efeito, é inerente ao ser humano um caráter de socialização essencial à espécie. Estado e Direito, portanto, surgem com o objetivo de controlar a vida em sociedade, de forma a sustentar as relações interpessoais. Ocorre que as primeiras experiências humanas pautadas em regras de convivência foram introduzida pelo famigerado “Direito Penal do Terror”, assim denominado por ter sido marcado pela “vingança privada”, caracterizada fortemente pelo arbítrio, o autoritarismo e o punitivismo. Nesse contexto, o conflito já nascia sendo interpretado de forma negativa: “A vingança e a pena, confundindo-se uma com a outra, reduzia-se a um ferimento tal que bastasse para ressarcir a vítima ou seus amigos, ou a dor causada ao ofendido” (LOMBROSO, 2007, p. 91). A partir do fracasso dessa lógica, há a necessidade de analisar os conflitos criminalizados à luz da Criminologia Crítica, pautada na questão dos direitos humanos e na importância de se encontrar alternativas viáveis à justiça meramente retributiva, tão retrógrada e falha. Como possibilidade de mudança, surge a Justiça Restaurativa, definida por Howard Zehr (2012, p. 49.) como Um processo para envolver, tanto quanto possível, todos aqueles que têm interesse em determinada ofensa, num processo que coletivamente identifica e trata os danos, necessidades e obrigações decorrentes da ofensa, a fim de promover o restabelecimento das pessoas e endireitar as coisas, na medida do possível.

É justamente diante da possibilidade restaurativa, ou através de “lentes restaurativas” (ZEHR, 2008), que se pretende, nesse primeiro momento, denunciar a ineficácia e a crise de eficiência do modelo tradicional de justiça criminal. Dentre as mais diversas e possíveis críticas ao sistema penal, entretanto, e já em vista da temática central do presente artigo, dar-se-á destaque à apropriação dos conflitos pelo Estado e ao consequente negligenciar da vítima no curso dos processes penais contemporâneos. 1.1 O “ROUBO” DOS CONFLITOS PELO ESTADO E A NECESSIDADE DE DEVOLUÇÃO DESTES ÀS PARTES DIRETAMENTE ENVOLVIDAS.

Seguindo a linha de pensamento de Christie (1977), é indispensável enquadrar os conflitos como benéficos para toda e qualquer comunidade que deseje desconstruir, amadurecer e se fazer renovável. Lamentavelmente, porém, a existência destes é normalmente “sufocada” pelo Estado, o qual concede certo monopólio de controle aos professional thieves (CHRISTIE, 2004), profissionais especializados em se apropriar dos conflitos pertencentes às partes diretamente atingidas por eles. Com efeito, advogados, promotores, juízes, dentre outros profissionais da “Justiça”, são treinados para “roubar” os conflitos dos jurisdicionados e “resolvê-los” (na verdade, “decidi-los”) num ritmo e segundo ritos e regras típicas de uma lógica amarrada à busca por soluções-padrão e impessoais. Impende destacar, entretanto, que enquanto os profissionais decidem o que é relevante e pertinente, a vítima e o ofensor são distanciados do – ou silenciados no – seu próprio caso, de modo que essas partes normalmente não experimentam um senso de “justiça procedimental” (TYLER, 1990). Por outro lado, a comunidade em nada contribui para o – e nada leva do – processo de resolução daquele conflito. Em compatibilidade com essa lógica fria e automatizada, o crime, qualquer que seja ele, ao invés de representar uma ofensa contra indivíduos, é tradicionalmente (e muito abstratamente) concebido como uma infração cometida contra o Estado (ROSENBLATT, 2015). A “justiça”, então, é “terceirizada” ao profissional, representante do Estado, que raciocina em termos de fato típico, antijurídico e culpável, pouco importando as subjetividades que circundam o caso. Temos por consequência, e no dia-a-dia dos fóruns criminais, a busca por uma ideia abstrata de “justiça vertical”, aquela que se utiliza da punição para manter o status quo, qualquer que seja ele. Ocorre que, como bem destacado por Zehr (2012, p. 47), “[a] justiça deve reconhecer tanto nossa condição de interconexão quanto a nossa individualidade. O valor da particularidade nos adverte que o contexto, a cultura e a personalidade são fatores importantes que devem ser respeitados”. Nesse ínterim, a Justiça Restaurativa, diferentemente do modelo tradicional de justiça criminal, busca envolver todos aqueles que tenham interesse no conflito, buscando como principal desfecho a reparação dos danos advindos

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do crime. Desse modo, trata-se de um modelo de justiça “horizontal”, onde os conflitos são “devolvidos” às partes diretamente afetadas por ele. 1.2 DO ESQUECIMENTO AO INDISPENSÁVEL PROTAGONISMO DA VÍTIMA NO PROCESSO PENAL.

A total “despersonalização” do processo penal causa, dentre outros fracassos e frustrações, o fenômeno da “vitimização secundária”. Ou seja, no que a vítima perde seu papel de protagonista dentro do processo penal, ela sofre duas vezes: pela agressão que lhe foi dirigida (quer dizer, pelo crime sofrido) e pelo confisco de “seu” conflito pelo Estado (ROSENBLATT, 2015). Segundo Zehr (2012, p. 25), Não raro as vítimas se sentem ignoradas, negligenciadas ou até agredidas pelo processo penal. Isto acontece devido à definição jurídica do crime, que não inclui a vítima. O crime é definido como ato cometido contra o Estado, e por isso o Estado toma o lugar da vítima no processo. No entanto, em geral as vítimas têm uma série de necessidades a serem atendidas pelo processo judicial.

Com efeito, nos processos penais contemporâneos, altamente profissionalizados, a vítima é geralmente tratada como uma mera “testemunha”, não como o “ator” central do drama entre ela e o “ofensor” (CHRISTIE, 2010). Assim, enquanto se brada fazer “justiça” em nome da vítima, suas vontades e necessidades, na verdade, são corriqueiramente negligenciadas. Como ensina Pallamolla (2008, p. 4), tendo como uma das suas inspirações o movimento vitimológico contemporâneo iniciado nos anos 80, “a justiça restaurativa surge como uma resposta à pequena atenção dada às vítimas no processo penal”. Com efeito, a Justiça Restaurativa valoriza no processo de resolução de conflitos a interação entre vítima e agressor, pois considera que, a partir do diálogo, os sentimentos individuais são expostos e debatidos – e, assim, os danos provocados pelo crime, esclarecidos e enfrentados. E por promover o diálogo entre as partes diretamente afetadas pelo conflito criminalizado, trata-se de um modelo de justiça espontaneamente mais atento às necessidades das vítimas. Nas palavras de De Vitto (2005, p. 48), A Justiça Restaurativa representa um novo paradigma aplicado ao processo penal, que busca intervir de forma efetiva no conflito que é exteriorizado pelo crime, e restaurar as relações que foram abaladas a partir desse evento. Assim, e desde que seja adequadamente monitorada essa intervenção, o modelo traduz possibilidade real de inclusão da vítima no processo penal sem abalo do sistema de proteção aos direitos humanos construído historicamente.

Com efeito, no processo restaurativo, o objetivo de reconduzir a vítima a um papel que um dia lhe foi retirado é o de conhecer e tornar evidente qual foi o dano e como é possível a sua reparação. Nesse processo, as vítimas são empoderadas através da valorização de sua contribuição e participação na definição de necessidades e resultados ou decisões (ZEHR, 2012, p. 79). Ademais, para a Justiça Restaurativa, além da chamada vítima primária, que é a mais atingida pela ofensa, seus familiares, testemunhas e a comunidade em geral também sofrem e devem ser incluídas no processo de resolução do conflito. O crime, como sugerido acima, é tido como um ato praticado contra indivíduos – e não abstratamente concebido como um atentado contra o Estado. O Estado, portanto, deve investigar os fatos, mas não é enquadrado como vítima, apenas um mero facilitador. Para que a vítima se sinta parte integral do processo, ela precisa ter acesso a informações judiciais de forma clara e objetiva. Sua narrativa da história deve ser considerada como elemento essencial, de forma que haja uma reflexão terapêutica do ato sofrido. A questão do empoderamento, porém, é ainda mais importante, pois

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Em geral as vítimas sentem que a ofensa sofrida privou-lhes do controle sobre sua propriedade, seu corpo, suas emoções, seus sonhos. Envolver-se com o processo judicial e suas várias fases pode ser uma forma significativa de devolver um senso de poder às vítimas (ZEHR, 2012, p. 26).

É óbvio que a ampliação do poder das vítimas associada ao poder estatal pode resultar em uma sociedade ainda mais punitiva (CHRISTIE, 2010, p. 118), o que seria incompatível com a índole crítica – e, até, abolicionista (ACHUTTI, 2014) – da Justiça Restaurativa. Como esclarecido por Christie (2010, p. 118), é importante destacar que A diferença essencial entre os encontros de resolução alternativa de conflitos e os nas cortes penais é a questão do poder de punir. Punição significa transferir dor, intencionalmente como dor. Em encontros de justiça restaurativa não estamos querendo criar dor, mas criar entendimento. Sem espada [referência ao símbolo da Justiça no Direito], e consequentemente sem necessidade de prevenir o abuso da espada.

Com efeito, o processo restaurativo [...] atravessa a superficialidade e mergulha fundo no conflito, enfatizando as subjetividades envolvidas, superando o modelo retributivo, em que o Estado figura, com seu monopólio penal exclusivo, como a encarnação de uma divindade vingativa sempre pronta a retribuir o mal com outro mal (PINTO, 2005, p. 21).

Mas seria o modelo restaurativo indicado aos casos de violência doméstica? Antes de problematizar essa questão e ensaiar caminhos para uma possível resposta, é importante compreender a ineficácia do sistema penal em relação especificamente aos casos de violência doméstica no Brasil. 2. O CASO ESPECÍFICO DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA NO BRASIL. Para falar sobre violência doméstica no Brasil e, principalmente, sobre o tratamento legal (em especial, penal) dado a esse tipo de conflito em nosso País, é necessário lembrar alguns aspectos em torno do movimento feminista brasileiro, peculiarmente diferente em relação ao tempo e às interações sociais com outros movimentos sociais se comparado com os movimentos feministas da América do Norte e da Europa (CAMPOS; CARVALHO, 2006). No Brasil, o movimento feminista surgiu na década de 70, mas não se estabeleceu tão radical como os movimentos de mulheres de outros países. Ele seguiu, aqui, uma agenda política compatível com outros movimentos, representando, muitas vezes, uma junção de ideias ou, de fato, lutas semelhantes em comunicação (CAMPOS; CARVALHO, 2006). Muito embora não se possa falar de um feminismo apenas1, dentre às suas associações, o movimento feminista brasileiro, de um modo geral, aliou-se à sede por “justiça” própria dos movimentos em prol do recrudescimento do Direito Penal. Quer dizer, a luta pelo respeito aos direitos constitucionais das mulheres quase sempre passou, em nosso País, pela ideia de mais Direito Penal, mais polícia, mais punição e mais prisão. Várias críticas foram tecidas a essas correntes do movimento feminista por se associarem a um mal (o Sistema de Justiça Criminal) como forma de expurgar outros males (dentre eles, a violência doméstica). Para Andrade (1999), por exemplo, enquanto as mesmas mulheres, tão progressistas, lutavam também por uma maior intervenção penal em determinadas áreas (dentre elas, a da violência doméstica), existia, ali, um caráter ambíguo em sua busca por maior liberdade, reconhecimento e proteção. Com efeito, a sua força reivindicatória e o seu caráter libertário, quando unidos com um movimento tão retrógrado como o penal, 1 

De fato, deveria se falar em diferentes correntes ou em diferentes feminismos brasileiros (ANDRADE, 1999).

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acabaram por se converter na revitimização das mulheres que recorrem à polícia e acabam por conhecer, muitas contra a sua vontade, as Varas de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher. Mas por que retrógrado e por que dizer que a busca por proteção não deveria ser feita pelo âmbito do sistema penal? Nas palavras de Andrade (1999, p. 112-113): Isto se trata de um subsistema de controle social, seletivo e desigual, tanto de homens quanto de mulheres e porque é, ele próprio, um sistema de violência institucional, que exerce seu impacto também sobre as vítimas. E, ao incidir sobre a vítima mulher a sua complexa fenomenologia de controle social (Lei, polícia, Ministério Público, Justiça, prisão), que representa, por sua vez, a culminação de um processo de controle que certamente inicia na família, o sistema penal duplica, em vez de proteger, a vitimização feminina.

No âmbito da violência doméstica contra a mulher, e ignorando esse alerta, surge a Lei Maria da Penha, festejada justamente pelo enrijecimento penal que promove. 2.1 O SURGIMENTO DA LEI MARIA DA PENHA.

A Lei 11.340/2006, mais conhecida pela alcunha de “Lei Maria da Penha”, surgiu num momento histórico de clamor público incitado pela mídia, e representou, politicamente, uma ação de cunho eleitoreiro em resposta àquele clamor. Mas não foi esta Lei a primeira tentativa de resposta ao problema da violência contra a mulher. Num passeio muito rápido pela história, e já na década de 80, merece destaque a consolidação das chamadas “Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher”, as quais surgiram em resposta àquelas pressões feministas da década de 70. Já naquela época, percebeu-se que as mulheres passaram a buscar essas delegacias, não para criminalizar o seu companheiro, mas para criar um ambiente no qual o seu agressor fosse intimidado. Uma forma de coação informal ou até de mediação (MELLO, 2015). Na década de 90, a criação dos Juizados Especiais pela Lei 9099/95 abarcou um grande número de crimes, definidos como sendo de menor potencial ofensivo. O imenso número de casos evidenciados, a partir destes Juizados, de mulheres que sofriam algum tipo de violência, serviu para descortinar algo que antes encontrava-se mantido dentro dos lares por uma sociedade extremamente patriarcal: a violência praticada pelos companheiros, pais, pelo homem contra a mulher (MELLO, 2015). Contudo, conforme destacado alhures, [...] por mais que os JECrims tenham implicado no desvelamento da violência doméstica, tal fato não foi capaz de minimizá-la ou de encontrar outras formas de tratamento preventivo ou repressivo [...]. A substituição das Penas Privativas de Liberdade por Penas Restritivas de Direitos (na maioria das vezes, penas de multa e pagamento de cestas básicas) foi vista por muitos como uma banalização da violência de gênero. E também foi criticado o fato de o conceito de Crime de Menor Potencial Ofensivo não compreender as particularidades da violência doméstica (BARBOSA et al., 2015, p. 4).

A impossibilidade de visualização das nuances da violência doméstica e consequentemente uma solução para o conflito, conjuntamente com a pressão política, acabara por fazer com que o Governo tomasse uma atitude: a criação da Lei Maria da Penha. Tendo sido muito bem recebida por tratar-se de uma lei de caráter protecionista (pela facilidade no acesso à justiça e a possibilidade da aplicação de medidas protetivas), a Lei Maria da Penha trouxe maior enrijecimento penal. Os processos que antes se encontravam na jurisdição dos Juizados Especiais Criminais foram destes retirados, sendo “escanteadas” as medidas despenalizadoras e entrando em seu lugar penas mais rígidas abstratamente.

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2.2 A PERSISTÊNCIA DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA, A REVITIMIZAÇÃO SECUNDÁRIA E A (IN)EFICÁCIA DA LEI 11.340/2006.

Em quase uma década de Lei Maria da Penha, a violência doméstica contra a mulher continua latente. Quer dizer, mesmo com as medidas adotadas a pedido de movimentos sociais, principalmente seguimentos do movimento feminista, este tipo de violência continua a ser um grande problema no Brasil. Com efeito, uma das primeiras cidades a criar o Juizado da Mulher, a cidade do Recife, que hoje sedia duas Varas de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (VVDFM), serve para mostrar três problemas: a violência persiste; existe uma revitimização das mulheres que frequentam essas Varas; e a Lei Maria da Penha, para muitas, é ineficaz (MEDEIROS, 2015). Em pesquisa empírica concluída pela pesquisadora Medeiros (2015)2 naquela comarca, evidenciou-se que a regra do cárcere necessário dentro das VVDFMs não respeita a vontade das mulheres enquanto age da forma mais agressiva possível. Ao contrário, ao longo do processo penal orquestrado pela Lei Maria da Penha, o que ocorre é o silenciamento quase por completo destas mulheres, as quais, ironicamente, procuram na Lei um lugar para ter sua voz ouvida, para encerrar o ciclo de violência, e recebem, em troca, mais violência contra aqueles que ama e, de fato, contra si mesmas. A forma como a Lei atua faz com que a mulher seja resumida à mera informante. Dentro da sala de audiência, um momento que deveria ser de fala e protagonismo, vemos o imperialismo de um Sistema que é guiado por fatos típicos e sua adequação a um artigo específico do Código Penal. As pessoas que ali estão, suas vidas e singularidades são subsumidas e suas vozes roubadas. Mulheres que procuram apenas o cessar da violência acabam por deparar-se com uma triste realidade: seu companheiro de anos, muitas vezes de décadas, será preso provisoriamente por uma injúria ou uma ameaça (BARBOSA et al., 2015; MEDEIROS, 2015; MELLO, 2015). Partem então, estas mesmas mulheres, em busca da liberdade daquele que lhe agrediu. Dentro das Varas são tidas como loucas, tratadas como irracionais por não entenderem o “bem” que lhes foi feito. São, em outras palavras, revitimizadas. Sofrem pela violência e pelas perdas promovidas pelo processo penal, além das consequências sociais. Com efeito, muitas são economicamente dependentes daquele homem que foi preso inteira ou parcialmente. Sua renda é baixa e existem filhos para criar. O Sistema de Justiça Criminal cria, então, um problema maior que o antes existente (BARBOSA et al., 2015; MEDEIROS, 2015; MELLO, 2015). Corroborando com o exposto, Barbosa et al. (2015) afirma que: O Sistema Penal foi criado em uma lógica que trabalha com delitos que envolvem partes que pouco se conhecem (ou nem se conhecem) e lida com tais delitos de forma objetiva, pragmática. Entretanto a violência doméstica foge completamente a essa lógica. Trata-se de um crime que envolve, em sua maioria (73,7%), pessoas que já foram ou ainda são parceiros íntimos e que, por sua vez, possuem um forte laço afetivo, com o qual o Sistema Penal não está preparado para trabalhar. E ainda, dos homens e mulheres que tiveram um relacionamento íntimo, 64% deles tiveram filhos; o que só tende a aumentar a ligação afetiva entre vítima e suposto agressor.

Nesse contexto, as mulheres, em grande parte, procuram a Justiça como forma de obter as medidas protetivas de urgência, sendo que o Sistema de Justiça Criminal, engessado pelo seu ímpeto encarcerador, atrela as medidas protetivas à existência de uma ação penal, ignorando o fato de que a vontade das mulheres, no mais das vezes, não é de continuar essa ação e sim encerrá-la.3 2  Um dos co-autores do presente artigo, o pesquisador João André da Silva Neto, participou ativamente da referida pesquisa, contribuindo para a coleta e a análise dos dados empíricos aqui comentados. 3  A pesquisa de campo realizada por Barbosa et al. (2015) evidencia que 43,5% dos processos observados foram extintos sem resolução do mérito por motivos diretamente relacionados à vontade da mulher: 29,8% por retratação; 10,1% por decadência; 2,4

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Mostra-se a Lei, então, ineficaz para o que se propõe. Aliás, atinge, a Lei, um efeito contrário: por temer as reações do Sistema de Justiça Criminal, muitas mulheres acabam por não comunicar a existência das agressões, sendo a Lei, que veio para proteger, na verdade, um dos fatores de perpetuação da violência. 2.3 A AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 4424 E MAIS UM “ROUBO” DE CONFLITOS PELO ESTADO.

Mesmo diante de todos esses fatores, o Legislador não tem recuado e muito menos o Judiciário. A política criminal encarceradora continua a ser praticada e, no caso específico da Lei 11.340/2006, sem nenhum tipo de estudo de impacto – e apesar dos estudos empíricos já publicados e debatidos no âmbito acadêmico-científico. Não bastasse esta atuação desmedida, a mulher, que já não tem vez e voz, foi mais uma vez silenciada com o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4424 pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Com efeito, o entendimento do STF, ao julgar a ADI 4424, chancela a apropriação pelo Estado de um “conflito” pertencente às partes, vez que retira da mulher a decisão sobre representar ou não representar nos casos de lesão corporal leve. De fato, na medida em que a ação penal deixa de ser pública condicionada e passa a ser pública incondicionada, nos casos de lesão corporal leve praticada no âmbito da Lei Maria da Penha, ao invés de empoderada, a mulher acaba como escrava da sua vontade de revelar a violência sofrida às autoridades. 3. A JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO ALTERNATIVA AOS CONFLITOS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. A questão motivadora do presente artigo é se a Justiça Restaurativa, enquanto processo que tem como fim o entendimento e não o “gerar dor” (CHRISTIE, 2010), se configura como alternativa de resolução do conflito de violência doméstica – como visto acima, um conflito tão peculiar, marcado pela afetividade entre o agressor e a vítima. Como argumenta Christie, “quanto mais próximos estamos do outro, mais hesitamos em querer, intencionalmente, deixar o outro sofrer” (CHRISTIE, 2010, p. 120). O desejo da maioria das mulheres vítimas de violência doméstica de não punir seus agressores, entretanto, não implica no fato de que essas mulheres não querem que seus agressores assumam a responsabilidade pelo dano que causaram e, consequentemente, trabalhem formas de reparar esse dano e de desistir do seu comportamento violento. Mas será que é possível garantir à mulher o “direito ao conflito” em casos de violência doméstica, geralmente marcados pela “desigualdade de poder”? Seria o uso da Justiça Restaurativa em casos de violência doméstica uma saída simplesmente ineficaz e que ainda pode a revitimizar? Por enquanto, enquanto engatinhamos no tema aqui no Brasil, o que podemos fazer, em termos empíricos, é observar a experiência que vem de fora do País. 3.1 A EXPERIÊNCIA INTERNACIONAL.

Em agosto de 2014, a Convenção de Istambul4 entrou em vigor na Europa, proibindo a imposição de modos de resolução alternativa de conflitos em casos que envolvem violência doméstica (DROST et al., 2015), assim como havia sido recomendado pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 2009.5 O que se proibiu, portanto, não foi a utilização voluntária (quer dizer, não imposta às partes) de práticas restaurativas em casos de violência doméstica, mas a imposição do processo restaurativo nesses casos. Dessa proibição, entretanto, podemos extrair um certo pessimismo na utilização da justiça restaurativa nos casos de violência doméstica, na medida em que foi dado destaque aos potenciais riscos em torno da empreitada restaurativa, como a possibilidade de manipulação do processo pelo infrator e consequente sobrevitimização da vítima, % por renúncia ao direito de queixa ou perdão; e 1,2% por perempção. 4  Istanbul Convention ou Council of Europe Convention on Preventing and Combating Violence against Women and Domestic Violence. 5  No ano de 2009, a ONU publicou, no Handbook for Legislation on Violence against Women, a recomendação de proibição de mediação em todos os casos de violência contra a mulher, tanto antes como durante processos penais.

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nesses que são conflitos tipicamente marcados pelo desequilíbrio de poder entre as partes. Apesar desta aparente “rejeição”, existem inúmeras experiências de aplicação (voluntária) da Justiça Restaurativa em casos de violências doméstica em países europeus, a exemplo da Áustria, Dinamarca, Finlândia, Grécia, Holanda e Reino Unido, as quais foram comparadas em estudo recente, financiado pela Comissão Europeia (DROST et al., 2015, p. 7). Nestes países, a Justiça Restaurativa pode ser observada em todas as fases do processo criminal (DROST et al., 2015, p. 19), entretanto, em alguns países, existem critérios específicos de elegibilidade para aplicação da Justiça Restaurativa em casos de violência doméstica. Na Grécia, por exemplo, a mediação vítima-ofensor é possível apenas nos casos de violência doméstica que envolvam contravenções, ameaça, insulto ou coerção. Além disso, alguns pressupostos são necessários como a “palavra de honra” do ofensor de não mais praticar violência doméstica; a saída do ofensor da residência da vítima quando a mesma desejar; a compensação do ofensor à vítima; e a participação do ofensor em programa psicoterapêutico (DROST et al., 2015). O serviço de mediação para casos de violência doméstica da Áustria, conhecido como Neustart, tem um método diferente para a realização de encontros restaurativos. O Neustart trabalha, por ano, com mais de 1200 casos envolvendo violência doméstica (DROST et al, 2015, p. 21). Quanto à condução do encontro restaurativo, primeiramente, o ofensor e a vítima são entrevistados separadamente a fim de se analisar se o encontro é um meio apropriado, assim como para preparar a mediação vítima-ofensor. Daí o primeiro momento ser chamado de “trabalhando em dois times”. Posteriormente, num segundo momento, são realizados encontros com a vítima e o ofensor ao mesmo tempo, mas em diferentes salas. Logo depois, há a sessão de mediação com a presença das partes envolvidas. Os mediadores contam o que ouviram para cada um – o que é chamado de “espelho de histórias” – para somente depois as partes poderem comentar, corrigir e modificar o que ouviram (DROST et al, 2015, p. 23). Ainda na Áustria, as mediações são aplicadas a casos envolvendo violência doméstica desde o começo dos anos 90. No ano de 1999, pesquisas qualitativas demonstraram o potencial dessas “resoluções” no processo de empoderamento das vítimas. Em estudo realizado dez anos depois, por meio da aplicação de questionários, da observação de sessões de mediação e de entrevistas, os resultados foram de que 83% das vítimas de violência doméstica não reportaram mais violência – e para 80% dessas mulheres, a violência cessou por causa das mediações. Outrossim, para 40% das mulheres que continuaram o relacionamento ou que ainda estavam em contato com o ofensor e não tiveram experiências violentas novamente, os parceiros mudaram de comportamento como resultado da mediação (LOSEBY; NTZIADIMA; GAVRIELIDES, 2014). Nos países analisados pelo estudo comparado, o modelo de prática restaurativa mais utilizado em casos de violência doméstica é a mediação vítima-ofensor. (DROST et al, 2015, p. 21). É importante ressaltar que em todos os países analisados, o consentimento da vítima é pré-condição do processo restaurativo e a saída da mesma pode ocorrer a qualquer momento do processo (DROST et al, 2015, p. 20). Em todos os países analisados na pesquisa, com exceção da Grécia, o ofensor e a vítima podem, como regra geral, levar pessoas de sua confiança para acompanhá-los e desempenharem um papel de “suporte” durante a mediação vítima-ofensor (DROST et al, 2015, p. 24). Na maioria dos países, a consequência do encontro restaurativo é uma espécie de acordo entre as partes – que podem ou não decidir manter o relacionamento. Os acordos nos casos de violência doméstica geralmente consistem na busca de ajuda e terapia para o comportamento violento do agressor e/ou para o seu envolvimento com o álcool, mas a maioria dos acordos tem por foco principal o comportamento do agressor no futuro (DROST et al, 2015, p. 25). Na Áustria e na Grécia, o sucesso do desenvolvimento do encontro restaurativo pode culminar na desistência da persecução criminal. Na Holanda e na Finlândia, o resultado do encontro restaurativo pode ocasionar o fim do caso ou ser considerado, pelo juiz, no momento da sentença. Já na Dinamarca, a mediação vítima-ofensor não se configura como alternativa à punição. No Reino Unido, após a realização – com sucesso – do encontro restaurativo, o juiz receberá um relatório e poderá aplicar uma sentença mais leniente (DROST et al, 2015, p. 20).

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3.2 SOBRE ALGUNS RISCOS DA APOSTA RESTAURATIVA. Conforme já afirmamos alhures (ROSENBLATT; MELLO, 2015, p. 107), ao buscar a reparação de danos e de relacionamentos, um dos riscos atribuídos à Justiça Restaurativa é de que ela pode acabar forçando uma reconciliação entre as partes. Isto é, enquanto o modelo tradicional de justiça criminal pode acabar forçando o rompimento da relação entre as partes, este modelo alternativo pode acabar tolhendo a vontade que algumas vítimas de violência doméstica têm de romper com o seu parceiro. De uma forma ou de outra, a mulher permaneceria silenciada no processo de resolução do seu próprio conflito – quer dizer, o conflito permaneceria “roubado”. É importante salientar, entretanto, que a Justiça Restaurativa não se confunde com a mediação nem tem como objetivo principal o perdão ou a reconciliação (ZEHR, 2012). No caso específico de conflitos de violência doméstica, elementos típicos da mediação como o conceito de “culpa compartilhada” e a “linguagem neutra” não são adequados, uma vez que as vítimas podem se sentir insultadas (ZEHR, 2008). Com efeito, a Justiça Restaurativa não busca um retorno à vingança privada, mas também não tem como foco o perdão incondicional: De fato, algum grau de perdão, ou mesmo reconciliação, realmente ocorre com mais frequência do que no ambiente litigioso do processo penal. Contudo, esta é uma escolha que fica totalmente a cargo dos participantes. Não deve haver pressão alguma no sentido de perdoar ou de buscar reconciliação (ZEHR, 2012, p. 18).

Destaca-se, outrossim, que os que defendem a não aplicação da mediação vítima-ofensor em casos de violência doméstica comumente desconsideram a “lógica” do sistema tradicional de justiça criminal – que tem a punição como fim e não se preocupa com os desejos/necessidades da vítima. Ocorre que, nos debates sobre Justiça Restaurativa e Violência Doméstica, não se pode ignorar o fracasso do sistema de justiça criminal na satisfação das necessidades das vítimas de crimes. Por outro lado, é importante destacar (e, claro, melhor avaliar) os dados empíricos coletados em outros países, os quais, como se viu acima, sugerem um otimismo das vítimas de violência doméstica em relação à sua experiência restaurativa. Os céticos da aplicação da Justiça Restaurativa para casos de violência doméstica também normalmente ignoram a distinção entre as vítimas de “terrorismo doméstico” (intimate terrorism) e as de situações esporádicas e isoladas de violência entre o casal (situational couple violence). É evidente que a aplicação da Justiça Restaurativa nos casos de “terrorismo doméstico” – nos quais a vítima vive permanentemente com medo e sofre reiterados atos de violência combinados com o “exercício” de poder e controle – é bastante problemática, além de perigosa (DROST et al, 2015, p. 9). Mas será que os casos de situational couple violence merecem as mesmas preocupações? Ademais, inclusive os favoráveis à aplicação da Justiça Restaurativa em casos de violência doméstica que envolvam traumas graves destacam a necessidade de imposição de “barreiras protetoras” em prol da segurança das vítimas, a qual deve ser prioritária no processo: a participação voluntária da vítima, assim como a possibilidade de desistência do processo a qualquer momento; o benefício de serviços de apoio às vítimas antes, durante e depois do processo; o reconhecimento da responsabilidade do agressor; e a formação apropriada dos facilitadores para a “administração do conflito” em questão (JACCOUD, 2005, p. 175). 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS SOBRE O USO DA JUSTIÇA RESTAURATIVA EM CASOS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E A SUA OPERACIONALIZAÇÃO NO BRASIL. O Projeto de Lei Nº 7006 que prevê a implementação de procedimentos da Justiça Restaurativa no Sistema de Justiça Criminal brasileiro está em tramitação na Câmara nos Deputados desde 2006. Se, por um lado, esse projeto de lei representa a inércia política do movimento restaurativo brasileiro, de outro, o Con-

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selho Nacional de Justiça vem demonstrando bastante entusiasmo quanto à (tentativa de) operacionalização da Justiça Restaurativa no Brasil (ROSENBLATT; MELLO, 2015). Por óbvio, a implementação da Justiça Restaurativa no Brasil não pode consistir em uma mera “importação” de práticas para uma realidade, a nossa, tão violenta, punitivista e marcada pela desconfiança da população em relação às instituições do Sistema de Justiça Criminal (ROSENBLATT; FERNÁNDEZ, 2015). Além da necessidade de uma “latinização” da justiça restaurativa (ROSENBLATT; FERNÁNDEZ, 2015), este processo de operacionalização inspira cuidados quanto aos perigos da aplicação de práticas restaurativas no âmbito dos mais diversos crimes, inclusive nos casos de violência doméstica contra a mulher. Precisamos nos perguntar sobre as potencialidades e os riscos de se aplicar a Justiça Restaurativa aos conflitos domésticos, mas também precisamos explorar os riscos da sua não aplicação. Nesse ínterim, mais uma vez, a experiência estrangeira destacada deve servir de fonte de inspiração. Entretanto, ainda mais no ano que a Lei Maria da Penha completa 10 anos, sem atingir os fins pelos quais foi criada, é importante iniciarmos um debate nacional mais detalhado e aplicado à realidade brasileira acerca da possibilidade restaurativa para os casos de violência doméstica contra a mulher. Este, portanto, foi apenas um ensaio para lançar um tema que ainda não foi entusiasticamente abraçado no nosso País. REFERÊNCIAS ACHUTTI, Daniel. Justiça Restaurativa e Abolicionismo Penal: contribuições para um novo modelo de administração de conflitos no Brasil. São Paulo: Saraiva, 2014. ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Criminologia e feminismo. In: CAMPOS, Carmen Hein de (org.). Criminologia e feminismo. Porto Alegre: Sulina, 1999. BARBOSA, Iricherlly Dayane da Costa Barbosa; SILVA NETO, João André da; MELO, Luíza Azevedo de; e MELLO, Marília Montenegro Pessoa de. Marias que não são “Da Penha”: uma análise crítica do enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a mulher pelo sistema de justiça criminal [Artigo não publicado]. 2015. CAMPOS, Carmen Hein de; CARVALHO, Salo de. Violência doméstica e Juizados Especiais Criminais: análise a partir do feminismo e do garantismo. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 14, n. 2, p. 409-422, mai./ago., 2006. CHRISTIE, Nils. Conflicts as Property. British Journal of Criminology, v. 17, n. 1, p. 1–15, 1977. CHRISTIE, Nils. A suitable amount of crime. New York: Routledge, 2004. CHRISTIE, Nils. Victim movements at a crossroad. Punishment and Society, v. 12, n. 2, p. 115-122, 2010. DE VITTO, Renato Campos Pinto. Justiça Criminal, Justiça Restaurativa e Direitos Humanos. In: Catherine Slakmon; Renato Campos Pinto De Vitto; Renato Sócrates Gomes Pinto (Orgs.). Justiça Restaurativa. Brasília: Ministério da Justiça e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD, 2005. DROST, Lisanne; HALLER, Birgitt; HOFINGER, Veronika; KOOIJ, Tinka van der; LüNNEMANN, Katinka; WOLTHUIS, Annemieke. Restorative Justice in Cases of Domestic Violence: best practice examples between increasing mutual understanding and awareness of specific protection needs. Utrecht: Verwey-Jonker Instituut, 2015. PINTO, Renato Sócrates Gomes. Justiça Restaurativa é Possível no Brasil? In: Catherine Slakmon; Renato Campos Pinto De Vitto; Renato Sócrates Gomes Pinto (Orgs.). Justiça Restaurativa. Brasília: Ministério da Justiça e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD, 2005, p. 19-39.

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A DESCRIMINALIZAÇÃO DO USO PESSOAL DE DROGAS EM DEBATE NO STF: UM PASSO RUMO À SUPERAÇÃO DA GUERRA ÀS DROGAS?

Fernanda Thaynã Magalhães de Moraes Bacharelanda em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco- UNICAP Laís Emanuella da Silva Lima Bacharelanda em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco- UNICAP Maria Eduarda Moreira de Medeiros Bacharelanda em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco- UNICAP

SUMÁRIO: Introdução; 1. A política antidrogas no Brasil: a guerra às drogas; 2. A indistinção usuário x traficante de drogas; 3. Análise dos Votos relatados pelos Ministros: Gilmar Mendes, Edson Fachin e Luís Roberto Barroso; Considerações finais.

INTRODUÇÃO O presente artigo tem como objetivo analisar os discursos proferidos até então pelos Ministros do Supremo Tribunal Federal, em seus respectivos votos, no recurso extraordinário 635659, que discute a descriminalização do porte de drogas para consumo próprio. O recurso discute a inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas, Lei 11.343/2006, o qual, em seu texto atual, tipifica como crime o porte de drogas para uso próprio e penaliza a conduta com advertência, prestação de serviços à comunidade e comparecimento à programa ou curso educativo. Até então, verificou-se que os votos tendem a problematizar a violação à liberdade, individualidade e a personalidade do indivíduo, afetando, também, os princípios da dignidade da pessoa humana, da proporcionalidade das penas, caracterizando uma conduta e impondo uma atuação autoritária e paternalista ao direito penal com relação a uma conduta que só atinge a esfera individual, não lesionando bem jurídico alheio, e desrespeitando direitos fundamentais previstos no artigo 5º da nossa Constituição Federal, como o direito à intimidade e à vida privada. É válido ressaltar que, infelizmente, a liberdade, sendo condição humana essencial, é secundarizada e muitas vezes suprimida, acentuando um Estado de Polícia de supremacia de poder sobre as pessoas. A criminalização do uso de entorpecentes obedece a uma agenda de guerra às drogas, cujas principais consequências são uma maior estigmatização do usuário perante a sociedade e, por muitas vezes, também a sua efetiva prisão, enquadrando-o como traficante, já que não existe um critério objetivo para a distinção das duas condutas, ficando essa imputação – de uso ou tráfico - arbitrariamente sujeita a um entendimento subjetivo e seletivo do poder policial. Então, rediscutir a política de drogas é uma forma de enfrentar a questão da violência que assola o país desde a sua origem e restringir o atual sistema de repressão. Não obstante, fica claro observar a utopia da criminalização por meio da ineficácia das guerras às drogas, que se esconde ainda em um discurso sanitarista, mas sempre abusou do poder para impor o controle de populações específicas. Com isso, tomando como impulso o caso do cidadão Francisco Benedito da Silva que foi flagrado com três gramas de maconha para uso próprio, o STF discute a pauta da descriminalização com o objetivo de pôr fim à estigmatização e ao modelo proibicionista. Por fim, a análise terá como marco teórico a criminologia crítica

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e a metodologia utilizada será o método indutivo por levantamento bibliográfico e análise dos votos dos ministros, bem como as legislações vigentes acerca do tema. 1. A POLÍTICA ANTIDROGAS NO BRASIL: A GUERRA ÀS DROGAS. Segundo a definição da Organização Mundial da Saúde droga é qualquer substância não produzida pelo organismo que tem a propriedade de atuar sobre um ou mais de seus sistemas, produzindo alterações em seu funcionamento. Drogas que alteram o funcionamento cerebral e causam modificações no estado mental e no psiquismo do indivíduo que faz uso são chamadas de psicoativas ou psicotrópicas, substâncias estas que têm a capacidade de provocar dependência. Também chamadas de substâncias entorpecentes, as drogas podem ser classificadas como lícitas, permitidas para consumo, como exemplo das bebidas alcoólicas e o cigarro de nicotina; ou ilícitas, aquelas que são criminalizadas e proibidas, como exemplo da maconha, cocaína e crack. A Lei 11. 343/2006 trata dos crimes relacionados às drogas, porém não define quais as substâncias são criminalizadas no Brasil, isso fica a cargo da ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) por meio da Portaria nº 344 de 1988 de listar todas as substâncias. E neste caso estamos diante de uma Lei Penal em Branco, pois somente a Lei 11.343/06 não seria capaz de criminalizar uma conduta por si só, precisando ser complementada por outra lei, nesse caso a Portaria nº 344/98. As drogas sempre existiram na sociedade e o homem sempre fez uso delas, seja de maneira natural como fumando a planta da maconha ou fazendo chás com outras ervas, seja misturando substâncias que proporcionavam um efeito diferente no seu organismo. Há notícias do uso de drogas pelo homem vem desde os primórdios da sociedade, quando achados arqueológicos e desenhos pré-históricos demonstraram que provavelmente o uso e consumo de substâncias psicoativas vem desde os primórdios da humanidade. Nem sempre a palavra droga foi sinônimo de guerra e violência, nem sempre ela foi tão estigmatizada e combatida como hoje em dia em que vivemos uma política criminal de guerra às drogas apoiado por um discurso médico-jurídico que traz o uso das drogas como uma patologia que precisa ser tratada, respaldada ainda num discurso sanitarista, e uma criminalidade que precisa ser sanada. “Droga vem do holandês Droog, que significa folha seca. A mesma começou sua história como remédio devido ao uso indiscriminado para fins recreativos, passou a ser considerada ilícita, principalmente quando saiu do âmbito médico, ganhando as ruas.” Essas proibições permeiam até hoje em nossa sociedade, mas em sua historicidade as drogas não tinham um peso moral, elas eram vistas em termos religiosos, culturais e filosóficos. O estereótipo do doente, o dependente, surge quando as drogas começam a ganhar um alto consumo entre os jovens da classe média e alta e não mais é visto como algo dos pobres, negros de periferia. Com isso surge a necessidade de separar quem fornece de quem consome, o usuário, agora de classe média-alta, se torna vítima e não mais delinquente e é preciso diferenciá-lo daquele que vende a droga, de quem trafica, geralmente o marginal, de classe mais baixa, no qual recai a responsabilidade. Até o final do século XIX não há muita preocupação em relação as drogas, mas é a partir do século XX que surgirão as primeiras leis criminalizando o uso de certas drogas, a posse ilícita de substância entorpecente não era punida, logo mais passa a ser, e com o passar dos anos essas leis vão sendo expandidas para mais tipos de substâncias, aumentando também os verbos que compõe suas criminalizações e o tipo básico do tráfico começa a acumular núcleos (exemplo: “vender, ministrar, dar, trocar, ceder, ou de qualquer modo, proporcionar”). Já em meados do século XX, no fim da década de 60, após a criação da Organização das Nações Unidas, surge, pela primeira vez, uma diretiva mundial de como lidar com a problemática das drogas. Convenções que buscavam um mundo livre das drogas. E o presidente Richard Nixon se tornou o exemplo mais claro desse tipo de política, no início do seu mandato declarou “guerra às drogas”. Nixon aumentou investimentos e tornou o combate às substâncias psicoativas prioridade para todo o aparato estatal, especialmente a polícia, declarando as drogas como “inimigo número um”. Essa política dos EUA refletiu em vários países, inclusive

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no Brasil, onde a guerra às drogas se intensificou nos anos 80, quando o Brasil aparece como rota de tráfico para os EUA e a Europa. Nesse período traficantes instalaram-se nos morros, nas favelas e o Estado reagiu mandando soldados para atacarem e prenderem os traficantes. Com esse cenário instalado os conflitos se tornam cada vez mais recorrentes, causando mortes e preocupação para os que vivem no meio desse conflito armado de ambos os lados. O mercado de tráfico de drogas expandiu e se consolidou fazendo com que o Estado se sentisse cada vez mais ameaçado e querendo reagir cada vez mais forte. Em 2006 surge a Lei 11.343-2006 que traz várias medidas voltadas as condutas relacionadas às drogas, e a clara distinção em relação as penas para traficante e usuário, porém, mesmo o usuário não tendo como pena a prisão, ele ainda é um sujeito que comete uma ação típica e precisa ser punido de forma diferente. O traficante se torna o inimigo, o culpado por todo esse caos causado e sentido pela sociedade, e que segundo Becker “é o indivíduo que vivendo em uma sociedade, comete o comportamento que segundo essa sociedade é tomado como desviado” (Outsiders, 1960), é o Outro que precisa levar a culpa, que pode ser julgado por valores estabelecidos por quem está no topo da sociedade. E pautado nessa certeza é que em 2007 o Rio de Janeiro vira palco de uma das maiores representações da política de drogas no Brasil, a guerra às drogas toma proporções cada vez maiores, mais violentas. Favelas passam a ser invadidas constantemente, o número de vítimas só aumenta e o tráfico também. Criam-se medidas cada vez mais extremas, através da GLO ( Garantia de Lei e Ordem) estabelecida em sua 1º edição pela Portaria nº 3416 de 2013, estabelece a permissão para as forças armadas, respaldadas sobre o objetivo de preservar a ordem pública, poderem invadir algum lugar suspeito e passar por cima até dos direitos constitucionais de cada cidadão, um estado de guerra declarado que só aconteceram dentro das favelas, principalmente do Rio de Janeiro, fazendo tantas vítimas por guerra em nome da paz, também chamadas de PPP’s , Programa de Polícia Pacificadora. 2. A INDISTINÇÃO USUÁRIO X TRAFICANTE DE DROGAS Como explanado anteriormente, a lei 11.343/06 fere a ideia de liberdade, proclamada pela Revolução Francesa e, hoje, assegurada constitucionalmente como direito fundamental. É imprescindível ressaltar que não só a liberdade individual é ferida como também o direito à privacidade e à intimidade, elementos fundamentais para garantia da dignidade da pessoa humana. Então qual o real sentido da tão anunciada “guerra às drogas” pelo Estado “Democrático” brasileiro? Os legisladores que acreditam que esse modelo proibicionista aniquilará o consumo/produção de drogas estão completamente destoados de razão. As substancias alucinógenas sempre existiram na natureza ou por criação química do homem e não possuem expectativa para seu fim. Mas uma coisa é certa: a lei alimenta o mercado ilegal, o medo e o crime. Para se ter ideia do poderio do tráfico de drogas, é sabido que, por ano, o crime organizado movimenta cerca de 750 bilhões de dólares, sendo 500 bilhões gerados pelo narcotráfico.1 E quem ocupa essa figura do narcotraficante? De acordo com o discurso estereotipado, divulgado pela mídia, este é um “criminoso organizado, violento, poderoso e enriquecido através da circulação ilegal desta mercadoria, conhecida em nossa legislação como “entorpecente” e hoje, genericamente, como “droga”. (ZACCONE, 2007, p.01). A busca insanável por derrotar esse “inimigo” fez crescer na sociedade o sentimento de punição, aflorado com a falta de informação que engloba grande parte da população brasileira. Por conseguinte, a lei 11.343/06 aumentou o número de presos por tráfico de drogas; de 2003 a 2013 a população carcerária triplicou e a grande contribuinte para o real fato foi a margem apreciativa que os policiais passaram a possuir para distinguir o usuário do traficante – seria redundante enunciar que milhares de usuários foram/estão presos. Segundo o Conselho Nacional de Justiça, a legalização das drogas ou a adoção de penas alternativas para o pequeno traficante poderia liberar até 25% das vagas em presídios para combater a superpopulação carcerária no país, que atualmente está em torno de 563 mil pessoas”2. 1  ZACCONE, Orlando. Acionistas do nada: Quem são os traficantes de drogas. Rio de Janeiro, Editora Revan, 2007. 2  LIMA, Helder. Fim da guerra às drogas poderia liberar 25% da população carcerária. Disponível em: Acessado em 26 de Janeiro de 2016.

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Bem, voltemos a discussão acerca da figura do narcotraficante. A seletividade punitiva engloba todo o sistema do Direito Penal sendo majorada pela busca da “eficiência”, ou “resposta ao crime” (prisões). É essa a ideação de Zaffaroni e Nilo Batista (2003, p. 43, apud Zaccone), quando concluem que “como a inatividade acarretaria o seu desaparecimento, elas seguem a regra de toda democracia e procedem à seleção”, ressaltando que esse poder de seleção corresponde, fundamentalmente às agências policiais. Posto isto, a veracidade dos fatos relata que os homens e mulheres que são presos por tráfico de drogas são pobres, com baixa escolaridade, detidos na maioria dos casos sem resistência, popularmente conhecidos como “aviõezinhos”. Essa política de seleção tem início com a ação da polícia que indiretamente delimita a faixa de atuação da Magistratura e do Ministério Público, responsáveis pelo processo e julgamento. De acordo com José Nabuco3: É curioso observar como a figura do traficante é mitificada. A maior parte deles é varejista – pessoas excluídas socialmente, vítimas de um estado negligente. No entanto, a imagem do traficante, no imaginário, é a daquele sujeito com fuzil a tiracolo, quando não a caricatura do vendedor de pipocas que induz as crianças e os adolescentes a se viciarem.

Um dos grandes problemas da política de segurança pública brasileira é o olhar concatenado aos índices que são postos pela polícia. É um erro pensar que a criminalidade sofreu um impulso nos últimos anos, pois crime sempre existiu, mas a atuação da polícia se tornou mais repressiva e os números são exemplos disso. As frases “policial que prende é policial bom” ou “bandido bom é bandido preso”, já viraram jargões, não é verdade? Isso é o reflexo do sentido que a polícia tem para a sociedade, quanto mais presos, mais eficiência e maior a segurança. Contudo, é preso aquele que porta cinco quilos de crack e aquele com três gramas de maconha, e aqui que reside a indistinção usuário x traficante. 3. ANÁLISE DOS VOTOS RELATADOS PELOS MINISTROS: GILMAR MENDES, EDSON FACHIN E LUÍS ROBERTO BARROSO. Por meio de Recursos Extraordinários, os ministros relatores do STF, até então citados, proferiram seus votos declarando a descriminalização do uso de drogas para o consumo próprio. Sendo um tema atual, mas um debate antigo da Criminologia Crítica, esse debate tirou o assunto do âmbito da invisibilidade buscando melhores adequações sociais, sem discursos autoritários, paternalistas e moralistas. É positivamente destacado quando o órgão mais alto coloca em pauta essa questão visando um efeito erga omnes, pois é mais um passo no combate das guerras às drogas implantado pelos EUA que proibia o uso das drogas a fim de reduzir o comércio ilegal. É válido ressaltar que é defendido a descriminalização, e não a despenalização ou legalização, porque, comumente, esses três termos são confundidos fazendo com que surjam leituras e interpretações equivocadas. Os ministros apoiam a exclusão de sanções criminais para a posse de drogas individual, permanecendo em determinadas condutas a adoção de medidas administrativas. Tudo isso, declarando a inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas (Lei 11.343/2006) que define como crime “adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar”, já que viola direitos fundamentais. Tais direitos dos cidadãos devem até mesmo ser limitadores do Poder Constituinte, pois esse usurpa a soberania do povo e retira o seu protagonismo político. Então, é necessário uma legítima interpretação da carta constitucional, principalmente em pontos ambíguos, que permita a real efetivação do que está escrito e mutualmente consentido por meio da participação do povo. Por isso, é relatado nos votos que essa criminalização viola o artigo 5º da CF no qual é dito “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas...”. As escolhas individuais desde que não ofensivas a terceiros ou a bens jurídicos alheios, não podem ser consideradas crime. 3  FILHO, José Nabuco. O caminho é a descriminalização de drogas. Disponível em: < http://www.diariodocentrodomundo.com.br/o-caminho-e-a-descriminalizacao-das-drogas/ > Acessado em 26 de Janeiro de 2016.

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A forte repressão atual precisa ser modificada devido a vários fatores, já que só traz malefícios à sociedade. O discurso do Ministério Público alega que a conduta da descriminalização contribui para a propagação do vício no meio social e que viola o direito à saúde e à segurança. Gilmar e Barroso citam explicitamente que o uso não afeta a saúde alheia semelhantemente ao álcool e ao tabaco e que é a criminalização que exclui e marginaliza socialmente. É indispensável se perguntar porque essa conduta ainda é tipificada de uma forma seletivista e de acordo com estereótipos. Ficamos à mercê de relatos Policiais que maquiam constantemente quem é usuário e traficante por meio do gênero e da classe. Muitos jovens são apreendidos como traficantes sendo primários e sensíveis à enquadração do sistema criminal, provocando uma superlotação nas cadeias e ficando sujeitos a aprender na “escola do crime”. Para isso, é primordial estabelecer a diferença traficante x usuário, dando Barroso um passo maior em relação aos outros por estabelecer quantidades limites de 25g e 6 plantas fêmeas. É preciso ter o controle de evidência e de justificabilidade, verificando se o bem jurídico é legitimado de forma correta pelo legislador e se a apreciação é objetiva e confiável pelas fontes de conhecimento. Diferentemente de Gilmar Mendes, Barroso e Fachin foram limitadores restringindo a descriminalização apenas para a maconha alegando ser o melhor caminho o da autocontenção. Surgiram várias críticas a partir disso, se os ministros afirmam que a guerra as drogas fracassou porque continuar criminalizando determinadas drogas como o crack ou porque continuar com tal estigma ao limitar apenas a uma droga dita burguesa. Apesar de tais dissensos, todos os votos estão na direção da descriminalização até o julgamento ser interrompido por um pedido de vista pelo ministro Teori Zavascki.. E isso deve ser o maior propósito quebrando o estigma dos argumentos perfeccionistas que justificam o tratamento penal do uso por meio da reprovabilidade moral dessa conduta, ou seja, acabar com discursos moralistas que desejam impor um padrão. De acordo com Fachin, “A dependência é o calabouço da liberdade mantida em cárcere privado pelo traficante”, com isso é necessário perceber que o dependente não deve ser tratado como criminoso e sim como vítima. Sendo importante refletir que todos nós somos vítimas de um sistema e expressões vivas do meio em que vivemos. A preocupação com conceitos é excessiva e tudo e todos são blindados contra a ordem do mundo não podendo nada “sair do padrão” imposto. É necessário parar com tais estigmatizações e expandir o poder da mente para novas descobertas e soluções. CONSIDERAÇÕES FINAIS Por fim, a análise dos votos do STF é uma importante porta de entrada para um novo entendimento político acerca das drogas, abarcando estudos na sua produção e regulamentação. É válido lembrar que o usuário é o menor dos problemas na “luta contra as drogas”, pois é sabido que muito mais gente morre em decorrência da violência gerada por essa “guerra” do que pelo seu consumo excessivo. Não se trata de apologia ao uso, mas de uma visão destoada de preconceitos, dogmas e conservadorismos. Nas palavras do Mestre José Nabuco Filho, “ É preciso deixar de lado o míope fanatismo proibitivista e avançar rumo à descriminalização das drogas. Essa é a melhor maneira de combatê-las”.

REFERÊNCIAS BARROSO, Luis Roberto. Descriminalização do porte de drogas para consumo próprio. Disponível em < http://www.luisrobertobarroso.com.br/wp-content/uploads/2015/09/Anota%C3%A7%C3%B5es-para-o-voto.pdf >Acessado em 26 de Janeiro de 2016. BATISTA, Nilo. Política criminal com derramamento de sangue. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais, n° 20. São Paulo: IBCCRIM/Revista dos Tribunais, 1997. BECKER, Howard Saul. Outsiders: Estudos de sociologia do desvio; tradução Maria Luiza X. de Borges. 1ª edição, Rio de Janeiro, editora Jorge Zahar, 2008.

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DEL OLMO, Rosa. A Face Oculta da Droga. Rio de Janeiro, editora Revan, 1990. FILHO, José Nabuco. O caminho é a descriminalização de drogas. Disponível em: < http://www.diariodocentrodomundo.com.br/o-caminho-e-a-descriminalizacao-das-drogas/ > Acessado em 26 de Janeiro de 2016. LIMA, Helder. Fim da guerra às drogas poderia liberar 25% da população carcerária. Disponível em: Acessado em 26 de Janeiro de 2016. NIEL, Marcelo. Descriminalização das drogas: do debate a guerra. Disponível em: < http://revistavisaojuridica.uol.com.br/advogados-leis-jurisprudencia/86/descriminalizacao-das-drogas-do-debate-a-guerra-293295-1.asp> Acessado em 26 de Janeiro de 2016. PORTAL DA EDUCAÇÃO. Disponível em: Acessado em 26 de Janeiro de 2016 PORTAL SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Disponível em: Acessado em 26 de Janeiro de 2016. ZACCONE, Orlando. Acionistas do nada: Quem são os traficantes de drogas. Rio de Janeiro, Editora Revan, 2007.

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O NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO E SEUS REFLEXOS PARA O PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO Fernando Flávio Garcia da Rocha Graduando em Direito na AESO (FIBAM); Membro do Grupo de Estudos Direito e Tecnologias; Membro do Grupo REC (Recife Estudos Constitucionais); Ex-Monitor de Direito Constitucional; Pesquisador no programa PIVIC com projeto de pesquisa: Democracia e Cibercultura. João Paulo Allain Teixeira Doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (2005). Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (1999), Mestre em Teorías Críticas Del Derecho pela Universidad Internacional de Andalucía, Espanha (2000), Graduado em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (1995). Professor Adjunto na Universidade Federal de Pernambuco, Professor Assistente na Universidade Católica de Pernambuco e Professor Titular nas Faculdades Integradas Barros Melo. Avaliador “ad hoc” do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) do Ministério da Educação (MEC). Membro da Comissão de Qualificação de Eventos para a área Direito da CAPES. Líder do Grupo de Pesquisa “Jurisdição Constitucional, Democracia e Constitucionalização de Direitos” no Diretório Geral de Grupos de Pesquisa CNPq. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Filosofia do Direito e Teoria Geral do Direito e do Estado, atuando principalmente nos temas Jurisdição Constitucional, Hermenêutica, Pluralismo e Teoria da Democracia.

SUMÁRIO: Introdução; 1. Roberto Viciano Pastor: delimitando o tema; 2. Considerações a respeito das constituições: 2.1 Brasil (1988); 2.2 Colômbia (1991); 2.3 Venezuela (1999); 2.4 Equador (2008); 2.5 Bolívia; 3 Neoconstitucionalismo Europeu e Novo Constitucionalismo Latino-Americano; 4 Reflexos no Pensamento Jurídico Brasileiro Contemporâneo; Considerações Finais; Referências.

INTRODUÇÃO O presente trabalho tem como objetivo analisar o movimento latino-americano denominado “Novo Constitucionalismo Latino-Americano”, que vem tomando espaço na academia desde o final do século XX e até o presente. O novo constitucionalismo é uma mudança paradigmática, que vem acontecendo na América Latina especificamente em Equador, Bolívia, Venezuela e Colômbia. Sua proposta consiste em distanciar-se das culturas europeias e norte americana, que, de certa forma, tiveram influência no processo civilizatório dos países da América Latina. No primeiro momento, far-se-á a delimitação do tema a partir das considerações de Roberto Viciano Pastor. Segundo Brandão, Viciano foi o primeiro a estudar o a temática sob o viés da Teoria da Constituição (2015, p.12).1

1  Ressalta-se que a afirmação hoje não pode ser entendida no sentido absoluto, visto que muitos autores tiveram e continuam tendo influência no estudo.

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Em seguida, tecer-se-á comentários ao Neoconstitucionalismo Europeu, tentando, assim, diferenciar do Novo Constitucionalismo Latino-Americano. Essa análise pretende suscitar uma reflexão para saber se um pode servir de continuidade do outro, ou seja, o Novo Constitucionalismo Latino-Americano pode ser entendido como extensão do Neoconstitucionalismo Europeu?! Por fim, não pretendendo esgotar a complexidade do tema, estudaremos e tentaremos refletir os reflexos do Novo Constitucionalismo Latino-Americano no Brasil. 1. PERSPECTIVA DE ROBERTO VICIANO PASTOR: DELIMITANDO O TEMA. À primeira vista é necessário sugerir limites ao exagero terminológico, que gera entendimentos equivocados sobre a matéria em análise. Vê-se a baixo o rol de nomenclaturas que permeiam o debate do Novo Constitucionalismo Latino-Americano: i) novo constitucionalismo latino-americano; ii) constitucionalismo mestiço; iii) constitucionalismo andino; iv) neoconstitucionalismo transformador; v) constitucionalismo do sul; vi) constitucionalismo pluralista; vii) constitucionalismo experimental ou constitucionalismo transformador; viii) constitucionalismo plurinacional e democracia consensual plural do novo constitucionalismo latino-americano; ix) novo constitucionalismo indoafrolatino-americano; x) constitucionalismo pluralista intercultural; xi) constitucionalismo indígena; xii) constitucionalismo plurinacional comunitário; xiii) o novo constitucionalismo indigenista; xiv) constitucionalismo da diversidade; xv) constitucionalismo ecocêntrico; e xvi) nuevo constitucionalismo social comunitário desde América Latina (BRANDÃO, p.10).

Entende-se ser preocupante a extensa linhagem de termos que envolve o estudo do Novo Constitucionalismo Latino-Americano, por essa razão, considera-se mais correto: novo constitucionalismo latino-americano. Roberto Viciano Pastor faz a seguinte análise sobre o tema: primeiro, distingue o Novo Constitucionalismo Latino-Americano do Neoconstitucionalismo Europeu. Assim, este seria uma teoria do direito, enquanto que aquele uma teoria da Constituição porque visa a uma análise da dimensão positiva da Constituição. Nesse sentido, não busca uma ruptura, apenas converter o Estado de Direito em Estado Constitucional de Direito, embora reconheça a centralidade e o fortalecimento da Constituição, especificamente com a forte presença dos princípios no ordenamento jurídico (VICIANO PASTOR, Roberto; MARTÍNEZ DALMAU, Rubén. p., 17-18). Brandão pondera que o Novo Constitucionalismo Latino-Americano é um movimento surgido das reivindicações e manifestações populares, diferente do Neoconstitucionalismo Europeu que é uma corrente doutrinária fruto da academia, dos professores de direito constitucional (2015, p. 13). Enquanto que Pastor, entende que aquele é uma corrente constitucional em período de construção doutrinária, com elementos comuns, mas sem um modelo hermético (VICIANO PASTOR, Roberto; MARTÍNEZ DALMAU, Rubén., p., 4). Em seguida, faz saber que o Novo Constitucionalismo Latino-Americano, ao mesmo tempo em que absorve alguns comandos do Neoconstitucionalismo Europeu, especificamente a constituição no ordenamento jurídico, ostenta preocupação central com a legitimidade democrática da constituição, garantindo a participação política, de forma que só a soberania popular pode determinar a alternativa da constituição, e recuperando a origem democrático-radical do constitucionalismo liberal revolucionário jacobino (VICIANO PASTOR, Roberto; MARTÍNEZ DALMAU, Rubén., p., 18-19). Ademais, uma das principais diferenças que marca o Constitucionalismo Velho da América Latina, em relação ao Novo Constitucionalismo Latino-Americano, refere-se aos processos constituintes. Enquanto que aquele era fruto de um acordo de elites, baseado em interesses comuns, este faz parte de uma dinâmica participativa e marcada por tensões (VICIANO PASTOR, Roberto; MARTÍNEZ DALMAU, Rubén., p., 22).

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Logo após, diz que a Constituição brasileira de 1988, ainda que tenha traços essenciais, não é considerada um exemplo do Novo Constitucionalismo Latino-Americano, visto que o seu processo constituinte é deficitário de legitimidade democrática na Assembleia Constituinte, pois ainda era condicionada às regras do Regime Militar (VICIANO PASTOR, Roberto; MARTÍNEZ DALMAU, Rubén., p., 318-319). Levando em consideração o exposto, acredita-se ter introduzido o tema para uma melhor compreensão do tema ora proposto. 2. CONSIDERAÇÕES A RESPEITO DAS CONSTITUIÇÕES. Não pretendemos esgotar a complexidade do tema sobre as Constituições, visto o notório arcabouço teórico e empírico. Nesse sentido, procuraremos colocar apenas os pontos que entendemos ser os mais importantes. Verifica-se presente, em primeiro lugar nessas constituições, o plebiscito como elemento legitimador das constituições, visto ser condição indispensável para dar valor legal a todos os atos decorrentes da sua aplicação. Aliás, foi a pré-condição estabelecida pela própria ditadura. Perpassaram oito anos e nada de plebiscito. O uso deste foi uma das características da ditadura fascista e nazista nas décadas de 1920 e 1930, sempre com o intuito de buscar apoio popular a uma medida já em curso. Segundo Villa, o século XXI, os novos caudilhos Latino-Americanos, como Venezuela, Bolívia, Equador e Colômbia, usaram diversas vezes desse instrumento, sempre como o mesmo intuito: aprovar medidas que feriam as liberdades democráticas (2011, p. 76). Contribui também Barros e Gomes Neto: A proposta das constituições, fruto da doutrina constitucional “novo constitucionalismo latino-americano”, é romper com esse constitucionalismo liberal importado e construir um Estado que reconheça que a sociedade latino-americana não é homogênea, mas plural, dando voz a grupos antes excluídos do processo político, como os povos indígenas (2015, p. 2148).

A par disso, começa-se a observar as constituintes: 2.1. BRASIL, (1988).

Rocha e Saldanha (2014, p. 6) entendem que diferente das constituintes anteriores do Brasil, esta previu uma organização tanto quanto satisfatória albergando todas as garantias e direitos dos cidadãos. Compreende, assim, em nove títulos, que cuidam: 1 Dos direitos fundamentais; 2 Dos direitos e garantias fundamentais; 3 Organização do Estado; 4 Organização dos Poderes; 5 Defesa do Estado e das Instituições Democráticas; 6 Da Tributação e do Orçamento; 7 Ordem Econômica e Financeira; 8 Ordem Social; 9 Disposições Gerias. Embora possa ser considerada uma constituição que não faz parte o Novo Constitucionalismo Latino-Americano, pode-se dizer que após Emendas à Constituição, bem como às Emendas Revisionais, o cenário permutou para uma legislação mais avançado, ao ponto se ser entendida, no sentido formal, como parte do Novo Constitucionalismo Latino-Americano. Brandão observa que a Constituição brasileira de 1988, ainda que anuncie alguns traços essenciais, não é considerada um exemplo desse Novo Constitucionalismo Latino-Americano, devido ao seu processo constituinte deficitário de legitimidade democrática em sua Assembleia Nacional Constituinte, condicionada às regras ditatórias (BRANDÃO apud VICIANO PASTOR, Roberto; MARTÍNEZ DALMAU, Rubén 2015, p. 16). 2.2. COLÔMBIA, (1991) .

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A Constituição Colombiana de 1991, pode ser considerada um marco, em razão de sua proposta de ruptura, de transformação da ordem política e através da ativação direta do poder constituinte, traços que se repetiram nas cartas posteriores Venezuela, Bolívia e Equador (ORIO apud PASTOR e DALMAU, p. 172). É de se ressaltar o impasse que essa Constituição passa, visto que alguns entendem que ela não faz parte do Novo Constitucionalismo Latino-Americano, porém entendemos que, embora ela não tenha se desenvolvido como as outras, foi a primeira a prever mudanças paradigmáticas em detrimento aos modelos colonizados. Brandão entende que a Constituição Colombiana, entre outras coisas, foi a pioneira no reconhecimento da jurisdição autônoma indígena, contribuindo para o desenvolvimento do pluralismo jurídico nos ordenamentos jurídicos de nosso continente. É claro que há outras constituições que contribuíram, com menor intensidade, para o surgimento do Novo Constitucionalismo Latino-Americano, porém a experiência colombiana se destaca no campo constitucional de nossa região (2015, p. 85-86). 2.3. VENEZUELA, (1999).

A Constituição da Venezuelana está no limbo, ou seja, entre a pioneira ou precursora do Novo Constitucionalismo Latino-Americano, ao lado na Colombiana que fora acima estudada. Ora, são citadas como precedente desse movimento, outrora enquanto sua parte integrante, porém sem grande desenvolvimento acerca de suas inovações e de sua importância, de modo que merecem uma atenção especial (BRANDÃO, 2015 p. 85). A Venezuela com o restabelecimento da ordem democrática após a queda de ditador Marcos Pérez Jiménez, 1958, constituiu-se numa chamada “democracia de vitrine”. Assim, erigida sobre e para a manutenção da hegemonia das mesmas forças políticas e absolutamente incapaz de enfrentar problemas como a desigualdades socioeconômicas e étnicas, o que se agudizou profundamente com a crise econômica dos anos 80, culminando num acirramento da luta de classes e na demarcação nítida dos campos políticos (ORIO 2013, p. 167). 2.4. EQUADOR, (2008).

Orio (2013, p. 169) observa que, no Equador os processos transformadores haviam alcançado desfecho interessante do ponto de vista da tomada do poder por forças contra hegemônicas ainda em 2002, com a eleição de Lucio Gutierrez para a presidência com apoio do movimento indígena, centralizado na Confederação de Nacionalidade Indígenas do Equador (CONAIE). Acrescenta o mesmo autor, o que se viu, todavia, foi um governo de orientação neoliberal, fazendo com que logo após seu início o movimento indígena se lhe afastasse e acabasse por se dividir e consequentemente, perder forças e legitimidade. O cenário equatoriano para a derrubada do Presidente Lucio, destarte, foi permeado por um movimento opositor difuso e semi-espontâneo, um amálgama de setores oriundos de diversas correntes de esquerda, de cidadãos independentes e de organizações e ONGs que lutavam por ética na política e contra a partidocracia (ORIO 2013, p.169) Brandão denota que a Constituição Equatoriana é a que parece mais comprometida com a transformação radical da sociedade, inserindo no novo constitucionalismo elementos que antes eram estranhos à teoria da constituição. A cosmovisão indígena incorporada por essa constituição é a experiência que certamente reconstrói e, no mesmo interim, desconstrói a racionalidade monolítica a que o direito e a modernidade estão acostumados (2015, p. 140). 2.5. BOLÍVIA, (2009).

A Bolívia, com as Guerras da Água e do Gás, desencadeada nas cidades bolivariana de Cochabomda e El Alto, respectivamente, foram respostas à medida de aumento extraordinário no preço das tarifas do serviço de distribuição de água, administradas por uma empresa transnacional, e à intenção do governo Sánchez de

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Lozada de exportar o gás bolivariano através do Chile, sem perspectiva de atendimento da demanda interna (ORIO, 2013 p. 167) Ademais, à medida que a repressão estatal tornava-se violenta, houve crescente aderência da sociedade civil e outros setores organizados, culminando num movimento de espectro amplo, que não só reivindicava a nacionalização dos recursos naturais bolivarianos, como também inaugurava novos marcos de participação política e articulação social, pautado, especificamente, uma nova ordem política, protagonizada por novos sujeitos políticos, tradicionalmente excluídos, em detrimento do monopólio das elites nos espaços de deliberação (ORIO, 2013, p. 168). Conclui-se este capítulo, afirmando que não se fez esgotado o tema das Constituições Latino-Americanas, porém procuramos tecer apenas alguns comentários sobre elas a fim de esclarecer um pouco de suas virtudes. Verifica-se ainda que, essas são uma viravolta nos modelos de participação popular, visto ter um regramento inovador; além de matérias referentes à natureza, dentre outros temas que serão analisados em trabalhos futuros. 4. NEOCONSTITUCIONALISMO EUROPEU E O NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO: UMA PROPOSTA DE CONTINUIDADE.

Observa-se que, atualmente, são veiculados em sites, blogs, revistas e em livros, artigos que têm com o condão de estudar o Novo Constitucionalismo Latino-Americano, bem como o Neoconstitucionalismo Europeu. Todavia, na maioria das vezes, não se consegue distinguir ambos os sistemas, tendo em vista a terminologia utilizada, com isso não se sabe, em razão da falta de clareza. Por essa razão, sugerimos a utilização da seguinte nomenclatura Novo Constitucionalismo Latino-Americano e não Neoconsconstitucionalismo, quando a pretensão for estudar o movimento Latino-Americano. O Neoconstitucionalismo Europeu surge logo após a 2º Guerra Mundial, na Europa Continental, especificamente no Itália, Alemanha, Portugal e Espanha (BARROSO, 2007 p. 3), para fortificar as esperas jurídicas contra as forças de violação de direitos humanos. As Constituições dos países mencionados têm como características comuns: a extensa declaração de Direitos e Garantias Fundamentais, de forte conteúdo axiológico e cultural dotado de historicidade, que representam a permuta de regime autoritários para democráticos, e adentram em temas que antes eram estranhos à constituição. André Rufino do Vale entende que esse movimento tem como características: mais princípios que regras, mais ponderação que subsunção, mais constituição que lei, mais juiz que legislador (VALE apud Pietro Sanchis, 2007 p. 68). Surge, assim, para proteger os Direitos Humanos dos regimes fascistas (Alemanha Nazista, por exemplo). O maior legado do Neoconstitucionalismo Europeu é o fortalecimento do ser humano no centro do ordenamento jurídico. Em razão disso, acredita-se que esse sistema serviu de base para o Novo Constitucionalismo Latino-Americano, ponto que será estudado mais a frete. Pode-se dizer que a Dignidade Humana foi regulada na Constituição brasileira de 1988 e nas europeias da Alemanha 1949, Itália 1947, Portugal 1976, Espanha 1978 e na própria Declaração de Direitos Humanos 1948. Portanto, entende-se que o Neoconstitucionalismo Europeu trouxe a fortificação da Constituição e o reconhecimento da Dignidade Humana nos países Latino-Americanos. Por outro lado, o Novo Constitucionalismo Latino-Americano reconhece o Pluralismo Político e os atores antes excluídos do processo democrático. Assim, esse sistema começa a surgir no fim do século XX, e até hoje continua sendo pesquisado e bastante discutido, inclusive sendo proposta de vários congressos mundo afora.

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César Augusto Baldi explica que, em fins do século XX, no continente americano, há importantes modificações dentro daquilo que Raquel Yrigoyen denomina de “Horizonte Pluralista”, assim estudado em três ciclos (BALDI, 2013, p. 92). O primeiro ciclo o Constitucionalismo Multicultural 1982-1988, introduz o conceito de diversidade cultural, ou seja, o reconhecimento da configuração multicultural da sociedade e alguns direitos específicos para indígenas. Assim, os atores começam a surgir (BALDI apud Raquel Yrigoven 2013 p. 92). O segundo ciclo o Constitucionalismo Pluricultural 1989-2005, marca a internalização, na maior parte do continente, da Convenção 169- OIT, que revisa a anterior Convenção 107 e reconhece um amplo leque de direitos indígenas (língua, educação, bilíngue, terras, consulta, formas de participação jurisdição indígena, etc), (BALDI apud Raquel Yrigoven 2013 p. 93). A jurisdição indígena é reconhecida na Constituição colombiana de 1991 e depois pelo Peru 1993, Bolívia 1994-2003, Equador 1998 e Venezuela 1992. O Terceiro ciclo o Constitucionalismo Plurinacional 2006-2009, está conformado pelas constituições boliviana e equatoriana, reconhecendo, assim, os direitos dos povos indígenas. Fundado em dispositivo para a refundação do Estado, e entendendo os indígenas como nações/povos e nacionalidades e, portanto, como sujeitos políticos coletivos com o direito a definir seu próprio destino, governar-se em autonomias e participar nos pactos de Estado (BALDI apud Raquel Yrigoven 2013 p. 93-94). Com a apresentação dos três ciclos, torna-se evidente a diferença do Neoconstitucionalismo Europeu do Novo Constitucionalismo Latino-Americano. Ressalta-se que o apresentado, como marco de distinção foi a cosmovisão indígena, significa dizer que os modelos de matrizes europeia não reconheceram detalhadamente essa questão, portanto, à luz dessa realidade colocou ao crivo para diferenciar ambos sistemas. A proposta de continuidade, que propomos neste tópico, surge em razão da lógica temporal, isto é, o Neoconstitucionalismo Europeu advém após fim da 2º Guerra Mundial 1945 e o Novo Constitucionalismo Latino-Americano nasce no fim do século XX, e continua sendo estudo em pleno XXI. Nesse sentido, a fortificação da Constituição que provém daquele ainda está presente neste, bem como a dignidade humana, ambos corolários do sistema de matriz europeia. Então, não se trata necessariamente de uma negação absoluta do Neoconstitucionalismo Europeu, pois há pontos de convergência entre os dois movimentos (BRANDÃO, 2015 p. 63). O que há, no caso apresentado, é uma mudança paradigmática nos agentes legitimados a alterar o poder constituído, enquanto que no Novo Constitucionalismo Latino-Americano é o povo o detentor dessa prerrogativa, no Neoconstitucionalismo Europeu, são os mandatários e agentes legitimados. Transpassando essas considerações, vamos estudar no item a seguir os reflexos desse movimento Latino-Americano no contexto do pensamento jurídico brasileiro contemporâneo. 5. REFLEXOS NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO Neste penúltimo capítulo, vai-se elencar um quadro comparativo com as Constituições do Equador e da Bolívia, a fim de comparar com a Constituição Federal do Brasil de 1988. Com isso, evidenciaremos os avanços e os reflexos para o pensamento jurídico brasileiro. Verifica-se na Constituição do Equador: I Elementos constitutivos del estado; II Derechos de las personas y grupos de atención prioritária; III Derechos de las comunidades, pueblos y nacionalidades; IV Derechos de participación; V Garantías constitucionales; VI Participación y organización del poder; VII Función Judicial y justicia indígena; VIII Biodiversidad y recursos naturales (Constituição do Equador, 2008). Observa-se na Constituinte da Bolívia: I Bases Fundamentales del Estado; II Principios, Valores y Fines del Estado; III sistema de gobierno; IV Derechos fundamntales y garantias; VI derechos civiles y políticos; VII Derechos de las Naciones y Pueblos Indígena Originario Campesinos; VIII Derechos Sociales y Económicos; IX composición y atribuciones del órgano ejecutivo (Constituição Bolívia, 2009).

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Percebe-se na Constituição de Federal do Brasil: I Dos direitos fundamentais; II Dos direitos e garantias fundamentais; III Organização do Estado; IV Organização dos Poderes; V Defesa do Estado e das Instituições Democráticas; VI Da Tributação e do Orçamento; VII Ordem Econômica e Financeira; VIII Ordem Social; IX Disposições Gerias (Constituição Federal, 1988). É notório, tanto primeira, quanto na segunda, o respeito aos direitos dos indígenas, talvez esse seja a maior contribuição de mudança no cenário Latino-Americano. Além de do mais, a participação social da população, incluindo os indígenas. O que se pode ter em mente é que as três Constituições têm em comum garantias e preocupações parecidas, porém em certos casos a brasileira se distancia. Em razão de haver inúmeras características, analisaremos as duas exposta aqui. Segundo César Augusto Baldi, tanto a Constituição do Equador, quanto a da Bolívia, preveem o direito à consulta prévia, livre, informada e de boa fé relativamente a medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetar as comunidades indígenas, em especial programas de exploração de recursos não renováveis (BALDI, 2013, p. 101). Nesse sentido, portanto, percebemos que o Novo Constitucionalismo Latino-Americano pode influenciar o Brasil a criar “novas medidas tendentes a respeitar com maior extensão os direitos dos indígenas”, bem como “assegurar uma participação popular mais efetiva”, além de prever a “possibilidade de autodeterminação dos povos indígena” ao ponto de permitir aos indígenas a possibilidade criar seus próprios Tribunais sem a interfere do direito estatal. O Brasil no sentido normativo, em razão dos avanços legais (emendas à constituição, por exemplo), mostra-se ter as características do Novo Constitucionalismo Latino-Americano. Por outro lado, o que o distancia é a falta de atividades sem a participação popular, enquanto que no Equador e na Bolívia é pré-requisito para o exercício a manifestação do povo. Finalmente, entendemos que o diálogo entre Estados/Constituições pode ser positivo tanto para o crescimento, quanto para o fortalecimento de medidas nacionais. Assim, Marcelo Neves destaca que a racionalidade transversal, quando não houver possibilidade de violação de direitos humanos, com mais de dois sistemas viabiliza o intercâmbio construtivo entre política, direito e economia (NEVES, 2009, p. 50-51). CONSIDERAÇÕES FINAIS Ante o exposto, conclui-se ressaltando a importância de se estudar o tema na América Latina, visto ser uma temática em constante desenvolvimento que repercute no plano nacional e, também, no internacional. Os reflexos do Novo Constitucionalismo Latino-Americano no Brasil dizem respeito ao modo de pensar dos cidadãos, bem como dos mandatários. Assim, estes terão o condão criar medidas mais integrativas e tendentes a dar vida ao texto normativo, enquanto que aqueles a responsabilidade de reivindicar os direitos violados. Por fim, não tivemos a pretensão de esgotar o tema, porém entendemos que podemos contribuir com o debate. REFERENCIAS BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito: o triunfo tardio do direito constitucional do Brasil. Disponível em: http://ww3.lfg.com.br/material/marcelo_novelino/mpfemagisfed_201207_aula1_novelino.pdf. Acessado em: 21 dez. 2015. BALDI, César Augusto. Novo Constitucionalismo Latino-Americano: considerações conceituais e discussões epistemológicas. In: crítica jurídica na américa latina. Disponível em: https://www.

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AS TRANSFORMAÇÕES DO ENSINO JURÍDICO A PARTIR DA UTILIZAÇAO DAS NOVAS TECNOLOGIAS DA INFORMAÇÃO Fernando Flávio Garcia da Rocha Graduando em Direito na AESO (FIBAM); Membro do Grupo de Estudos Direito e Tecnologias; Membro do Grupo REC (Recife Estudos Constitucionais); Ex-Monitor de Direito Constitucional; Pesquisador no programa PIVIC com projeto de pesquisa: Democracia e Cibercultura. Paloma Mendes Saldanha Mestranda em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). Especialista em Direito da Tecnologia da Informação pela Universidade Cândido Mendes (UCAM/RJ). Professora. Advogada. Membro da Comissão de Tecnologia da Informação da OAB/PE. Multiplicadora do Processo Judicial Eletrônico pelo Conselho Federal da OAB

SUMÁRIO: Introdução; 1. Cibercultura sob a Perspectiva do Estado Democrático de Direito. 2. Novas formas de Ensino: Educação versus Internet. 3. As novas tecnologias no ensino jurídico. Conclusão. Referências.

INTRODUÇÃO Durante muitos anos entendeu-se o ensino jurídico como algo geometrizado, ou seja, por analogia o alunado deveria participar de um “jogo de memória” para apostar num futuro de conhecimento. Ocorre que através da geometrização tem-se a criação de uma ilusão de segurança, certeza e fechamento para o Direito. Entretanto, é esse método matemático que torna o Direito inseguro e o ensino jurídico sem qualquer manifestação de pensamento ou despertar de senso crítico. É o que chamamos de ensino baseado no dogmatismo. Entretanto a dogmática jurídica é uma “herança” que temos que decidir o que será feito com ela: aperfeiçoamos ou a transformamos? A partir de um novo contexto social baseado na evolução das novas tecnologias da informação, sobretudo, com o advento da internet surgiram outras formas de transmissão de conhecimento. A cibercultura ao trazer seu universo de informações, amplifica, exterioriza e modifica numerosas funções cognitivas humanas. Dessa forma, o alunado que cresce sob a influência da “nova educação” termina por ter um pensamento e raciocínio aberto, contínuo e não-lineares. Assim, a utilização de novas metodologias acrescidas às novas tecnologias da informação terminam por não aceitar o pensamento cartesiano, trazendo, portanto, a retirada do dogmatismo, da univocidade da lei, bem como da interpretação literal desta. “Abrem-se as portas” para o pensamento crítico, para a hermenêutica, colocando, por sua vez, o direito como ciência da compreensão e trazendo para sala de aula, por exemplo, um processo de ensino-aprendizagem baseado em jurisprudências. Diante disso, pretende-se analisar novos paradigmas educacionais advindos da participação das novas tecnologias no processo de ensino-aprendizagem jurídico, bem como analisar quais os benefícios e as melhorias com a utilização desses novos paradigmas educacionais para o operador do Direito e para o meio jurídico propriamente dito.

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1. CIBERCULTURA SOB A PERSPECTIVA DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO. A partir do contexto contemporâneo, é normal surgirem conceitos que envolvem tanto a Teria Geral do Direito, quanto à Filosofia, à Sociologia, à Antropologia, à Hermenêutica e, assim, por diante. Ademais, é comum haver definições que não corresponde à essência de cada instituto. Dessa forma, mesmo a Cibercultura e o Ciberespaço tendo conceitos antagônicos e pretensões opostas, na prática acabam por se confundir. Segundo Pierre Lévy: O ciberespaço é o espaço de comunicação aberto pela interconexão mundial dos computadores e das memórias dos computadores. Essa definição inclui o conjunto dos sistemas de comunicação eletrônicos (aí incluídos os conjuntos de redes hertzianas e telefônica clássica), na medida em que transmitem informações provenientes de fontes digitais ou destinadas à digitalização (LÉVY, p. 102).

Sabendo disso, é notável que atualmente o conhecimento é fruto de fontes diversas às quais sedimentaram o contexto Pós Segunda Guerra Mundial. Ou seja, modelo em que os receptores ficam submersos aos transmissores. Como mudança, o ciberespaço traz um novo paradigma a ser absorvido pelas gerações mais antigas vez que as novas gerações de indivíduos parecem já nascer predisposto ao acesso e vivência no meio virtual. Aurélio entende que a Cibercultura é conjunto de padrões culturais com a Internet e a comunicação em redes de computadores. Isto é, enquanto que o conceito de ciberespaço especifica o que de fato é o espaço, este esclarece a cultura pode ser desenvolvida por meio espações dinâmicos (FERREIRA, 2010). Dessa forma, os conceitos não se confundem.

Considerando os pontos apresentados, verifica-se que a lógica dinâmica da rede é uma saída para difundir o conhecimento. Assim, não precisando ficar adstrito a modelos ultrapassados de fomentação do conhecimento. Sabendo disso, passa-se a análise dos instrumentos constitucionais de inclusão do cidadão ao ensino. José Afonso da Silva (2015, p. 853) entende que a Constituição de 1988: deu relevância à cultura tomando esse termo no sentido abrangente da formação educacional do povo, expressão criadora da pessoa e das projeções do espirito humano materializadas em suportes expressivos, portadores de referências à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, que se exprimem por vários artigos, formando aquilo que se considera ordem constitucional da cultura, ou constituição cultural.

A Constituição da República Federativa do Brasil, em seu artigo 205, prevê que: a base constitucional para o ensino. Dessa forma, a educação, direito de todos e dever do Estado e da Família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

Acredita-se que, em razão da prevalência da Constituição, os entes Federativos (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) devem procurar sempre criar mecanismos para a concretização do direito fundamental à educação. Ressalta-se que, a educação privada ou publica não interferem na proposta deste

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trabalho, mas, sim, como ela está sendo reconhecida como forma de conhecimento. Portanto, cibercultura e ciberespaço são elementos que podem servir de instrumentos para divulgação do conhecimento. Assim, pergunta-se: A Cibercultura e o Ciberespaço podem contribuir à propagação de conhecimento? De que forma a tecnologia influencia no ensino jurídico e como podemos designar esse novo processo de ensino-aprendizagem tendo em vista a inclusão/participação das novas tecnologias da informação? 2. NOVA FORMA DE ENSINO E APRENDIZADO: EDUCAÇÃO VERSUS INTERNET. Ao consultar o DICIONÁRIO AURÉLIO, educação é: O princípio comunicativo, utilizado pelas sociedades, para desenvolver no indivíduo a consciência de suas potencialidades, a partir de interpretação dos sinais gráficos até a construção dos conhecimentos que favoreçam o desenvolvimento d um raciocínio comportamental e disciplinar, na sua individualidade, diante do grupo social e no meio ambiente de que vive.

A partir dessa premissa, é de salutar pertinência observar a importância do Ensino e até mesmo o que se espera de um Estado através dos entes públicos e privados. Denota-se ainda que, o ensino privado, embora seja criada por entes privados, o estado tem muita incidência em sua construção. Sabe-se que a educação é um Direito Fundamental, além de ser um dever Estado Democrático promover políticas de prevenção e incentivo, bem como sendo um dever dos entes federativos desenvolver técnicas tendentes a concretizá-la e/ou tornar presente e evidente. Sabendo disso, indaga-se como relacionar a educação com a internet? Internet, relembrando, encontra-se vinculada diretamente com o ciberespaço ou cibercultura, mas para definir é necessário para qual fim o acesso é utilizado. Com o advento da internet/ou ciberespaço o conteúdo das disciplinas lecionadas em salas de aulas de grandes universidades passou a ser compartilhado. Os grandes livros passaram a ser de acesso de todos, sem que seja necessário, por exemplo, visitar um outro país para adquirir o exemplar. No Brasil expande-se a oferta de cursos à distância através da internet, consequentemente o cenário é alterado significativamente deixando de lado os métodos tradicionais. As novas tecnologias da informação com o auxílio/suporte da internet trouxeram para as salas de aula uma maior dinâmica, fazendo com que o aluno deixe de ser mero receptor de informações e passe a ser participante ativo no processo de ensino-aprendizagem. A construção do conhecimento, a partir do processamento multimídico, é mais «livre», menos rígida, com conexões mais abertas, que passam pelo sensorial, pelo emocional e pela organização do racional; uma organização provisória, que se modifica com facilidade, que cria convergências e divergências instantâneas, que precisa de processamento múltiplo instantâneo e de resposta imediata (MORAN 1998, pp. 148-152). Ou seja, para captar e expressar de maneira absoluta todo o conteúdo que se pretende discutir, o ser humano conecta informações, relaciona dados, acessa novos objetos e os integra das mais variadas formas. Pensar é aprender a raciocinar através de critérios e razões bem fundamentadas. As informações chegadas tendem a seguir o processamento lógico-sequencial que se define pela expressão da linguagem falada e escrita, ou seja, a construção se dá aos poucos. Em outros momentos, conseguimos processar a informação de maneira hipertextual. Ou seja, histórias se interconectam levando a ampliações e novos significados, o que garante uma comunicação “linkada”. O paradigma na era digital, na sociedade da informação, enseja uma prática docente assentada na construção individual e coletiva do conhecimento. Não basta a aula expositiva para conhecer. O conhecimento se dá cada vez mais pela relação prática, teoria, pesquisa e análise. Assim, numa sociedade conectada e multímidia, o conhecimento edifica-se melhor no equilíbrio entre as atividades individuais e grupais, com muita interação e práticas significativas. A sala de aula passa a ser um locus privilegiado como ponto de encontro para acessar o conhecimento, discuti-lo, depurá-lo e transformá-lo. A troca de informações entre os usuários pode acontecer em nível local, estadual, nacional e internacional. A pesquisa de dados, a assinatura

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de revistas eletrônicas e o compartilhamento de experiências em comum podem vir a anexar um novo significado à prática docente. O uso da Internet com critério pode tornar-se um instrumento significativo para o processo educativo em seu conjunto. Ela possibilita o uso de textos, sons, imagens e vídeo que subsidiam a produção do conhecimento. Além disso, a Internet propicia a criação de ambientes ricos, motivadores, interativos, colaborativos e cooperativos. Dessa forma, as TIC´s possibilitam a utilização do que se chama de metodologias ativas. Ou seja, o trabalho em parceria com a aprendizagem colaborativa e significativa. A ideia é trazer o aluno para o plano de protagonista da aula através do seu conhecimento prévio. Todos os alunos possuem um ponto de vista sobre tudo, cabendo, apenas, ao professor direcionar esse olhar para o lado correto instigando o aluno a pensar através de questionamentos que sejam feitos pelo professor ou até mesmo por outro aluno. A interação em sala passa a trazer produtividade e fixação de conhecimento. Ao explicar um conceito e verificar dúvidas na sala de aula, o Professor pode, por exemplo, solicitar ao aluno que disse ter compreendido o assunto que o explique para os demais que não entenderam. A linguagem e os exemplos utilizados serão outros e, provavelmente, mais próximos da realidade do alunado. Esse momento é importante para o Professor captar se houve de fato compreensão do que fora dito. E assim a aula segue com a participação dos alunos e do Professor como facilitador do conhecimento. Retira-se a aula cujo objetivo é a transmissão de conhecimento e dá-se lugar a criação do conhecimento. MORAN (2011) entende que: As redes digitais possibilitam organizar o ensino e a aprendizagem de forma mais ativa, dinâmica e variada, privilegiando a pesquisa, a interação e a personalização dos estudos, em múltiplos espaços e tempos presenciais e virtuais. Assim, a organização escolar precisa ser reinventada para que todos aprendam de modo mais humano, afetivo e ético, integrando os aspectos individual e social, os diversos ritmos, métodos e tecnologias, para ajudarmos a formar cidadãos plenos em todas dimensões

Para DAMASCENO (2016), A educação desprovida de novas tecnologias resumida ao uso das tecnologias antigas e no simples discurso do professor admite que o espaço da aula transfigure-se num ambiente de monotonia sem estímulo algum aos principais elementos de mobilidade do processo. Cabe ao professor buscar o conhecimento sobre o uso adequado das novas tecnologias, uma vez que todo e qualquer instrumento utilizado para mediar à interação professor/aluno é considerado ferramenta tecnológica.

Entretanto, antes de ter competências técnicas, o professor deve ser capaz de identificar e de valorizar suas próprias competências, conforme assegura Phillippe PERRENOUD (2000) quando diz que ”competência em educação é a faculdade de mobilizar um conjunto de recursos cognitivos, como saberes, habilidades e informações, para solucionar problemas com pertinência e eficácia”. 3. AS NOVAS TECNOLOGIAS NO ENSINO JURÍDICO. Edgard MORIN (2002, p. 47) adverte que o ensino do futuro deve ser “centrado na condição humana” e que os seres humanos “devem reconhecer-se em sua humanidade comum e ao mesmo tempo reconhecer a diversidade cultural inerente a tudo que é humano”. É necessário que se entendam em toda a sua complexidade, e para isso não se pode estudá-los de forma desunida, é essencial que se tenha uma visão tanto oriunda das ciências naturais quanto das ciências humanas, assim como das humanidades, a fim de que se chegue mais perto da compreensão da complexidade humana e da tomada de consciência dessa condição.

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Seguindo o contexto da cibercultura, o Judiciário também enfrenta sua virtualização. Questões que antes eram tratadas única e exclusivamente por via física, passam a ter como opção (e em alguns casos a obrigatoriedade) o uso do Processo Eletrônico. Este, por sua vez, requer a utilização de aplicativos virtuais para a confecção e envio das, agora, chamadas petições eletrônicas. E as provas, que antes eram de caráter unicamente físico, passam a ter sua origem também no mundo virtual. BERNARDES E ROVER (2010, p. 31) afirmam que: “[...] a partir da idéia que o direito deve servir para solucionar problemas decorrentes das novas relações sociais (que estão cada vez mais complexas), para os quais nem sempre a legislação oferece respostas em suas normas. É que desponta a necessidade de formação de profissionais sensíveis às transformações culturais e novas demandas sociais existentes, ou seja, desde a graduação os profissionais do direito deveriam ser treinados para apresentar um pensamento dialético.”

Dessa forma, com a introdução das TIC´s, o ensino jurídico sai do tradicionalismo de abarcar unicamente áreas conservadoras e passa a fazer parte do mundo virtual com temas como contratos eletrônicos, E-commerce, relação consumerista no ambiente virtual, privacidade on-line, assinatura e segurança eletrônica, direitos autorais, crimes cibernéticos e teletrabalho. Para melhor compreensão dos temas tratados, faz-se necessária a introdução ao ambiente que se é estudado. Ou seja, ambiente virtual. Então, do ponto de visa metodológico, entende-se que o que se constata é que além de aulas expositivas (fundadas na educação bancária), quase nada mais é oferecido ao aluno. Assim, a faculdade de direito que deveria ser o locus apropriado para o aluno aprender a pesquisar, raciocinar, compreender e, sobretudo, interpretar, pouco faz no sentido de preparar o futuro profissional para o mercado, o que dificulta sobremaneira a empregabilidade do diplomado e contribui para aumentar a falta de confiança da população no advogado. (BERNARDES E ROVER (2010, p.30-31)

As novas ferramentas do processo de ensino-aprendizagem permitem que o alunado do ensino jurídico se visualize como protagonista do procedimento a partir do momento em que, por exemplo, trazem instantaneamente para dentro da sala de aula uma decisão recente sobre o tema discutido. Ora, qual seria a proposta da utilização das novas tecnologias no ensino jurídico que não a promoção do debate a partir de análise crítica entre as partes envolvidas? Logo, a utilização de chats, fóruns, redes sociais, blogs, etc. antes, durante e depois das aulas jurídicas pode ser vista como uma imersão conjunta necessária para o desenvolvimento mais apropriado do conteúdo proposto pelo Professor, uma vez que todo o aparato tecnológico permite o desenvolvimento do raciocínio no modo hipertexto. O que ocasiona uma maior evolução quanto a capacidade/habilidade de participação e promoção de debates aprofundados que, consequentemente, gera uma mente crítica. Os conteúdos teóricos não deixam de existir, pois não se aprende nada desvinculado do conhecimento teórico, mas trata-se de trabalhar essas informações de forma diferente dando-lhes um significado, assim como afirma Jean PIAGET (1987): O primeiro objetivo da educação é criar pessoas capazes de fazer coisas novas, e não simplesmente de repetir o que outras gerações fizeram. Pessoas criativas, inventivas e descobridoras. O segundo objetivo da educação é formar mentes que possam ser críticas, possam verificar e não aceitar tudo o que lhes é oferecido. O maior perigo, hoje, é o dos slogans, opiniões coletivas, tendências de pensamento ready-made. Temos de estar aptos a resistir (...), a criticar, a distinguir entre o que está demonstrado e o que não está. Portanto, precisamos de discípulos ativos, que aprendam a encontrar as coisas por si

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mesmos, em parte por sua atividade espontânea e, em parte, pelo material que preparamos para eles.

Dessa forma, para se conseguir uma maior dinamização, bem como o pensamento linkado, trazendo o aluno como protagonista do seu aprendizado e retirando o professor da posição de soberano, é necessária a inclusão digital através da utilização de ferramentas tecnológicas. CONCLUSÃO Os professores não devem apenas fazer uso das novas tecnologias como instrumentos em substituição aos tradicionais, devem é saber “transformar informação em formação” (DEMO, 2004, p. 40). Ou seja, não se trata de uma questão de apenas saber utilizar pedagogicamente estas novas tecnologias. Deve-se apropriar esse potencial de forma construtiva, sem cair na simples substituição da interação tradicional professor-aluno (no sentido de quando o professor apenas repassa a informação), pela interação máquina-aluno, sem que haja um crivo do conteúdo a ser acessado e uma direção crítica de como isto pode/deve ser feito, de forma a estimular o aluno para que tenha um melhor aproveitamento do mundo de informações a que pode ter facilmente acesso. Nesse sentido, o professor “passa a não ser mais um detentor do conhecimento e sim um facilitador de seu acesso por intermédio das novas tecnologias” (MARQUES, 2010, p. 200), sendo que tal facilitação deve se dar de forma a permitir que os alunos, além compreenderem os conteúdos esperados, mantenham a consciência da sua condição humana e seu papel na sociedade. A aprendizagem colaborativa, então, passa a ser a protagonista das salas de aula, cabendo ao professor assumir o papel de orientador, deixando de lado o papel de autoridade. A sala de aula é centrada no aluno, e, este pode ser considerado uma lâmpada a iluminar. Só com esses pontos de modificação verifica-se a pró-atividade do alunado ao trazer para a sala de aula uma mente aberta e investigativa, dando importância ao processo de ensino-aprendizagem uma vez que ele agora é o protagonista e o maior responsável do seu saber. A aprendizagem colaborativa pressupõe, então, a interação e participação mútua de todos os alunos envolvidos, cabendo aos professores, aqui chamados de facilitadores ou moderadores, propiciarem situações em que todos aprendam com todos. Como já dizia Paulo FREIRE (2002, p. 19), “a alegria não chega apenas no encontro do achado, mas parte do processo da busca. E ensinar e aprender não pode dar-se fora da procura, fora da boniteza e da alegria”. “Ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção (o pensador- online)”. Atualmente, o mundo no seu conjunto evolui tão rapidamente que os professores, como aliás os membros das outras profissões, devem começar a admitir que a sua formação inicial não lhes basta para o resto da vida: precisam atualizar e aperfeiçoar os seus conhecimentos e técnicas, ao longo de toda a vida. O equilíbrio entre a competência na disciplina ensinada e a competência pedagógica deve ser cuidadosamente respeitado. [...] A formação de professores deve, [...], inculcar-lhes uma concepção de pedagogia que transcende o utilitário e estimule a capacidade de questionar, a interação, a análise de diferentes hipóteses. Uma das finalidades essenciais da formação de professores, quer inicial quer contínua, é desenvolver neles as qualidades de ordem ética, intelectual e afetiva que a sociedade espera deles de modo a poderem em seguida cultivar nos seus alunos o mesmo leque de qualidades. (DELORS et al, 1999, pp. 161-162)

Enfim, levar estas novas tecnologias para a sala de aula como ferramentas, bem como demonstrar as suas possíveis utilidades na vida profissional é uma atitude que deve ser cobrada dos professores. Todavia, as instituições de ensino dever propiciar a formação desses professores para que façam isto, e estimular a pesquisa e o aprendizado destes também.

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REFERÊNCIAS BERNARDES, Marciele. Berger ; ROVER, Aires José . Uso das novas tecnologias de informação e comunicação como ferramentas de modernização do ensino jurídico. Revista Eletrônica Democracia Digital e Governo Eletrônico, v. 01, n. 2, p. 27-35, 2010. Disponível em: http://www.buscalegis.ufsc.br/revistas/index.php/observatoriodoegov/article/view/33640/32738. Acesso em 15 jan 2016. DAMASCENO, Rogério. A resistência do professor diante das novas tecnologias. Disponível em http://meuartigo.brasilescola.com/educacao/a-resistencia-professor-diante-das-novas-tecnologias.htm Acesso em 27 jan 2016. DELORS, Jacques et al. Educação: um tesouro a descobrir. (Relatório para UNESCO da Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI). 2ª ed. São Paulo: Cortez; Brasília: UNESCO, 1999. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Míni Aurélio o dicionário da língua portuguesa, 2002. 8º Edição. Ed. Positivo. FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa, 2002. 15º Edição. Ed. Paz e Terra S/A. LÉVI, Pierre. Cibercultura. Disponível em: http://baixar-download.jegueajato.com/Pierre%20Levy/Cibercultura%20(432)/Cibercultura%20-%20Pierre%20Levy.pdf. Acessado em 19. Jan. 2015. MORAN, José Manuel. A educação que desejamos: novos desafios e como chegar lá. Papirus, 2011. MORIN, Edgar. Os Sete Saberes necessários à Educação do Futuro. Tradução de Catarina Eleonora F. da Silve e Jeanne Sawaya. 6ª ed. São Paulo: Cortez; Brasília, DF: UNESCO, 2002 PERRENOUD, Philippe. 10 novas competências para ensinar. Tradução: Patrícia Chittoni Ramos. Porto Alegre: Artmed, 2000. PIAGET, Jean. O professor reflexivo e sua mediação na prática pedagógica: formando sujeitos críticos. Disponível em: http://www.webartigos.com/artigos/o-professor-reflexivo-e-sua-mediacao-na-pratica-pedagogica-formando-sujeitos-criticos/36723/ Acesso em 30 jan 2016. SILVA, Afonso da Sila. Curso de Direito Constitucional Positivo, 2015. 38º Edição. Ed. Malheiros Editores.

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A JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO REAÇÃO AO ILUSÓRIO E ILEGÍTIMO DISCURSO PUNITIVO NA AMÉRICA LATINA Fernando Borba de Castro Graduado em Direito pela FURB. Assessor da Procuradoria-Geral do Município de Gaspar/ SC. Pesquisador, com ênfase em Direito Constitucional, Direitos Humanos e Criminologia Lenice Kelner Doutoranda em Direito pela UNISINOS. Professora da FURB. Coordenadora do Programa de Extensão da FURB – Gestão de Conflitos Penais na Comarca de Blumenau. Leonardo Idenio Soares Graduando em Direito pela FURB. Pesquisador.

SUMÁRIO: Introdução; 1. Elementos para pré-compreensão do tema: por que refletir o direito, o controle penal e o ius puniendi de forma crítica?; 2. Justiça restaurativa: um paradigma insurgente; 3. Restaurar e reabilitar: um contraponto à desumana sociedade da retribuição; Considerações finais; Referências.

INTRODUÇÃO A tradicional reação da sociedade civil organizada e do Poder Público quando da ocorrência de uma violação à lei penal consiste em castigar e punir os infratores. Raramente o sistema punitivo permite que seja realizada uma reflexão acerca das estruturas de poder, das funções das instituições repressivas e dos desiguais tratamentos dispensados a pessoas em similares situações, porém pertencentes a grupos, classes sociais ou raças diversas. Da mesma forma, são extremamente escassos os casos em que a aplicação da pena permite a reinserção dos transgressores ao harmônico convívio em sociedade ou propicia a cura das feridas provocadas pelos ilícitos às vítimas. Este panorama torna-se ainda mais preocupante em sociedades periféricas da América Latina, nas quais as violências sociais e institucionais epidêmicas violam diariamente os Direitos Humanos. Em que pesem os pífios resultados produzidos pelo tradicional modelo de reação ao fenômeno criminológico, não é tarefa fácil adotar uma postura crítica nesta paradoxal e líquida pós-modernidade. Afinal de contas, muitas vezes sob a influência da mídia sensacionalista, que direciona a opinião pública segundo os interesses dos poderes dominantes, pune-se cruelmente o transgressor da lei penal esperando-se a reabilitação; esbraveja-se aos quatro ventos que a lei é excessivamente branda com menores infratores, que como adultos deveriam ser tratados, mas ignora-se a realidade das periferias, agindo de forma indiferente em relação aos menores abandonados e propiciando exíguas oportunidades aos jovens carentes, embora permaneça inabalável a crença na meritocracia das classes que há muito detém o poder econômico e político. Não se correlaciona indiferença política e desigualdade à criminalidade; as diferenças de oportunidades que possuem os filhos das classes dirigentes e os dos carentes à precariedade do trabalho, que facilita o aliciamento dos jovens pelo mundo do crime. Tortura-se e mata-se nas delegacias, nas penitenciárias e nas ruas, muitas vezes sob o manto estatal e aplausos da população, e espera-se que o egresso volte ao pacífico e sadio convívio social; ou melhor: indaga-se, com franqueza, se não seria melhor eliminá-lo, ainda que não se questione quão

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tirana seria a decisão, abstendo-se a sociedade da interrogação quanto à sua parcela de contribuição para a produção do infrator e da violência que a todos devora. É delicada a situação da sociedade do culto sem limites ao capital, cujo pressuposto é a desigualdade, a volatilidade, a exclusão e a indiferença, pois não há espaço para todos, uma vez que o sucesso de alguns deve necessariamente excluir o de muitos – embora, evidentemente, a construção deste conceito de sucesso seja muito questionável. As pessoas que não produzem lucratividade são invisíveis, e, por essa razão, podem ser descartadas sem grandes questionamentos. A violência (não apenas a física, é preciso salientar) de fato se transformou na regra, e o diálogo, na exceção. Proliferam-se comportamentos intolerantes em todos os ambientes, como nas famílias, nas escolas, no trânsito e até mesmo em espaços de lazer, como os estádios de futebol, bem como brutalidades contra minorias, como indígenas e homossexuais. Neste contexto, é imprescindível que o operador do Direito conteste o mito juspositivista da neutralidade do intérprete e seja capaz de enxergar para além da simples aplicação da lei penal, que é incapaz de atingir as raízes de graves problemas de sociedades profundamente abaladas por desigualdades e exclusões. O Direito Penal positivo, ao encarar o transgressor como o responsável pela violência e como inimigo comum da sociedade, deixa de refletir que a infração penal é um reflexo do desequilíbrio das relações sociais. A responsabilidade pela prática de infrações penais, ao contrário do discurso jurídico-penal tradicional, não pode ser atribuída exclusivamente ao sujeito transgressor, mas às próprias condições estruturais da sociedade (sobretudo a desigualdade e a exclusão que afligem América Latina) que permitem a existência de relações de profunda desarmonia. As limitações do modelo punitivo são visíveis, pois seu discurso parte de uma lógica muitas vezes contrária às garantias fundamentais do indivíduo e à reabilitação de vítimas e infratores, subsistindo apenas em virtude da ilusória promessa de segurança jurídica e social do discurso jurídico-penal. Não se consegue reintegrar o transgressor à sociedade ou tampouco oferecer qualquer conforto à vítima porque a lógica punitiva é estranha a estas necessidades, se esgotando na violência estatal. As perversidades do sistema penal, em verdade, isolam as pessoas, ampliam o abismo social existente e impedem que medidas de adequada política criminal e respeito aos Direitos Humanos surjam como alternativas. A Justiça Restaurativa, em contraposição ao modelo simplesmente retributivo, desponta como uma renovação da esperança de produção crítica e democrática do Direito, capaz de repensar o controle penal em sociedades latino americanas, que são especialmente marcadas por explorações e desigualdades que remontam à colonização e violências sociais e institucionais que jamais deixaram de preponderar. O fato de a população carcerária brasileira, por exemplo, se tornar a terceira maior do mundo, não deixa dúvida de que a promessa de segurança do modelo punitivo não pode ser cumprida. A Justiça Restaurativa muda o enfoque acerca do fenômeno criminológico, propugnando que as infrações penais geram feridas especialmente às vítimas, aos seus amigos e aos seus familiares que necessitam ser curadas para a manutenção do corpo social, cada vez mais fragmentado nas pós-modernas sociedades capitalistas. Segundo os postulados da Justiça Restaurativa, a prática de uma infração penal significa o rompimento ou abalo de uma relação social, pois a comunidade falhou na tarefa de conviver pacificamente. Posteriormente à infração, o que se deve buscar é o restabelecimento das relações com a cura das feridas provocadas pelo ilícito. Assim, privilegia-se a restauração em detrimento da punição e a coesão social à marginalização e à estigmatização. A Justiça Restaurativa propõe o resgate do diálogo e da participação comunitária, bem como busca incentivar o perdão e o arrependimento, comportamentos e sentimentos raros nas sociedades individualistas típicas do sistema capitalista, razão pela qual poderia ser adotada na América Latina para a construção de soluções mais humanas aos conflitos sociais. 1. ELEMENTOS PARA PRÉ-COMPREENSÃO DO TEMA: POR QUE REFLETIR O DIREITO, O CONTROLE PENAL E O IUS PUNIENDI DE FORMA CRÍTICA? As Ciências Criminais estudam questões complexas. O fenômeno criminológico é um dos pontos que é objeto deste ramo do Direito que não apresenta respostas simples, assim como soluções absolutas que

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decorram simplesmente de conceitos fornecidos pela lei. Os vícios da sociedade seriam resolvidos de forma mais descomplicada se assim o fosse. Destarte, é imperiosa uma análise acerca de alguns fenômenos que transcenda a superficialidade dos discursos costumeiramente empreendidos e pretenda perquirir, com profundidade, possíveis origens de problemas sociais (e jurídicos) e eventuais soluções que estejam em sintonia com os Direitos Humanos. Nessa linha de raciocínio, impõe-se ao operador do Direito uma atividade que o pensamento tradicional diz não ser sua função, mas de outros profissionais (como do historiador ou do sociólogo, por exemplo), qual seja: a contestação do Direito posto através da valoração ética e política dos fatos sociais subjacentes à aplicação das normas. Enquanto a doutrina tradicional propugna não caber ao operador do Direito questionar, por exemplo, a precariedade das condições de trabalho, a concentração de terras e riquezas nas mãos de poucos ou a seletividade estrutural do sistema penal no momento de aplicar as normas, a teoria crítica conclama a atuação positiva do operador jurídico, e não meramente passiva. É manifesta a ineficiência das medidas adotadas pelo Estado e pela sociedade civil organizada para combater o exacerbado grau de criminalidade que assola um povo como é o latino-americano, profunda e historicamente agredido por violências sociais e institucionais que remontam à desumana colonização sofrida. Apesar das evidências da fragilidade do modelo de reação ao fenômeno criminológico, parece existir uma permanente ilusão acerca da resolução de conflitos na esfera penal através da cada vez mais forte atuação punitivista estatal. Ainda que o atual modelo de administração da Justiça Criminal revele-se violador dos Direitos Humanos e um mecanismo eficiente apenas para amplificar violências, permanece sendo, por paradoxal que seja, a aposta absolutamente preponderante da sociedade e do Poder Público na América Latina (embora práticas restaurativas venham se expandido não apenas no continente, mas no mundo todo). É neste contexto que se insere, sobretudo, o papel do operador do Direito. Além de refutar soluções imediatistas, geralmente desprovidas de racionalidade e inaptas a propiciar quaisquer ganhos sociais, é sua mais elementar função, enquanto sujeito transformador da realidade e não mero telespectador, retirar a venda dos olhos da sociedade, que, entorpecida e incapaz de enxergar as questões correlatas à criminalidade em sua raiz, aceita, sem grande contestação, a violência epidêmica como suposta fonte de pacificação da sociedade. Afinal de contas, o mito juspositivista da neutralidade do intérprete costuma operar em prol da opressão. É possível verificar que a estrutura de poder é hábil ao aliciar tanto operadores jurídicos como membros da sociedade em geral, os quais, impossibilitados de pensar de forma autônoma, são seduzidos pelas promessas simples daqueles que detém o status quo. É claro que a dominação raramente é facilmente perceptível, visto que existe um arcabouço cujo objetivo é justamente acobertá-la. Há, nitidamente, os que são beneficiados por esta estrutura de poder e também aqueles que são os prioritariamente atingidos e afetados pelo Direito Penal e pela máquina punitiva estatal, quase sempre os mais vulneráveis da sociedade. Esses fatos não são produto do mero acaso. É precisamente por essa razão que a missão do operador do Direito adquire relevância. Uma formação crítica é de vital importância para compreensão dos fenômenos sociais e da estrutura de poder que envolve o discurso político e jurídico. Espera-se dele que milite para a necessária transformação da sociedade, não se subordinando às verdades postas. Neste sentido, Luís Roberto Barroso (2001, p. 10) explica que em todas as sociedades organizadas, o Direito surge como a institucionalização dos interesses dominantes, como o acessório normativo da hegemonia de classe. O doutrinador pontua que a dominação se oculta em nome da racionalidade, da ordem e da justiça, disfarçada por uma linguagem que a faz parecer natural e neutra. Verifica-se que o sistema penal está estruturado tão somente para punir e estigmatizar, embora o discurso dogmático propugne a ilusória segurança jurídica e social. A persecução penal é inapta a propiciar quaisquer ganhos sociais ou individuais. Incapaz de conter a violência, de curar os ferimentos sofridos pela vítima e readaptar os infratores ao convívio em sociedade.

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Os atingidos pela violenta estrutura de poder do sistema penal em sua maioria são justamente aqueles que possuem extrema dificuldade para inserir-se socialmente, como jovens negros de periferias, que constituem uma parcela cada vez mais considerável dos encarcerados no país. O único Direito para eles construído, em uma sociedade marcada pelo déficit de cidadania ainda é o criminal. A violência do sistema penal, eficiente em encarcerar, mas absolutamente falha em reinserir os que são alvo do poder punitivista estatal, é problemática, uma vez que sonhos de um futuro digno de uma geração inteira de jovens são destruídos ao dispensar-lhes tratamento exclusivamente com o Direito Penal. Sem mencionar, evidentemente, as vidas ceifadas diretamente pela criminalidade, que não são menos importantes do que aqueles que são agredidos diariamente por abordagens policiais violentas e torturas em delegacias e presídios. Trata-se de um sistema que gera vítimas diretas e indiretas, que possuem a característica comum de serem, de uma forma ou outra, alvejadas pela brutalidade de um sistema que devora a si mesmo. Vera Regina Pereira de Andrade (1997, p. 290), alicerçada em lição de Eugenio Raúl Zaffaroni, propõe primordial discussão acerca do sistema punitivo, refletindo que a realização de princípios garantidores do Direito Penal (como legalidade, culpabilidade, humanidade e, sobretudo, igualdade) é uma ilusão, uma vez que a operacionalidade do sistema penal está estruturalmente preparada para violar a todos. Propugna que ocorre mais do que uma violação: trata-se de uma contradição estrutural entre a lógica do sistema penal e a ideologia dos Direitos Humanos, porque estes designam um programa idealizador de igualdade de direitos de longo alcance, ao passo que os sistemas penais são instrumentos de consagração ou cristalização da desigualdade de direitos em todas as sociedades. Diante do esgotamento e das limitações do presente modelo e também do tradicional saber, a visão crítica insurge-se em relação ao chamado conhecimento puro do Direito, o qual, além de negar interferência dos demais campos do saber na interpretação e construção das Ciências Jurídicas, propugna por uma ciência tão somente instrumental, com visão meramente técnica e neutra do conhecimento. Luís Roberto Barroso (2001, p. 10), alicerçado em lição de Óscar Correas, pontua que a teoria crítica surge como contraponto à ideia de completude, de auto-suficiência e de pureza do Direito, refutando a cisão do discurso jurídico, que dele remove outros conhecimentos. Não pode haver esse distanciamento do Direito da realidade (sociologia do Direito) e das bases de legitimidade que devem inspirá-lo e possibilitar sua própria crítica (filosofia do direito), pondera o jurista. Não é razoável, levando-se em consideração o patente o insucesso do modelo tradicional, capaz, no âmbito criminal, de revelar as mais flagrantes violações dos Direitos Humanos, que insista em preponderar na América Latina a visão conservadora e compromissada com a manutenção do status quo, a opressão e a violência, e não com ganhos sociais e a reintegração dos envolvidos no conflito. O sistema penal descumpre promessas vitais e traduz excessivas desigualdades, injustiças e mortes não prometidas, reflete com o brilhantismo que lhe é peculiar Vera Regina Pereira de Andrade (1997, p. 293). A doutrinadora pontua (1997, p. 303-304) que a promessa dogmática de converter-se em ciência instrumental da justiça penal tem sido cumprida com uma eficácia invertida. Não há uma racionalização decisória para gestação da desigualdade e segurança jurídica, mas uma racionalização da seletividade decisória e da violação dos Direitos Humanos consumada pela operatividade do sistema penal. A jurista assevera que a promessa dogmática tem ainda colocado em circulação social sinais de punição perfeitamente ajustados: o simbolismo da segurança jurídica, o qual exerce efeitos fundamentais de legitimação do sistema penal. Nessa linha de raciocínio, Eugenio Raúl Zaffaroni (1989, a, p. 27-28-29) sustenta que a sociedade é induzida a acreditar na suposta segurança que o sistema penal propicia, que de forma alguma existe. O sistema penal se encontra na mais notória insolvência estrutural da civilização, de acordo com o jurista. Defende que o sistema penal está estruturalmente montado para que a legalidade processual (que é a exigência de que todos os autores de fatos típicos, ilícitos e culpáveis sejam criminalizados pelos órgãos do sistema penal) não aconteça e sim para que exerça seu poder com extremo grau de arbitrariedade seletiva, dirigida, naturalmente, aos setores mais vulneráveis da sociedade. O autor assevera que o sistema penal só pode exercer seu poder repressivo em um número insignificante de hipóteses, o que gera uma seletividade estrutural do

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sistema penal, que consiste na mais elementar demonstração da falsidade da legalidade processual proclamada pelo discurso jurídico-penal. Alessandro Baratta, citado por Vera Regina Pereira de Andrade (1997, p. 294-2 295) defende que os princípios estruturais e funcionais necessários para organizar cientificamente o conhecimento do sistema penal são opostos aos que por ele mesmo são declarados. Assim, partindo de um conceito dialético de racionalidade, é possível excluir que essa contradição entre princípios e o funcionamento real do sistema seja um acidente, devido à imperfeição inerente ao que é humano. O doutrinador propugna que não se deve atribuir o descompasso entre os princípios e a realidade a erros dos operadores e do público, pois tal se deve à ideologia penal. O funcionamento do sistema penal se dá não obstante, mas através dessa contradição. Trata-se de um elemento importante, como outros do sistema, para garantir a realização das funções que tem no interior do conjunto da estrutura social. Destarte, assevera que o elemento ideológico não é acidental, mas inerente à estrutura e ao modelo de funcionamento do sistema penal. Segundo o jurista, a ideologia penal atua para assegurar, reproduzir e mesmo legitimar as relações de desigualdade caracterizadoras da sociedade, a má distribuição dos recursos e do poder, a conseqüência visível do modo de produção capitalista. Em primoroso ensinamento, Eugenio Raúl Zaffaroni (2007, b, 11) assinala que o poder punitivo sempre discriminou os seres humanos e lhes conferiu um tratamento punitivo que não correspondia à condição de pessoas, dado que os considerava apenas como entes perigosos ou daninhosos. Esses seres humanos são assinalados como inimigos da sociedade e, por conseguinte, a eles é negado o direito de terem suas infrações sancionadas dentro dos limites do Direito Penal liberal, isto é, das garantias que hoje o direito internacional dos Direitos Humanos estabelece universal e regionalmente. Lenio Luiz Streck (2014) demonstra veemente preocupação com a absoluta indiferença de grande parte da população e do Poder Público às violações dos direitos e garantias fundamentais dos infratores que ocorrem diariamente em abordagens violentas nas ruas e nos presídios. Aponta o jurista que ninguém se importa com a população carcerária no Brasil. Estes são invisíveis. Mais de meio milhão de presos no Brasil que são tratados como se descartáveis fossem. Segundo o doutrinador, mais de dois séculos se passaram desde que Michel Foucault iniciou a obra “Vigiar e Punir” relatando torturas e esquartejamentos de presos desmanchados por cavalos que arrancavam seus membros, porém ainda há presos sendo empalados, abusados e castrados. Diante dessa realidade, é mesmo possível querer que um sujeito assim tratado seja um cidadão ao sair do cárcere, provoca o autor? O hermeneuta tece crítica às autoridades brasileiras, afirmando que poderiam ao menos ser utilitaristas ou fazer uma análise econômica, não precisando ser humanitários, pois é um péssimo investimento despender dois mil reais por mês e ter a certeza de que o preso retornará à sociedade pior do que ingressou. Profere também crítica à população em geral, pois os mesmos que afirmam que gostariam de ver o preso morto sentem-se surpresos e indignados quando o egresso lhe aborda, de arma na mão, para lhe subtrair algum bem. Um questionamento acerca dos resultados produzidos pelo sistema penal na América Latina é primordial, indagando a quem ele interessa e se é apto a conduzir à construção de uma sociedade mais livre, justa e solidária, a erradicar a pobreza e a marginalização e a reduzir as desigualdades sociais e regionais, bem como a promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, conforme preveem os objetivos fundamentais da República (artigo 3º da Constituição Federal). Uma célere ponderação é capaz de indicar que o sistema penal retributivo é a antítese das promessas da modernidade. 2. JUSTIÇA RESTAURATIVA: UM PARADIGMA INSURGENTE O tradicional modelo de administração dos conflitos penais se esgota na retribuição ao mal praticado pelo transgressor da lei criminal com a imposição de outro mal: a privação de sua liberdade. Trata-se de um mal estatal e, portanto, oficial, agindo o Direito como instrumento de imposição de castigo, dor e morte. A justificativa se alicerça no discurso de segurança social e jurídica, promessas que a cada dia revelam-se mais ilusórias. A violência epidêmica se espalha pelas cidades latino-americanas, hoje não mais característica

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apenas dos grandes centros urbanos. Esse sistema é ineficiente para frear a violência, ressocializar os encarcerados e oferecer qualquer espécie de conforto ou reparação às vítimas das infrações. A Justiça Restaurativa se alicerça em um paradigma diverso da presente forma de reação à prática de infrações penais que chamamos de retributivo. O atual sistema é caracterizado por escolher a violência como forma de combate ao fenômeno criminológico, sem analisar se tais medidas se coadunam com os Direitos Humanos e se são justas do ponto de vista social. A Justiça Restaurativa, por sua vez, dispensando tratamento digno aos envolvidos no conflito, visa atender as necessidades daqueles mais afetados pelos ilícitos. Por isso é possível dizermos que, se no modelo retributivo o crime é encarado como uma agressão contra toda sociedade, que busca, por meio do Estado, responder ao mal praticado pelo infrator com a imposição de outro mal (consistente na privação da liberdade deste), sob a ótica restaurativa o imprescindível é a cura das feridas ocasionadas às pessoas diretamente atingidas pela infração penal. Howard Zehr (2008, p. 181) defende que pela perspectiva da Justiça Restaurativa a infração consiste em uma violação a pessoas e a relacionamentos. A infração gera obrigações para corrigir os conflitos. A justiça envolve a vítima, o infrator e a comunidade em busca de soluções que promovam a reparação, a reconciliação e a confiança. Segundo o autor (2008, p. 68), a Justiça Restaurativa visa compreender e restaurar o mal causado pelas infrações penais às vítimas e às comunidades atingidas. Para compreendê-lo, o doutrinador alerta que é necessário usar outras lentes, uma vez que sistema tradicional, ao contrário, não foca no mal impingido à vítima, concentrando-se na punição pura e simples do infrator da lei penal, o que sustenta ser algo até mesmo contraproducente. No processo penal brasileiro, por exemplo, vigoram os princípios da obrigatoriedade e da indisponibilidade da ação penal (embora flexibilizados pelos institutos da transação penal e da suspensão condicional do processo, respectivamente, inovações da Lei n. 9.099/1995), que consistem, sucintamente, na ausência de discricionariedade do órgão responsável pela acusação (Ministério Público) quanto ao oferecimento da denúncia (quando há prova da materialidade e indícios suficientes de autoria) e na impossibilidade de desistência da ação penal proposta. A Justiça Restaurativa, por outro lado, funda-se em um paradigma distinto, buscando não a mera formação da convicção do magistrado quanto à culpa técnica do transgressor para que a esse possa ser imposta a retribuição ao mal que por ele foi causado à toda sociedade, mas, precipuamente, restaurar o mal impingido aos mais feridos pelo ilícito. Enquanto ao sistema retributivo interessa apenas verificar se uma pessoa culpável cometeu um fato típico e ilícito, o modelo restaurativo vai além. A pretendida pacificação, pela ótica restaurativa, não pode ser atingida sem o tratamento das lesões (que não são apenas físicas ou meramente patrimoniais, é preciso salientar) que a prática de um crime produz à vítima, aos seus amigos e familiares. São esses os personagens centrais do conflito e também os que necessitam de maior atenção, uma vez que são relegados a segundo plano no modelo meramente punitivo. Destarte, o conflito, segundo interessante lição de Cleber Rogério Masson (2011, p. 553-554), anteriormente protagonizado entre o Estado e o responsável pela conduta delituosa, passa a ter como atores a figura do ofensor e do ofendido. Deixa de ser finalidade imediata do Direito Penal a punição, havendo possibilidade de conciliação entre as partes (ofensor e vítima), e, logo, a persecução penal é mitigada, visto não ser mais obrigatório o exercício da ação penal. Assevera o autor, portanto, que o objetivo principal da Justiça Restaurativa não é a imposição de uma pena ao violador da lei penal, mas reequilibrar as relações entre o agressor e o agredido. Para alcançar essa finalidade, surge a figura da comunidade, que também é atacada pela conduta criminosa, desempenhando papel decisivo na restauração da paz social violada. Assim, a violação possui como agentes passivos as pessoas e os relacionamentos coletivos, e não o Estado. Insiste o doutrinador, em vista disso, que a infração penal deixa de significar um ato contra o Estado para consistir em ato contra a comunidade, contra a vítima e inclusive contra o próprio autor, pois esse também é agredido com a violação do ordenamento jurídico-penal. Consequentemente, se na tradicional Justiça Retributiva o interesse que existe na atuação do Direito Penal é público, na Justiça Restaurativa o interesse é pertencente às pessoas envolvidas no episódio criminoso. Propugna o doutrinador que não mais se imputa a responsabilidade pelo crime pessoalmente ao seu autor, coautor ou partícipe, mas a todos os membros da sociedade, que falharam

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na missão de viverem pacificamente em grupo. Logo, os procedimentos rígidos da Justiça Retributiva dão espaço a meios informais e flexíveis, prevalecendo a disponibilidade da ação penal. O resultado é que a Justiça Restaurativa, segundo o autor, proporciona coragem ao agressor para responsabilizar-se pela conduta lesiva, refletindo sobre as causas e os efeitos de seu comportamento em relação aos seus pares, para então modificar seu comportamento e ser aceito posteriormente de volta na comunidade. Assim, o paradigma restaurador de se fazer justiça pode acarretar o perdão recíproco entre os envolvidos, aduz, bem como a reparação à vítima, em dinheiro, por exemplo, ou até mesmo em prestação de serviços à vítima ou à comunidade. André Gomma de Azevedo (2005, p. 140) aprofunda a reflexão, destacando a finalidade de reparação não apenas material da Justiça Restaurativa, mas também moral dos danos causados à vítima, através da participação das partes (ofensor, vítima e comunidade) na busca pela solução do conflito social, o que além de humanizar as relações processuais, pode propiciar a manutenção ou restauração de relações possivelmente preexistentes à infração: (...) A Justiça Restaurativa pode ser conceituada como a proposição metodológica por intermédio da qual se busca, por adequadas intervenções técnicas, a reparação moral e material do dano, por meio de comunicações efetivas entre vítimas, ofensores e representantes da comunidade voltadas a estimular: i) a adequada responsabilização por atos lesivos; ii) a assistência material e moral de vitimas; iii) a inclusão de ofensores na comunidade; iv) o empoderamento das partes; v) a solidariedade; vi) o respeito mútuo entre vítima e ofensor; vii) a humanização das relações processuais em lides penais; e viii) a manutenção ou restauração das relações sociais subjacentes eventualmente preexistentes ao conflito. (AZEVEDO, 2005, p. 140).

Paul Maccold e Ted Wachtel (2003) defendem que a Justiça Restaurativa é uma nova maneira de abordar a justiça penal, focando na reparação dos danos causados às pessoas e relacionamentos, ao invés de punir os ofensores. Os autores defendem que em virtude dos danos e consequências trazidas pela prática de crimes à pessoas, relacionamentos e sentimentos, a Justiça Restaurativa não é realizada por razão de merecimento, mas por ser necessária, através de um processo cooperativo que envolve todas as partes principais que possuem interesse na determinação da melhor solução para reparar o dano causado pela prática da infração. Assim, visualizam a Justiça Restaurativa como um processo colaborativo que envolve os afetados diretamente por um crime, chamados de partes interessadas principais, para determinar a melhor forma de reparar o dano causado pela transgressão. O sistema de Justiça Restaurativa, portanto, tem como finalidade não somente reduzir a criminalidade, mas também o impacto dos crimes sobre as pessoas.  A proposição dos autores acima mencionados é valiosa. Devemos ter o cuidado, contudo, de não conceituar a Justiça Restaurativa como uma prática da pós-modernidade, eis que uma análise histórica demonstra que práticas restaurativas possivelmente sempre existiram. Segundo Mylène Jaccoud (2005, p. 163-164), as sociedades comunais (pré-estatais europeias e as coletividades nativas), em virtude do seu modelo de organização, privilegiavam as práticas de regulamento social que objetivavam a manutenção do grupo. Quando ocorria a violação de uma norma, buscava-se uma solução rápida para o conflito e para o restabelecimento da harmonia violada, uma vez que os interesses coletivos superavam os individuais. Ainda que formas punitivas severas, como a vingança ou a morte, não tenham sido excluídas por essas comunidades, havia a tendência de se aplicar mecanismos que não rompessem com a coesão do grupo social. A doutrinadora explica que vestígios de práticas restaurativas, reintegradoras e negociáveis se encontram em muitos códigos antes mesmo da primeira era cristã. Os Códigos de Hammurabi (1700 a.C) e Lipit-Ishtar (1875 a.C), por exemplo, descreviam medidas de restituição para os crimes contra o patrimônio. Além disso, o Código Summeriano (2050 a.C) e o Eshunna (1700 a.C) previam a restituição nos casos de crimes cometidos com o emprego violência. A autora sustenta que a centralização dos poderes, com o surgimento dos Estados nacionais centralizados (sobretudo, pela monarquia de direito divino) acabou por reduzir consideravelmente as possibilidades de aplicação da justiça negociada. O afastamento da vítima do processo penal e a quase extinção das formas de reintegração social nas práticas da justiça clássica coincide com o surgimento do Estado.

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Pedro Scuro Neto e Renato Pereira Tardeli propõem (2000, p. 8-9) que o processo de Justiça Restaurativa tem impacto sobre mais pessoas e resultados melhores que a pena e o tratamento dispensado pelo modelo retributivo convencional. Através de seu principal mecanismo, os círculos ou câmaras restaurativas, os doutrinadores explicam que o paradigma pode ser viabilizado em praticamente todo tipo de contexto, como na família, comunidade, escola ou empresa, consubstanciado nas estruturas e características desses grupos, nas estruturas e características das suas normas e de seus valores e relacionamentos. Segundo os autores, em uma câmara restaurativa reúnem-se as pessoas que foram atingidas pela infração penal e por causa dela sofreram prejuízos graves. Nelas, infratores, vítimas e as pessoas que lhes dão sustentação encontram meios de reparar prejuízos e evitar a repetição da conduta negativa. Na reunião, as partes têm a chance de relatar os acontecimentos a partir do seu próprio ponto de vista, assim como expressar o que se passou desde a ocorrência da infração, explicam os doutrinadores. É imprescindível que todos tenham clareza das consequências da infração penal e haja um engajamento para resolver o que será feito para que os danos físicos e emocionais de alguma forma sejam reparados, assim como para minimizar efeitos negativos futuros. Renato Campos Pinto de Vitto (2005, p. 41-43) pontua que o modelo restaurativo de se fazer justiça mostra-se ressocializador. É benéfico ao infrator da lei penal porque enseja seu amadurecimento pessoal, a partir do enfrentamento direto das consequências sofridas pela vítima, predispondo-se a comprometer-se na solução dos problemas causados, diferentemente do que ocorre no processo penal tradicional, no qual o infrator se posiciona em uma posição distante e alheia ao fato, protegido por uma estratégia ou possibilidade de defesa técnica, a qual dissolve a realidade do dano e ignora a vítima, desumanizando a relação social existente. A Justiça Restaurativa, por outro lado, foca sua atenção na função reabilitadora da pena em relação à pessoa do infrator, que passa a ser enxergado como parte essencial e integrante de qualquer reação ao delito, o que agrega um valor-utilidade para o infrator à resposta estatal. Assim, há uma redução dos efeitos nocivos da pena em relação ao infrator através de uma intervenção que pretende ser positiva e benéfica aos detentos, defende o autor. A Justiça Restaurativa revela-se uma alternativa ao perverso e inidôneo sistema que está posto, violador dos Direitos Humanos dos povos latino-americanos. Perverso em virtude de sua seletividade estrutural e da indiferença do Poder Público e da sociedade civil organizada às barbáries do cárcere, o qual é absolutamente contraproducente. Inidôneo porque inapto a conter a criminalidade e a propiciar qualquer benefício às vítimas, usurpadas pela figura de um vingativo Estado no quimérico processo penal positivo, que em nada se coaduna com as garantias fundamentais do indivíduo. O modelo restaurador renova a esperança de produção crítica e democrática do Direito na América Latina, que possa ser instrumento de harmonia e libertação ao resgatar sentimentos que parecem utópicos para o autofágico modelo de culto ao capital em detrimento da dignidade humana. 3. RESTAURAR E REABILITAR: UM CONTRAPONTO À DESUMANA SOCIEDADE DA RETRIBUIÇÃO Como temos exposto, o modelo de administração da Justiça Criminal que prepondera no ordenamento jurídico-penal latino-americano privilegia a punição do infrator da lei. Ao transgressor da lei criminal deve ser imposto um mal que faça frente ao sofrimento que este ocasionou com a prática da infração penal. O infrator é enxergado como um perigo em si mesmo, como “algo” que precisa ser combatido e até mesmo eliminado. Já refletia Michel Foucoult (1997, p. 86) que a infração penal lança o indivíduo contra toda a sociedade, que tem o direito de se levantar em peso contra ele para puni-lo. O infrator se torna o inimigo comum, um traidor, pois desfere seus golpes dentro da sociedade. Transforma-se em monstro, sobre o qual recai o direito absoluto da sociedade de punir. É precisamente essa a base do pensamento da criminologia etiológica, a qual perquire as causas do crime no sujeito. Apesar de sua evidente limitação, tal pensamento está longe de ser superado. Ao fazermos uma análise das medidas adotadas pelas autoridades e dos comportamentos da sociedade civil é possível verificarmos que, conscientemente ou não, ainda se pretende explicar o fenômeno criminológico preponderantemente no sujeito, e não na realidade social subjacente à aplicação das normas. Ao menos é isso que

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podemos auferir pelo modelo adotado pelo sistema oficial de reação à violência. Exemplificativamente, não podemos deixar de citar os crescentes e bárbaros casos de vinganças privadas (justiça com as próprias mãos) realizadas contra jovens negros de periferias no Brasil, que voltaram a ser acorrentados em postes e espancados até morte. Como temos sustentado, muitas são as violências perpetradas não apenas pelo aparato e órgãos do Estado, mas também por particulares sob o argumento de combate à violência. Outro exemplo disso é o absoluto descaso estatal e de grande parte da população à torturas e execuções que ocorrem diariamente em penitenciárias, delegacias e ruas de periferias. Não fosse o suficiente, a mídia e políticos sensacionalistas bradam que o sistema penal é comedido demais e que há impunidade. Essa existe, é verdade, mas apenas para as classes dirigentes, que aparentemente são imunes ao controle penal, e não para os que vivem a realidade do cárcere e das periferias na América Latina. A realidade do sistema carcerário é a antinomia da impunidade. É o genocídio direto dos presos. E o genocídio indireto das vítimas dos que sobrevivem ao cárcere, mas retornam à sociedade habituados à barbárie. Não há nada de surpreendente neste fato, por mais lamentável que o seja. Embora não justificável, trata-se do óbvio resultado da opção política pela violência epidêmica. Pela autofagia que é o sistema penal. O que permite que a violência seja naturalizada e até mesmo encarada como necessária é a ideia incutida na mente da coletividade de que o transgressor é uma ameaça, merecendo ser punido por ter violado o contrato social de viver pacificamente. É esse o fundamente da criminologia etiológica: o pacto social é rompido pelo sujeito, que precisa ser punido para ser curado, não se questionando se outros fatores interferem no fenômeno criminológico, bem como se abstendo de indagar acerca da parcela de responsabilidade da sociedade na produção do comportamento criminoso. Essa ideia permite que o infrator seja, sem grande contestação, encarado como um inimigo da paz e da segurança, conforme já propugnava Michel Foucoult (1997, p. 26), devendo passar por suplícios capazes de corrigirem sua deformidade. Segundo o autor, a sociedade pune o transgressor com a crença de tratá-lo, como um modo de dizer, na verdade, que deseja obter a cura. Em fascinante preleção, Pedro Scuro Neto e Renato Pereira Tardeli (2000, p. 5) indicam que pela perspectiva retributiva de se fazer justiça, a resposta que deve ser imposta ao infrator, isto é, a própria punição, é considerada uma forma de tratamento, o que resulta em custos e prejuízos cada vez maiores, em períodos de internação cada vez mais longos e no surgimento de criminosos cada vez mais jovens e perigosos. Segundo os autores, na mente de juízes, promotores, legisladores e da opinião pública, o impacto da retribuição se deve à relação direta entre pena, desaprovação do comportamento proscrito e eventuais conseqüências adversas para o infrator. Os autores defendem que por sua vez, por estar circunscrita a esse esquema, a função tratamento não consegue estabelecer um vínculo claro com a infração. Concentra-se, da mesma forma que a função punitiva, unicamente nos motivos e nas necessidades do infrator, do qual, todavia, nada se exige. O desafio da sociedade latino-americana, portanto, é a construção de um sistema de Justiça mais eficiente. Um sistema que respeite os Direitos Humanos e produza resultados mais satisfatórios para as partes diretamente envolvidas no conflito e também para a sociedade. A violência do atual modelo é apresentada como um infortúnio que precisa ser tolerado em nome da segurança social e jurídica. Seus defensores alegam que seria preferível um sistema imperfeito a um sistema que pudesse conduzir à desordem. Ainda que se tente acreditar em um Direito Penal Mínimo e garantista, que respeite os valores democráticos insculpidos na Constituição e observe princípios como o da intervenção mínima, da estrita legalidade e da taxatividade, parece haver uma contradição irremediável entre a ideia de punir e concomitantemente preservar o sistema de garantias do indivíduo previsto na Carta Magna. Isso porque as promessas do Direito Penal Mínimo não podem ser cumpridas com a violência e a seletividade que é inerente ao modelo de controle social. Por essa razão, Eugenio Raúl Zaffaroni (1989, a, p. 19) reflete que é incontestável que a pretendida racionalidade do discurso jurídico-penal tradicional e a consequente legitimidade do sistema penal tornaram-se utópicas e atemporais: ou seja, não se realizarão em lugar algum e em tempo algum. É fundamental que se reflita com circunspecção acerca dos custos sociais e humanos desse modelo de controle penal. A esse respeito, Antonio Carlos Wolkmer (1995, p. 134) propugna com maestria que a

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questão do crime e do controle social no contexto de formações sociais capitalistas periféricas insere-se na esfera dos mecanismos burocráticos do Estado e de seus aparatos repressivos, o que, na maior parte dos casos, inviabiliza ou limita as práticas de política criminal alternativa. A Justiça Restaurativa, nesse contexto, significa esperança. Esperança de formação de um pensamento crítico capaz de insurgir-se ao fetichismo da lei e à ineficiência do modelo que está posto – produtor, reprodutor e amplificador de violências, mas incapaz de proporcionar benefícios individuais ou coletivos. Uma das grandes vicissitudes do presente modelo de reação ao fenômeno criminológico reside na excessiva preocupação quanto ao passado, mas praticamente inexistente cuidado quanto ao futuro. O cerne do contemporâneo processo penal é a decisão acerca da culpa ou não do réu. Em caso de resposta positiva, deve o réu sofrer punição, não se discutindo as causas da infração penal, suas consequências e, principalmente, tampouco se procura restaurar as feridas causadas à vítima e evitar novas ocorrências. Trata-se, sobretudo, de um processo que se esgota em si mesmo. Com a tirania estatal, que atira o infrator contra toda a sociedade, evidentemente nasce um estado de necessidade que faz com esse busque a todo custo livrar-se das mazelas do cárcere. Não se encoraja, assim, que o infrator se responsabilize pelos seus atos, pois o que existe é um processo indiferente aos sentimentos das partes e a atitudes como o arrependimento e o perdão, cada vez mais raros na sociedade pós-moderna, marcada pelo individualismo e pela fragmentação social. Assim, a pena esgota-se em punição, que é inábil a evitar a prática de novas infrações. Pedro Scuro Neto e Renato Pereira Tardeli (2000, p. 5) pontuam que a incapacidade de reabilitar do sistema se deve à unidimensionalidade do modelo repressivo que ele utiliza, o paradigma retributivo, pois existe contradição entre punir e reabilitar, que se expressa, de um lado, na intenção de atender necessidades coletivas (excluir o “elemento perigoso” e mostrar ao criminoso de qualquer idade que sua conduta é desprezível e passível de rigorosa punição) e, ao mesmo tempo, satisfazer carências individuais (em particular de jovens infratores) por meio de tratamento, serviços especializados e programas de reabilitação. A Justiça Restaurativa dispõe-se a tratar o fenômeno criminológico de uma forma diversa do modelo que está posto. Entre outras, possui finalidades como a superação tanto do monopólio do punitivismo do sistema criminal como da judicialização dos conflitos, que hoje só podem ser dirimidos pelo Estado. Busca-se incentivar práticas não violentas de resolução de conflitos na esfera penal, com participação comunitária. O esgotamento e a crise de legitimidade do sistema penal conduzem a uma necessária discussão acerca de redefinição do papel do Direito Penal e do Estado e de suas subseqüentes missões, visando reduzir o estigma propiciado pelo cárcere e o atendimento das necessidades das vítimas. Não se pode falar em pacificação social com a continuidade das violências sociais e institucionais do modelo punitivo. A Justiça Restaurativa representa a renovação da esperança da construção de um sistema verdadeiramente alicerçado nos princípios democráticos e na defesa dos Direitos Humanos dos povos latino-americanos. CONSIDERAÇÕES FINAIS O presente paradigma de reação à prática de infrações penais revela-se ineficiente. Constata-se que a promessa de segurança jurídica e social não é e nem pode ser cumprida por meio desse paradigma. A violência epidêmica é intrínseca ao sistema retributivo, o qual é inapto a oferecer a proteção pretendida pelo discurso jurídico-penal. A consequência da insistência na manutenção de um sistema envolto na mais notória insolvência da história da civilização, como diria Eugenio Raúl Zaffaroni, é a perpetuação da violação diária dos Direitos Humanos na América Latina através da violência praticada em todos os ambientes de convivência, inclusive os mais elementares, tais como o familiar, escolar, comunitário, profissional etc. É preciso que se reflita o Direito Penal de forma crítica para se questionar os resultados do modelo meramente retributivo. Há de se refutar soluções imediatistas, populistas e midiáticas que propugnem o combate ao fenômeno criminológico tão somente combatendo a figura do sujeito transgressor, afastando a interferência de questões sociais na produção do conflito que se traduz na prática de uma infração. A questão

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da criminalidade na América Latina se insere no contexto periférico típico de colônias de exploração, onde há concentração de riquezas e terras nas mãos de poucos e uma justiça mansa com as classes dirigentes, mas dura com os pobres. Afinal, conforme alertou sabiamente Eduardo Galeano, a Justiça é como as serpentes. Só morde os descalços. A Justiça Restaurativa pretende alterar o enfoque do debate acerca do fenômeno criminológico, hoje concentrado apenas no ofensor e na punição, para resgatar a importância da vítima e incentivar práticas que possibilitem o tratamento das feridas ocasionadas pela lesão sofrida. É preciso superar o paradigma retributivo para compreender que a infração penal atinge precipuamente a vítima, seus amigos e familiares, gerando-lhes traumas e feridas que não são objeto de cuidado e tratamento no modelo positivo. A Justiça Restaurativa compreende que o primordial é propiciar formas de se buscar a restauração das relações que foram violadas com a conduta infratora. Assim, o formal e rigoroso processo penal protagonizado entre o onipotente Estado e o infrator cede espaço a um paradigma preocupado em buscar o diálogo entre o transgressor e a vítima, pois só assim será possível compreender a infração penal como o reflexo de relações de desequilíbrio e propiciar a coesão das cada vez mais fragmentadas sociedades pós-modernas. A busca por soluções que estejam em sintonia com a Constituição Federal e com tratados internacionais sobre Direitos Humanos é premente. É preciso que o Direito cumpra, ainda que de forma tardia, as promessas da modernidade. Afinal, o Direito assume uma nova missão, sobretudo em sociedades visivelmente excludentes como as latino-americanas, consistente na transformação da realidade subjacente à aplicação das normas, servindo como um instrumento à disposição para quem dele necessite. A Justiça Restaurativa simboliza uma luz em um sistema marcado por contradições que não parecem ser fruto do acaso, mas produto de um discurso compromissado com a manutenção das estruturas de poder e com eliminação de qualquer alternativa que afaste o punitivismo. É imprescindível que esse sistema, marcado pela contradição entre punição e reabilitação, seja substituído, ainda que paulatinamente, por um paradigma como o restaurador, cuja essência é a defesa dos Direitos Humanos. Não se pode, afinal de contas, acreditar na prevalência dos Direitos Humanos em um contexto em que sua mitigação é a regra, e sua vinculação, a exceção. REFERÊNCIAS ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica. Do controle da violência à violência do controle. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 1997. AZEVEDO, André Gomma de. O componente da mediação vítima-ofensor na justiça restaurativa: uma breve apresentação de uma inovação epistemológica na autocomposição penal. In: VITTO, Renato Campos Pinto de; SLAKMON, Catherine; PINTO, Renato Sócrates Gomes (Orgs). Justiça Restaurativa. Brasília: Ministério da Justiça e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, 2005. BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro: pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo. Revista Diálogo Jurídico. Salvador, ano I, volume I, n. 6, p. 29 e 30, set-2001. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. 41. ed. Tradução: Raquel Ramalhete. Petrópolis: Editora Vozes, 2013. JACCOUD, Mylène. Princípios, tendências e procedimentos que cercam a Justiça Restaurativa In: VITTO, Renato Campos Pinto de; SLAKMON, Catherine; PINTO, Renato Sócrates Gomes (Orgs). Justiça Restaurativa. Brasília: Ministério da Justiça e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, 2005. MASSON, Cleber Rogério. Direito Penal Esquematizado: Volume 1. 5ed. São Paulo: Editora Método, 2011.

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A DIGNIDADE DO TRABALHADOR NO COMBATE AO TRABALHO ANÁLOGO AO DE ESCRAVO AMEAÇAS E RISCOS VINDOS DO PODER LEGISLATIVO

Flora Oliveira da Costa Graduada pela Universidade Católica de Pernambuco; Especialista em Direito do Trabalho pela Esmatra 6ª e Mestranda em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Advogada

SUMÁRIO: Introdução; 1. Bens jurídicos tutelados no trabalho escravo; 2. Projetos de lei 432/2013 e 3842/2012; 3. Críticas aos projetos de leis; Conclusões; Referências.

INTRODUÇÃO Desde 1995 o Governo Federal admitiu a existência de trabalho escravo no seu território, após desdobramentos do episódio conhecido como “Caso José Pereira”1 – trabalhador violentado quando tentava fugir das condições análogas a de escravidão no Estado do Pará – oportunidade em que o país foi denunciado na Corte Interamericana de Direitos Humanos e como sanção se comprometeu a adotar medidas para a erradicação do trabalho escravo no país2. Após essa intervenção da Organização Internacional do Trabalho e das políticas voltadas ao trabalho escravo contemporâneo, cerca de 50 mil pessoas já foram libertas da condição de trabalho análoga a de escravo3, a partir das medidas oficiais adotadas, como a criação dos Grupos Especiais de Fiscalização Móvel. Todavia, em razão das consequências da globalização4, que acelera a economia nacional em busca da produção em massa e da precarização das condições de trabalho, emergem cada vez mais denuncias de privação da liberdade, além das afrontas à dignidade do trabalhador, seja mediante condições degradantes de trabalho, seja com a imposição de jornadas exaustivas. Com vistas a combater o trabalho escravo contemporâneo, a partir do princípio Constitucional da função social da propriedade, foi aprovada, após mais de 13 anos, a Emenda Constitucional 81/14, alterando o artigo 243 da CF/88, passando a dispor que as propriedades rurais e urbanas de qualquer região do País onde forem localizadas exploração de trabalho escravo, devem ser expropriadas e destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular. Entretanto, a Emenda Constitucional, apesar de ser esperada como instrumento de freio à prática de trabalho escravo, trás em seu texto a necessidade de regulamentação em lei específica do que seria trabalho 1  SAKAMOTO, Leonardo (Coor. De Estudos). Trabalho Escravo no Brasil do século XXI. Brasília. Organização Internacional do Trabalho, 2007. 2  OIT. As regras do jogo. Uma breve introdução às normas internacionais do trabalho. Edição do Gabinete para a Cooperação do Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social de Portugal. 3 ed., fev. 2007, pag. 27-30. 3  Dado retirado da página virtual do Ministério do Trabalho e Emprego, disponível em: http://portal.mte.gov.br/trab_escravo/ resultados-das-operacoes-de-fiscalizacao-para-erradicacao-do-trabalho-escravo.htm.. 4  LAITT, Isabela Parelli Haddad. O trabalho escravo à luz das Convenções ns. 29 e 105 da Organização Internacional do Trabalho. In: Alvarenga, Rúbia Zanotelli de, CONNAGO, Lorena de Mello Rezende, coord. Direito Internacional do Trabalho e as Convenções Internacionais da OIT. São Paulo: LTr, 2004, pag. 269.

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escravo, em que pese o Código Penal estabelecer, em seu artigo 149, quais as hipóteses de ocorrência do trabalho escravo. Sobre a regulamentação do trabalho escravo, já estava em tramitação no Senado federal desde 2013, o Projeto de Lei nº. 432/20135, de iniciativa do Senador Romero Jucá (PMDB/RR), que dispõe sobre a expropriação das propriedades rurais e urbanas onde se localizam a exploração do trabalho escravo, ou seja, antes mesmo da Emenda Constitucional 81/14 ser aprovada. O projeto atualmente6 está na em votação na Comissão de Constituição, Cidadania e Justiça, do Senado Federal. Além desta, existe também o Projeto de Lei nº. 3842/127, de iniciativa do Deputado Federal Moreira Mendes (PSD- RO), com a finalidade de alterar o artigo 149 do Código Penal. Este projeto de lei foi aprovado em 17 de abril de 2015, pela comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento rural, devendo passar pelas Comissões de trabalho, administração e serviço público e de Constituição, justiça e cidadania, para ir à votação no Plenário na Câmara dos Senados. Os dois Projetos de Lei visam retirar da caracterização do trabalho escravo o trabalho degradante e a jornada exaustiva, que foram inseridos desde 2003, através da Lei 10. 803, de 11.12.2003, no Artigo 149 do Código Penal Brasileiro, representando a tutela à dignidade do trabalhador. Deste modo, o presente ensaio visa analisar, a partir das justificativas dos Projetos de Lei 432/13 e 3842/12, a ameaça de extinção da proteção à dignidade do trabalhador, no âmbito do combate ao trabalho Escravo. 1. BENS JURÍDICOS TUTELADOS NO TRABALHO ESCRAVO. O Trabalho Escravo está regulamentado no Código Penal brasileiro, em seu artigo 149, que antes da alteração, em 2003, era assim redigido: “Reduzir Alguém a condição análoga a de escravo.” Observa-se que o tipo penal estabelecia a existência de relação de trabalho entre as partes, sendo portanto, um conceito bastante abrangente, causando inúmeras dificuldades ao Judiciário e aos Grupos de Fiscalização Móvel, já que sua tipificação era aberta. O Brasil recepcionou a convenção 29 da Organização Internacional do Trabalho8, falar em trabalho escravo era sinônimo de proteger à liberdade do trabalhador. Tanto é verdade, que o crime de reduzir alguém à condição análoga a de escravo esta inserido no capítulo VI, que trata dos crimes contra a liberdade individual, especificamente na seção I, que dispõe sobre os crimes contra a liberdade pessoal. Após alteração no artigo 149, introduzido pela Lei n. 10.803, de 11.12.2003, houve significativa mudança na prática do trabalho escravo, ficando claro que prescindia de uma relação de trabalho entre as partes, sendo agora tutelado à liberdade pessoal e a dignidade do trabalhador9. O quadro abaixo mostra com exatidão como a modificação do artigo 149 do Código Penal fomentou as denúncias e libertações investigações do trabalho escravo após a modificação do artigo 149 do Código Penal, por parte do Grupo Móvel de Fiscalização, em razão das novas modalidades de trabalho escravo, sendo 5  http://www.senado.gov.br/atividade/materia/getPDF.asp?t=138660&tp=1 Acessado em 30/04/15 6  http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=114895. Acesso em 28/04/15 7  http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=990429&filename=PL+3842/2012 Acessado em 30/04/15 8  Conceito de Trabalho Escravo presente no artigo 2ª da Convenção 29 da Organização Internacional do Trabalho: Para fins desta Convenção, a expressão “trabalho forçado ou obrigatório”, compreenderá todo trabalho ou serviço exigido de uma pessoa sob a ameaça de sanção e para o qual não se tenha oferecido espontaneamente. 9  Artigo 149. Reduzir alguém a condição análoga a de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto. Pena: reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência.§1 Nas mesmas penas incorre quem: I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retêlo no local de trabalho; II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho. §2ª. A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido: I – contra criança ou adolescente; II- Por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem.

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eles, “jornada exaustiva” e “condição degradante de trabalho”, bem como da condição dos sujeitos do crime estarem inseridos no relação de empregado e empregador. A alteração do tipo penal reduzir alguém a condição análoga a de escravo tornou a conduta mais específica, além de delimitar as hipóteses de verificação do trabalho escravo, ao coibir a sujeição ao trabalho forçado, a jornadas exaustivas, condição degradante e à proteção a liberdade do trabalhador.

Ademais, surgida após a promulgação da Constituição Cidadão, a alteração do artigo 149 do Código Penal é instrumento de autodeterminação dos objetivos e princípios do Estado Democrático de Direito. Sobre o tema, importante registro fez o Doutrinador José Cláudio Monteiro10: Restringir a liberdade, em todas as suas formas, e não somente a liberdade de ir e vir, então é atentar contra a Constituição da república, que trás, por exemplo, no artigo 1ª, IV, o valor social do trabalho como fundamento da República, no art. 3ª, I, o objetivo fundamental de construção de uma sociedade livre, assim como registra, mais à frente, a liberdade do exercício de qualquer trabalho (art. 5ª, XIII), o que é de todo incompatível com a situação de ter alguém em condições assemelhadas às de escravo. Mas há, como será visto mais adiante, um bem maior a proteger, que é a dignidade da pessoa humana, considerada o principal fundamento da República, e prevista n artigo 1ª, inciso III. A dignidade da pessoa humana é patente, sustenta a existência de todos os direitos fundamentais previstos no texto constitucional e revela que o ordenamento jurídico está construído para a proteção dos direitos básicos, essenciais, dos seres humanos, entre eles os previstos para a proteção daqueles que vivem de sua força de trabalho.

Deste modo, têm sem que os bens jurídicos tutelados no artigo 149 do Código Penal são a liberdade pessoal do trabalhador e a dignidade do trabalhador, como instrumento de efetivação da dignidade humana. Este inclusive é o posicionamento da Corte Suprema do País, sobre o trabalho escravo, observa-se: EMENTA PENAL. REDUÇÃO A CONDIÇÃO ANÁLOGA A DE ESCRAVO. ESCRAVIDÃO MODERNA. DESNECESSIDADE DE COAÇÃO DIRETA CONTRA A LIBERDADE DE IR E VIR. DENÚNCIA RECEBIDA. Para configuração do crime do art. 149 do Código Penal, não é necessário que se prove a coação física da liberdade de ir e vir ou mesmo o cerceamento da liberdade de locomoção, bastando a submissão da vítima “a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva” ou “a condições degradantes de trabalho”, condutas alternativas previstas no tipo penal. A “escravidão moderna” é mais sutil do que a do século XIX e o cerceamento da liberdade pode decorrer de diversos constrangimentos econômicos e não necessariamente físicos. Priva-se alguém de sua liberdade e de sua dignidade tratando-o como coisa e não como pessoa humana, o que pode ser feito não só mediante coação, mas também pela violação intensa e persistente de seus direitos básicos, inclusive do direito ao trabalho digno. A violação do direito ao trabalho digno impacta a capacidade da vítima de realizar escolhas segundo a sua livre determinação. Isso também significa “reduzir alguém a condição análoga à de escravo”. Não é qualquer violação dos direitos trabalhistas que configura trabalho escravo. Se a violação aos direitos do trabalho é intensa e persistente, se atinge níveis gritantes e se os trabalhadores são submetidos a trabalhos forçados, jornadas exaustivas ou a condições degradantes de trabalho, é possível, em tese, o enquadramento no crime do art. 149 do Código Penal, pois os trabalhadores estão recebendo o tratamento análogo ao de escravos, sendo privados de sua liberdade e de sua dignidade. Denúncia recebida pela presença dos requisitos legais. (Inq 3412, Relator(a):  Min. MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão:  Min. 10  BRITO FILHO, José Cláudio Monteiro de, TRABALHO ESCRAVO: CARACTERIZAÇÃO JURÍDICA, São Paulo, LTr, 2014, p. 47.

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ROSA WEBER, Tribunal Pleno, julgado em 29/03/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-222 DIVULG 09-11-2012 PUBLIC 12-11-2012 RTJ VOL00224-01 PP-00284).

2. PROJETOS DE LEI 432/2013 E 3842/2012. A alteração do artigo 243 da Constituição Federal, a partir da Emenda Constitucional nº. 81/14 trouxe a desapropriação de bens imóveis como importante ferramenta no combate ao trabalho escravo, todavia, não levou em consideração a legislação já existente no âmbito penal para tipificação do trabalho escravo. Não só desconsiderou o artigo 149 do Código Penal, como já existe Projeto de Lei em trâmite no Congresso Nacional, para regulamentar a expropriação das propriedades rurais e urbanas onde se localizem a exploração de trabalho escravo, e outro que visa à alteração do artigo 149 do Código Penal, sendo eles os Projetos de Lei 432/2013 e 3842/2012, respectivamente. Justificando os respectivos Projetos de Lei, o Senador Romero Jucá e o Deputado Federal, Moreira Mendes, voltam-se a dificuldade de incriminação pelo ilícito penal do trabalho escravo, defendendo a exclusão da jornada exaustiva e ao trabalho degradante. O Deputado Moreira Mendes, em sua exposição de motivos, cita o documento apresentado pela Relatora oficial da ONU, Sra. Gulnara Shahinian, sobre as formas contemporâneas de escravidão, relatadas em missão ao Brasil nos dias 17 a 28 de maio de 2010. O Senador argumenta que após alteração do artigo 149 do Código Penal, em 2003, não determinou de modo objetivo o que seria trabalho degradante e jornada exaustiva. Já o Projeto de Lei 432/2013, justifica sua necessidade no fato das Convenções da OIT que tratam sobre o trabalho escravo (29 e 105) já não conseguirem conceituar tal prática, existindo atualmente inúmeras formas de restringir a liberdade de alguém, mediante o trabalho escravo. O Senador inclusive defende que a ocorrência do trabalho escravo está subjugada ao tolhimento da liberdade do trabalhador com o objetivo de explorar o seu trabalho. Por conseguinte, o Projeto de Lei 3842/2012, propõe alterar o atual artigo 149 do Código Penal para a seguinte redação: Para fins desta Lei, a expressão “condição análoga à de escravo, trabalho forçado ou obrigatório” compreenderá todo trabalho ou serviço exigido de uma pessoa sob ameaça, coação ou violência, restringindo sua locomoção e para o qual não se tenha oferecido espontaneamente.

Já o Projeto de Lei 432/2013, com vistas a regulamentar a expropriação das propriedades em que forem localizadas o trabalho escravo, define as seguintes condutas, como condutas típicas do trabalho escravo, passível de expropriação: Os imóveis rurais e urbanos, onde for identificada a exploração de trabalho escravo diretamente pelo proprietário, serão expropriados e destinados à reforma agrária e a programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao proprietário que foi condenado, em sentença penal transitada em julgado, pela prática da exploração do trabalho escravo e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei, conforme o artigo 243 da Constituição Federal de 1988. §1º: Para os fins desta lei, considera-se trabalho escravo: A submissão a trabalho forçado, exigido sob ameaça de punição, com uso de coação, ou que se conclui de maneira involuntária, ou com restrição da liberdade pessoal;

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O cerceamento do uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho; A manutenção de vigilância ostensiva no local de trabalho ou a apropriação de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho; A restrição, por qualquer meio, da locomoção do trabalhador, em razão de dívida contraída com empregador ou preposto.

3. CRÍTICAS AOS PROJETOS DE LEIS. Estabelecer o trabalho escravo à lei específica que em seu projeto, traga conceito distinto do conceituado no artigo 149 do Código Penal, é retroceder os avanços trazidos no combate ao trabalho degradante e as jornadas exaustivas, sendo estas as hipóteses em que há mais ocorrências do trabalho escravo.11 De outro víeis, havendo a possibilidade do Projeto de Lei 432/2013 ser aprovado antes do Projeto de Lei 3842/2012, coloca-se a possibilidade de ocorrerem casos nos quais haverá a caracterização de trabalho escravo nos âmbitos penal e trabalhista, mas não ocorrerá a perda da propriedade pela mencionada diferença conceitual que irá tratar as jornadas exaustivas e as condições degradantes de forma distinta. Registra-se que a referência feita no Projeto de Lei 3842/201212, diz respeito ao combate ao combate ao trabalho escravo no meio rural, devendo o referido Deputado Federal ter feito menção a este detalhe, para não confundir a população. Não é certo que as hipóteses de trabalho degradante e jornada exaustiva não apresentam conceitos definidos, causando prejuízo no momento da caracterização do trabalho escravo. Tais ocorrências protegem a dignidade do trabalhador, pois afastando-se dos conceitos de privação da liberdade pessoal, tutelam um ambiente sadio de trabalho, existência de alojamento em condições mínimas, o não fornecimento de Equipamentos de Proteção Individual, jornadas que não coloquem a vida do trabalhador e nem de seus colegas em risco. 13 Ademais, no que concerne a jornada exaustiva, o próprio Ministério do Trabalho, através da Secretaria de Inspeção do Trabalho, lançou a Instrução Normativa n. 91, de 05 de outubro de 2011, que define a jornada exaustiva, para fins de fiscalização do trabalho, como sendo: Toda jornada de trabalho de natureza física ou mental que, por sua extensão ou intensidade, cause esgotamento das capacidades corpóreas e produtivas da pessoa do trabalhador, ainda que transitória e temporalmente, acarretando, em consequência, riscos a sua segurança e/ou saúde.

Igualmente, tem-se que as tentativas de reduzir a proteção jurídica à dignidade do trabalhador no combate ao trabalho escravo, são de iniciativas de Políticos que representam bancadas conservadoras, de interesses ruralistas, que lutam, na verdade, pela conservação de suas propriedades. CONCLUSÕES O Direito do Trabalho, para efeitos de análise do trabalho escravo, utiliza-se do conceito previsto no art. 149 do Código Penal, dada a inexistência de definição na legislação trabalhista. A fiscalização do trabalho adota o tipo penal para resgatar os trabalhadores encontrados em situação de trabalho escravo. 11  _____ TRABALHO ESCRAVO: CARACTERIZAÇÃO JURÍDICA. São Paulo; LTr, 2014. 12  http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/publicacoes/trabalho-escravo/relatorio-da-relatora-especial-onusobre-formas-contemporaneas-de-escravidao Acessado em 01.05.2015 13  MELO, Luis Antônio Camargo de. PREMISSAS PARA UM EFICAZ COMBATE AO TRABALHO ESCRAVO. Revista do Ministério Público do Trabalho. São Paulo, Ltr, n. 26, p. 15, set. 2003.

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A criação de uma segunda definição legal de trabalho escravo que seja mais restritiva e menos protetiva será trágica para a tutela laboral, tendo em vista que será viabilizada a possibilidade de utilização do conceito previsto no Projeto de Lei n. 432/2013 na esfera trabalhista. Tal fato afetará gravemente a segurança jurídica, uma vez que haverá dois conceitos legais de trabalho escravo em um contexto em que inexiste previsão no ordenamento jurídico laboral. Deve-se destacar que não se ignora a principiologia do Direito do Trabalho, que nos indica a aplicação da norma mais favorável ao trabalhador no caso concreto, e torna óbvia a adoção do tipo penal para efeitos trabalhistas. Contudo, o mero fato de ser necessário o uso de princípios para se chegar a uma conclusão que atualmente não demanda qualquer esforço hermenêutico demonstra a lesividade que os mencionados Projetos pode acarretar. Por fim, não é possível retroceder as conquistas históricas de combate ao trabalho escravo em razão de jornadas exaustivas e do trabalho degradante, haja vista esta última hipótese, a Constituição Federal inclusive veda o tratamento degradante, em seu artigo 5ª, inciso III, em respeito aos seus direitos fundamentais. É preciso estar atento as mudanças e sobretudo ao interesse nos bens jurídicos que o Poder Legislativo pretende estabelecer proteção jurídica, a fim de não representar um retrocesso as conquistas, quiçá histórias, no combate ao trabalho escravo contemporâneo. REFERÊNCIAS BRITO, José Claudio Monteiro de, Trabalho decente: análise da exploração, trabalho escravo e outras formas de trabalho indigno, 2. ed., São Paulo: LTr, 2010 _______ , TRABALHO ESCRAVO: CARACTERIZAÇÃO JURÍDICA, São Paulo, LTr, 2014 BRASIL. Ministério do Trabalho. Grupo Especial Móvel. Portaria n. 265, de 06 de junho de 2002. LAITT, Isabela Parelli Haddad. O trabalho escravo à luz das Convenções ns. 29 e 105 da Organização Internacional do Trabalho. In: Alvarenga, Rúbia Zanotelli de, CONNAGO, Lorena de Mello Rezende, coord. Direito Internacional do Trabalho e as Convenções Internacionais da OIT. São Paulo: LTr, 2004, pag. 269-270 OIT. As regras do jogo. Uma breve introdução às normas internacionais do trabalho. Edição do Gabinete para a Cooperação do Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social de Portugal. 3 ed., fev. 2007, pag. 27-30. MELO, Luis Antônio Camargo de. PREMISSAS PARA UM EFICAZ COMBATE AO TRABALHO ESCRAVO. Revista do Ministério Público do Trabalho. São Paulo, Ltr, n. 26, p. 15, set. 2003. Ministério do Trabalho e Emprego. Trabalho Escravo no Brasil em Retrospectiva: Referências para estudos e pesquisas. Disponível em: portal.mte.gov.br/data/files/.../retrospec_trab_escravo.pdf PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o trabalho. Revista da AMATRA, II, São Paulo, 2003, p. 13. Sakamoto, Leonardo (Coordenação de estudos). Trabalho escravo no Brasil do Século XXI.Brasília. Organização Internacional do Trabalho, 2007. _____ As boas práticas da inspeção do trabalho no Brasil: A erradicação do trabalho análogo ao de escravo / Organização Internacional do Trabalho. – Brasília: OIT, 2010

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PROJETO DE LEI 432/2013 disponível em http://www.senado.gov.br/atividade/materia/getPDF.asp?t=138660&tp=1 Acessado em 30/04/15 PROJETO DE LEI 4842/2012, disponível em http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_ cod_mate=114895. Acesso em 28/04/15 RELATÓRIO DA RELATORA ESPECIAL SOBRE FORMAS CONTEMPORÂNEAS DE ESCRAVIDÃO, INCLUINDO SUAS CAUSAS E CONSEQUÊNCIAS, disponível em http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/publicacoes/trabalho-escravo/relatorio-da-relatora-especial-onu-sobre-formas-contemporaneas-de-escravidao Acessado em 01.05.2015 ___________INSTRUÇÃO NORMATIVA Nº. 91, DE 05 DE OUTUBRO 2011. (PUBLICADA no DOU de 06/10/2011 Seção I pág. 102). Disponível em http://portal.mte.gov.br/data/files/8A7C812D32DC09BB0132DFD134F77441/in_20111005_91.pdf

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A COMPLEXIDADE DO TRABALHO ESCRAVO CONTEMPORÂNEO UM OLHAR LUHMANNIANO

Flora Oliveira da Costa Graduada pela Universidade Católica de Pernambuco; Especialista em Direito Judiciário e Magistratura do Trabalho pela Escola Superior de Magistratura Trabalhista da 06ª Região; Mestranda em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco; Advogada

SUMÁRIO: Introdução; 1. Breves Considerações sobre a Teoria dos sistemas de Luhmann; 2. O Direito como forma de redução das expectativas sociais; 3. O Trabalho decente como redutor de complexidades no universo trabalhista; 4. O Trabalho decente como redutor de complexidades no universo trabalhista; Conclusão; Referências.

INTRODUÇÃO O direito do trabalho sempre mostrou sua força nas diversas formas de Estado, seja como produto do capital, seja como movimento social combativo por melhorias voltadas para sua categoria. Assim, pode-se delimitar como início do direito do trabalho como ramo especializado, à revolução industrial, que veio trazer a preocupação com a relação empregatícia, além de unir toda a classe pela luta de progressos em suas condições de trabalho. Essa classe trabalhadora buscou melhorias para sua categoria, lutando sobretudo contra o abandono de sua dignidade, em virtude dos ideais liberais. Sobre esse período, Ricardo Antunes (2002) observa: Sob a alternância partidária, ora com a social- democracia ora com os partidos diretamente burgueses, esse “compromisso” procurava delimitar o campo da luta de classes, onde se buscava a obtenção dos elementos constitutivos do welfare state em troca do abandono, pelos trabalhadores, do seu projeto histórico – societal. Uma forma de sociabilidade fundada no “compromisso” que implementava ganhos sociais e seguridade social para os trabalhadores dos países centrais, desde que a temática do socialismo fosse relegada a um futuro a perder de vista.

Desse modo, pode-se defender que o Estado de Bem Estar social veio para proteger a classe trabalhadora, envolvendo o cidadão trabalhador em um conjunto de direitos e garantias que dão sentido ao mundo do trabalho. O direito do trabalho, portanto, faz parte dos direitos fundamentais constitucionais, justamente por elencar garantias mínimas de realização, proteção, em relação ao homem trabalhador, seu futuro (seguridade social) e o de sua família. Em tempos de crise do Estado Social e hegemonia da cultura neoliberal, influenciados pela globalização focada no capitalismo a todo custo, o mundo do trabalho está sendo atingindo sorrateiramente pela economia, ou seja, os empregadores são os verdadeiros donos de seus funcionários, pois, sob a égide da su-

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bordinação e de uma legislação trabalhista cada vez mais flexível (BARROSO, 2009 67), é gritante o cenário de destruição da dignidade do trabalhado. Valendo-se, novamente, do doutrinador Ricardo Antunes (2002), são as flagrantes metamorfoses no trabalho de hoje: O mundo do trabalho viveu, como resultado das transformações e metamorfoses em curso nas últimas décadas, particularmente nos países capitalistas avançados, com repercussões significativas nos países do terceiro mundo dotados de uma industrialização intermediária, um processo múltiplo: de um lado verificou-se uma desproletarização do trabalho industrial, fabril, nos países do capitalismo avançado. Em outras palavras, houve uma diminuição da classe operária industrial. Mas, paralelamente, efetivou-se uma significativa subproletarização do trabalho, decorrência das formas diversas de trabalho parcial, precário, terceirizado, subcontratado, vinculado à economia informal, ao setor de serviços, etc. Verificou-se, portanto, uma significativa heterogeneização, complexificação e fragmentação do trabalho.

Noutro aspecto, a própria Constituição Federal tem como fundamento da nação, a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho, vindo o artigo 7ª da Constituição a elencar as condições sociais de trabalho e seu futuro (previdência). Entretanto, que pese a narrativa do texto constitucional, o cotidiano da Justiça do Trabalho e do Ministério Público do Trabalho demonstra que a dignidade do trabalhador vem sofrendo inúmeros atentados, tais como, remuneração em desconformidade a lei e ao estipulado em convenção coletiva, ambiente de trabalho inseguro, sendo o ambiente do trabalho um dos lugares que mais se mata no Brasil1, trabalho em condição insalubre e periculosa, frustração a direitos sindicais. O trabalho decente corresponde a um universo de direitos e garantias do trabalhadores e por isso devem conviver com a complexidade, heterogeinização e fragmentação do trabalho moderno, e não serem ignorados e massacrados pela onda neoliberal. A contribuição de Nicklas Luhmann na explicação da sociedade e seus sistemas, ilustra que o direito, enquanto sistema, trabalha na redução das complexidades do entorno de forma constante, afetando seu sistema interno a partir deste diálogo com o que é externo. Dessa forma, o presente ensaio visa analisar as formas de complexidade presentes no entorno do trabalho decente, a luz da teoria dos sistemas de Luhmann, como possibilidade de dar efetividade a dignidade do cidadão trabalhador. 2. BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A TEORIA DOS SISTEMAS DE LUHMANN. Nicklas Luhmann presenteou a modernidade com seus inúmeros livros e artigos, ao explicar a sociedade e o direito a partir da teoria dos sistemas. Humildemente, enquanto esperava o início de uma conferência, o sociólogo em um amistoso chá da tarde com seu pupilo, Raffaelie Di Giorgi, observando vários grupos de garotos jogando futebol em uma grande praça pública, brilhantemente, argumentou que a sociedade estava representada naquela cena: Uma complexidade de sistemas, que autônomos e independentes, completavam o todo que é a sociedade. Esclarece-se que em um primeiro momento, não é fácil a compreensão da teoria dos sistemas de Luhmann, isto porque, o sociólogo busca amparo nas ciências exatas e humanas, para, de uma forma universal, revelar uma teoria geral sobre a sociedade, trazendo inúmeras terminologias, que uma vez entendidos, podem ser utilizados para compreender política, direito, o amor. Assim, Nicklas trabalha a sociedade como um todo rodeado de complexidade, que quanto mais contingente for, maior será a influência levada ao sistema. O sistema, portanto, atuará como redutor da complexidade, a partir da relação em que, quanto maior a complexidade externa ao sistema, maior será a necessidade 1  http://www.previdencia.gov.br/dados-abertos/aeps-2013-anuario-estatistico-da-previdencia-social-2013/aeps-2013-secao-iv-acidentes-do-trabalho/ Acesso em 14.Ago.15

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do sistema internamente reduzir as complexidades, criando outros subsistemas. Explicando a Complexidade (Corsi, Esposito, Baraldi,1996, p. 44), tem-se o seguinte: La diferencia entre sistema y entorno consiste en um gradiente de complejidad (komplexilalgefalle): el entorno es siempre más complejo que el sistema, ya que el sistema fija los limites que delimitam el ámbito de lo posibleen su interior. El desnível de complejidad entre sistema y entorno se configuracomo relación de relaciones: las relacionesasbstractamente posiblesentre elementosdel sistema (complejidad del sistema) se vinculan en el sistema mismo em relación com las compatibilidades del entorno (complejidad del entorno). En um sistema social no todo puede ser actualizado simultaneamente em las operaciones (em la comunicación) precidamente en cuanto que la complejidas está estructurada según uma perspectiva de compatibilidaded com el entorno.

Nesse cenário, Luhmann se inspirou na teoria dos biólogos chilenos Humberto Maturana e Francisco Varella, para explicar a autopoiése dentro dos sistemas, que nada mais é do que a evolução do sistema em outro ou subsistemas, a partir da influência externa da complexidade. Nesse cenário, observa-se a explicação: Um sistema vivo, segun Maturana, se caracteriza por la capacidad de producir y reproducir por sí misma los elementos que lo constituyen, y así define su própria unidad: cada célula es el produto de um retículo de operaciones internas al sistema del cual ella misma es um elemento y no de uma accion externa; (...) Mentras em el âmbito biológico se aplica exclusivamente a los sistemas vivos, según Luhmann se individualiza um sistema autopoiético em todos los casos em los que se está em la posibilidad de individualizar um modo específico de operación, que se realiza al y solo al interior; (Corsi, Esposito, Baraldi, 1996, 31 -34)

Assim, os sistemas são autopoiéticos porque se autoreproduzem ou produzem a si mesmos enquanto unidade sistêmica. A diferenciação entre sistema e entorno, por sua vez, realça as características do sistema, que é operacionalmente fechado, sendo influenciado a partir do mundo externo através da comunicação. Assim, outro detalhe importante para se compreender a teoria dos sistemas é esquecer a ideia do ser humano como coadjuvante na sociedade, isto porque, Luhmann considera que as influências externas produzem comunicação, podendo vir de pessoas ou instituições localizadas no entorno. (ECKERT; MONTEIRO NEVES, 2006, p. (15-17). Percebe-se, assim, que entender o fenômeno da autopoise em Luhmann é fundamental para compreender a Teoria dos Sistemas, visto que é a forma de auto reprodução dos sistemas e subsistemas, a partir de elementos como complexidade externa, comunicação e o código binário de seleção. Ainda sobre a Autopoise em Luhman, se extrai brilhante lição (NEVES,1994, p. 118-119): Luhmann não reduziu a reprodução autopoiética à auto referência dos elementos, mas apenas fixou que essa é a forma mínima de autopoiese. E o que vai caracterizar exatamente a concepção dos sistemas autopoiéticos é que ela parte dos aspectos operacionais, não se referindo primariamente à dimensão estrutural (autonomia). Com relação aos sistemas sociais, enquanto se constituem a partir de uma conexão unitária (auto referencial) de comunicações, a sociedade é o sistema mais abrangente. As unidades elementares da sociedade, as comunicações, que ela constitui através da síntese de informação, mensagem e compreensão, só estão presentes no interior da mesma, não em seu meio ambiente, de tal maneira que ela pode ser caracterizada como um sistema “real – necessariamente fechado. Embora a reprodução de comunicações só se realize dentro da sociedade (fechamento auto referencial),

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existem imprescindivelmente comunicações sobre o seu meio ambiente psíquico, orgânico e químico-físico (abertura).

Outra observação importante a teoria dos sistemas de Niklas Luhmann diz respeito ao código binário, que corresponde a ideia de que o sistema fechado recepciona as contingências externas a partir do julgador interno do que seria correto / errado. No caso do sistema direito, temos o código binário direito e não de direito, para, de forma seletiva, separar o que é cognição e o que deve ter caráter normativo. Registra-se, pois, o conceito de Código Binário (Corsi, Esposito, Baraldi,1996, p. 40-41) Los esquemas binários son tipos específicos de distinciones caracterizadas por un rígido binarismo com la exclusión de terceiros valores. Tal binarismo se expresa en lógica en el principio del terceiro valores. Tal binarismo se expressa em lógica en el principio del terceiro excluído: una comunicacion cientifica es verdadera o no verdadeira, y no existen otras posibilidades; un organismo está vivo o no vivo, y no puede estar un poco vivo. Una caracteristica de la binariedad es por lo tanto uma drásrica reducción, que restringe la gama infinita de las possibilidades a dos únicas opciones relacionadas mediante uma negación. También se disse que ua distinción que satisfaga esta condición es tecificada, entendiéndose como técnica el aligeramiento de los processos de elaboración de informaciones relacionadas com el hecho de que no se toman en consideración todos las referencias de sentido implicadas.

O código binário funciona como uma organização sistêmica de redução das possibilidades em negativa ou positiva, como ferramenta eficaz na seletividade da complexidade externa. Essas são, de forma breve, algumas conclusões sobre a forma Luhmanniana de enxergar a sociedade: Um todo complexo, porém autônomo e independente entre si, mas que emanam influências positivas e negativas, de seu sistema interno e da complexidade do entorno, que sentidas, servem como motor que impulsiona criação de novos sistemas, a partir da autopoiése. Interessante registrar que a sociedade vista com os olhos de Luhmann não é aquela formada por homens. Os homens são considerados apenas parte do todo complexo, sendo para o sociólogo representação do sistema psíquico, porém a sociedade conta ainda com os sistemas orgânicos e os sociais. Esses sistemas juntos, produzem comunicação. Em linhas gerais, tem-se a teoria dos sistemas criada por Niklas Luhmann como modo especial de explicar a sociedade a partir de formas de redução da complexidade, através da influência dos sistemas sociais. Assim, a complexidade do mundo é sempre maior do que a complexidade de um sistema, que por outro lado, precisa de um grau de complexidade que lhe permita a redução da complexidade no seu meio. Para sistemas sociais a redução da complexidade do mundo se traduz no problema de como enfrentar a dupla contingência. 3. O DIREITO COMO FORMA DE REDUÇÃO DAS EXPECTATIVAS SOCIAIS. Explicar o sistema direito foi objeto de inúmeros estudos de Nicklas Luhmann. Por conveniência, cita-se aqui, alguns deles, como sociologia do direito I (1983); Sociologia do Direito II (1972), Lógica pelo Procedimento (1980) e El Derecho de la sociedade (2006), inexistindo aqui intenção de se esgotar as obras sobre o direito. Nesse diapasão, cuidou o sociólogo de explicar o Sistema social na perspectiva da teoria dos sistemas, trazendo informes próprios ao universo jurídico. Assim, Luhmann, ao introduzir sua Obra Sociologia do Direito I, ao falar sobre o Direito, leciona (LUHMANN, 1983, p.12-13):

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O ordenamento jurídico, tal como nós o conhecemos atualmente, é uma construção de alta complexidade estruturada. Complexidade deve ser entendida aqui e no restante desse texto como a totalidade das possibilidades de experiências ou ações, cuja ativação permita o estabelecimento de uma relação de sentido – no caso do direito isso significa considerar não apenas o legalmente permitido, mas também as ações legalmente proibidas, sempre que relacionadas ao direito de forma sensível, como, por exemplo, ao se ocultarem. A complexidade de um campo de possibilidades pode ser grande ou pequena, em termos quantitativos, de diversidade ou de interdependência. A complexidade totalmente desestruturada seria o caso limite da névoa original, do arbítrio e da igualdade de todas as possibilidades. A complexidade estruturada constitui-se na medida em que as possibilidades se excluam ou limitem reciprocamente. Na complexidade estruturada constitui-se na medida em que as possibilidades se excluam ou limitem reciprocamente (...). Dessa forma, uma “constituição de Estado de direito” exclui mais ou menos efetivamente numerosos modos comportamentais, abrindo, porém, e exatamente por isso, o como por exemplo ações constitucionais que de outra forma não seriam possíveis, por dependerem da estruturação (sendo contingentes). Com isso a estrutura pode aumentar a complexidade de um sistema social no sentido de que, apenas da limitação recíproca das possibilidades para uma escolha sensata. É exatamente a exclusão estratégica de possibilidades que, vista em termos evolutivos, constitui o meio para a construção de ordenamentos mais elevados, que não podem consentir com toda e qualquer possibilidade, mas, exatamente por isso, garantindo sua heterogeneidade.

Assim, Nicklas entende que o direito atua na redução da complexidade gerada pelas expectativas. Estas podem ser cognitivas e normativas, sendo que as expectativas normativas não passar pelo crivo do desapontamento, já que foram editadas e previstas evitar ou proteger determinadas contingências sociais. Ao longo da evolução sociocultural, o direito foi se autonomatizando da moral, a partir de um processo de diferenciação funcional, até chegar a constituir-se em um sistema autopoiético, composto de comunicações de expectativas normativas, cuja validade se remete de modo recursivo a outras expectativas normativas. (LUHMANN, 1983, p. 93); A partir de sua organização interna, o sistema Jurídico acaba por estabilizar-se, pois todas as operações se reproduzem sem a influência externa, a não ser pela assimilação seletiva de fatores do entorno, de acordo com os critérios do próprio sistema jurídico. Toda a validação do direito é realizada de modo recursivo, por seus próprios códigos jurídicos. O direito positivo reproduz-se de acordo com seus próprios critérios e códigos de preferência. (NEVES; SAMIOS, 1997) Temos, portanto, que o direito é o sistema social que se alimenta de expectativas cognitivas e normativas, e trabalha com o código binário do direito / não direito. Assim, a partir da influência do entorno e em todos os outros sistemas (social, orgânico e psíquico), o substrato da comunicação vai influenciar a complexidade interna do sistema direito, a fim de criar subsistemas cada vez mais especializados, a fim de prever estabilidade a sociedade. Após alteração no artigo 149 do Código Penal, houve significativa mudança na prática do trabalho escravo, ficando claro que prescindia de uma relação de trabalho entre as partes, sendo agora tutelado à liberdade pessoal e a dignidade do trabalhador2.

2  Artigo 149. Reduzir alguém a condição análoga a de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto. Pena: reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência. §1 Nas mesmas penas incorre quem: I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho; II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho. §2ª. A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido: I – contra criança ou adolescente; II- Por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem.

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A alteração do tipo penal reduzir alguém a condição análoga a de escravo tornou a conduta mais específica, além de delimitar as hipóteses de verificação do trabalho escravo, ao coibir a sujeição ao trabalho forçado, a jornadas exaustivas, condição degradante e à proteção a liberdade do trabalhador. Ademais, surgida após a promulgação da Constituição Cidadão, a alteração do artigo 149 do Código Penal é instrumento de autodeterminação dos objetivos e princípios do Estado Democrático de Direito. Sobre o tema, importante registro fez o José Cláudio Monteiro (MONTEIRO, 2014, p. 63): Restringir a liberdade, em todas as suas formas, e não somente a liberdade de ir e vir, então é atentar contra a Constituição da república, que trás, por exemplo, no artigo 1ª, IV, o valor social do trabalho como fundamento da República, no art. 3ª, I, o objetivo fundamental de construção de uma sociedade livre, assim como registra, mais à frente, a liberdade do exercício de qualquer trabalho (art. 5ª, XIII), o que é de todo incompatível com a situação de ter alguém em condições assemelhadas às de escravo. Mas há, como será visto mais adiante, um bem maior a proteger, que é a dignidade da pessoa humana, considerada o principal fundamento da República, e prevista no artigo 1ª, inciso III. A dignidade da pessoa humana é patente, sustenta a existência de todos os direitos fundamentais previstos no texto constitucional e revela que o ordenamento jurídico está construído para a proteção dos direitos básicos, essenciais, dos seres humanos, entre eles os previstos para a proteção daqueles que vivem de sua força de trabalho.

A Organização Internacional do Trabalho define como trabalho decente aquele trabalho adequadamente remunerado, exercido em condições de liberdade, equidade e segurança, capaz de garantir uma vida digna. A concepção de trabalho decente para a OIT apoia-se em quatro pilares estratégicos3: O respeito às normas internacionais do trabalho, em especial aos princípios e direitos fundamentais do trabalho (liberdade sindical e reconhecimento efetivo do direito de negociação coletiva; eliminação de todas as formas de trabalho forçado; abolição efetiva do trabalho infantil; eliminação de todas as formas de discriminação em matéria de emprego e ocupação; b) promoção do emprego de qualidade; c) extensão da proteção social; d) diálogo social; O Trabalho Decente é o ponto de convergência dos quatro objetivos estratégicos da OIT: o respeito aos direitos no trabalho (em especial aqueles definidos como fundamentais pela Declaração Relativa aos Direitos e Princípios Fundamentais no Trabalho e seu seguimento adotada em 1998: (i) liberdade sindical  e reconhecimento efetivo do direito de negociação coletiva; (ii)eliminação de todas as formas de trabalho forçado; (iii) abolição efetiva do trabalho infantil; (iv) eliminação de todas as formas de discriminação em matéria de emprego e ocupação), a promoção do emprego produtivo e de qualidade, a extensão da proteção social e o fortalecimento do diálogo social.

Neste compasso, são requisitos positivos para o trabalho decente (MONTEIRO, 2010, p. 27): 1) No Plano Individual: a) Direito do Trabalho; b) liberdade de escolha do trabalho; c) Igualdade de oportunidades para e no exercício do trabalho; d) Direito a uma justa remuneração; d) Direito a justas condições de trabalho, principalmente limitação da jornada de trabalho e existência de períodos de repouso; g) Proibição do trabalho infantil; 2) No Plano Coletivo: Liberdade Sindical; 3). No plano da seguridade: Proteção contra o desemprego e outros riscos sociais. Chama-se os direitos mínimos do homem trabalhador.

3  Agenda Nacional do Trabalho Decente, 2006: Disponível em: http: // www.oitbrasil.org.br

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Isto posto, observa-se que o trabalho decente não corresponde a uma única Convenção Internacional da OIT, entretanto atua como caderno de direitos do cidadão trabalhador, que é de um todo abrangente, ampliando bastante, a ideia de trabalho forçado (embora também contemple a proteção a liberdade). Consiste em universo de legislação voltada para o plano individual, notadamente no que tange a segurança e saúde do trabalhador, como por exemplo as Normas Regulamentadoras instituídas pelo Ministério do Trabalho e Emprego, bem como os artigos da Consolidação das Leis do trabalho, sobre o contrato de trabalho e sua regulação. Platon Teixeira, preocupado na aplicabilidade do preceito legal do trabalho decente, elaborou uma fórmula própria (TEIXEIRA,2015, p. 119), para o trabalho decente, que consiste em “Trabalho decente = a dignidade + liberdade + igualdade + saúde + segurança + remuneração justa + atividade lícita + equidade + lazer + aposentadoria digna + liberdade sindical – trabalho infantil”. Ele finaliza resumindo tal fórmula desse modo: “Trabalho decente = dignidade no trabalho + liberdade sindical – trabalho infantil. ” O artigo 149 do Código Penal, portanto, vem a tutelar o trabalho decente, com cuidado especial ao meio ambiente de trabalho, se preocupando com as condições de trabalho - alojamento, refeitório, equipamentos de proteção, recebimento de salário equitativo, jornada dentro do previsto em lei – representando, pois, cuidado ao direito individual do trabalhador, devendo ser verificados com sensatez, em razão da tendência do empregador brasileiro de burlar as normas de proteção a dignidade do trabalhador. Isto porque, vige-se atualmente, uma tendência arrebatadora pela flexibilização dos direitos trabalhistas, que para a filosofia neoliberal, os princípios do direito do trabalho estão ultrapassados, o trabalho não difere de outras mercadorias, vez que está baseado na autonomia da vontade e da liberdade contratual, argumenta Fábio Túlio Barroso (BARROSO,2009, pag. 67). Noutro aspecto, por ser um instituto de amplo alcance, que contempla diversos direitos trabalhistas, tanto no plano individual como no coletivo, sem contar com o fato da Organização Internacional do Trabalho ainda não ter lançado uma Convenção Específica para este tema, é preciso voltar-se sempre aos direitos sociais do trabalho e atuar pela sua validade, visto que a dignidade do trabalhador é o fim em si mesmo do trabalho decente. 4. O TRABALHO DECENTE COMO REDUTOR DE COMPLEXIDADES NO UNIVERSO TRABALHISTA. Utilizando o entendimento do Sociólogo Nicklas Luhmann, o direito é o sistema social que atua na redução das expectativas, para que estas não gerem conflitos. Nesse universo, o trabalho decente é a carta de direitos do cidadão trabalhador, que fundamenta no capítulo de direitos sociais do trabalho promovido pela Constituição Federal, sem contar com o fato de que promover a dignidade humana é um fundamento do Estado Democrático de direito, temos que o todo trabalho decente funcionada como sistema para evitar explorações aos trabalhadores, sendo sua pior forma, a de reduzir alguém ao trabalho escravo. Em que pese o texto, o trabalho escravo cresce em números alarmantes no território brasileiro, antes mais isolado ao meio rural, porém em dias atuais está registrado nos grandes centros urbanos, com estrangeiros trabalhando de forma ilegal em São Paulo, exemplo de Bolivianos encontrados em situação análoga à de escravidão na empresa terceirizada de costura da varejista da Renner4, tem-se o trabalho escravo como descontrole dos sistemas sociais, sobretudo, no âmbito do direito do trabalho. Isto porque, o sistema direito atualmente proposto, em uma concepção pluralista pós-moderna, está em constante crise de inconstitucionalidade, pois as normas jurídicas constitucionais atualmente vigentes são atropeladas pela onda do capitalismo, do lucro a todo custo, favorecendo, no âmbito do direito do traba-

4  http://reporterbrasil.org.br/2014/11/fiscalizacao-flagra-exploracao-de-trabalho-escravo-na-confeccao-de-roupas-da-renner/ Acesso em 17. Ago. 15

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lho, uma tendência a flexibilização das normas trabalhistas e reincidentes desrespeitos as normas e regras atreladas ao mundo do trabalho. A crise do constitucionalismo moderno é provocada pela tentativa de efetuar os fins do Estado social de hoje com as técnicas do Estado de Direito de ontem. O problema atual é juridicizar o Estado Social, por meio da garantia e da realização dos direitos sociais básicos. (BONAVIDES, 2007, p. 384). Nesse cenário, comenta Marcelo Neves (1994): Em nosso caso, pretendemos considerar algo mais radical, a própria falta de autonomia operacional do Direito positivo estatal. Isso significa a sobreposição de outros códigos de comunicação, especialmente do econômico (ter/ não ter) e do político (poder/ não – poder), sobre o código “lícito/ ilícito”, em detrimento da eficiência, funcionalidade e mesma racionalidade do direito. (...) O fato da subordinação do direito ao poder político no contexto da constitucionalização simbólica não deve, entretanto, levar à ilusão da autonomia do sistema político. Tendo em vista que o pressuposto de tal autonomia, o desenvolvimento da diferença “lícito/ ilícito”, como segundo código de poder, não se realiza satisfatoriamente no âmbito da constitucionalização simbólica, o poder político sobre injunções particularistas as mais diversas, tonando-se ineficiente com respeito à sua função de decidir de forma vinculatória generalizada. Não havendo um sistema normativo- jurídico Constitucional efetivo que se possa invocar legitimatoriamente para descarregar-se e imunizar-se das pressões concretas de “cima” e de “baixo”, os respectivos governantes (em sentido amplo), ficam suscetíveis às influências dos interesses particularistas, surgindo daí mecanismos instáveis e compensatórios de “legitimação”. Principalmente no que se refere às injuções do código “ter/não –ter” (economia), observa-se claramente a fraqueza do sistema político em situações de constitucionalismo simbólico, um problema típico do Estado periféricas.

Percebe-se aqui uma crise na aplicação do direito como redutor das expectativas e dos conflitos sociais, visto que, com a hegemonia da cultura neoliberal, o sistema do direito acaba sendo influenciado por sistemas econômicos e políticos, passando a tutelar a economia e não os seres humanos, e como tratado aqui, suas relações de trabalho. O trabalho escravo contemporâneo vem para demonstrar a crise estrutural do direito, visto que, é uma conduta abolida desde 1888 e atualmente corresponde a um ilícito penal (reduzir alguém a condição de trabalho análoga a de escravo), mas nem por isso deixa de ser fiscalizado. Atualmente, constata-se o trabalho escravo em todo os Estados do Brasil5, em algumas regiões com maior número que outras, a depender da atividade economia primordial do Estado, representando um tema atual e de importante estudo, sobretudo em tempos de crise de constitucionalidade. A classe trabalhadora, na atualidade, têm fragmentado daquelas oriundas do Taylorismo e Fordismo e diante de uma sociedade moderna tão complexa, isto porque tornou-se mais qualificada – hoje em dia cada vez mais são os números de desempregados com diploma de graduação e pós graduação – e em contra partida, desqualificou-se e precarizou-se em diversos ramos – para atender os interesses do mercado, o trabalhador tornou-se “polivalente e multifuncional” (ANTUNES, 2002, p. 189), exercendo diversas atividades dentro de um mesmo cargo, sendo obrigado a cumprir uma carga horária cada vez mais exaustiva, tanto no ambiente físico do trabalho, como de forma remota, em razão do trabalho de forma telemática.6

5  Quadro Geral das Operações de Fiscalização para erradicação do trabalho escravo SIT/SRTE, 1995- 2013. Disponível em: http://portal.mte.gov.br/data/files/8A7C816A45B26698014625BF23BA0208/Quadro%20resumo%20opera%C3%A7%C3%B5es%20T.E.%201995%20-%202013.%20Internet.pdf. Acesso em 09.Ago. 15 6  Nova redação do artigo 6ª da CLT, a partir da Lei 12.551/2011: Art. 6º. Não se distingue entre o trabalho realizado no estabelecimento do empregador, o executado no domicílio do empregado e o realizado a distância, desde que estejam caracterizados os pressupostos da relação de emprego. Parágrafo único. Os meios telemáticos e informatizados de comando, controle e

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CONSIDERAÇÕES FINAIS Os países de terceiro mundo que vivenciaram as grandes ditaduras, tiveram uma modernidade tardia no que tange o acesso ao Estado de bem-estar- social, passando, no caso do Brasil, a adotar em 1988, políticas centralizadas na dignidade humana, a fim de garantir seus direitos fundamentais. Entretanto, manter o Estado de bem estar social é até hoje em dia, custoso, já que para um mundo que nunca havia se preocupado com as garantias dos indivíduos, passar a tutelar os direitos fundamentais, tornou-se economicamente impossível, gerando crises e mais crises financeiras nos mais diversos setores. Nesse cenário, a cultura Neoliberal está alta, como proposta de retorno aos ideários liberais, em um cenário moderno. Os neoliberais propagavam que o Estado de bem- estar- social não conseguia frear à inflação e o corte dos custos, pregando ainda que o lucro era o verdadeiro motor da economia. Dessa forma, como efetivar o Estado Social se a ideologia neoliberalista predominante embaraça a leitura e interpretação dos princípios constitucionais à luz dos valores sociais? Como concretizar a dignidade da pessoa humana em um Estado Democrático de Direito que ainda não se solidificou em razão do pensamento único que se dissemina e rejeita a dimensão social desse princípio basilar da sociedade moderna? Admitir o trabalho escravo contemporâneo é reconhecer uma realidade impulsionada pela globalização, que ignora as prerrogativas do Estado Social, e implementa cada vez mais a política do lucro a todo custo, do capitalismo como fortaleza da modernidade, que se preocupa mais em acumular do que em incluir. Isto posto, tem-se que a Teoria Social de Nicklas Luhmann é um importante modo de se estudar a sociedade, pois além de entender a função do Estado na pacificação dos conflitos, é visível a influência de um sistema no outro. Digamos que temos um entorno com forte tendência neoliberal, mas que guarda normas sociais voltadas ao trabalho. Essa situação prejudica o combate ao trabalho escravo contemporâneo, porque, é cada vez mais urgente e necessário a punição de responsáveis, responsabilidade social das empresas, imposição de cláusulas sociais, dumping social, além de políticas de (re) inserção, de educação e de formação profissional ao trabalhador resgatado do trabalho escravo. REFERÊNCIAS ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: Ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. São Paulo. Boitempo. Coleção Mundo do Trabalho. 6ª Edição, 2002. AZEVEDO NETO, Platon Teixeira de. O trabalho decente com um direito humano. São Paulo. Ltr, 2015 BARROSO, Fábio Túlio. Direito Flexível do trabalho: abordagens críticas. Recife. Editora Universitária UFPE, 2009. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 20 ed. São Paulo. Editora Malheiros, 2007. BRITO FILHO, José Cláudio Monteiro de, Trabalho decente: Análise Jurídica da Exploração, trabalho escravo e outras formas de trabalho indigno. 2 Edição, São Paulo. LTr, 2010. ECKERT, Clarissa Baeta Neves; Monteiro, Alves Fabrício. O que há de complexo no mundo complexo? Niklas Luhmann e a Teoria dos Sistemas Sociais. Sociologias, Porto Alegre, Ano 8, nº. 15, jan/jun 2006; supervisão se equiparam, para fins de subordinação jurídica, aos meios pessoais e diretos de comando, controle e supervisão do trabalho alheio.

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Esposito, Elena; Baraldi, Claudio; Corsi, Giancarlo. Glosario Sobre La Teoría Social de Niklas Luhmann. Universidad IberoAmericana; a.c, 1996 GIMÉNEZ, Pilar Alcover. El Derecho em la Teoria de La Sociedad de Niklas Luhmann. J.M Bosch Editor, Barcelona, 1993. LUHMANN, NIKLAS. Sociologia do Direito I. São Paulo: Biblioteca Tempo Universitário, Tempo Brasileiro. 1983 MIRAGLIA, Livia Mendes Moreira. Trabalho Escravo Contemporâneo: Conceituação à luz do princípio da dignidade da pessoa humana. 2 Edição. São Paulo. Ltr. 2015. Pag. 158 RODRIGUES, Leo Peixoto; NEVES, Fabrício Monteiro. Niklas Luhmann: a sociedade como sistema. Porto Alegre: Edipucrs; Neves, Marcelo. A Constitucionalização Simbólica. São Paulo. Editora Acadêmica. 1994 Relatório do Grupo de Trabalho do Ministério Público Federal sobre as ações penais de trabalho escravo. http://2ccr.pgr.mpf.mp.br/coordenacao/grupos-de-trabalho/gt-escravidao-contemporanea/jurisprudencia/jurisprudencia. Acesso 09.Ago. 15

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A FIGURA DA MULHER FRENTE À POLÍTICA PROIBICIONISTA DO TRÁFICO DE DROGAS: UMA ANÁLISE SOCIO-CRIMINOLÓGICA

GABRIELA PARISI DE AMORIM Graduanda em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco e integrantes do Grupo Asa Branca de Criminologia. GISELE VICENTE MENESES DO VALE Graduanda em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco e integrantes do Grupo Asa Branca de Criminologia. PALOMA DOS SANTOS SILVA Graduanda em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco e integrantes do Grupo Asa Branca de Criminologia.

SUMÁRIO: Introdução; 1. Perfil das mulheres presas em flagrante; 2. A mulher presente na base dessa pirâmide; 3. O tráfico como seu sustento; 4. Impacto dessas prisões na vida dessas mulheres e família; 5. Maternidade no cárcere; 6. A realidade das unidades prisionais as quais elas estão submetidas; Considerações finais; Referências.

INTRODUÇÃO O Direito Penal sempre foi utilizado, pelas mãos fortes do Estado, com o intuito de discriminar os seres humanos, lhes conferindo um tratamento punitivo diferenciado. Nessa perspectiva, faz-se necessário criar uma ideologia no imaginário das pessoas de que há um inimigo o qual precisa ser combatido, eliminado a qualquer custo (inimigo da sociedade/inimigo do Direito Penal), segundo o criminólogo Raúl Zaffaroni. O fato é que esse modelo era adotado pelos Estados Absolutistas e ainda vigora nos dias atuais, embora seja totalmente incompatível com os princípios constitucionais do Estado de Direito. É importante pontuar também que a Criminologia Tradicional tinha o objetivo de justificar, cientificamente, esse tratamento diferenciado. É certo que atualmente os países se pautam nessa política do inimigo da sociedade, sendo diferentes de acordo com a realidade de cada país; a exemplo dos EUA, onde o medo principal é do terrorismo, bem como na França onde há uma guerra declarada contra o Estado Islâmico, pois acreditam que é o cerne do problema. Através dessas intensas guerras, mais precisamente no Oriente Médio, ocorrem migrações para os países europeus, onde os estrangeiros são vistos com maus olhos, gerando um crescimento vertiginoso de xenofobia na União Européia. Ainda nesse cenário de inimigos da sociedade, partindo para a América Latina, o que se pode observar é a Guerra às Drogas e consequentemente ao traficante, fadada ao fracasso, mas ainda existente por ser pretexto de intervenção imperialista de alguns países dominantes, a exemplo da Colômbia, e por ser um mercado bastante rentável para alguns, não obstante à higienização social nas favelas, causando um genocídio na juventude majoritariamente negra e pobre.

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Não há duvidas de que a política criminal de Drogas no Brasil, que tem como base ideológica (IDS: Ideologia de Defesa Social; ISN: Ideologia de Segurança Nacional e MLO: Movimento Lei e Ordem), essa interação dos horizontes de punitividade é a potencialização do princípio do bem e do mal na cisão da sociedade entre os criminosos e não criminosos. Nesse sentido, há uma falácia por trás do Direito Penal, o qual afirma proteger os bens jurídicos mais preciosos para a sociedade, quando na verdade pratica fins não declarados como manter a estrutura hierarquizada e seletiva do sistema, bem como de controle social. Ainda nessa perspectiva, a guerra às drogas tem ceifado a vida de vários jovens, no entanto, com um olhar mais apurado em sentido ao sistema penitenciário, pode-se observar que o tráfico de drogas é o crime que mais tem encarcerado mulheres no Brasil. No último relatório do InfoPen, a evolução da população carcerária feminina foi de 567% entre 2000 e 2014 o que demonstra o quanto que essa política proibicionista tem sido arbitrária para essas mulheres, sendo portanto necessário identificar e compreender como a mulher é vista pela política proibicionista de drogas, sendo esta um ser vulnerável, em todo este processo, o que está intimamente ligado ao crescimento vertiginoso de encarceramento feminino, pelo fato dela ser a base da pirâmide desse sistema. Dessa forma, o estudo dessa temática é imprescindível para denunciar tal realidade social e deslegitimar o sistema criminal de justiça com todas as suas mazelas. 1. PERFIL DAS MULHERES PRESAS EM FLAGRANTE. Há uma lógica moral a qual ainda está enraizada não apenas no senso comum social como também o jurídico, contribuindo para a seletividade apurada do sistema. Nesse sentido, as leis penais funcionam como aliadas dessa sociedade patriarcal e sexista, na qual predomina o androcentrismo de uma forma praticamente irrefutável, como afirmava Vera Regina de Andrade. Dessa forma, com base na pesquisa “Os autos de prisão em flagrante de mulheres presas por tráfico de drogas na cidade de São Paulo”, o perfil das mulheres presas por tráfico de drogas já revela que a maioria delas provém de uma condição social bastante vulnerável, têm-se que 40% das mulheres apreendidas apresentavam entre 18 a 25 anos, 23% tinha entre 26 a 30 anos e 20% estavam com 31 a 40 anos de idade. Bem como, as brancas representavam 34% e as não-brancas 66%; possuíam empregos informais, desenvolvendo trabalhos autônomos e sem garantias trabalhistas; quanto à escolaridade 61% possuía Ensino Fundamental completo, enquanto apenas 18% tinha ensino médio completo. Ainda 31% das mulheres disseram estar desempregadas; e 8% das mulheres responderam serem estudantes. Além disso, a maioria delas dependeu da Defensoria Pública para serem defendidas em seus processos (74%), o que já evidencia as condições socioeconômicas em que se encontravam. Nesse contexto, o dado que mais tomou relevo na pesquisa foi o de que praticamente todas as mulheres entrevistadas não respondiam a outros processos criminais, tornando-se evidente que tal política remete ao “caça às bruxas” da Idade Média, ao qual, sem fundamentação alguma, tais mulheres são fisgadas pela polícia que representa o Estado ou a Máquina Kafkiana, como relata a metáfora Na Colônia Penal. 2. A MULHER PRESENTE NA BASE DESSA PIRÂMIDE. Desde os tempos remotos a perspectiva proibicionista é uma conhecida de longa data das mulheres, a maioria absoluta delas foi pega levando drogas para seus companheiros, maridos, filhos, irmãos internos nos presídios, em seus próprios corpos, renunciando a condição de pessoas para se transformarem num simples acessório vulnerável, dentro dessa lógica. Além disso, tais mulheres foram introduzidas no tráfico através de uma figura masculina, isso quando não ocupavam funções de “mulas” ou “aviõezinhos”, de baixa importância e reconhecimento. Essa “descartabilidade” também atinge às moradoras de ruas e usuárias:

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Em relação às mulheres usuárias moradoras de rua, além de serem abarcadas pelo projeto de lei que visa à internação compulsória para “tratamento”, existe ainda a ideia proposta por alguns setores políticos de esterilização dessas mulheres, tendo em vista que essas mulheres supostamente seriam incapazes de criar seus próprios filhos, ostentando, portanto, não apenas uma lógica higienista social, como, novamente, atropelando a autonomia da mulher sobre seu próprio corpo (SERRETTI, Juliana. 2013).

Dessa forma, embora se recaia sobre as mulheres traços de vitimização, ao ingressarem no tráfico, os papéis de ativo e passivo são intercambiáveis no sentido de esse discurso de vítima não ser regra para todas, pois há mulheres que ingressam nesse meio para obterem visibilidade ou algum tipo de emancipação. As mulheres condenadas por tráfico as quais majoritariamente se envolvem nesta atividade em virtude da união afetiva com alguém que traficava tem seu modo peculiar de agir no tráfico de drogas, uma tendência ética do cuidado, não expressando necessariamente violência. 3. O TRÁFICO COMO SEU SUSTENTO. Pode-se afirmar que o papel da mulher, firmado pela sociedade, é o de vítima, se acentuando quando se trata da incriminação dessa mulher. Entretanto, não é por esta vitimização correspondente ao papel central da mulher no direito penal, que ela estaria de alguma forma excluída da seletividade do sistema carcerário. Ainda que o foco do sistema de justiça penal esteja voltado para a mulher enquanto vítima, a realidade das últimas décadas é que o número de mulheres encarceradas vem crescendo desenfreadamente, como já foi visto, não obstante sem considerar a cifra obscura de muitas outras que se envolvem. Felizmente, em relação ao trabalho na prisão, 30% das detentas estão exercendo alguma atividade laboral no Brasil, dentre as quais, 25% estão em atividades internas e 75% em externas. Os dados de mulheres empregadas em atividades laborais é consideravelmente maior do que o quadro geral composto principalmente por homens, simbolizando que a vitimização da mulher a coloca sobre um maior olhar de confiança da sociedade. Cabe analisar ainda que quando a mulher é encarcerada por tráfico de drogas, em sua mentalidade ela não compreende o porquê de estar sendo capturada, pois o tráfico é uma fonte de renda rápida, porém arriscada, a qual sustenta tanto ela quanto sua família, na falta de oportunidade de empregos, muitas vezes até mesmo subalternos. 4. IMPACTO DESSAS PRISÕES NA VIDA DESSAS MULHERES E FAMÍLIA. Outro problema cotidiano na vida destas mulheres é que a reduzida quantidade de unidades prisionais femininas faz com que muitas presas sejam colocadas em prisões distantes de suas famílias, intensificando o seu isolamento, especialmente para as que são mães. Inequivocamente, a questão da maternidade é sempre presente quando se fala sobre presas mulheres. A angústia que enfrentam essas mães ao se deparar com o ambiente prisional, que não é nem de longe o espaço ideal para a criação de seus filhos, é uma realidade constante. Em contrapartida, a dor da separação e a falta de estrutura de uma família fora da prisão as deixam sem escolha a não ser manter as crianças na penitenciária. Muitas daquelas mulheres e homens que hoje estão no cárcere nasceram nesse ambiente, formando um ciclo vicioso de abandono e falta de estrutura. No tráfico de drogas as mulheres sempre tiveram seu papel, mesmo que pequeno. O mais comum é o de “Amélia”, como afirmou Helena Castro, que além de dedicada ao bem-estar do pai, irmão ou marido na prisão, pode vir a roubar, mentir, traficar e dar sua vida, se isso for preciso para ajudar o prisioneiro. Isso

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normalmente se dá por que a maioria das mulheres tem que se dividir entre o trabalho ilegal e os cuidados com a família. Nesse contexto, a invisibilidade sentida no fato de não preencher locais de importância na rede da atividade ilegal acaba sendo também uma estratégia de proteção. As traficantes costumam vender as drogas perto de seu domicílio, sem portar armas, com pequenas quantidades, conhecidas como “mulas”. Procedendo dessa forma, ficam aparentemente longe de problema e evitam ser presas ou mortas, o que traria consequências não só para elas mas para todos que dela dependem. Muitas vezes, o ingresso no tráfico de drogas representa a possibilidade de se emancipar, adquirindo status social dentro da comunidade em que vive, principalmente em relação a outras mulheres da comunidade; sustentar a família e ter poder de aquisição de bens. Exatamente por ser uma atividade ilícita, o tráfico não impõe as dificuldades que o mercado formal apresenta ao ingresso das mulheres em seus quadros, mostrando-se um trabalho viável e atrativo. Esse ingresso não se dá de forma principalmente econômica, o qual também não deixa de ser extremamente relevante. O envolvimento com homens traficantes costuma ser um ponto constante, já que passam a dedicar-se para que este não venha a “cair” ajudando desde apoio moral até a traficar em conjunto, muitas vezes assumindo o papel de comando da boca de fumo quando seu companheiro está ausente. 5. MATERNIDADE NO CÁRCERE. Sendo a maternidade um atributo intrínseco da mulher, ele também está contido como elemento da estrutura social do nosso sistema patriarcal, onde há séculos encerra a mulher no espaço de passividade da família. Contudo, nos últimos anos está ocorrendo um aumento do encarceramento de mulheres, sobretudo pobres, negras e em idade reprodutiva, tornando a vivência da gravidez na prisão um evento recorrente e problematizado, pois há uma falta de adaptação nesses locais para as necessidades específicas desse gênero. Nenhuma das penitenciárias femininas no Brasil funciona em respeito à legislação vigente, sobretudo a LEP, o que se faz verificar que o sistema não considera que as detentas possuem uma maior sensibilidade, tornando-as mais vulneráveis além de tudo as que estão na fase gestacional, acarretando uma generalização da violação dos direitos humanos com relação às gestantes, e levando, desta forma, a uma mistura de alegria pela descoberta de ser mãe e tristeza e medo diante da incerteza do futuro, pois, além do sofrimento da apenada em gerar um filho em um ambiente violento e inadequado, passa-se a se deparar com uma extensão da pena a pessoa do filho. Assim afirma Soares e Ilgenfritz: (...) a partir de agora, porém, pode-se – e deve-se – levantar a possibilidade de que várias gerações de mulheres condenadas nasceram e deram à luz na prisão. Embora a creche represente uma espécie de cartão postal do lado bom do Sistema, as pesquisadoras observaram que é o espaço mais isolado da penitenciária, sem o barulho e o burburinho próprios dessa prisão, além de receberem diversas queixas das presas-mães, por se sentirem esquecidas nesse recinto (Prisioneiras, 2002).

A mulher no período gestacional e de amamentação encontra-se em uma situação singular, ocupando uma posição diferenciada, devendo receber condições especiais de tratamento como estabelecem normas internas e internacionais, contudo, o que se observa é uma total falta de estrutura dos estabelecimentos prisionais para abrigar indivíduos em estado de peculiar desenvolvimento, como a falta de estrutura física adequada para as mulheres e seus bebês; sem como berçários e creches, sem padronização do tempo de convívio da mãe com o recém- nascido e falta de assistência médica adequada, onde apenas 27,45% dos estabelecimentos prisionais femininos possuem estrutura específica para a custódia das mulheres grávidas.

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5. A REALIDADE DAS UNIDADES PRISIONAIS AS QUAIS ELAS ESTÃO SUBMETIDAS. Além dos problemas enfrentados pelas detentas durante a gestação, como a ausência de um pré-natal correto, a situação se torna ainda pior ao dar à luz. Os recém-nascidos, na sua maioria, não possuem um lugar adequado para ficarem, passando a viverem no mesmo ambiente precário que a mãe, que muitas vezes dormem no chão em lugares insalubres, propícios a doenças; não possuem os cuidados que todos os bebês devem ter para evitar doenças, já que são muito frágeis. Contudo, mesmo neste ambiente triste e desumano, as mulheres, e agora mães, se solidarizam e ajudam umas às outras, realizando um trabalho de cuidado coletivo, onde todo colo é o lugar de acalmar e alimentar seus filhos. Depois do período de amamentação que é de 180 dias, garantido pela Constituição Federal de 1988, (Artigo 5-L-CF) e pela L.E.P (Lei de Execução penal V. Art. 89, Lei 7.210/84, alterado pela Lei n.11942/2009), ocorre o momento da separação, momento em que o bebê deixará o presídio, que é bastante doloroso, pois já existe um afeto entre a mãe e o recém-nascido que deverá ser desfeito abruptamente. Nesse momento a criança, por decisão judicial, deverá ficar com alguém responsável fora das grades e quando isso não é possível, quando as crianças não têm para onde ir, são direcionadas a abrigos o que torna a separação mais lastimável. Dessa forma, as mulheres encarceradas enfrentam diversos problemas relacionados à estrutura deficitária do cárcere, além dos problemas relacionados ao desrespeito ao tratamento diferenciado que deveriam receber devido ao seu gênero, sobretudo durante o período de gestação e amamentação. Depois da separação, outros fatores ainda estão presentes como a depressão, pois, muitas mulheres não aceitam se afastarem dos seus filhos e se tornam tristes e doentes. O encarceramento aparece como principal técnica de controle das populações tidas como marginais, segregando e criminalizando a pobreza. Ainda que o número de homens presos seja bastante superior, o contingente feminino encarcerado está crescendo, como apresentam os dados do InfoPen que apesar deste processo de feminização dos presídios ser evidente, os espaços e as políticas para as pessoas presas desconsideram as particularidades e especificidades das mulheres, inviabilizando suas diferentes experiências e direitos. O encarceramento feminino reveste-se de peculiaridades, impostas por diversos fatores, como as diferenças biológicas entre sexos e a característica patriarcal da nossa sociedade. O ordenamento jurídico brasileiro garante que devem ser respeitados todos os direitos que não são atingidos pela privação da liberdade, resguardando, desse modo, a integridade física e moral das condenadas. Contudo, não é isso que acontece, pois a realidade das unidades prisionais femininas é cruel, ocorrendo descaso dos governantes, falta de estrutura, superlotação, etc. Um exemplo disso foi o caso ocorrido, de repercussão internacional, numa Penitenciária do Rio de Janeiro em outubro de 2015, gestante presa, prestes a dar à luz, foi colocada na solitária, de castigo. Ela teve o bebê sozinha, apesar dos gritos de socorro das presas em uma cela vizinha. “Consta que a presa teve o bebê no isolamento e, mesmo com os gritos de outras detentas pedindo ajuda, ela só saiu com o bebê já no colo, com o cordão umbilical pendurado. Isso é de uma indignidade humana inaceitável”, criticou o juiz Eduardo Oberg, titular da VEP. Segundo ele, a diretora negou ocorrido, mas foi desmentida. As condições higiênicas são precárias e deficientes, não havendo sequer assistência específica para as mulheres grávidas, tendo em vista que os serviços penitenciários são geralmente pensados em relação aos homens. Outros direitos fundamentais são violados, como o direito à alimentação adequada, que muitas vezes não possuem as mínimas condições de higiene, cabendo ao Estado, no desempenho da custódia da mulher encarcerada, assegurar com absoluta prioridade o direito à vida, saúde e dignidade, mas não é isso que vem acontecendo. Segundo o Infopen Mulheres, apenas 34% dos estabelecimentos femininos dispõem de cela ou dormitório específico para gestantes o que faz concluir que as mulheres não possuem um lugar digno de ter

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os seus filhos dentro do cárcere, passando muitas vezes a conviverem em meio a esgotos a céu aberto e até mesmo animais e insetos como ratos e baratas. Outro ponto também importante é sobre a questão do direito sexual da presa, que enquanto os homens possuem uma liberdade, as mulheres são bastante restritas, sendo humilhadas e até mesmo negadas as suas visitas íntimas com seus companheiros. Dessa forma, as mulheres encarceradas sofrem diversas violações, principalmente as detentas grávidas que não possuem nem sequer a dignidade de terem seus filhos em um ambiente salubre. Elas muitas vezes são desprezadas, assim como sempre ocorreu nessa sociedade machista e patriarcal. Faltam-lhes cuidado e até itens que deveriam ser básicos, a exemplo de absorventes higiênicos, no qual há casos em que foi substituído por miolo de pão, como relata o livro “Presos que menstruam”. Assim, a realidade das unidades prisionais femininas é árdua, precária e deve ser reconfigurada, pois até os próprios profissionais, que deveriam dar assistência a essas mulheres, não estão adaptados às necessidades específicas das presas, como respeitar o quantitativo de agentes penitenciárias mulheres, praticam abusos e exploração de todo e qualquer tipo, o que era para ser uma medida punitiva acaba se tornando uma tortura com marcas psicológicas para o resto de suas vidas. CONSIDERAÇÕES FINAIS Diante de todo o exposto, pode-se inferir que não há um fundamento constitucional sólido na política de drogas brasileira, mais precisamente no artigo 28 da lei 11.343/06, na qual vem encarcerando mulheres sem definir antes se são de fato usuárias ou traficantes; consequentemente há uma desestrutura nas famílias, que são a célula-macro da sociedade. Percebe-se também um ciclo vicioso: prende-se as mulheres, e seus filhos que posteriormente vão nascer nas prisões irão ter o mesmo desfecho de suas matriarcas, estabelecendo-se, portanto, uma espécie de determinismo social. Dessa forma, é relevante estudar as causas dessa problemática, verificando onde se inicia o tratamento das mulheres taxadas como traficantes/usuárias, no processo judicial. Para além da denúncia da falência da política de “guerra às drogas”, é fundamental também que as mulheres, se apropriem do debate, engajando de fato na militância antiproibicionista, sobretudo em relação ao uso de entorpecentes. Assim, não se devem medir esforços para desconstruir as raízes por trás da proibição das drogas, que usufrui dos corpos destas mulheres exploradas pelo tráfico, retirando-lhes a liberdade e a autonomia, bem como os abusos físicos e morais corriqueiros ou ameaças, inerentes ao sistema carcerário e à lógica punitivista do Direito Penal, refletindo ainda, sobre de quais formas todos esses pressupostos são componentes integrantes de uma estrutura de dominação muito mais profunda. REFERÊNCIAS AGENCIABRASIL.EBC.COM.BR. Disponíve em: http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2015-10/presa-gravida-da-luz-em-solitaria-de-presidio-no-rio ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A soberania Patriarcal: o Sistema de Justiça Criminal no tratamento da violência sexual contra a mulher. Revista Eletrônica de Ciências Jurídicas, 2006. CARVALHO, de Saulo. A Política Criminal de Drogas no Brasil. São Paulo: Saraiva, 2014. CARVALHO, Denise; JESUS, Maria Gorete Marques de. Mulheres e o Tráfico de Drogas: um retrato das ocorrências de flagrante na cidade de São Paulo. Revista do Laboratório de Estudos da Violência da UNESP, 2012.

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CASTRO, Helena Rocha Coutinho de. O DITO PELO NÃO DITO: uma análise da criminalização das traficantes na cidade do Recife. Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais, PUC-RS, 2015. DEPEN – Departamento Penitenciário Nacional. Levantamento nacional de informações penitenciárias: InfoPen mulheres. Brasília, 2014. KAFKA, Franz. Na colônia Penal. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. QUEIROZ, Nana. Presos que menstruam. Saraiva, 2015. RIBEIRO, Juliana Serretti de Castro Colaço. SILENCIADAS PELO TRÁFICO: UmEstudo Criminológico do Duplo Grau de Vulnerabilidade das adolescentes internas do CASE Santa Luzia. Dissertação – Faculdade de Direito do Recife, 2014. SOARES, Bárbara Musumeci; ILGENFRITZ, Iara. Prisioneiras: vida e violência atrás das grades. Garamond, 2002. ZAFFARONI, Eugenio Raul. O inimigo do direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 2007.

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A PROTEÇÃO MULTINIVEL E A EFETIVIDADE DA TUTELA JURÍDICA DOS DIREITOS HUMANOS ENQUANTO RESULTADO DO DIÁLOGO ENTRE DIFERENTES CORTES Gabriel Soares Ribeiro Lopes Estudante do Curso de Direito da Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP. Bolsista PIBIC/CNPq (2014-2015). [email protected] Maria Carolina Oriá Veloso Estudante do Curso de Direito da Faculdade de Direito do Recife – FDR/UFPE. oriacarol@ gmail.com

SUMÁRIO: Introdução; 1. Sistema Europeu de Proteção Internacional de Direitos Humanos; 2. União Europeia: Estrutura Multinível; 3. Crítica ao Pensamento Eurocêntrico; 4. Acesso à Justiça e Proteção Multinível; Conclusão; Referências.

INTRODUÇÃO A discussão acerca dos direitos humanos começa a ter destaque, principalmente, a partir do período em que os efeitos da segunda guerra mundial começaram a ficar visíveis e os anseios populares clamavam por atenção. Os desastres causados não se resumiram aos estragos físicos de monumentos históricos e estruturas prediais, pelo contrário, englobou diversos aspectos imateriais e psicológicos também. A dignidade humana ficou extremamente abalada durante todo o período de guerras, gerando prejuízos de ordem jurídica e social irreparáveis. Há de se perceber que o interesse da coletividade não estava na guerra, inclusive muitos nem sabiam os porquês das batalhas e conflitos, entretanto, movidos pelas ordens dos poderosos, se submetiam às condições deploráveis do período e, nas ruas, lutavam pelo que lhes diziam ser os interesses de todos. Foi a partir do final das guerras que os impulsos legislativos internacionais tomaram como meta a elaboração de ordens jurídicas que englobassem a proteção dos direitos humanos. A partir da criação da ONU (Organização das Nações Unidas), em 1945, os esforços dos países-membros se voltaram para a concretização de uma nova era, a qual prometia o resguardo dos interesses de cada indivíduo enquanto ser humano, o que fica claro pelo próprio artigo 1° da Carta das Nações Unidas, quando fala em “estimular o respeito aos direitos humanos” e também pelo artigo 68 que dispõe sobre a criação de comissões pelo Conselho Econômico e Social a fim de proteger os ditos direitos. Destarte, em 1948, foi adotada, pela organização citada, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, construída por diferentes sujeitos e grupos ao redor do mundo e que se estabeleceu como um marco histórico, já que era a de maior abrangência no mundo, vinculando diversos países e regiões. Quando se fala em direitos humanos, estão atualmente em pauta as ordens jurídicas multiníveis, isso porque, diante dos contextos regionais e suas carências de resultados práticos, se viu latente a necessidade de um ordenamento forte, posto acima dos ordenamentos estatais e que garantisse os célebres direitos. Consoante tal pensamento, foram organizadas, ao redor do mundo, Cortes regionais que cumpririam o papel jurídico de decidir os litígios acerca das infringências perante as convenções assinadas pelos países membros, as quais dispõem sobre várias matérias corolárias dos direitos do homem. O exemplo europeu é ainda o mais desenvolvido e já possui toda uma estrutura concreta de leis e decisões que garantem maior efetividade ao

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que está definido na Convenção Europeia de Direitos Humanos. Não que isso seja sinônimo de perfeição do modelo, é o oposto, uma vez que o direito é dinâmico e complexo, principalmente nesse contexto, portanto está sempre em mutação. Ele serve de espelho para os outros ordenamentos regionais, como o americano, africano e asiático, todos ainda em expansão e consolidação de suas normas.

É ainda um desafio latente o acolhimento dessas ordens supranacionais, quiçá a efetivação dos direitos previstos, tendo em vista ser um processo de renúncia parcial da soberania instalada durante muitos anos, em nome de um interesse acima da esfera local. Embora o conceito de soberania tenha sido modificado ao longo dos tempos, se revelando cada vez mais representativo (no qual o interesse dos blocos econômicos sobrepuja o nacional), ainda é possível vislumbrar diversos impasses para a efetivação concreta da tutela jurídica dos direitos humanos em âmbito universal. A globalização é um dos desafios, porque tanto permitiu uma maior aproximação entre as mais variadas culturas ao redor do planeta, quanto gerou também diversos problemas. Imagina-se que há todo e qualquer tipo de pessoa espalhadas por todo o globo, constituindo estímulo para que haja uma universalidade no entendimento dos direitos humanos, no entanto é também um entrave, quando se pensa, por exemplo, que existem sujeitos que não se identificam com os direitos que o protegem naquela jurisdição. Por outro lado, além das dificuldades, alguns tribunais há que já conseguem alcançar os resultados práticos e estatísticos das decisões e precedentes construídos ao longo dos julgamentos realizados. Inclusive, vale ressaltar que alguns dos principais efeitos foram as mudanças internas de cada país em suas próprias Constituições e o avanço na proteção dos direitos humanos em escala global, colaborando para a manifestação da eficácia do direito. 1. SISTEMA EUROPEU DE PROTEÇÃO INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS. O debate acerca dos direitos humanos ainda é um universo cuja descoberta está sendo feita gradativamente e com bastantes avanços, já que se percebem todos os ordenamentos jurídicos voltados para a consecução do mesmo fim, qual seja a máxima efetivação da tutela de tais direitos. É sabido que as movimentações visando à construção de uma ordem acima dos interesses individuais dos Estados são resultado das tentativas de pacificação do mundo, após os turbulentos anos de guerra. Assim, em cada região, foram criadas organizações supranacionais que sistematizam e criam um ordenamento jurídico em outro nível, com o propósito de aumentar ainda mais a proteção dos sujeitos de direito. No que concerne ao âmbito europeu, tem-se um dos sistemas mais desenvolvidos na área da tutela multinível de direitos humanos, sendo, portanto, base para as demais ordens no planeta, como a africana e a americana. A cada passo dado, uma vitória para o Estado de Direito é ganha, inclusive atrai novos membros-signatários, todos adequando seus ordenamentos para atenderem às demandas das convenções assinadas. Isso ocorre porque os Estados renunciam parte de suas jurisdições para conferir a um órgão superior a subsidiariedade da tutela dos direitos humanos. A partir do momento em que se aceita a Convenção, é o início de uma fase, na qual haverá a subordinação dos países membros aos ditames da nova ordem, mesmo que isso se dê, a priori, de forma subsidiária. É uma questão também de efetividade a ser alcançada, até porque não provoca resultados positivos a simples criação infinita de normas multiníveis, sem haver os devidos espaços que permitam o litígio da causa. Na Europa, em busca de unificar o continente após o turbulento período de guerras, foi criada a Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, em 1950, começando com 8 estados-membros e tendo atualmente algo como 47 países sob a dita ordem1. No início, era dividida em Comissão Europeia e a Corte Europeia, ambas integrantes do sistema, sendo que a primeira realizava juízo de admissibilidade da petição, julgando o mérito posteriormente (tentando achar uma solução viável),

1 

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Disponível em http://www.echr.coe.int/Pages/home.aspx?p=home. Acessado em 05 de dezembro de 2015.

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mas, se não sucedesse, o pleito seria enviado para a Corte com um relatório denunciativo2. Seria então o caso de atendimento ou não ao conteúdo do relatório, pois este caducava de poder vinculante, diferente da decisão da Corte, a qual gerava uma ligação imediata com as sanções previstas. Em 1998, tudo isso foi substituído por uma Corte permanente, através do Protocolo 11. A principal mudança foi a garantidora do direito de petição, abrindo uma gama maior de possibilidades para o atendimento dos anseios sociais, porque agora qualquer indivíduo, ONG ou grupo pode peticionar diretamente à Corte alegando infringência das normas da Convenção por parte de determinado estado-membro. Antes apenas estados-partes e a Comissão podiam. Entre os princípios que estão presentes na Convenção, pode-se destacar o da interpretação dinâmica das normas, o qual preza pela leitura contextual, isto é, que os comandos não sejam tratados literalmente, mas, passíveis de alteração, como analogicamente é o processo de mutação constitucional, que prevê a mudança de significado do texto sem mudar as palavras do mesmo, adequando a maneira de interpretar às realidades sociais fáticas vigentes. Com as mudanças, a cada ano cresce o número de demandas judiciais, tornando a máquina insuficiente para resolver todos os casos. Mas a existência do sistema já é uma evolução que torna possível a apreciação de pequenos problemas por grandes juízes. De acordo com o art. 20, são tantos juízes quanto forem os estados-membros, vindo um de cada, a partir de uma seleção que é feita internamente dentre três opções; possuem mandato de 6 anos e devem ter domínio de duas línguas: francês e inglês. Não basta haver o simples direito e o posterior depósito da petição, pois é necessário que a mesma cumpra os requisitos prévios, como o esgotamento dos recursos internos em seu país, a observância do prazo de 6 meses a partir da data da decisão definitiva, não pode ser anônima, o Estado denunciado deve ser parte, entre outros listados no artigo 35 da Convenção3. O resultado do sistema é tal que vários países têm tido seus ordenamentos modificados para se adequarem ao sistema imposto pela Convenção, pois a penalidade máxima para o não-cumprimento é a expulsão do rol de signatários. Tanto os Estados vencidos, quanto os que, por ventura, ainda não foram parte em litígio, têm alterado seus textos legislativos para conferirem harmonia ao sistema. Não é sempre que a tarefa de adequação é simplória, pelo contrário, pode atingir áreas sensíveis.

É uma situação delicada, porque, enquanto há uma ordem interna que já goza de segurança jurídica suficiente durante o tempo de vigência, aparecem comandos dotados de uma força coativa sem precedentes que exigem as alterações. O poder de vinculação das decisões é altíssimo, porque envolve questões diplomáticas, a integração da União Europeia, o risco de ser considerado um Estado violador, entre outras consequências. Mas, para o sucesso do sistema, a maioria dos países tem seguido as tendências, gerando uma evolução para o objetivo de garantir os direitos humanos compartilhados. Um dado interessante é que, em 2013, metade dos casos resolvidos eram concernentes a 5 Estados-membros: Rússia, Turquia, România, Ucrânia e Hungria. Além disso, no que tange à matéria analisada, as estatísticas desse mesmo ano mostram que houve uma maior incidência de demandas que tratavam da violação dos artigos 3° e 6° da Convenção, quais sejam, respectivamente o direito ao devido processo legal e a proibição a tortura e a condições degradantes e desumanas de tratamento4. Já em 2014, os julgamentos se concentraram nos Estados: Rússia, Turquia e România. Em 85% dos casos analisados, o Estado-membro havia infringido de fato uma norma. Continuam no topo da lista a violação aos artigos 3° e 6°, seguidos pelo 5°5.

2  PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e Justiça Internacional. São Paulo: Saraiva, 2006. P. 71. 3  BRATZA, Sir Nicolas. Bringing a Case to the European Court of Human Rights: A Practical Guide on admissibility criteria. Netherlands: Legal Publishers, 2011. P.13. 4  The ECR in facts & figures 2013. European Court of Human Rights, January 2014. 5  The ECR in facts & figures 2014. European Court of Human Rights, February 2015.

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Embora haja muitos casos, já é possível vislumbrar mudanças comportamentais nos Estados, que passam a respeitar mais as decisões da Corte, porque isso influencia bastante na imagem construída internacionalmente, no que diz respeito aos direitos humanos e ao seguimento das normas estabelecidas no direito internacional público. 2. UNIÃO EUROPEIA: ESTRUTURA MULTINÍVEL. A União Europeia (UE) desenvolve hoje um dos programas mais avançados no quesito efetivação dos direitos humanos, principalmente porque ali ocorreram os cenários das duas grandes guerras mundiais, que deixaram suas infelizes marcas. Como já foi demasiadamente relatado acima, os resultados negativos das referidas guerras trouxeram evoluções no âmbito do reconhecimento dos direitos individuais, mormente para os direitos humanos. Já presente na jurisdição em pauta, qual seja a região europeia, desde meados do século XX, o Tribunal de Justiça da União Europeia atua nos litígios concernentes às diversas matérias que dizem respeito aos tratados e convenções frutos da comunidade europeia. Teve seu nome e algumas disposições alterados pelo nobel Tratado de Lisboa, de 2007, o qual se caracteriza por ser um tratado reformador de peças anteriores e que trouxe a reforma do funcionamento da União. Para efeitos deste trabalho, cumpre destacar que o tratado em menção tornou a Carta dos Direitos Fundamentais vinculativa a todos os países membros, grande avanço no tocante aos direitos humanos. Tal Carta foi adotada nos anos 2000 e passou pela fase acima descrita, de vincular toda a comunidade europeia em 2008. A questão da soberania foi alvo de diversos debates, porque o Tratado de Lisboa conferiu ainda mais poder para a União Europeia, o que, em tese, de acordo com determinada doutrina, traria uma queda para o nacionalismo que existia. Assim, os sujeitos estão, aos poucos, deixando de serem sujeitos nacionais, para serem europeus, enfraquecendo o poder soberano de cada país-membro6. É também um impasse para que se perfaça o aceite do ordenamento que está além das ordens individuais dos países. Para resguardar especificamente os direitos humanos, foi criado, em 1959, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, associado ao Conselho da Europa, não sendo propriamente dito, um órgão da União Europeia. Entretanto, seu objetivo específico se restringe a averiguar as lides concernentes às infrações cometidas contra a Convenção Europeia de Direitos Humanos. Dessa maneira, apenas os estados signatários estão sub judice deste tribunal. A questão da tutela multinível é bastante interessante e tem sido alvo de políticas da União Europeia, tendo em vista que, com as infindáveis oportunidades, os cidadãos de todos os países migram constantemente, seja em razão de trabalho, lazer, casamento, entre outros. Destarte, conflitos e casos a serem resolvidos, dentro dessa movimentação, aparecem constantemente, gerando a necessidade de que haja uma flexibilização nas fronteiras, a fim de comportar a todos. Até mesmo problemas do cotidiano são objeto de tal discussão, e as regras processuais comuns vão se encaixar nas questões civis de famílias mistas, por exemplo, de divórcio e de guarda dos filhos7. 3. CRÍTICA AO PENSAMENTO EUROCÊNTRICO. É a partir de uma visão colonial que se tem a vigente concepção dos direitos humanos como fruto de uma construção basicamente europeia. Foi através dos movimentos coloniais que as potências europeias foram se impondo. Os defensores das teorias pós colonialistas afirmam ser ele (enquanto poder político) influenciador das ideias que permeiam os conceitos de humanidade. Assim, por se tratarem de direitos intitulados como inerentes ao ser humano, então quer dizer que a sociedade apenas serve como parâmetro 6  BONDE, Jens-Peter. From EU Constitution to Lisbon Treaty. [S.I.]: Foundation for EU Democracy and the EU Democrats, 2008. P. 41. 7  Compreender as políticas da União Europeia: Justiça, direitos fundamentais e igualdade. Luxemburgo: Serviço das Publicações da União Europeia, 2015. P.3.

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limitador das atitudes de cada indivíduo, já que ele é um ser livre e deve exercer tal liberdade, contanto que não esbarre na do próximo. Percebe-se, que as ideias relatadas possuem um teor extremamente liberais, que tratam a essência do ser humano como sendo necessitada de liberdade a todo custo. As construções legislativas mais remotas e com maior influência mundial são fruto dos países e regiões com maior força política e econômica, que impõem, desde a antiguidade, suas culturas sobre as demais, causando antropofagia cultural em certas comunidades. Vê-se que, até os dias atuais, os tratados europeus e norte-americanos são os que obtêm maior prestígio e força. Assim, diante das críticas acima, se perfaz a ideia de que é bastante complicado considerar que há uma ordem supranacional que satisfaça aos anseios de toda a população sobre a qual exerce força jurídica. Como é possível esperar que um sujeito proveniente de cidades da África ou da Ásia e até mesmo de regiões pacatas da Europa entenda que aquilo que foi estabelecido lhe caracteriza como humano. Que a Convenção Europeia foi assinada com o objetivo de resguardar tudo o que o torna o ser que ele é, de maneira a assegurar finalisticamente que todos possam conviver em harmonia. A ordem que esse indivíduo ou grupo quer que seja seu amparo talvez vá de encontro com as ideias tradicionais e vigentes de direitos humanos, isso porque sua cultura foi engolida na consideração dos tratados e normas internacionais. Em pensamento consoante, chega Fernanda Frizzo Bragato à seguinte conclusão: Portanto, a teoria mais influente sobre a fundamentação dos direitos humanos combina fatos históricos e concepções antropológico-filosóficas próprias do contexto europeu moderno, o que sugere não só a ausência de contribuições para além das fronteiras do ocidente, mas também propõe que os direitos humanos ostentam o ideário próprio de sua cultura (BRAGATO, 2013; p. 107)

É lógico que aqui se entende que a aplicação dos tratados serve ao princípio da subsidiariedade, atendendo à primazia do direito interno, o qual será sempre soberano em detrimento das ordens supranacionais. No entanto, na medida em que as leis locais não forem compatíveis com esse sistema que foi assinado, serão objeto de sanção, problema que leva muitas vezes ao estado-membro adotar a norma do tratado, quando sua cultura reflete o contrário. Este é um dos desafios ao estabelecimento de uma ordem multicultural e unânime entre os diversos países signatários, os quais, apesar de concordarem com o texto legal, muitas vezes o fazem com objetivos políticos e econômicos de aceitação no bloco, com finalidades também de obterem reconhecimento e proteção. Assim, devem adequar suas normas ao texto adotado como corolário, sob pena de sofrer, entre outras sanções, a de caráter coativo, feita por parte da comunidade internacional como reprovação do comportamento. Trazendo a questão para exemplo nacional, tem-se que a Constituição Federal adota em seu artigo 5°, §3° a equiparação dos tratados às emendas constitucionais, também precisando passar por um processo de aprovação em dois turnos, por três quintos dos votos, no Congresso Nacional. Há, portanto, o caso do depositário infiel, que a própria Constituição pátria relatava como passível de prisão civil (art. 5°, LXVII), porém a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto San José da Costa Rica) determinou como ilegal. Desta feita, nos julgados concernentes ao assunto, o STF é obrigado a adotar o entendimento do pacto, em nome do pacta sunt servanda, sempre citado quando há matérias de tratados e convenções internacionais. Outro problema também nessa toada, é a aceitação integral dos preceitos do Estatuto de Roma, porque o Brasil o ratificou sem reservas, mas há alguns dispositivos que vão de encontro com os princípios e normas constitucionais. É o famigerado caso da prisão perpétua, prevista no tratado, mas proibida internamente, com algumas exceções. Para o entendimento nacional, o ser humano é capaz de se reabilitar, podendo cumprir, depois de um tempo, as atividades normais da sociedade. Ou seja, aqui se adotou a tese da ressocialização enquanto medida necessária e presente no Direito Penal Brasileiro enquanto, sob ponto de

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vista contrário, o Estatuto de Roma (art. 77) entende que, frustradas as oportunidades de reexame da pena perpétua (art. 110 §3°), é lícito ao Tribunal Penal Internacional condenar nesse sentido8. 4. ACESSO À JUSTIÇA E PROTEÇÃO MULTINÍVEL A efetivação da tutela jurisdicional dos direitos humanos e a proteção multinível como pontos resultantes do diálogo entre as diferentes cortes, tem relações estritas com o acesso à justiça. Os seres humanos, diante das novidades comportamentais introduzidas pela sociedade, buscam meios eficazes de acesso ao jurisdicionado, e não é diferente com a proteção aos direitos humanos no território brasileiro e na ótica internacional. No âmbito internacional, deveras importante para o tema em questão, é a Convenção sobre direitos da pessoa com deficiência da ONU – Decreto nº 6.949/2009 –, que trata no Artigo 139 sobre o Acesso à justiça das pessoas com deficiência. Diante deste artigo, os Estados signatários, tem função importante no processo de acessibilidade das pessoas com deficiência, ajudando a desenvolver, promulgar e monitorar a utilização de normas e diretrizes mínimas a serem seguidas nas instalações de serviços públicos, assim como garantir o acesso das pessoas com deficiência aos novos sistemas e tecnologias de informação e comunicação. A Convenção supracitada também se relaciona intrinsicamente aos direitos humanos. Os países signatários devem promover o acesso das pessoas com deficiência de forma livre e independente, de forma que possam exercer as atividades diárias individualmente. O auxílio de terceiros viola o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, princípio fundamental da República Federativa do Brasil, presente na Constituição Federal de 1988 no art. 1º, inciso III. Ainda na parte internacional, na Declaração Universal dos Direitos Humanos, cita-se o Artigo VIII10 como exemplo de proteção às pessoas ao acesso à justiça. Neste caso, garante-se o acesso pleno à justiça nos casos de violação aos direitos fundamentais. Ainda como exemplo, vale salientar o Pacto de São José da Costa Rica, que traz no decorrer do dispositivo a proteção judicial no primeiro tópico do Artigo 2511. O conceito de acesso à justiça foi debatido por vários doutrinadores. Segundo Mauro Cappelletti e Bryant Garth, abordando um conceito mais amplo: O acesso à justiça pode, portanto, ser encarado como o requisito fundamental – o mais básico de todos os direitos humanos – de um tem jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir, e não apenas proclamar os direitos de todos (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 12).

Para os autores, acesso à justiça não seria apenas um direito humano fundamental, basilar em qualquer sociedade, mas uma forma de tornar efetivo o acesso ao jurisdicionado, utilizando a moderna teoria da ciência jurídica como objeto de estudos aprofundados acerca da temática discutida. Além disso, para os doutrinadores, os operadores do direito precisam perceber que as técnicas do direito servem para a finalidade social de garantir o acesso das pessoas efetivamente à finalidade na justiça. 8  JUNIOR, Paulo Eustáquio Luiz de Almeida. Conflitos (aparentes) entre o Estatuto de Roma e a Constituição da República Federativa do brasil. 2009. 72 f. Monografia apresentada na Universidade Católica de Brasília para obtenção do grau de bacharel em direito. P. 52-58. 9  Artigo 13, Acesso à justiça, 1. Os Estados Partes assegurarão o efetivo acesso das pessoas com deficiência à justiça, em igualdade de condições com as demais pessoas, inclusive mediante a provisão de adaptações processuais adequadas à idade, a fim de facilitar o efetivo papel das pessoas com deficiência como participantes diretos ou indiretos, inclusive como testemunhas, em todos os procedimentos jurídicos, tais como investigações e outras etapas preliminares. 2. A fim de assegurar às pessoas com deficiência o efetivo acesso à justiça, os Estados Partes promoverão a capacitação apropriada daqueles que trabalham na área de administração da justiça, inclusive a polícia e os funcionários do sistema penitenciário. 10  Artigo VIII. Toda pessoa tem direito a receber dos tribunais nacionais competentes recurso efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela constituição ou pela lei. 11  Artigo 25. Proteção Judicial. 1. Toda pessoa tem direito a um recurso simples e rápido ou a qualquer outro recurso efetivo, perante os juízes ou tribunais competentes, que a proteja contra atos que violem seus direitos fundamentais reconhecidos pela Constituição, pela lei ou pela presente Convenção, mesmo quando tal violação seja cometida por pessoas que estejam atuando no exercício de suas funções oficiais.

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Já para outros doutrinadores, o conceito de acesso à justiça foi abordado de maneira diferente. Seguindo a lição de José Cichocki Neto, o conceito engloba características distintas: Parte da simples compreensão do ingresso do indivíduo em juízo, perpassa por aquela que enforca o processo como instrumento para a realização dos direitos individuais, e, por fim, aquela mais ampla, relacionada a uma das funções do próprio Estado a quem compete, não apenas garantir a eficiência do ordenamento jurídico; mas, outrossim, proporcionar a realização da justiça aos cidadãos (CICHOCKI NETO, 2002, p. 61).

O acesso à justiça guarda relações bastante estreitas com a proteção multinível dos direitos humanos. A tutela multinível dos direitos se relaciona à possibilidade da solução e discussão das relações jurídicas por diversas instâncias e graus de jurisdição. Assim, um mesmo caso de violação aos direitos humanos, por exemplo, poderá ser julgado tanto por tribunais nacionais como por tribunais internacionais, estrangeiros ou supranacionais. O acolhimento da existência de diversas instâncias decisórias para a discussão acerca de matérias relacionadas aos direitos humanos precisa ser compatibilizado para que não ocorra o prejuízo dos direitos humanos discutidos no caso concreto. A grande problemática está relacionada às diferentes possibilidades de decisão entre os diferentes tribunais e cortes internacionais existentes. Em relação a esta variedade de cortes, a multiplicidade de ordenamentos jurídicos internacionais, vê-se que não há uma unificação entre todos os níveis jurídicos no mundo, relacionada à competência de julgamento dos direitos fundamentais. O que se encontra é o inverso: o constitucionalismo multinível está fundado na consolidação das regras jurídicas nacionais. A aplicação destas regras nacionais deve ter o objetivo de, no momento da utilização, beneficiar outros casos existentes nos diferentes sistemas jurídicos. Ainda discutindo sobre a relação entre o acesso à justiça e a proteção dos direitos humanos relacionada a uma tutela multinível, salienta-se segundo Marcelo Neves: O Transconstitucionalismo não se restringe a relações entre duas ordens jurídicas, podendo envolver entrelaçamentos triangulares ou multiangulares entre ordens jurídicas em torno de um mesmo problema constitucional. Especialmente no tocante aos direitos humanos, verifica-se um Transconstitucionalismo pluridimensional envolvendo diversas ordens jurídicas, que se desenvolve, igualmente, de formas as mais diferentes, na América Latina (NEVES, 2009, P.280). Salienta o renomado jurista que a discussão acerca dos direitos humanos e o debate sobre a proteção multinível abarca não somente duas ordens jurídicas, mas, pode ocorrer a junção entre vários ordenamentos jurídicos para discutir o mesmo assunto, e a América Latina poderá fazer parte no momento em que um dos seus ordenamentos jurídicos for citado em determinados casos concretos. Cita-se, a este exemplo, o julgamento da Corte Interamericana de Direitos Humanos, nos casos YakyeAxa vs. Paraguai e Sawhoyamaxa vs. Paraguai, nos quais foi decidido o direito de propriedade dos indígenas de ambas as etnias. Enfim, observa-se o caráter amplo de aplicabilidade do acesso à justiça aos direitos humanos, relacionada à proteção multinível e o diálogo entre as diferentes cortes no âmbito nacional e internacional. CONCLUSÃO A partir de todo o tema desenvolvido até aqui, percebe-se que a relação estabelecida entre a tutela multinível dos direitos humanos e o diálogo entre as diferentes cortes é um tema bastante atual e importante para a dogmática do direito. Em relação a ele, admite-se variadas vertentes doutrinárias e diversas citações nos ordenamentos jurídicos e órgãos nacionais e internacionais.

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O diálogo entre as diferentes cortes é fundamental para a concretização dos direitos humanos. Os diferentes ordenamentos jurídicos devem ter participação importante nos debates acerca da tutela dos direitos humanos, incluindo a América Latina – que possui casos exemplares de proteção a esses direitos. O pensamento eurocentrista, imposto na cultura ocidental – através do conceito e do significa de humanidade –, fruto da política colonizadora dos países da Europa, deve ser mitigado com outras espécies e modos de pensamento de outras partes do Mundo. Se deve levar em consideração o indivíduo e o espaço em que vive, não admitindo que uma pessoa proveniente de uma determinada cultura, seja influenciada pelo modo de vida de outra cultura completamente diferente. O acesso à justiça dessas pessoas se torna, então, fundamental para a consecução dos objetivos atinentes aos direitos humanos. A abertura do jurisdicionado de maneira eficaz e célere a todas as pessoas promoverá a maior ligação entre os diversos sistemas jurídicos e, consequentemente, a melhor concretização dos entrelaçamentos triangulares, como pontos fundamentais para a efetividade da tutela dos direitos humanos no ordenamento jurídico nacional e estrangeiro. REFERÊNCIAS BONDE, Jens-Peter. From EU Constitution to Lisbon Treaty. [S.I.]: Foundation for EU Democracy and the EU Democrats, 2008. P. 41. BRAGATO, Fernanda Frizzo. Uma crítica descolonial ao discurso eurocêntrico dos direitos humanos. In: LOPES, Ana Maria D’ávila. A eficácia nacional e internacional dos direitos humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013. P. 107. BRATZA, Sir Nicolas. Bringing a Case to the European Court of Human Rights: A Practical Guide on admissibility criteria. Netherlands: Legal Publishers, 2011. P.13. CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Porto Alegre: Fabris, 1988. 168 p. Tradução: Ellen Gracie Northfleet. CICHOCKI NETO, José. Limitações ao Acesso à Justiça. Curitiba: Juruá, 2002. 213 p. COMPREENDER AS POLÍTICAS DA UNIÃO EUROPEIA: Justiça, direitos fundamentais e igualdade. Luxemburgo: Serviço das Publicações da União Europeia, 2015. P.3. EUROPEAN COURT OF HUMAN RIGHTS. The ECR in facts & figures 2013. January 2014. ______________________________________. The ECR in facts & figures 2014. February 2015. JUNIOR, Paulo Eustáquio Luiz de Almeida. Conflitos (aparentes) entre o Estatuto de Roma e a Constituição da República Federativa do brasil. 2009. 72 f. Monografia apresentada na Universidade Católica de Brasília para obtenção do grau de bacharel em direito. P. 52-58. NEVES, Marcelo. Do Diálogo entre as cortes supremas e a corte interamericana de direitos humanos ao Transconstitucionalismo na América Latina. Rede Direitos Humanos e Educação Superior: Proteção Multinível dos Direitos Humanos, Barcelona, p.259-288, 09 dez. 2015. PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e Justiça Internacional. São Paulo: Saraiva, 2006. P. 71.

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É A PROSTITUIÇÃO UMA PRESTAÇÃO DE SERVIÇO OU A COMPRA DE UMA MERCADORIA? Gabrielle Costa Carvalho de Oliveira Graduanda do curso de Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Larissa Brasileiro Malheiro Graduanda do curso de Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Participante do Programa de Iniciação Científica PIBIC/UNICAP. Vanessa Alexsandra de Melo Pedroso Doutora em Direito Penal pela Universidad Complutense de Madrid. Diplomada em Estudos Avançados (DEA) pela mesma Universidade e especialista em Relações Internacionais na era da Globalização pela Universidade Católica de Pernambuco (Brasil). Professora da Universidade Católica de Pernambuco e líder do grupo de pesquisa “Direitos Fundamentais: Instrumentos de concretização”. Integra, em nível de pósdoutoramento, programa de pesquisa em ciências sociais, crianças e adolescentes na América Latina da rede CLACSO (Centro Latino Americano de Ciências Sociais) / CINDE (Centro Internacional de Educação e Desenvolvimento Humano. Centro cooperador da UNESCO).

SUMÁRIO: Introdução; 1. Entre a teoria e a práxis; 2. A prostituição enquanto exercício ou exploração do corpo; 3. Direitos fundamentais versus prostituição; Considerações finais; Referências.

INTRODUÇÃO A análise da temática proposta encontra inúmeros desafios, pois que o tratamento da mesma através de um único ramo da ciência impossibilita uma tomada de postura. Faz-se necessário, portanto, reconhecer a necessidade de um estudo multidisciplinar que sustente nossas ideias e posturas, bem como afastar-se de toda uma carga emocional direcionada ao conceito pré-estabelecido deste instituto. O referido conceito, - desenvolvido por uma sociedade machista e, na maioria das vezes, fundamentada em valores morais de opressão do gênero – gera uma participação tímida da pessoa prostituída no que se refere ao exercício de uma cidadania plena, pois que a sociedade, de maneira geral, tem demonstrado, ao longo do tempo, uma velada repreensão de referida conduta. Se não é assim, note-se que a prostituição, como se reconhece na atualidade, embora muito discutida nos diferentes âmbitos sociais, sempre foi alvo de um discurso fundamentado na marginalidade de seus praticantes. 1. ENTRE A TEORIA E A PRÁXIS. Um tema muito discutido em torno do discurso social da prostituição esta fundamentado na ideia da exploração ou exercício da atividade de prostituta(o). Fato é que o Código Brasileiro de Ocupação já reconhece referida atividade sob o código 519805 que denomina de profissionais do sexo. No entanto, não se pode negar que a prostituição, ainda, está longe de ser reconhecida como um mero exercício de atividade profissional

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e não porque não tenhamos congressistas empenhados em tal processo, mas, simplesmente, porque referida circunstância independe de Lei, mas de amplos debates sociais que devem estar direcionado a compreensão dos anseios e clamores daqueles em atividade de prostituição. Neste sentido, não é equivocado afirmar que a prostituição é um tema complexo e um tanto marginal quando o comparamos com as demais urgências do mundo atual. Vale salientar, no entanto, a significativa relevância que existe ao retratar as situações vividas pelos personagens presentes nesta realidade, uma vez que a prática da prostituição sempre se manteve na encruzilhada da exploração versus exercício. Interessante esclarecer que ao falar em “sempre esteve” quer-se tratar do assunto de maneira espacial, bem como temporal, pois que a prostituição seja em qualquer tempo ou sociedade sempre foi - apesar de tolerada enquanto seu exercício - considerada uma exploração social. Assim, diversas facetas são formadas ao decorrer das épocas, porém nunca pôde-se existir, de fato, uma situação plena de igualdade e de liberdade para com o cidadão prostituído. Desta feita, é possível, então, afirmar que o debate sobre a prostituição, na maioria das vezes, é feito de forma meramente ilusória, ideológica, pois a prática se mostra, ao contrário do esperado, o oposto da teoria. É em outras palavras, afirmar que pratica-se a ideologia da liberdade sexual da mulher, da sua dignidade, entretanto o cenário não passa de uma composição de manipulações e explorações sobre o corpo feminino. Tais explorações encontram seu alicerce em um modo de produção econômico fundamentado no capital que se estabelece na exploração do outro através da máxima “eu quero, eu pago, eu posso”, e encontra reforço, em nossa sociedade, nos valores machistas que julgam-se capazes de decidir o bem social. 2. A PROSTITUIÇÃO ENQUANTO EXERCÍCIO OU EXPLORAÇÃO DO CORPO. Note-se que para alcançar a realização de um trabalho qualquer faz-se necessário a existência, o esforço do corpo. Se não, veja-se que seja através do uso da força, do intelecto ou, ainda, seja pela utilização de suas habilidades é que o homem consegue realizar o trabalho. Tomando como base essa compreensão à prostituição é, então, possível afirmar, que a mesma não passa de um exercício do corpo como em toda e qualquer outra atividade laborativa, havendo, ainda, preço, condições e, também, vantagens ao esforço físico de terceira pessoa. Desta compreensão cabe a seguinte pergunta: se é a prostituição o exercício de uma atividade laboral como outra qualquer porque, até hoje, não se encontra disciplinada e reconhecida como tal pela sociedade? Muito pelo contrário, sabe-se que a prostituição, ainda em tempos atuais, geralmente é realizada por mulheres que trabalham em condições precárias e pouco valorizadas. Ora, tal resposta encontra fundamentação em um dado momento histórico, no qual o poder de capital passou a construir os ditames morais da sociedade, impondo à mulher uma verdadeira sujeição ao poder masculino e a preservação do seu corpo no que se refere às questões sexuais. Circunstâncias que terminaram por promover, assim, a discriminação da prostituição, haja vista seus intuitos sexuais. Por outro lado, cumpre destacar, também, uma certa influência dos ditames religiosos. Porém, não se pode atribuir, tão somente, a Igreja toda a responsabilidade pelo menosprezo que se dedica a tal atividade. Principalmente em tempos atuais onde os ditames religiosos tem, em certa medida, acompanhado o percurso social. Neste sentido, note-se que tem-se falado muito em exercício da prostituição pela livre e espontânea vontade. Porém, cumpre refletir que embora haja, por parte daquele que realiza a prostituição, o comprometimento em aceitá-la, não, necessariamente, significa afirmar que ele, o agente prostituído, sente prazer pelas ações ou por todos os atos praticados pelo agente pagante, legitimando, portanto, a exploração da sexualidade do outro, pois que averigua-se uma hierarquização, um domínio sobre o corpo do sujeito em prostituição por parte daquele que compra referido serviço.

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Tal fato termina por demonstrar o liame estreito entre o exercício - posto que a atividade está sendo realizada em razão da livre vontade do sujeito em prostituição - e a exploração por parte do outro que detem riqueza e por isso pagante, pois há a dominação da vontade do outro, bem como o controle sobre o corpo deste outro, disseminando-se, assim, o desrespeito à igualdade, pois o sujeito em prostituição encontra-se em condição de submissão dos prazeres ditados pelo que o outro pode pagar. Desta forma, é possivel, então, afirmar que para o sistema capitalista em vigor, o corpo é dominado pelo intuito do labor, que, por sua vez, possui como real pretensão a detenção do poder econômico no intuito de gerar, a cada momento, o aumento posse do capital, posto que este é fonte de poder. 3. DIREITOS FUNDAMENTAIS VERSUS PROSTITUIÇÃO. Admitindo o pressuposto da existência da exploração em razão do poder do capital na atividade da prostituição, bem como uma exploração em razão de uma relação de gênero cumpre, então, questionar uma possível ofensa ao direito fundamental à igualdade elencado no artigo 5º inciso I da Constituição Federal de 1988, que de maneira expressa aduz que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição”. Se não é assim, cumpre lembrar que se todos são iguais, é dizer, homens e mulheres porque, então, a maior quantidade de pessoas em prostituição é do sexo feminino? E, ainda, porque o preço que se paga pela prostituição masculina, ainda que realizada em acordo com o que se convencionou chamar de “prostituição de rua”, é mais alto que o valor retribuído ao exercício da prostituição feminina? Ainda no inciso II do mesmo ordenamento é possível encontrar: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Fato que leva a conclusão de que a exploração da prostituição ofende também o direito fundamental à liberdade. Ora, sustentamos até agora que a prostituição está fundamentada em relações de poder econômico fundamentadas no domínio e sujeição sexual de terceira pessoa. Fato que demonstra a ausência de liberdade daquele que a exerce. Ademais, ainda que tentemos admitir a prostituição como atividade, como exercício de uma atividade laboral é difícil compreender a proteção do inciso XIII do mesmo artigo, pois que o mesmo admite que “é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”. Pergunta-se: que qualificações? Que lei? Sabe-se que a prostituição sequer se encontra devidamente reconhecida através de Leis concretas. Tais circunstâncias, apenas, demonstram algumas das barreiras ou, melhor, fronteiras que sugerem o referido tema. Falar sobre prostituição é falar sobre uma segregação sexual imposta por um poder de capital que em nada contribuiu no percurso da história para a igualdade dos gêneros, pois que era necessário manter a propriedade no poder de alguns poucos. CONSIDERAÇÕES FINAIS É fato que o discurso em torno da prostituição é demasiado amplo e elenca consigo uma quantidade infinita de perguntas que seriamos incapazes de responder, pois que o tema exige uma análise que ultrapassa as barreiras de uma única ciência. Ora, falar em prostituição e esquecer as ciências sociais, a antropologia, seus efeitos, os diferentes discursos em torno da referida temática, como é exemplo o discurso dos movimentos feministas, enfim... é esbarrar em uma grande trave que impossibilita o caminhar na construção de alguma ideia. Por outro lado, essas tantas barreiras, também, dificultam uma radical tomada de posicionamento e por isso, consideramos que falar sobre prostituição é uma construção permanente de saberes que podem, a qualquer momento, encontrar novos rumos e posicionamentos. Neste talante, consideramos, na atualidade, a prática da prostituição uma relação de poder sobre a intimidade corporal de outrem, ainda que esse outrem tenha dado seu aval para a realização de tal atividade,

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pois o aval quase sempre esta fundamentado em valores de sujeição e, sendo assim, consistiria em exploração. No entanto, nos resta claro que a construção do saber sobre referida temática pode, em momento posterior, modificar nossas ideias. O que nos parece fantástico, pois significa, sem qualquer duvida, o construir de uma dialética essencial ao desenvolvimento de um trabalho de pesquisa. REFERÊNCIAS ARAÚJO, Rogério. Prostituição: artes e manhas do ofício. Goiâna: Cânone, 2006. BASSERMANN, Lujo. História da prostituição: uma interpretação cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. CHAUVIN, Charles. Os cristãos e a prostituição. Petrópolis: Vozes, 1987. DIMENSTEIN, Gilberto. Meninas da noite: A prostituição das meninas-escravas do Brasil. São Paulo: Ática, 1994. ESTIARTE, Carolina Villacampa. Prostitución: ¿hacia lá legalización?. Valencia: Tirant monografías 783. 2012. FREITAS, Renan Springer de. Bordel, bordeis: negociando identidades. Petrópolis: Vozes, 1985. MARTÍNEZ, Fernando Rey; MARTÍN, Ricardo Mata; ARGÜELLO, Noemi Serrano. Prositución y Derecho. Editorial Aranzadi. RAGO, L.M. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar. Brasil: 1890-1930. 2.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra,1987. RIBEIRO, Úrsula de Nielander. Mulher mercadoria. São Paulo: Paulinas, 1980. ROBERTS, Nickie. As prostitutas na História. Trad. Magda Lopes. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1998. ROSSIAUD, Jacques. A prostituição na idade média. Rio de Janeiro: paz e terra, 1991.

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LIBERDADE DE EXPRESSÃO E RADIOFUSÃO SOB A ÓTICA DO SISTEMA INTERAMERICANO DE PROTEÇÃO Gessyca Galdino de Souza Aluna da graduação em Direito na Universidade Católica de Pernambuco; cursando o 8° período. Componente do grupo de pesquisa REC :RECIFE ESTUDOS CONSTITUCIONAIS, na linha de pesquisa “Direitos Humanos para Além da Jurisdição Constitucional: Diálogos entre o STF e a Corte Interamericana de Direitos Humanos” e estagiária da JFPE. Gustavo Ferreira Santos Doutor em Direito Público pela UFPE. Mestre em Direito pela UFSC. Professor de Direito Constitucional da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP) e da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

SUMÁRIO: Introdução; 1. Direito internacional de proteção; 2. Sistema regional de proteção aos direitos humanos; 3. Liberdade de expressão entendimento doutrinário; 4. Liberdade de expressão no sistema interamericano de proteção; 5. Radiodifusão e liberdade de expressão para o exercício da democracia; 5.1. Regulamentação da Radiodifusão a Luz do Sistema Interamericano de Proteção; 6. Participação do estado: liberdade de expressão sob a ótica positiva; Considerações finais; Referências.

INTRODUÇÃO Entender o sentido e alcance da liberdade de expressão de acordo com os parâmetros constitucionais e as garantias previstas nos tratados internacionais é o primeiro passo para um país democrático. No caso brasileiro principalmente, uma vez que a sua constituição garante ao cidadão o direito de pensar e manifestar os seus pensamentos de forma ampla, todavia o exercício da liberdade de expressão para além da esfera individual exige a utilização de instrumentos de comunicação em massa, que garantam a multiplicidade de vozes na sociedade, contribuindo para a formação da opinião pública plural, diversificada e igualitária consequentemente o efetivo controle dos atos Estatais. Dessa forma, o exercício da liberdade de expressão está intrinsecamente relacionado com o estudo da regulamentação da radiodifusão, uma vez que aquela constitui a pedra angular da democracia e está não existe se não houver pluralidade de vozes. Contudo, não se pode restringir à proteção a órbita nacional, pois o próprio legislador constituinte reconheceu a importância de adotar parâmetros internacionais de proteção, a fim de conceder plena efetividade aos direitos fundamentais. Portanto, se faz necessário direcionar o estudo ao sistema regional de proteção aos direitos humanos, que por meio de sua relatoria sobre a liberdade de expressão e os principais meios para sua difusão, tem tratado do tema regulamentação da radiodifusão para a manifestação e concretização plena desse direito fundamental.

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1. DIREITO INTERNACIONAL DE PROTEÇÃO. A consagração de direitos para além da ordem jurídica nacional e o reconhecimento de direitos inerentes à condição humana independente de se estar vinculado a uma ordem jurisdicional se faz imprescindível, pois se trata de mais um abrigo e proteção dos direitos e garantias fundamentais, mas agora sob a égide internacional, logo é incontestável que a adoção de mecanismos de proteção internacional constituem meios à ampliação das garantias e principalmente proteção a possíveis arbitrariedades ocasionadas pelo Estado. Diante disso, o reconhecimento e a incorporação ao ordenamento jurídico interno constitui uma relação de compromisso e cooperativismo assumido pelos órgãos internos com o sistema internacional de proteção aos direitos humanos e principalmente representam uma obrigação para a promoção de direitos e garantias fundamentais, de tal forma que o poder constituinte reformador elencou ao status de norma constitucional os tratados que versem sobre direitos humanos e por meio da cláusula de abertura material os demais tratados internacionais, concedendo status de norma supralegal conforme entendimento jurisprudencial. Tal posicionamento reflete o comprometimento da constituição de 1988 em ampliar a efetividade e eficácia dos direitos fundamentais, avançar na salvaguarda da tutela jurídica e principalmente enfraquecer qualquer ato que viole ou lesione os direitos fundamentais constitucionalmente previstos. Dessa forma é primordial definir o sentido e alcance do direito internacional de proteção aos direitos humanos. Assim seguindo o entendimento de Trindade (2006,p.6) Direito Internacional dos Direitos Humanos é corpus juris de salvaguarda do ser humano, conformado, no plano substantivo, por normas, princípios e conceitos elaborados e definidos em tratados e convenções, e resoluções de organismos internacionais, consagrando direitos e garantias que têm por propósito comum a proteção do ser humano em todas e quaisquer circunstâncias, sobretudo em suas relações com o poder público, e, no plano processual, por mecanismos de proteção dotados de base convencional ou extraconvencional, que operam essencialmente mediante os sistemas de petições, relatórios e investigações, no plano tanto global como regional. Emanado do Direito Internacional, este corpus juris de proteção adquire autonomia, na medida em que regula relações jurídicas dotadas de especificidade, imbuído de hermenêutica e metodologia próprias.

Com enfoque nos mecanismos de proteção aos direitos humanos a sua atuação se dá sob um prisma global, a saber, o sistema ONU e a fim de atender maiores especificidades do estado, o sistema regional de proteção aos direitos humanos, particularmente composto pala Europa, África e America. Conforme leciona Piovesan (2012,p.224), ao definir os sistemas global e regional, o instrumento global deve conter um parâmetro normativo mínimo, enquanto o que o sistema regional deve ir além, adicionando novos direitos, aperfeiçoando outros, levando em consideração diferenças peculiares em uma mesma região ou entre uma região e outra. Elementar ao cidadão ter o conhecimento que sobre ele reside uma dupla tutela jurídica e há direitos fundamentais para além dos limites nacionais, ou seja, conhecer para difundir a existência dos tratados internacionais é mais uma forma de que ele como principal participante do regime democrático possa exigir dos dirigentes estatais uma maior atuação no que concerne a aplicação dos tratados internacionais e cobrar perante os órgãos internos a observância de suas orientações, a fim de ampliar e não retroceder nos direitos conquistados, pois o papel desenvolvido por mecanismos internacionais proporcionam mais uma garantia de efetividade e eficácia dos direitos fundamentais e não só, mais principalmente constituem verdadeiros limitadores de possíveis retrocessos que o Estado signatário possa cometer daí se ter como resultado a responsabilização dos países signatários, por não aplicar as orientações emitidas pelos sistemas de proteção

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internacional do qual fazem parte, tendo em vista que estariam consequentemente reduzindo a eficácia do gozo de tais direitos pelo cidadão. O ordenamento jurídico pátrio reconhece a importância dos tratados internacionais no âmbito interno, mas não apenas reconhecer, mas também atribuir-lhe eficácia constitui dever e obrigação de seus órgãos, atuando para a ampla aplicação e máxima efetividade dos tratados internacionais incorporados no âmbito doméstico, consequentemente atribuir maior eficácia aos direitos fundamentais constitucionalmente previstos, e não apenas estes mais os também reciprocamente considerados por seu conteúdo e importância espraiados nas diversas espécies legislativas. Tendo em vista a ampla abrangência de atuação do direito internacional, aplicado por meio dos órgãos de proteção no plano global e regional, concluímos que ainda há muito que se avançar na ordem jurídica nacional para atribuir a máxima eficácia no âmbito interno das normas de proteção aos direitos fundamentais, e que a consagração formal é apenas um passo de um longo caminho a ser trilhado para plena efetividade dos direitos fundamentais. 2. SISTEMA REGIONAL DE PROTEÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS. É inegável a importância da jurisdição internacional na proteção dos direitos fundamentais ao cidadão, a existência de sistemas no âmbito global e regional não anula a responsabilidade Estatal de conceder ampla proteção, consequentemente uma esfera não atua excluindo ou restringindo o âmbito de atuação a outra, pois o objetivo é fortalecer o âmbito de proteção. É certo que: Os sistemas global e regional não são dicotômicos, mas complementares. Inspirados pelos valores e princípios da Declaração Universal, compõem o universo instrumental de proteção dos direitos humanos no plano internacional. Em face desse complexo universo de instrumentos internacionais, cabe ao indivíduo que sofreu violação de direito a escolha do aparato mais favorável, tendo em vista que, eventualmente, direitos idênticos são tutelados por dois ou mais instrumentos de alcance global ou regional, ou ainda, de alcance geral ou especial. Nesta ótica, os diversos sistemas de proteção de direitos humanos interagem em beneficio dos indivíduos protegidos. (PIOESAN, 1996, p.2).

Considerando a atuação de cada mecanismo se faz necessário direcionar o estudo para o sistema regional de proteção que atua considerando as maiores especificidades do tema proposto. A tutela dos direitos humanos no plano regional incluem instituições criadas por organizações que congregam países de determinados continentes os quais são o Europeu criado elo conselho da Europa, o Africano, criado pela União Africana e o Americano, criado pela organização dos Estados Americanos. O Brasil integra o sistema interamericano de proteção aos direitos humanos. O sistema interamericano de direitos humanos é voltado a aplicação do Pacto de São José da Costa Rica, formado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos sediada em Washington, EUA, dentro da esfera de suas atribuições está o de emitir pareceres consultivos aos Estados membros por meio de suas relatorias, investigar e decidir sobre possíveis violações aos direitos e acompanhar o desenvolvimento de cada região na proteção aos direitos humanos por meio da emissão de relatórios. E ainda integrando o sistema regional a Corte interamericana de Direitos Humanos, sediada em Costa rica com competência de investigar as violações por parte das regiões e possibilidade de aplicabilidade de sanções por descumprimento as orientações emitidas pela comissão interamericana. O país tornou-se signatário do Pacto de São José da Costa Rica, assumindo a responsabilidade de seu cumprimento no plano internacional no ano de 1998, aderindo às normas gerais e a cláusula facultativa de reconhecimento da competência da Corte para o julgamento de possíveis inflações, sendo assim o país acatou um pacto de seguir o entendimento consultivo da comissão interamericana e jurisprudencial da Corte Intera-

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mericana devendo juízes e tribunais diante de um caso concreto aplicar não apenas o ordenamento jurídico pátrio, mas também seguir a compreensão internacional. O sistema regional de proteção representa fonte subsidiária à tutela dos direitos fundamentais, tendo como um dos principais requisitos de admissibilidade do pedido o esgotamento das fontes internas de proteção, dessa forma os órgãos de proteção internacional só são acionados diante de uma falha ou omissão por parte do próprio Estado representado na pessoa de seus órgãos. Aderindo a ideia de globalização dos direitos humanos, o reconhecimento de mecanismos de proteção regional é de grande relevância a ordem democrática, principalmente por sua grande contribuição no entendimento do tema liberdade de expressão e os principais meios para a sua difusão, ampliando a abrangência do gozo desse direito fundamental que é considerado pela doutrina como o primeiro dos demais direitos a serem exercidos. 3. LIBERDADE DE EXPRESSÃO ENTENDIMENTO DOUTRINÁRIO Dentre os inúmeros motivos que levaram ao alargamento da proteção a liberdade de expressão é incontestável que as conquistas obtidas no presente, são fruto de inúmeros esforços em combater os retrocessos do passado, no caso brasileiro principalmente, pois os anos sob um governo ditatorial foram suficientes para comprovar que cecear a liberdade de expressão em uma sociedade é viver sob a égide de um governo ditatorial. Seguindo o entendimento da Comissão Interamericana (2014), a plena e livre discussão evita que se paralise uma sociedade e prepara para tensões e flexões que destroem as civilizações. Uma sociedade livre hoje e amanha é aquela que pode manter um debate público e rigoroso sobre ela mesma. Definir o sentido e o alcance da liberdade de expressão na atualidade é vital, principalmente por ser tratar de um instrumento essencial para o exercício da democracia participativa de um país, pois, assegurar á livre manifestação de opiniões, ideias e pensamentos é garantir ao cidadão o exercício e a conquista não apenas da liberdade de expressão, mas de todos os outros direitos fundamentais constitucionalmente previstos. Conforme Farias, Edilson (2004) a liberdade de expressão pode ser entendida como conjuntos de direitos, liberdades e garantias relacionadas à difusão dos ideais. A constituição de 1988 consagra liberdade de expressão em seu artigo 5 inciso IV como é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato. Portanto o sentido adotado pelo texto magno concebe o direito fundamental a livre manifestação de ideias e pensamento em sentido amplo, tendo como limite expresso o anonimato, cabe ainda ressaltar que de acordo com o posicionamento doutrinário e jurisprudencial é possível conflitos entre a esse direito fundamental e a vida privada, honra e a intimidade, podendo diante de um caso concreto ser relativizado tendo como principal parâmetro o interesse público. Importante frisar que o sentido e alcance da liberdade de expressão adotado aqui como gênero, que abrange não apenas a esfera subjetiva e individual do cidadão, mas alcança também o âmbito coletivo, pois ao mesmo tempo é peça fundamental a formação do pensamento coletivo, assim poderia se concluir que, restringir seu alcance atinge muito mais do que o plano individual, afeta o campo artístico, intelectual e coletivo, certo seria entender a livre manifestação de pensamento como direito transindividual coletivo, que ultrapassa o interesse das partes e desemboca em um direito da coletividade, assim fundamental ao regime democrático. Pode-se afirmar que, em razão da livre manifestação de pensamento, de opinião e circulação de ideias a sociedade participa ativamente do plano de atuação estatal na esfera social, o debate público é essencial para a existência de uma verdadeira democracia tendo o direito a liberdade de expressão intrinsecamente relacionada ao seu exercício, um governo livre é aquele que garante a primeira e mais importante dentre o rol das liberdades defendidas desde o constitucionalismo liberal, que é nas palavras de Farias (2004), o direito a manifestar livremente os próprios pensamentos, ideias e opiniões, crenças, juízos de valor, por meio da

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palavra oral e escrita, de imagem ou de qualquer outro meio de difusão de ideias, bem como na faculdade de comunicar ou receber informações verdadeiras sem impedimentos nem discriminações. Tendo em vista o conceito doutrinário da liberdade de expressão como também o seu alcance como direito fundamental constitucionalmente previsto, cabe agora analisar o sentido adotado pelo sistema interamericano de proteção mais especificadamente o entendimento da comissão interamericana de direitos humanos, representado por sua relatoria. 4. LIBERDADE DE EXPRESSÃO NO SISTEMA INTERAMERICANO DE PROTEÇÃO Diante do vasto conteúdo informativo e jurisprudencial da corte interamericana e os casos que ainda trazem grandes repercussões na esfera jurisdicional, social e política do país, surge à necessidade de se ter como eixo central o entendimento da convenção interamericana de direitos humanos sobre a liberdade de expressão por ser instrumento essencial dentro de um governo democrático e por sua rica compreensão e ampliação no sentido e proteção, mais especificadamente por sua interpretação do artigo 13 da carta de princípios da liberdade de expressão. A concepção amparada no âmbito do sistema regional garante o mais amplo gozo e proteção à liberdade de expressão como gênero e suas diversas espécies como à liberdade de pensamento, artística, científica ou conforme seu entendimento, por qualquer outro meio de sua escolha, expressão que garante amplíssima proteção, estendendo-se inclusive a discursos contrários a maioria, sendo vedado qualquer meio direto ou indireto que venha restringir o âmbito de exteriorização. O artigo 13 representa mais uma conquista aos direitos e garantias fundamentais, de forma que abarca as múltiplas vertentes de manifestação, assim como sua dimensão individual e social entendimento fundamental ao governo democrático. Da mesma maneira estende-se a proteção à dupla dimensão da liberdade de expressão, pois, segundo o entendimento da corte interamericana possui uma dimensão individual e uma coletiva, além do mais, ao mesmo tempo em que o individuo tem direito de pensar e expressar seus pensamentos o coletivo tem o direito, a saber, do pensamento alheio, buscar ideias e opiniões do outro, por esta razão a liberdade de expressão é concebida pelo sistema americano de pedra angular na existência de uma sociedade democrata, pois contribui a formação da opinião pública. Conforme o parecer consultivo 5/85 (2014) 70. A liberdade de expressão é uma pedra angular na própria existência de uma sociedade democrática. É indispensável para a formação da opinião pública. É também, conditio sine qua non, para que os partidos políticos, os sindicatos, as sociedades científicas e culturais e, em geral, quem deseje influir sobre a coletividade, possa se desenvolver plenamente. É, enfim, condição para que a comunidade, na hora de exercer suas opções, esteja suficientemente informada. Deste modo, é possível afirmar que uma sociedade que não está bem informada não é plenamente livre.

A importância da aplicabilidade desse posicionamento na órbita nacional principalmente pelo poder judiciário, é primordial, na medida em que, constitui direito fundamental primário para o exercício e gozo dos demais direitos fundamentais, visto que, trata-se de um instrumento essencial dentro de um regime democrático, que preza pela dignidade da pessoa humana e sua autonomia de manifestar o seu pensamento, seguindo o entendimento da convenção interamericana negar esse direito seria renegar a primeira e a mais importante de nossas liberdades. No mesmo sentido Mello (2012, p.58) citando a lição de Gárcia Ramirez A Corte Interamericana de Direitos Humanos ocupou-se em estabelecer a relevância da liberdade de expressão na sociedade democrática: é fundamento e efeito desta, instrumento para seu exercício, garantia de seu desempe-

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nho. Há uma relação evidente entre o desdobramento da expressão e o gozo da liberdade. Estes conceitos informam diversos instrumentos internacionais relativos a direitos humanos no duplo plano universal e regional. A ordem pública democrática reclama, portanto, a defesa da liberdade de expressão. A ela serve, em seu âmbito de atribuições, a jurisdição da Corte.

Portanto, entende-se a relevância de se tutelar a liberdade de expressão para além do âmbito nacional, de proteger sua garantia e gozo não apenas pela jurisdição constitucional, mas também de forma subsidiária por uma corte internacional por ser instrumento fundamental a democracia e mecanismo de controle da atuação estatal, resultando na garantia dos demais direitos fundamentais. Assim seguindo o entendimento da declaração de Chaupetec (1994) entendemos que Somente através da livre expressão e circulação de ideias, a busca e difusão de informações, a possibilidade de indagar e questionar, de expor e reagir, de coincidir e discordar, de dialogar e confrontar, de publicar e transmitir, que é possível manter uma sociedade livre. Somente mediante a prática destes princípios será possível garantir aos cidadãos e aos grupos seu direito de receber informação imparcial e oportuna. Somente mediante a discussão aberta e a informação sem barreiras será possível buscar respostas aos grandes problemas coletivos, criar consensos, permitir que o desenvolvimento beneficie a todos os setores, exercer a justiça social e avançar na conquista da equidade. Por isto, rejeitamos com veemência aqueles que defendem que liberdade e progresso, liberdade e ordem, liberdade e estabilidade, liberdade e justiça, liberdade e governabilidade são valores contrapostos.

5. RADIODIFUSÃO E LIBERDADE DE EXPRESSÃO PARA O EXERCÍCIO DA DEMOCRACIA. Embora a constituição elenque o direito fundamental a liberdade de expressão em posição de destaque, e amplie o seu âmbito de proteção para além da jurisdição constitucional consagrando sua proteção por meio de tratados de direitos humanos e fundamentais, atingir o máximo de efetividade e eficácia do seu exercício requer muito mais do que a proteção formal para a plena concretização no âmbito social, de forma a abarcar os parâmetros estabelecidos pelo sistema regional de proteção. A livre manifestação de ideias, pensamentos e opiniões exige a garantia de instrumentos de comunicação livres e plurais, meios de interlocução que garantam a diversidade e igualdade de difusão de informações, garantias formais e matérias na concretização da democracia. Sem embargo, perceber que a proteção ao direito fundamental considerado pedra angular da democracia requer a garantia formal de outros instrumentos que atingem diretamente o seu exercício de acordo com os ideais estabelecidos pelo legislador constituinte, o que se quer mostrar é que ao prever normas que tratam da radiodifusão, a constituição percebeu a importância dos meios de comunicação para o exercício de vários direitos fundamentais, ou seja, proteção formal da radiodifusão; No que tange a liberdade de expressão primordial a garantia formal, mas diante da crescente desigualdade social no âmbito brasileiro, substancialmente estabelecer parâmetros para uma radiodifusão livre, justa e plural é inevitável, dessa forma, ajustar-se mais uma vez ao entendimento do sistema interamericano de proteção é fundamental no que diz respeito à regulamentação da radiodifusão, afim de, realizar uma verdadeira ponte de diálogos para um governo democrático, a liberdade de expressão legitima exige parâmetros democráticos para normatização da radiodifusão. De acordo com o entendimento de Salomon e Mendel (2011) a regulação da radiodifusão envolve necessariamente o direito à liberdade de expressão, já que pode ser vista como uma restrição dessa liberdade, devido a sua própria natureza. Em verdade, pode se afirmar que a liberdade de expressão é a pedra angular da regulamentação da radiodifusão nas sociedades democráticas e que a legitimidade ou não legitimidade de determinada abordagem regulatória para o setor dependerá, no mais das vezes, de uma avaliação de seu impacto sobre a liberdade de expressão.

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Contudo, cabe destacar que regular não é estabelecer critérios limitadores de acesso à radiodifusão e consequentemente restringir a liberdade de expressão, mensagem muitas vezes difundida por grupos detentores de vários meios de comunicação, tal posicionamento é no mínimo equivocado, certo é que a liberdade de expressão não se trata de um direito fundamental absoluto e estabelecer critérios para a sua difusão por meio dos instrumentos de comunicação em massa torna-se legitimo, a partir do momento que se utiliza padrões democráticos estabelecidos pelo exercício da liberdade de expressão. Dessa forma, regulamentar a radiodifusão é estabelecer critérios legítimos e democráticos que tenham por finalidade a livre e justa difusão de ideias e pensamentos por instrumentos de comunicação, mais de maneira igualitária e democrática, possibilitando o acesso aos diversos setores sociais e consequentemente a manifestações de diversas informações e opiniões atendendo aos ditames da corte e da CIDH. O controle dos atos estatais é o propósito do governo democrático, fim a ser alcançado com a participação social e a livre circulação de opiniões, é o que propugna a democracia e nada mais imperioso do que a necessidade da efetiva pluralização do espaço público por meio de instrumentos de comunicação democráticos. 5.1 REGULAMENTAÇÃO DA RADIODIFUSÃO A LUZ DO SISTEMA INTERAMERICANO DE PROTEÇÃO

A experiência brasileira obtida com as graves violações a direitos humanos e fundamentais no passado se propagam no presente, com a preocupação do poder constituinte em estabelecer normas que são verdadeiras medidas de proteção a retrocessos constitucionais, mais especificadamente o artigo 5 § 3 estabelece o que Marcelo neves chama de diálogos constitucionais que tanto do lado da Corte IDH quanto da parte das cortes estatais tem havido uma disposição de “diálogo” em questões constitucionais comuns referentes à proteção de direitos humanos, de tal maneira que se amplia a aplicação do direito convencional pelos tribunais domésticos (Neves, 2014 apud CARAZO ORTIZ, 2009, P 273). O vasto entendimento da comissão interamericana, em matéria de liberdade de expressão têm contribuído significativamente para o avanço na proteção e efetividade e como desdobramento lógico o sistema interamericano tem contribuído com seu entendimento sobre a regulamentação da radiodifusão, tema correlato exercício da livre manifestação de pensamento, logo adotar como parâmetro o seu entendimento sobre os padrões para a regulamentação da radiodifusão livre, plural e igualitária é vital para o diálogo e aplicação do direito internacional no âmbito nacional. Com base nos padrões estabelecidos pela relatoria especial para a liberdade de expressão uma radiodifusão livre e igualitária deve estar pautada nos ditames estabelecidos pela liberdade de expressão, pois, sob a ótica de sua relatoria especial Todas las personas tienen derecho a fundar o formar arte de meios de comunicacionó y aquéllos que requieren del uso del espectro deben ser objeto de uma regulación clara,transparente y democrática, que asegure el mayor goce de este derecho para el mayor número de personas y por conseguinte, la mayor circulación de opiniones e informaciones. Em efecto, como ya se há indicado, la regulación del espectro electromagnético debe garantizar, al mismo tiempo, la libertad de expresión del mayor número personas o perspectivas, la igualdade de oportunidades em el acesso a los médios y el derecho a la información plural y diversa de las sociedades contemporâneas. (MARINO, 2010, p.11)

De acordo com o seu entendimento, para orientar a regulamentação da radiodifusão três componentes devem estar presentes: pluralidade de vozes, que significa medidas antimonopólicas, diversidade de vozes, equivalente a medidas de inclusão social, e não discriminação, ou seja, acesso em condições de igualdade e inclusão de todos os grupos sociais a ser seguida com a finalidade de garantir a igualdade no exercício da liberdade de expressão.

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O propósito central da comissão interamericana de direitos humanos, ao estabelecer como componentes da radiodifusão tais parâmetros é principalmente proteger a democracia, uma vez que, sem meios de comunicação livres, independentes e plurais é impossível se ter a diversidade do debate democrático, com isso não se quer dizer que a sua regulamentação não tenha restrições, ao contrário, o controle dos principais instrumentos de interlocução deve existir com a normatização, mais desde que seja uma contenção legitima, pautada nos ditames constitucionais e ampliada pelos parâmetros internacionais estabelecidos pelo sistema regional. Dessa forma, é indispensável à adoção dos três componentes estabelecidos pela comissão interamericana, pois, medidas antimonopólicas devem ser tomadas, visto que é possível verificar que existem determinados grupos detentores dos principais canais de informação como TV e rádio, resultando em um verdadeiro filtro de opiniões, restrito a um pequeno grupo detentor dos instrumentos de comunicação em massa, segundo Marino (2010), monopólios u oligopos em la propiedad por cuanto conspiran contra la democracia al restringir la pluralidad y diversidad que asegura el leno ejercicio del derecho a la infirmación de los ciudadanos. Com relação à diversidade de vozes, o que se entender é que o debate democrático exige a participação social de toda população, independente da classe econômica conforme Sarmento (2007), a liberdade de expressão é tão importante em qualquer regime que se pretenda democrático. É sua garantia que possibilita que a vontade coletiva seja formada através do confronto livre de ideias, em que todos os grupos e cidadãos tenham a possibilidade de participar, seja para exprimir seus pontos de vista, seja para ouvir os expostos de seus pares. Ademais, o modo mais eficaz para se combater o monopólio é se garantir a diversidade de vozes, assegurando à população de forma igualitária o acesso a instrumentos de comunicação, é estabelecer leis democráticas, com regras claras que assegurem o acesso por toda a população, com o objetivo de adotar políticas de acesso que garantam a participação de grupos marginalizados da sociedade para que tenham voz e participem do debate público, e aqui cabe ressaltar que é papel do Estado intervir para promover verdadeiras políticas públicas de igualdade social, nesse entendimento Es claro entoces que la regulación sobre a radiodifusión deberia apuntar a superar lãs desigualdades existentes em el acesso a los médios de comunicación, por ejemlo, de sectores sociales desfavorecidos econômicamente. En este sentido, los Estados no solo deben abstenerse de discriminar a estos sectores sino que además deben promover políticas úblicas activas de inclusion social. (MARINO, 2010, p.20)

Portanto, estabelecer parâmetros democráticos de acesso aos instrumentos de comunicação em massa não é restringir a liberdade de expressão é poder ampliar o seu alcance, incluindo componentes que permitem a pluralidade, diversidade e igualdade requerendo do Estado medidas positivas que garantam o debate democrático, não adotar tais parâmetros é limitar o seu exercício que exige diálogos constantes entre o âmbito nacional e internacional de proteção. 6. PARTICIPAÇÃO DO ESTADO: LIBERDADE DE EXPRESSÃO SOB A ÓTICA POSITIVA. É inegável a importância do papel desempenhado pelo sistema regional de proteção e sua participação na efetivação de um verdadeiro governo democrático, por conseguinte a concretização do seu entendimento no âmbito doméstico exige muito mais do que medidas formais de proteção e participação ativa da suprema corte na sua aplicação, mais reivindica a participação do Estado atuando de maneira positiva na promoção de políticas públicas de inclusão que integrem todos os grupos da sociedade. Nas palavras de Sarmento (2010), embora a dimensão preponderante da liberdade de expressão seja realmente negativa, a garantia deste direito, sobretudo no quadro de uma sociedade profundamente desigual,

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também reclama ações positivas do Estado, visando assegurar a todos a possibilidade real do seu exercício e o enriquecimento do debate público. Dessa forma, deixa de se compreender a liberdade de expressão sob a ótica negativa que exige abstenção do Estado, para ser um direito que reivindica a sua participação de forma positiva, promovendo a concretização da sua dupla dimensão individual e coletiva. Sarmento (2010, p.25), entende que, a intervenção estatal visando a democratizar a esfera comunicativa é indispensável. Mais que uma faculdade, ela deve ser concebida como um verdadeiro dever do Estado, sobretudo em sociedades desiguais como a brasileira, em que os meios de comunicação social se encontram excessivamente concentrados nas mãos de uma pequena elite, e o mercado não proporciona aos pobres qualquer acesso real à mídia. Esta intervenção não opera contra, mais a favor da liberdade de expressão, que não, deve, portanto ser concebida como um mero direito negativo a uma abstenção estatal. O principal objetivo de regulamentar a radiodifusão é estabelecer a pluralização do debate democrático, contribuindo para a participação das diversas vozes do meio social e principalmente realizar o controle dos atos estatais, garantias alcançadas pela democracia que está intrinsecamente relacionada com a liberdade de expressão, de tal forma que sem meios de comunicação livres, plurais e diversos não há sua concretização. CONSIDERAÇÕES FINAIS Aderindo a ideia de globalização dos direitos humanos à constituição em seus artigos, traz expressamente o reconhecimento deste instrumento de grande relevância para a verdadeira democracia que é a ratificação dos tratados internacionais, concedendo ao cidadão uma dupla proteção e ampliação o rol de direitos que não mais se restringe aos consagrados no âmbito nacional mais vai além, por se tratar de mais uma ferramenta que visa à efetividade dos direitos fundamentais agora na órbita internacional. Em especial o papel desempenhado pela convenção interamericana de direitos humanos e a corte interamericana por seu rico entendimento e contribuição na definição do sentido e alcance da liberdade de expressão e o valor de sua aplicação na esfera nacional, e não só por sua elogiável atuação, mas também por tratar-se de um mecanismo de proteção regional que acolhe os direitos fundamentais com suas maiores especificações. Fundamental tal entendimento, pois consubstancia a existência de um governo democrático, fundamentado no debate de ideias e livre circulação de informação imprescindível à formação do pensamento critico e plural, compatível com a constituição cidadã de 88, consagrando o entendimento de ampla margem de atuação da liberdade de expressão e compreendendo a importância dos mecanismos de informação no seu exercício. Portanto adotar os parâmetros estabelecidos pelo sistema regional de proteção é estabelecer diálogos entre jurisdições, sendo o entendimento do Sistema interamericano de Proteção o ponto de partida para o avanço na seara dos direitos fundamentais envolvendo a comunição. Compreender que a liberdade de pensamento constitui uma dupla dimensão uma individual e uma coletiva nos leva a desaguar em um segundo posicionamento que para a formação do pensamento individual e coletivo é imprescindível o amplo acesso a instrumentos de difusão de informação e opinião no meio social. Dessa forma, os principais canais de telecomunicações no país exercem importante papel político e democrático na formação e consolidação de opiniões, de modo que, adotar critérios normativos que estabeleça a finalidade e os limites para sua regulamentação é atuar na consolidação de uma mídia democrática e ainda mais é garantir o pleno gozo da liberdade de expressão que exige um pluralismo de ideias, criticas e informação sem os quais não há uma pluralidade democrática. Assim consideramos que, a relação da liberdade de expressão e a democracia esta intrinsecamente relacionada à difusão de pensamentos plurais e críticos, verdadeiros instrumentos de formação da opinião

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pública e controle dos atos estatais. Portanto, não basta apenas conceder a livre comunicação pelos diversos meios disponíveis, mas regulamentar a sua difusão é preterível, para que seja um verdadeiro instrumento democrático e não uma ferramenta monopolizada por grandes grupos socioeconômicos. REFERÊNCIAS PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. 782 f. FARIAS, Edilson. Liberdade de expressão e comunicação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. GOMES, Luiz Flavio et al (Org.). O Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos e o Direito Brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. HUMANOS, Comissão Interamericana de Direitos; EXPRESSÃO, Relatoria Especial Para A Liberdade de. Marco Jurídico Interamericano de Direitos Humanos. Montevidéu: Unesco, 2014. TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Desafios e conquistas do direito internacional dos direitos humanos no inicio do século XXl. 2006. Disponível em: . Acesso em: 09 nov. 2014. PIOESAN, Flávia. A CONSTITUIÇÃO DE 1988 E OS TRATADOS INTERNACIONAIS DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS. 1996. Centro de Estudos da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo. Disponível em: . Acesso em: 05 jul. 2015. LIBERDADE DE EXPRESSÃO E REGULAMENTAÇÃO DA RADIODIFUSÃO: Serie debates CI.  BrasÍlia: Unesco, v. 7, n. 8, Não é um mês valido! 2011. Disponível em: . Acesso em: 25 jan. 2016. NEVES, Marcelo. DO DIÁLOGO ENTRE AS CORTES SUPREMAS E A CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS AO TRANSCONSTITUCIONALISMO NA AMÉRICA LATINA. Revista de Informação Legislativa, Brasilia, v. 201, n. 51, p.193-2014, jan. 2014. MARINO, Catalina Botero. ESTÁNDARES DE LIBERTAD DE EXPRESSIÓN PARA UNA RADIODIOFUSIÓN LIBRE E INCLUYENTE: RELATORÍA ESPECIAL PARA LA LIBERTAD DE EXPRESSIÓN. 2010. OEA: ORGANIZACIÓN DE LOS ESTADOS AMERICANOS. Disponível em: . Acesso em: 25 jan. 2016. JURISPRUDêNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS: direito à liberdade de expressão.Brasilia: Prol Editora Gráfi Ca Ltda, v. 7, 2014. Disponível em: . Acesso em: 27 Não é um mês valido! 2016.

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ATIVISMO JUDICIAL E O CONTROLE DA PROIBIÇÃO DE PROTEÇÃO DEFICIENTE A DIREITOS FUNDAMENTAIS: ANÁLISE DO PROCESSO DE INCONSTITUCIONALIDADE DO §3º, DO ARTIGO 20, DA LEI Nº 8.742/93 – LEI ORGÂNICA DA ASSISTÊNCIA SOCIAL – LOAS

Glauco Salomão Leite Doutor em Direito Público pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Mestre em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Professor de Direito Constitucional da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP); da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e da Universidade de Pernambuco (UPE). Membro do grupo Recife de Estudos Constitucionais – REC (CNPq). Dyego José Holanda Pessoa Graduando do Curso de Direito da Universidade Católica de Pernambuco. Integrante do Programa de Iniciação Científica (PIBIC/UNICAP). Tatyana Paula Cabral De Melo Marcolino Graduanda do Curso de Direito da Universidade Católica de Pernambuco. Integrante do Programa de Iniciação Científica (PIBIC/UNICAP).

SUMÁRIO: Introdução; 1. Condições para Judicialização da política e direitos sociais no Brasil pós-Constituição de 1988; 1.1 Ativismo judicial como reflexo da judicialização e seu caráter multidimensional no caso da LOAS; 2. A proteção deficiente à seguridade social e a atuação do STF; 2.1 Regulamentação do art. 203, v, CF e controvérsias acerca do critério de pobreza; 2.2 Análise de caso e posicionamento inicial da corte: ADIn 1.232/DF; 2.3 Mudança de paradigma: Análise da reclamação 3805/SP e 4374/PE; 3. Inconstitucionalidade parcial, sem pronúncia de nulidade do art. 20, §3º, da Lei 8.742/93 (LOAS);

INTRODUÇÃO Desde a previsão constitucional, em 1988, acerca da assistência social, o universo jurídico não alcançou um consenso quanto à sua aplicação. Mesmo após os embates e divergências que levaram à criação da Lei 8.742, de 7 de dezembro de 1993 – Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS) –, percebeu-se a necessidade de judicialização da matéria em questão, seja pela inércia do legislativo, seja por sua proteção deficiente ao direito balizado na carta magna. A princípio, faz-se necessário destacar que adotaremos uma ótica voltada à judicialização das políticas sociais e o ativismo judicial em seu plano multidimensional. Com relação à judicialização, é sempre pertinente fazer lebrar que após a promulgação da Constituição da República em 1988 tivemos salvaguardado grande rol de direitos sociais, no entanto, o Estado muitas vezes deixa de criar o mínimo necessário para cumprir tais direitos, surgindo a necessidade do cidadão interpelar o judiciário na busca da concretização do que foi disposto na lei maior. Com relação ao ativismo judicial do Supremo Tribunal Federal (STF), levando em consideração sua crescente liberdade de atuação após o fim do regime militar, é necessária uma visão multidimensional de que este ativismo não é o resultado puro e simples de uma atitude deliberada de juízes e cortes, mas sim, que ele

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responde a uma pluralidade de fatores. Estes, por sua vez, influenciam e podem explicar o comportamento mais ou menos ativista dos juízes e das cortes, levando em consideração fatores institucionais, políticos, sociais e jurídico-culturais, presentes no momento da decisão. Neste caso, o interessante é observar que, devido à mudança social, econômica e de composição da Corte que se deu durante o trajeto da celeuma, o tribunal mudou seu posicionamento com relação ao critério de miserabilidade da Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS). A mudança observada, portanto, sai de um viés positivista e auto contencioso e passa por um redesenho, que pode ser considerado ativista pela mudança de ótica adotada pela Corte. Em tempo, tal ressignificação propõe uma adequação ao princípio da proporcionalidade, se ajustando a proibição de proteção deficiente de modo que tenta respeitar os direitos fundamentais assegurados constitucionalmente, não sem antes gerar um embate acerca do tema que se perpetua hodiernamente, como melhor detalhado no decorrer deste trabalho. 1. CONDIÇÕES PARA JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA E DIREITOS SOCIAIS NO BRASIL PÓSCONSTITUIÇÃO DE 1988. Precipuamente, destaque-se que aqui se entende a judicialização como um fenômeno que ocorre quando o Poder Judiciário é chamado a atuar em questões de repercussão política e social, não obstante que o dever tradicional de elidir tais questões seja do Executivo e Legislativo. Nesse sentido, o que ocorre é uma transferência de poder para órgãos judiciais, que decidem a seu modo a aplicação e o resultado de uma norma ou direito originariamente previstos por outro poder constituinte. Mesmo sendo um acontecimento mundial, o caso brasileiro exibe suas particularidades, como bem aponta Luís Roberto Barroso ao definir três causas de judicialização presentes no modelo institucional brasileiro: i) redemocratização após promulgação da constituição de 1988; ii) a constitucionalização abrangente trazida pela carta analítica; e iii) o sistema brasileiro de controle de constitucionalidade – um dos maiores do mundo. A referida redemocratização pós-ditadura militar, além de ser amplamente estudada, é facilmente constatada, sem maiores esforços, o que não poderia ser diferente ante o leque de direitos trazidos com a atual Constituição. O renascimento do Judiciário se deu com o resgate da consciência da população sobre seus direitos – agora constitucionalmente garantidos –, elevando quantitativamente à procura pelo judiciário. Some-se isto ao fato do poder ofertado ao Ministério Público e o crescimento da Defensoria Pública, que cumprem especial papel com relação ao salvaguardo de direitos sociais e fundamentais de hipossuficientes. Como segunda e terceira causa, respectivamente, temos a grande quantidade de matéria inseridas no bojo da atual Constituição, o que rendeu ampla possibilidade de atuação do judiciário devido à politização dos direitos e o abrangente sistema brasileiro de controle de constitucionalidade, que se caracteriza por ser um híbrido dos sistemas europeu e americano. 1.1 ATIVISMO JUDICIAL COMO REFLEXO DA JUDICIALIZAÇÃO E SEU CARÁTER MULTIDIMENSIONAL NO CASO DA LOAS.

Na mesma mão da judicialização, outro fenômeno crescente e cada vez mais perceptível no sistema jurídico brasileiro, é o denominado Ativismo Judicial. Difere da judicialização justamente quanto à vontade do magistrado: no ativismo há uma opção interpretativa sobre a constituição na intenção de ampliar ou não seu alcance, enquanto a judicialização versa sobre um fato, uma provocação social, não sendo um exercício deliberado de vontade do agente político. Ocorre que a judicialização das políticas públicas no Brasil tem provocado, gradativamente, a transferência de poderes decisórios das instâncias políticas para o Poder Judiciário, elevando as possibilidades de atuações ativistas pelo STF. Tal exercício expansivo de poderes políticos normativos exercidos por juízes e tribunais se caracterizaria a partir da conformação das lacunas normativas aos princípios e valores consti-

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tucionais. O caso da Lei Orgânica de Assistência Social - a partir deste ponto chamada de LOAS -, é um emblemático exemplo de lacuna ou vácuo normativo que provoca o judiciário a decidir de maneira ativista, a princípio pela ausência de norma, e posteriormente, pela proteção deficiente causada pelo critério de miserabilidade imposto para fins de concessão do benefício. Imperioso destacar que, ao falar de Ativismo Judicial, a ótica pertinente a ser adotada é quanto ao seu caráter multidimensional. Tal complexidade é revelada de modo particular, na forma como as decisões ativistas se manifestam, apresentando diferentes dimensões, consistindo em práticas decisórias multifacetadas e contendo múltiplos indicadores para sua consecução. Assim define Campos (2014, p. 141), sobre o ativismo, destacando essa pluralidade de dimensões: (...) defino o ativismo judicial como o exercício expansivo, não necessariamente ilegítimo, de poderes político-normativos por parte de juízes e cortes em face dos demais atores políticos, que: (a) deve ser identificado e avaliado segundo os desenhos institucionais estabelecidos pelas constituições e leis locais; (b) responde aos mais variados fatores institucionais, políticos, sociais e jurídico-culturais presentes em contextos particulares e em momentos históricos distintos; (c) se manifesta por meio de múltiplas dimensões de práticas decisórias (Grifos do autor).

Partindo da diretriz de que o ativismo judicial não é o resultado puro e simples de uma atitude deliberada de juízes e cortes, percebemos que ele responde a uma pluralidade de fatores que influenciam e podem explicar o comportamento mais ou menos ativistas dos magistrados, devendo ser levados em consideração fatores institucionais, políticos, sociais e jurídico-culturais, presentes no momento da decisão. Neste caso, o interessante é observar que, devido às mudanças sociais, econômicas e de composição da Corte que se deu durante o trajeto da celeuma – interregno de aproximadamente vinte anos de debate -, o tribunal mudou seu posicionamento com relação ao critério de miserabilidade da LOAS. 2. A PROTEÇÃO DEFICIENTE À SEGURIDADE SOCIAL E A ATUAÇÃO DO STF. A Constituição Federal (CF), reconhecendo a centralidade da questão social no Brasil, cuidou de amparar a assistência social, de modo a regulamentá-la autonomamente dentro do complexo de direitos sociais disposto aos trabalhadores. A seguridade social tornou-se, assim, parte das garantias individuais, sendo constituída pela saúde, assistência e previdência social. Com essa inclinação, o constituinte acolheu, de forma inédita, direitos importantes que consolidaram um período de conquistas, mas que não redundaram necessariamente em efetivos ganhos à população. Na verdade, a partir de tal disposição, iniciou-se uma nova etapa na busca da efetivação dessas garantias, uma vez que a própria Constituição as condicionava à existência de legislação infraconstitucional. Foi o caso do Benefício de Prestação Continuada (BPC), estatuído pelo art. 203, v, da CF1, que, tendo seus efeitos condicionados à regulamentação legal, inaugurou um exaustivo processo de judicialização para a resolução de questões concretas, durante o silêncio do legislador. 2.1. REGULAMENTAÇÃO DO ART. 203, V, CF E CONTROVÉRSIAS ACERCA DO CRITÉRIO DE POBREZA.

O BPC foi criado pela CF de 1988 em substituição a outro benefício, o RMV - Renda Mensal Vitalícia -, destinado à idosos e deficientes, mas que necessitava da comprovação do pagamento de, no mínimo, doze contribuições ao INSS. Entretanto, com a instituição do BPC, afastou-se a dependência de contribuições

1  Art. 203, v, CF, in verbis: A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos: v- a garantia de um salário mínimo de benefício à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei.

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anteriores, garantindo assim o benefício de um salário mínimo mensal aos idosos e pessoas com deficiência, incapazes de prover seu próprio sustento ou de tê-lo provido por seus familiares. O constituinte, preocupado com a mora da regulamentação legal, por meio do art. 59, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), impôs ao Executivo a incumbência de, no prazo de seis meses, após a promulgação da CF, enviar ao Congresso Nacional os projetos referentes à organização da seguridade social e seus planos de custeio. Assim, uma vez aprovados, estes projetos teriam de ser implementados de modo progressivo nos dezoito meses subsequentes2. Entretanto, apesar disso, até 1991, apenas a Lei Orgânica da Saúde havia sido promulgada, sendo vetados os demais projetos relativos à assistência e previdência social. A Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS - Lei nº 8.742), por sua vez, foi publicada apenas em dezembro de 1993, ou seja, passados mais de cinco anos da promulgação da CF. Em sua tese de doutoramento, Silva (2011, p. 24), nos lembra que “em razão da mora do Congresso, o Poder Judiciário foi acionado por meio de vários mandados de injunção e ingressou como um ator importante, capaz de garantir aos futuros beneficiários um direito social assegurado constitucionalmente”. Um dos primeiros acenos para esse quadro de protagonismo judicial do Supremo Tribunal Federal (STF) evidenciou-se, quando, em novembro de 1993, foi impetrado junto ao Tribunal o Mandado de Injunção (MI) nº 448/RS. Nele se discutia a questão da concessão do BPC aos impetrantes, pessoas com deficiência, que alegavam não terem condições de prover seu próprio sustento ou de tê-lo provido por suas famílias, sendo incapazes para “o desempenho de atividades dentro do padrão considerado ‘normal’ para o ser humano”, conforme consta no relatório do Ministro Marco Aurélio3. Em setembro de 1994, o Tribunal, seguindo o voto do relator, deferiu, em parte, o pedido do MI no sentido de reconhecer a mora do legislativo, de modo a dar ciência ao Congresso Nacional da necessidade de regulamentação do dispositivo constitucional, como mostrado na ementa que segue: MANDADO DE INJUNÇÃO. EXCLUSÃO DO INSS DA RELAÇÃO PROCESSUAL. FALTA DE REGULAMENTAÇÃO DO INCISO V DO ARTIGO 203 DA CONSTITUIÇÃO. MORA DO CONGRESSO NACIONAL. Deferimento, em parte, do mandado de injunção para reconhecer a mora do Congresso Nacional, dando-se a este ciência para que seja regulamentado o inciso v do artigo 203 da Constituição Federal.

Passado este primeiro momento, no entanto, com a publicação da LOAS (Lei nº 8.742/93), teve início uma longa discussão em torno do critério de pobreza por ela estabelecido, em seu art. 20, §3º. Tal dispositivo pontua que, in verbis: Art. 20. O benefício de prestação continuada é a garantia de um salário mínimo mensal à pessoa com deficiência e ao idoso com 65 (sessenta e cinco) anos ou mais que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção nem de tê-la provida por sua família. § 3º. Considera-se incapaz de prover a manutenção da pessoa com deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja inferior a ¼ (um quarto) do salário mínimo. (Grifos do autor)

Ocorre que, diante de tal proposição legal, foram apontadas inúmeras críticas, questionando-se inclusive a sua constitucionalidade, por se tratar de critério de pobreza demasiadamente rígido, inviável à aferição da garantia disposta no art. 203, v, da CF. Desse modo, ao deixar desagasalhadas pessoas em premente 2  ADCT, art. 59, Parágrafo Único.. 3  O Acórdão do MI nº 448/RS está disponível em integro teor em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=81821

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condição de miserabilidade, o judiciário foi excessivamente provocado a se posicionar quando da aplicação do dispositivo alhures mencionado. 2.2. ANÁLISE DE CASO E POSICIONAMENTO INICIAL DA CORTE: ADIN 1.232/DF.

A discussão acerca do critério de miserabilidade (§3º, art. 20) estatuído pela Lei nº 8.742/93 (LOAS), se fez presente de forma intensa no cumprimento do controle de constitucionalidade difuso, vez que os Juizados Especiais Federais receberam incontáveis ações, buscando a concessão do benefício, mesmo por postulantes que se enquadravam acima critério estipulado (renda familiar per capita inferior à ¼ do salário mínimo). Nesse contexto, em 1995, insuflado pelo cenário de intenso combate ao dispositivo utilizado para a concessão do BPC e acolhendo representação do Ministério Público Federal do Estado de São Paulo, o Procurador Geral da República ajuizou a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.232/DF junto à Corte Suprema, tendo por objeto o §3º, do art. 20, da Lei 8.742/93. Nessa perspectiva, o Ministro Gilmar Mendes, em seu voto sobre a Reclamação 4.374/PE, de 2007 posterior, mas que trata do mesmo tema -, ao mencionar o histórico da concessão do benefício em comento, fez interessantes considerações acerca da atuação dos juízes no cenário sobre o qual se instaurou a ADIn 1.232/DF, reconhecendo que: O exame dos diversos casos revela um comportamento judicial peculiar, porém muito comum. A análise histórica dos modos de raciocínio judiciário demonstra que os juízes, quando se deparam com uma situação de incompatibilidade entre o que prescreve a lei e o que se lhes apresenta como a solução mais justa para o caso, não tergiversam na procura das melhores técnicas hermenêuticas para reconstruir os sentidos possíveis do texto legal e viabilizar a adoção da justa solução4.

Voltaremos mais a frente a tratar sobre esta Reclamação e o posicionamento final do Supremo, mas, de antemão, convém ponderar sobre as considerações do Ministro, que, ao analisar a atuação dos juízes, compreende que a busca de técnicas hermenêuticas se dispõe ao particular reconhecimento do justo, o qual, porém, é construído a partir de um contexto mais amplo. Nesse diapasão, é cabível apontar para o amadurecimento de um posicionamento ativista por parte da nossa Corte Suprema, mesmo porque a sua atuação passa também a “responder aos mais variados fatores institucionais, políticos, sociais e jurídico-culturais presentes em contextos particulares e momentos históricos distintos.” (Campos, 2014, p. 7). De todo modo, voltando à discussão envolvida pela ADIn 1.232, faz-se mister pontuar os argumentos centrais assinalados pelo Procurador Geral, quando situa o critério de pobreza empreendido pelo legislador no §3º, do art. 20, da LOAS. Na verdade, a preocupação maior do requerente foi a de provocar o Supremo quanto à interpretação do critério de pobreza combatido, já que ainda não havia entendimento pacífico quanto à aplicação deste como único critério ou se caberiam outras formas de comprovação da pobreza. E, seguindo a linha de argumentação ventilada na peça vestibular do requerente, sustentou-se que configuraria patente inconstitucionalidade a utilização desse como único critério, haja vista a abrangência do escopo constitucional ao dispor a concessão de tal benefício a quem dele necessitasse. Não obstante o voto do relator, Min. Ilmar Galvão, que acenou pela procedência da ADIn – compreendendo outros meios de comprovação da pobreza para além do referido dispositivo legal –, em agosto de 1998, o Tribunal decidiu pela improcedência da ação, seguindo o voto do Min. Nelson Jobim, o qual entendeu que caberia “à lei dispor sobre a forma de comprovação [da pobreza],” acrescentando que “se a legislação resolver 4  O Acórdão da Reclamação 4374/PE está disponível em integro teor em:

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criar outros mecanismos de comprovação, é problema da lei”5. Tal inclinação demonstrou, no entanto, que a compreensão da Corte seguiu o intento de estabelecer o campo da política como necessário para a fixação da escolha do critério para a concessão do benefício. Com essa decisão, a Corte acreditava ter pacificado o entendimento em torno do critério de miserabilidade utilizado para a concessão do BPC. Contudo, a decisão não teve o efeito esperado, haja vista o próprio voto do Ministro Sepulveda Pertence que já apontava a possibilidade de inconstitucionalidade por omissão de forma parcial. Nessa perspectiva, diante de perenes controvérsias, foram empreendidas inúmeras reclamações e recursos extraordinários por parte INSS, junto ao STF, em virtude do crescente número de concessões do benefício. Os juízes de primeiro grau, por sua vez, procurando um caminho para garantir o direito dos cidadãos em situação de miserabilidade, passaram a adotar a interpretação de que tal critério não seria o único, de modo que poderiam ser compreendidas outras formas de comprovação da pobreza, abrangendo, assim, pessoas com renda familiar mensal per capita inferior à ½ (metade) do salário mínimo. As Reclamações nº 2.303/RS e 2.323/PR foram emblemáticas, nesse sentido, pois levaram a Corte a retomar essa questão. Em ambas as reclamações ajuizadas pelo INSS, o que se discutia era a concessão do benefício a postulantes que aferiam renda familiar mensal per capita inferior a ½ (metade) do salário mínimo, mas que apresentavam evidente condição de miserabilidade. Todavia, a Corte Suprema, ratificando entendimento anterior, reconheceu o critério da renda familiar per capita de até ¼ (um quarto) do salário mínimo como único a ser utilizado. Destarte, tomando como base o princípio constitucional do prévio custeio6, juntamente com o binômio necessidade do beneficiário e capacidade de arcar com os encargos, o Tribunal inviabilizou a concessão do benefício para àqueles que aferissem renda mensal superior à fixada pela norma legal, em virtude da limitação de recursos do Estado. 2.3 MUDANÇA DE PARADIGMA: ANÁLISE DA RECLAMAÇÃO 3805/SP E 4374/PE.

Embora o Supremo Tribunal Federal tenha sedimentado entendimento sobre a constitucionalidade e a taxatividade do critério de miserabilidade estabelecido pela LOAS, insistentemente, as instâncias ordinárias permaneceram concedendo o BPC, mesmo àqueles que aferiam renda familiar mensal per capita superior a ¼ (um quarto) do salario mínimo. Estabelecendo uma nova alternativa ao pleito dos que buscavam a garantia constitucional, os juízes de primeiro grau fixaram a interpretação de que o próprio legislador havia reinterpretado o critério de renda, já que teria editado normas supervenientes que o levava ao patamar de ½ salário mínimo. Com isso, legislações posteriores, ao estabelecer critérios mais flexíveis para a concessão de outros benefícios – a partir da Lei 9.533/97, que autorizou o Executivo a conceder recursos aos Municípios com programas socioeducativos, da Lei 10.219/01, que criou o Bolsa Escola, da Lei 10.836/04, que instituiu o Bolsa Família, entre outras –, acabaram viabilizando a concessão do BPC para além dos parâmetros estatuídos pela LOAS. Diante disso, verificando-se que as decisões do STF não deram fim às controvérsias, e tendo em vista a permanência das concessões e as consequentes reclamações do INSS, alguns Ministros – Ayres Britto, Ricardo Lewandowski e Celso de Mello –, mesmo em sede de decisão monocrática, revisando seus posicionamentos, negaram seguimento às reclamações do INSS. Nessa perspectiva, apontaram as reclamações como via processual imprópria para o reexame do conjunto fático-probatório em que se basearam as instâncias ordinárias para conceder o BPC.

5  O Acórdão da ADIn 1.232/DF está disponível em integro teor em: . 6  Art. 195, §5º, da CF, in verbis: Nenhum benefício ou serviço da seguridade social poderá ser criado, majorado ou estendido sem a correspondente fonte de custeio.

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O divisor de águas para essa questão foi, no entanto, a Reclamação 3.805/SP, que redirecionou o entendimento do Tribunal no sentido de apontar para a normatividade e a importância dos princípios constitucionais, sobretudo, no que se refere à dignidade da pessoa humana, juntamente com o direito à saúde e os direitos fundamentais, de uma forma geral. Inclusive, o próprio Ministro Gilmar Mendes, em seu voto sobre a Reclamação nº 4374/PE - que ratificou o pronunciamento daquela -, quando se refere à mudança de posicionamento empreendida a partir da primeira reclamação, reconhece que: O exame atento de todo esse contexto me levou a muito refletir sobre o tema, o que culminou em decisão proferida nesta Reclamação, em 1º de fevereiro de 2007, na qual revi muitos posicionamentos antes adotados e passei a indeferir as pretensões cautelares do INSS, mantendo as decisões de primeira instância que concediam o benefício assistencial em situações de patente miserabilidade social7.

3. INCONSTITUCIONALIDADE PARCIAL, SEM PRONÚNCIA DE NULIDADE DO ART. 20, §3º, DA LEI 8.742/93 (LOAS). A revisão da ADIn nº 1.232/DF passou, naturalmente, pelo curso das reclamações, que, de modo geral, se propõem a reexaminar as decisões do STF, as quais servirão de parâmetro para o próprio ajuizamento das reclamações. Nessa perspectiva, o processo interpretativo que confronta o ato impugnado (objeto da reclamação), com a decisão da Corte tida como violada, sugere de pronto uma nova configuração do conteúdo e abrangência dos parâmetros da decisão. No caso ADIn em comento, a inconstitucionalidade por omissão de que foi alvo o §3º, do art. 20, da LOAS, estruturou-se a partir de um estado de proteção deficiente do direito fundamental à assistência social. Esse vazio legislativo impulsionou uma reação dos potenciais beneficiários que, em patente situação de miserabilidade, buscaram o judiciário para preencher essa lacuna e garantir o acesso a um direito fundamental reconhecido pela Constituição Federal. Com isso, tem-se, por parte do legislador, uma violação da proibição de proteção deficiente a um direito fundamental, que acaba gerando um estado de omissão inconstitucional. Nesse sentido, percebe-se que a inconstitucionalidade por omissão advém não necessariamente da falta de norma, mas precipuamente de uma atuação insuficiente do legislativo, que não atingiu devidamente o comando constitucional. O princípio da proteção deficiente é um desdobramento do princípio da proporcionalidade, que pode se configurar tanto sobre a inconstitucionalidade derivada de um ato excessivo do Estado, como de sua proteção ineficiente a um direito fundamental, o que foi melhor esclarecido por Loss (2014) quando fala que: O princípio da proibição da não suficiência assim como o da proibição do excesso são faces da proporcionalidade. Diferenciam-se em razão da função do direito fundamental tutelado: se tem função defensiva (negativa), caberia aplicar a proibição de excesso, se tem função protetiva (positiva) ser-lhe-ia aplicável a vedação à proteção deficiente. Em outras palavras, ele surge de um dever de proteção imputado ao Estado (Legislativo e Judiciário) e diminui, consequentemente, a discricionariedade do legislador.

Isto posto, verifica-se que a alteração do entendimento sobre a constitucionalidade de determinado dispositivo legal pode vir a se configurar tanto por meio de eventual modificação nas relações fáticas, quanto através de significativas mudanças de concepções jurídicas. No tocante ao dispositivo legal supracitado, percebe-se que houve um contínuo processo de inconstitucionalização, por força de consideráveis alterações não apenas no plano fático, de ordem socioeconômica, mas também no plano jurídico, através de sucessivas 7  BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Reclamação nº 4.374/PE – Pernambuco. Relator: Ministro Gilmar Mendes. Pesquisa de Jurisprudência, Acórdãos, 18 abril 2013. p. 11. Relatório. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=4439489. Acesso em:10/12/2015.

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mudanças e redefinições do critério de miserabilidade, com a edição normas supervenientes, por parte do legislativo. Demais disso, considerando os possíveis prejuízos do afastamento de aplicação da norma, a Corte Suprema optou pela inconstitucionalidade parcial, sem pronúncia de nulidade do dispositivo para evitar danos ainda maiores aos que já se enquadravam no critério de renda estabelecido pela LOAS. Entretanto, com tal disposição, permanecendo inalterada a norma, os postulantes que não se adequavam continuaram tendo de provocar o judiciário para terem reconhecido o direito fundamental à concessão do benefício nos casos de recusa do INSS. Desse modo, embora não tendo tido o alcance esperado, por ainda persistir a necessidade de análise do caso concreto, o processo de inconstitucionalização sofrido pelo §3º, do art.20, da LOAS foi resultado de uma árdua construção hermenêutica que perpassou pelos mais diversos aspectos, considerando fatores de ordem política, econômica, social, institucional e jurídico-cultural. CONCLUSÃO A atuação do Supremo Tribunal Federal, em particular, no que concerne à questão da concessão do Benefício de Prestação Continuada (BPC), regulamentado pela Lei nº 8.742/93 (LOAS), pode ser utilizada de modo bastante elucidativo para demonstrar o caminho percorrido pela Corte para a construção de decisões ativistas, no debate sobre o protagonismo judicial do STF. Para tanto, deve-se mencionar o preponderante papel da Constituição de 1988 na consolidação de um ambiente político-institucional ensejador da atuação de um judiciário independente. Esse foi, na verdade, o marco que concedeu o espaço para a conformação de relevantes transformações sociais, políticas, econômicas e institucionais. O Judiciário passou a dialogar de forma mais aberta com os demais poderes, integrando importante função na efetivação de políticas públicas e na sedimentação do regime democrático no país. Nesse sentido, fazendo um paralelo com o tema e as decisões tratadas no presente artigo, verifica-se que o período da Ditadura Militar teve visíveis reflexos sobre ambiente de atuação judicial, mesmo no pós-Constituição de 88, sobretudo, no campo constitucional, haja vista a continuidade de alguns Ministros que remanesceram daquele período. Num primeiro momento, demonstrando certa feição ao positivismo jurídico e abstenção sobre questões de cunho socioeconômico – ADIn nº 1.232/DF e MI nº 448/RS –, o STF se inclinou ao aspecto majoritário que envolvia o tema do BPC, de modo a conferir a última palavra ao legislativo para que este se posicionasse acerca das controvérsias que envolviam o tema, no que Campos (2013, p. 6) chamaria de “ortodoxias de autorrestrição judicial”. No entanto, na medida em que a democracia brasileira se consolidava e as instituições cumpriam o seus papeis, nossa Corte Suprema foi adquirindo maior autonomia, sendo provocada a se posicionar diante de temas cada vez mais sensíveis à questões de relevo moral e social, que eram deixadas de lado pelo Poder Legislativo. Demais disso, há que se pontuar também o amplo catálogo de direitos fundamentais, que, somado à força normativa e axiológica da própria Constituição, estabeleceu um importante espaço para defesa dos interesses sociais e das garantias constitucionais. A partir daí, e com o fortalecimento da normatividade dos princípios, o STF passou a atuar sobre os vazios legislativos, como no caso do BPC, de modo a considerar a centralidade dos direitos fundamentais. As decisões sobre as reclamações nº 3.805/SP e nº 4374/PE, nesse sentido, demonstraram um importante amadurecimento da Corte para a composição de técnicas intermediárias de decisão, compreendendo o processo de inconstitucionalização como resultado natural de mudanças no plano fático e jurídico. Assim, temos que o ativismo judicial protagonizado pelo Supremo Tribunal Federal materializou-se através de uma pluralidade de fatores, que levaram em consideração os mais diversos aspectos. No âmbito so-

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cial, configurou-se com o pleito dos postulantes em condições de miserabilidade; no plano político, a partir de sucessivas edições normativas; no institucional, por meio das condições de possibilidade para uma atuação judicial independente; e no campo jurídico-cultural, apreendeu a normatividade dos princípios, juntamente com a centralidade dos direitos fundamentais. Diante disso, compreende-se que a constituição de um posicionamento ativista por parte do STF se deu pela construção de uma perspectiva plural e multidimensional. REFERÊNCIAS BARROSO, Luis Roberto. Judicialização, Ativismo judicial e Legitimidade democrática. Disponível em: . Último acesso: em 24/10/2015. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.232/DF – Distrito Federal. Relator: Ministro Ilmar Galvão. Pesquisa de Jurisprudência, Acórdãos, 27 agosto 1998. Disponível em: . Acesso: 11/12/2015. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Mandado de Injunção nº 448/RS – Rio Grande do Sul. Relator: Ministro Marco Aurélio. Pesquisa de Jurisprudência. Acórdãos, 05 setembro 1994. Disponível em: . Acesso em: 08/12/2015. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Reclamação nº 4.374/PE – Pernambuco. Relator: Ministro Gilmar Mendes. Pesquisa de Jurisprudência, Acórdãos, 18 abril 2013. p. 05. Relatório. Disponível em: . Acesso em:10/12/2015. CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo. Dimensões do ativismo judicial do STF. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense. 2014. ________. Explicando o avanço do ativismo judicial do Supremo Tribunal Federal. RIDB, ano 2, nº 8, 2013. Disponível em: < http://cidp.pt/publicacoes/revistas/ridb/2013/08/2013_08_07881_07961.pdf>. Acesso em: 28/09/2015. LOSS, Marianna Martini Motta. Os fundamentos jurídico-constitucionais do direito à assistência social na análise da jurisprudência do STF. Conteúdo Jurídico, Brasília-DF: 11 dez. 2014. Disponível em: . Acesso em: 12/12/2015. SILVA, Janaína Lima Penalva. Igualdade Sem Mínimos: Direitos sociais, dignidade e assistência social em um estado democrático de direito - um estudo de caso sobre o Benefício de Prestação Continuada no Supremo Tribunal Federal. Brasília, DF. 2011. P. 24. Disponível em: http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/9768/1/2011_JanainaLimaPenalvadaSilva.pdf>. Acesso em: 05/10/2015. SILVA, Valdeonne Dias da. Ativismo judicial e judicialização da política: meios de concretização dos direitos fundamentais . Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 19, n. 4002, 16 jun. 2014. Disponível em: . Acesso em: 12/12/2015.

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O PROTAGONISMO JUDICIAL E A REFORMA POLÍTICA: ANÁLISE DO CASO SOBRE O FINANCIAMENTO PRIVADO DE CAMPANHAS ELEITORAIS

Glauco Salomão Leite Doutor em Direito Público pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Mestre em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Professor de Direito Constitucional da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP); da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e da Faculdade Damas de Instrução Cristã (FADIC). Membro do grupo Recife de Estudos Constitucionais – REC (CNPq). Mirella Luiza Monteiro Coimbra Graduanda do Curso de Direito da Universidade Católica de Pernambuco. Integrante do Programa de Iniciação Científica (PIBIC/UNICAP). Pablo Diego Veras Medeiros Graduando do Curso de Direito da Universidade Católica de Pernambuco. Integrante do Programa de Iniciação Científica (PIBIC/UNICAP).

SUMÁRIO: Introdução; 1. Cortes como arena de disputa política; 2. A Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.650/DF; 3. Ativismo judicial nos votos vencedores; 3.1 Breve introdução; 3.2 Votos dos ministros; Conclusão; Refências.

INTRODUÇÃO A expressão “ativismo judicial” é caracterizada por sua vagueza e complexidade. Ora é utilizada em sentido pejorativo, o que é mais comum, ora apresenta um sentido progressista1. É dever, primeiramente, superar a problemática da indefinição conceitual, devido a seu sentido positivo quanto a um protagonismo judicial, tendo por fim a garantia dos fundamentais, especialmente das minorias, voltado para uma interpretação mais proativa da Constituição Federal. É indispensável perceber a prevalência do valor negativo quanto à dimensão ativista, haja vista que a crítica a tal prática relaciona-se com os limites da jurisdição constitucional, bem como com a ameaça do regime democrático e da distorção da concepção liberal clássica de separação dos poderes. Isso seria, justamente, uma defesa do uso pejorativo da locução, um eufemismo utilizado pelos que advogam protagonismo é sinônimo de excesso judicial em detrimento dos outros poderes. De toda sorte, o enfrentamento do tema ao pressupõe a expansão das Cortes em outras esferas, o que torna - por consequência - os integrantes do Poder Judiciário verdadeiros atores políticos. Por isso, é imperiosa a percepção de que o ativismo judicial difere do fenômeno da judicialização da política. Assim, a judicialização envolve uma transferência de poder para juízes e Tribunais, decorrente do próprio modelo constitucional adotado, e não de uma vontade política dos integrantes da magistratura. Já o ativismo judicial é uma “atitude, a escolha de um modo específico e proativo de interpretar a Constituição, expandindo o seu

1  Cf. KMIEC, Keenan D. The origin and current meanings of “judicial activism”. California Law Review, Berkeley, CA, v. 92, n. 5, oct., 2004, p. 1.441-1477.

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sentido e alcance” 2. Ele envolve uma atuação mais ampla e intensa do Poder Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, com maior interferência no campo de atuação dos demais poderes. Nesta perspectiva, para além de seu tradicional papel contramajoritário, tem-se destacado que o STF também apresenta um papel representativo e, até mesmo, iluminista. Segundo o Min. Roberto Barroso, “as cortes constitucionais em geral e o Supremo Tribunal Federal em particular, desempenham três papéis distintos. contramajoritário, representativo e iluminista.”3. O papel representativo, continua o autor, quando as Cortes atuam para “atender demandas sociais que não foram satisfeitas a tempo e a hora pelo Poder Legislativo, bem como para integrar (completar) a ordem jurídica em situação de omissões inconstitucionais do legislador.”4 Adotando essa linha de pensamento, o referido ministro citou, como exemplo, a decisão que proibiu a nomeação dos parentes em cargos públicos. Apesar das cobranças sociais, verificou-se que houve uma omissão legislativa e, por consequência, o Tribunal extraiu a proibição do nepotismo dos princípios constitucionais de moralidade e de impessoalidade administrativas. Ao referir-se ao papel iluminista, o Min Roberto Barroso afirmou que os juízes: Devem promover, em nome de valores racionais, certos avanços civilizatórios e empurrar a história. São decisões que não são propriamente contramajoritárias, por não envolver a invalidação de uma lei específica; nem tampouco são representativas, por não expressarem necessariamente o sentimento da maioria da população.5

Exemplos de atuação iluminista das Cortes podem seriam a decisão da Suprema Corte americana que aboliu a segregação racial nas escolas públicas; a da Corte Constitucional da África do Sul, que baniu a pena de morte; e a do STF no caso das uniões homoafetivas. 1. CORTES COMO ARENA DE DISPUTA POLÍTICA. Em julho de 2013, foi criado um grupo de trabalho destinado a estudar e apresentar propostas referentes à Reforma Politica, sob a coordenação do deputado Cândido Vacarezza. Em treze reuniões, foram debatidos os temas do sistema eleitoral, financiamento partidário e de campanhas eleitorais, unificação das eleições, tempo de mandato e fim da reeleição, voto obrigatório ou facultativo, cláusula de desempenho partidário, fidelidade partidária, abuso de poder político e econômico, filiação partidária e criação de partidos, representatividade das unidades da Federação na Câmara dos Deputados e limitação dos gastos com propaganda de rádio e televisão. A partir da CF/88, foi dado destaque à questão do financiamento de campanhas eleitorais. O seu art. 17, inciso II, fixa a proibição de os partidos políticos receberem recursos financeiros de entidade ou governo estrangeiro. Já o §3º, do referido artigo, afirma que os partidos políticos têm direito aos recursos do fundo partidário e acesso gratuito a rádio e televisão, gerando a constitucionalização de modalidades de financiamento público direto e indireto. Ao abordar do financiamento, Daniel Zovatto destaca que a maioria dos países da América Latina possuem o financiamento misto de campanhas eleitorais. Um exemplo de financiamento estritamente privado é a Venezuela; nenhum país na referida região possui o financiamento apenas público. Em alguns países, a distribuição de fundos públicos partidários ocorre proporcionalmente e em outros países há a distribuição de 2  BARROSO, Luis Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda; FRAGALE FILHO, Roberto; LOBÃO, Ronaldo (Orgs.). Constituição & ativismo judicial: limites e possibilidades da norma constitucional e da decisão judicial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 279. 3  BARROSO, Luís Roberto Barroso, 2015. Judicialização não se confunde com ativismo judicial Disponível em Acesso em 07/12/2015. 4  Luís Roberto Barroso, 2015. Judicialização não se confunde com ativismo judicial Disponível em Acesso em 07/12/2015. 5  Luís Roberto Barroso, 2015. Judicialização não se confunde com ativismo judicial Disponível em Acesso em 07/12/2015.

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fundos de maneira igualitária entre todos os partidos. Para o autor6, não há sistema único para todos os países da América Latina, haja vista que cada país necessita aplicar seu próprio sistema conforme sua cultura. No Brasil, o modelo até então prevalecente vinha sendo financiamento de campanhas eleitorais em parte por recursos públicos. O financiamento privado de campanhas eleitorais foi discutido na ADI nº 4.650/DF, em que se questionou a participação de pessoas jurídicas nessa relação de construção do ambiente político. A apreciação da ADI 4.650/DF configura inegável judicialização da política. Caso esse que dos onze ministros do STF, oito concordaram com o autor da ação e declararam a inconstitucionalidade dos dispositivos que permitiam a participação de pessoas jurídicas no financiamento de campanhas eleitorais. Daí surge a controvérsia, qual seja, se a Corte teria a legitimidade de se posicionar sobre a temática, haja vista que o locus ideal de discussões sobre questões preponderantemente políticas seria o Poder Legislativo. É bastante significativo compreender que essa decisão da Suprema Corte, com efeitos erga omnes, se configura como resultado de um quadro crescente de judicialização da política, o que suscita dúvidas sobre sua legitimidade democrática. Um argumento utilizado para afrontar essa legitimidade foi fundamentado na teoria clássica da separação dos poderes. Assim, o STF estaria invadindo a esfera deliberativa de outro poder, sob o argumento de agir em defesa do texto constitucional. 2. A AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE Nº 4.650/DF. A ADI nº 4.650/DF foi proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, com fundamento no art. 103, VII, e apontou a inconstitucionalidade de vários dispositivos da Lei das Eleições (Lei 9.504/1997), tais como arts. 23, 24 e 81, e da Lei dos Partidos Políticos (Lei 9.096/1995), nos seus arts. 31, 38, 39, os quais tratam de contribuições de pessoas jurídicas e pessoas físicas para campanhas eleitorais. A fundamentação construída pela OAB se subdividiu em quatro argumentos: 1. que eleições e poder econômico formam uma mistura tóxica à democracia; 2. que os dispositivos ferem o princípio da igualdade; 3. que violam o princípio democrático, 4. E atingem o princípio republicano. De acordo com o primeiro argumento, o sucesso de uma campanha política está necessariamente vinculado à capacidade de o candidato ventilar seu nome e imagem, o máximo possível, em meio ao eleitorado. Para isso, são necessárias a aquisição de espaços nas mais variadas mídias e veículos de publicidade - outdoors, panfletagem, carros de som, blogs na internet e redes sociais -, aluguel de imóveis e veículos, contratação de cabos eleitorais e marqueteiros, o que demanda grandes somas de dinheiro. Essa vinculação entre capital e processo eleitoral engendra um resultado de cartas marcadas, pois eternizam candidatos que ou possuem grande capacidade financeira pessoal ou têm acesso a canais de financiamentos e a contatos - empresários e empresas - que os candidatos mais pobres não têm, para auferir os recursos necessários à campanha. Ainda nesse ponto, a petição do Conselho Federal da OAB traz o argumento de que essas vinculações econômicas entre candidatos - já mandatários ou futuros - e o empresariado em geral vai além de crenças políticas desapegadas de resultados, desses últimos em relação aos primeiros. Como mostra o seguinte trecho da petição inicial: “Além disso, dita infiltração cria perniciosas vinculações entre os doadores de campanha e os políticos, que acabam sendo fonte de favorecimentos e de corrupção após a eleição”7 A peça ainda faz referência à palavras proferidas pelo Ministro Luís Roberto Barroso em Seminário sobre a Reforma Política, que afirmou:

6  ZOVATTO, Daniel. Financiamento dos partidos e campanhas eleitorais na América Latina: uma análise comparada Disponível em Acesso em 16/11/2015. 7  Petição Inicial da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.650 Disponível em: . Acesso em 01/12/2015.

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a conjugação de campanhas milionárias e financiamento privado tem produzido resultados desastrosos para a autenticidade do processo eleitoral e para a transparência das relações entre o Poder Público e os agentes econômicos8

Salienta o autor da ADI que essas vinculações sombrias conservam interesses entre financiadores de campanhas, partidos políticos e candidatos a cargos eletivos, tendendo a se tornar uma fonte potencial de corrupção nas instituições públicas. Os investidores visam gozar de preferências e privilégios em contratos com os entes públicos, enquanto os dois últimos, além dos cargos em si considerados e o poder inerente ao exercício das funções, miram o dinheiro da corrupção. Essa simbiose traz resultados nefastos ao modo como a coisa pública é gerida. Com isso, os interesses particulares são priorizados em detrimento do interesse público. Na referida ADI, pede-se, portanto, que seja declarada a inconstitucionalidade da capacidade de pessoas jurídicas participarem do jogo democrático, pois injeta interesses não pessoais, mas puramente monetários nas campanhas eleitorais. No segundo tópico argumentativo, da violação da igualdade, o Conselho Federal da OAB defendeu que o princípio da igualdade, uma das do constitucionalismo democrático, não deve ser admitido como existente um dado a priori. Na verdade, deve-se partir da premissa de que de nos encontramos em um ambiente de grande desigualdade e, somente a partir disso, busca-se extinguir essas diferenças com atitudes diferentes para pessoas social, política e economicamente diferentes. Nesse diapasão, refere que o regime de financiamento de campanhas eleitorais agride violentamente esse princípio, por reforçar diferenças entre ricos e pobres, fomentando privilégios. Isso se dá por permitir que empresários, e grupos de empresários, deem o tom das eleições quando agem através de suas empresas, com doações vultosas que o cidadão não possui capacidade de equiparar. Dessa forma, os mais abastados financeiramente perpetuam-se no poder, convertendo quase que automaticamente poder econômico em poder político. Esses movimentos excluem da política os candidatos mais pobres, o que seguramente torna a política um ambiente reservado aos detentores do capital financeiro. Mais ainda, o interesse público se transmuta em interesse dos particulares que são controladores das mesmas empresas que financiaram as campanhas. A res publica torna-se, nesse caso, essencialmente particular. Como expressa o seguinte trecho da ADI 4.650/DF: “A elite econômica se mantém como tal não pela via da concorrência legítima no mercado econômico, mas através da conversão dos governos em instrumento de realização de seus interesses.”9

Além disso, o Conselho Federal da OAB defendeu que as pessoas jurídicas e físicas não são iguais diante da política, pois as primeiras são entidades artificiais criadas pelo Direito com o fim de facilitar o tráfego jurídico e social, não devendo possuir a faculdade de competir com a vontade das pessoas naturais. A legislação vergastada transforma esse desequilíbrio econômico fático entre grandes empresas e pessoas físicas em lei. Assim, para a entidade, o direito de influir no processo político-eleitoral deve ser reservado àquele que possui direitos políticos, ou seja, a pessoa física apenas, como delineia o trecho: A doação para campanhas ou partidos se insere no sistema integrado pelos direitos políticos, que são restritos ao cidadão: não se trata de direito individual, passível de ser estendido também às pessoas jurídicas.10

Dessa maneira, defende que o principio constitucional da igualdade é diretamente ofendido pela legislação atacada, e em múltiplas dimensões. 8  Luis Roberto Barroso. A Reforma Política: Uma Proposta de Sistema de Governo, Eleitoral e Partidário para o Brasil. In: http:// www.luisrobertobarroso.com.br, Acesso em 06.07.2011. 9  Petição Inicial da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.650 Disponível em: . Acesso em 01/12/2015. 10  Petição Inicial da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.650 Disponível em: . Acesso em 01/12/2015.

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O terceiro argumento foi o de que o financiamento de campanhas eleitorais por pessoas jurídicas viola o princípio democrático. A fundamentação adentrou o campo de que o princípio democrático é considerado uma espinha dorsal da Carta Magna de 1988 e pressupõe a igualdade entre todos os eleitores, pelo fato de cada voto carregar o mesmo valor - one man, one vote -. Pontuou-se que o princípio democrático delineia o princípio majoritário “segundo o qual, diante de desacordos políticos, deve prevalecer a vontade da maioria, desde que não implique em ofensa aos direitos da minoria.”11 Continuou o autor da ação sustentando que se não há igualdade fática no processo eleitoral, a democracia se apequena face às elites, tornando-se uma aristocracia. Quando não, em situação semelhante, se converte em uma “plutocracia”, quando a esfera política é subjugada à esfera econômica. O que deve ser construído são limites à participação no processo eleitoral, de forma a garantir o justo exercício da cidadania. Esses limites devem ser criados de forma que a esfera política esteja apartada do dinheiro e dos interesses econômicos das empresas que não devem gozar do direito de intervir no processo de construção da democracia do país. Em resumo, o sistema brasileiro de financiamento de campanhas, em franco descompasso em relação aos valores igualitários da Carta da República, infunde elementos fortemente plutocráticos na nossa jovem democracia, ao converter o dinheiro no ‘grande eleitor’12 13

Por fim, como quarto argumento, o Conselho Federal da OAB trouxe à luz a violação ao princípio republicano. Esse princípio está presente nos artigos 1º, ‘caput’, e 3º, da Carta Magna de 1988. O referido princípio, segundo o autor, não se encerra simplesmente na indicação da forma de governo - temporário e representativo, antagônico à monarquia -, mas torna imperiosa a observância de que aqueles que gerem a coisa pública, não o fazem em nome próprio ou, muito menos, em razão de interesses pessoais. Na verdade, os mandatários o fazem em nome de toda a coletividade, pois a esses últimos pertence a res publica. Nesse sentido, buscou demonstrar que tal princípio não se compatibiliza com a legislação que disciplina o procedimento eleitoral. Embora, em número, as doações particulares são maiores, o que se verifica ao passar das eleições é que a representatividade no valor total arrecadado é quase em sua totalidade dominado por doações realizadas por poucas empresas, com grande capacidade financeira. Outrossim, verificou-se que a simples disposição legal presente no art. 31, VII, da Lei. 9.096/95, proibindo a doação por empresas concessionárias de serviços públicos, possui pouca efetividade em razão da grande promiscuidade existente entre os atores políticos, devedores de dinheiro, e os atores econômicos, credores de ‘favores’. Apesar disso, a petição cuida em deixar claro que não toma como premissa a hipótese de que os mandatários agem sempre em desacordo com a lei, mas, por outro lado, acredita que a atual legislação deixa uma lacuna frutífera a esse tipo de comportamento antirrepublicano. Dessa forma, deixa claro que a interpretação dos princípios constitucionais não se exaure com a leitura dos enunciados presentes na Carta Maior. Envolve necessariamente uma análise do mundo fático de que trata o texto em questão, como assevera no seguimento: Na hipótese presente, o campo empírico fornece indicações eloquentes de que o modelo de financiamento de campanhas adotado pelo legislador brasileiro vem comprometendo a eficácia social do Princípio Republicano, exigindo providências no âmbito da jurisdição constitucional, daí a inconstitucio-

11  Petição Inicial da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.650 Disponível em: . Acesso em 01/12/2015. 12  Cláudio Weber Abramo, Um mapa do financiamento político nas eleições municipais brasileiras de 2004, apud Petição Inicial da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.650 Disponível em: . Acesso em 01/12/2015 13  Petição Inicial da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.650 Disponível em: . Acesso em 01/12/2015.

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nalidade das normas ora impugnadas em relação aos artigos 1º, ‘caput’ e 3º, da Carta Maior.”14

3. ATIVISMO JUDICIAL NOS VOTOS VENCEDORES. 3.1 BREVE INTRODUÇÃO.

O STF em sessão do dia 17 de setembro de 2015, pôs um ponto final ao julgamento da ADI 4.650/DF. Oito membros da Corte deliberaram no sentido de que o financiamento privado de campanhas por empresas é inconstitucional, declarando, por conseguinte, a invalidade das normas que autorizavam a participação pessoas jurídicas nesse patrocínio. De agora em diante, o intuito do presente trabalho é identificar o protagonismo no voto do relator e expor pontos congruentes nos votos daqueles que acompanharam. 3.2 VOTOS DOS MINISTROS.

Ministro Luiz Fux No voto do relator da ação, encontramos diversos pontos que podem ser entendidos como ativistas, alguns deles - inclusive - estão claramente identificados como ativistas, pelo citado magistrado. Logo no começo do voto, Fux explica que a partir da promulgação da Constituição de 1988, o país experimenta seu momento de maior estabilidade institucional, com redução das desigualdades sociais e estabilização econômica com o fim da hiperinflação, dentre outras conquistas relevantes. Porém, ainda segundo o relator, tais avanços não extirparam algumas patologias crônicas ainda entranhadas na democracia brasileira. Em suas palavras, uma correção desses “desvios e disfunções” demanda por uma reforma política urgente. Reconhece que há um descolamento entre a classe política e a sociedade civil e destaca: Existe verdadeiramente uma crise de representatividade no país, colocando em lados opostos os cidadãos, que a cada dia se tornam mais céticos em relação aos agentes eleitos, e os membros da classe política, que não raras vezes privilegiam interesses particulares em detrimento do interesse público.15

O relator traz alguns dados estatísticos para corroborar seu voto, mostrando que houve um crescimento dos gastos com campanhas eleitorais entre 2002 e 2012 na ordem de 471%. Tratando em valores, em 2002 foram gastos com campanhas políticas aproximadamente R$798 milhões de reais, enquanto em 2012, foram gastos R$4,5 bilhões. Para que se tenha uma percepção dessa escalada, no mesmo período a inflação acumulada foi de 78% e o crescimento do PIB, 41%, demonstrando que não há uma justificativa razoável para uma ampliação tão maciça. O Min. Luiz Fux trata, também, de explicar a legitimidade do STF para julgar a ação, especialmente tendo em vista que Advocacia Geral da União que o financiamento de campanhas é assunto de alto teor político e que uma interferência judicial nessa temática afrontaria o principio da separação dos poderes. Para o relator, o locus ideal do debate político e da reforma política é, de fato, o Parlamento:

14  Petição Inicial da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.650 Disponível em: . Acesso em 01/12/2015. 15  Integra do Voto de Luiz Fux, na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº4.650/DF, 2013. Disponível em Acesso em 10/10/2015.

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Disso, porém, não decorre uma interdição completa do exercício da jurisdição constitucional e uma deferência cega do juiz constitucional com relação às opções políticas feitas pelo legislador (judicial self-restraint).16

Ainda embasando o seu voto, o Min. Luiz Fux diz não lhe parecer inerente ao regime democrático, em geral, e à cidadania, em particular, a participação política por pessoas jurídicas, cabendo exclusivamente às pessoas naturais três modalidades de atuação cívica: o direito de votar (ius suffragii); o direito de ser votada (jus honorum); e o direito de influir na formação da vontade política através de instrumentos de democracia direta, como o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular de leis.

Por fim, cabe destacar trecho do voto, que arremata: Por suas próprias características, tais modalidades são inerentes às pessoas naturais, afigurando-se um disparate cogitar a sua extensão às pessoas jurídicas. Nesse particular, esta Suprema Corte sumulou entendimento segundo o qual as “pessoas jurídicas não têm legitimidade para propor ação popular” (Enunciado da Súmula nº 365 do STF), por essas não ostentarem o status de cidadãs.17

Ministro Joaquim Barbosa O então Min. do STF, Joaquim Barbosa afirma em seu voto que: A permissão para as empresas contribuírem para campanhas e partidos pode exercer uma influência negativa e perniciosa sobre os pleitos, apta a comprometer a normalidade e legitimidade do processo eleitoral, e comprometer a independência dos representantes.18

Para ele, além de vínculos pouco republicanos, a vedação ao financiamento de campanhas por pessoas jurídicas é instrumento necessário ao equilíbrio dos partidos políticos, para que possuam paridade de armas no pleito eleitoral, continuando: o risco do sistema vigente é criar um desequilíbrio entre os partidos, baseado na relevância dos recursos financeiros dispendidos no processo eleitoral. Alguns empreendimentos, disse, estão interessados na atuação econômica do Estado e em dispositivos regulatórios, e esperam que essas regulações venham a se subordinar a seus interesses.19

Ministro Dias Toffoli De acordo com o Min. Dias Toffoli, não se verifica na Carta Magna nenhum dispositivo que permita a participação de pessoas jurídicas no processo eleitoral.

16  Integra do Voto de Luiz Fux, na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº4.650/DF, 2013. Disponível em Acesso em 10/10/2015. 17  Integra do Voto de Luiz Fux, na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº4.650/DF, 2013. Disponível em Acesso em 10/10/2015. 18  Trecho do voto do Ministro Joaquim Barbosa na ADI 4.650 Disponível em Acesso em 08/10/2015 19  Trecho do voto do Ministro Joaquim Barbosa na ADI 4.650 Disponível em Acesso em 08/10/2015

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Não há nada na Constituição Federal de 1988 que justifique a participação das pessoas jurídicas no processo eleitoral brasileiro, em qualquer fase e de qualquer forma.20

Arremata no sentido, inclusive, da proibição, interpretando o art. 14, §9 da Carta Maior: Qualquer deliberação sobre o sistema de financiamento de campanhas deve preservar o eleitor da influência do poder econômico, argumentou o ministro. Prova disso é que a Constituição Federal, em seu artigo 14 (parágrafo 9º) fala em proteção da normalidade e legitimidade das eleições contra ‘a influência do poder econômico.21

Ministro Luís Roberto Barroso É necessário analisar alguns fundamentos mais marcantes no voto do Min. Luis Roberto Barroso. O Ministro iniciou seu voto perpassando o mesmo terreno que o relator, tratando sobre o crescimento institucional do Poder Judiciário em decorrência da judicialização da política. Ressaltou que, hoje, no Brasil, o Poder Judiciário vive um momento de grande credibilidade perante a opinião pública. No decorrer de seu voto, sustenta, assim como o Min. Luiz Fux, que o local ideal de debate do tema Reforma Política é o Parlamento. Entretanto, o poder econômico acaba devorando o interesse público, impedindo com que matérias como essa avancem. Merece destaque um trecho particularmente ativista no voto do Ministro, que diz “Em momentos como esse, cabe ao Supremo Tribunal Federal empurrar a história nesse sentido.” Finaliza o Min. Barroso, assumindo outra vez, uma atitude de protagonismo ante a inércia das instâncias majoritárias: Existe uma outra competência que as Cortes Constitucionais desempenham, que é a função de interpretar e procurar concretizar determinados anseios da sociedade que estão paralisados no processo político majoritário. Por essas razões, acaba sendo imprescindível a intervenção do STF, não contramajoritária, mas representativa. É para fazer andar a história, quando ela tenha parado.22

Ministro Marco Aurélio O Min. Marco Aurélio defendeu em seu voto o posicionamento que o cidadão brasileiro merece uma democracia em seu mais alto potencial de igualdade e participação, e não uma democracia fictícia, minada em suas capacidades representativas por uma captura da esfera política pela esfera econômica, como mostra o seguinte trecho: Para mostrar-se efetiva como direito fundamental, a democracia precisa desenvolver-se por meio de um processo eleitoral justo e igualitário. Processo governado por normas que o impeçam de ser subvertido pela influência do poder econômico.23

20  Trecho do voto o Ministro Dias Toffoli na ADI 4.650. Disponível em Acesso em 10/11/2015. 21  Trecho do voto o Ministro Dias Toffoli na ADI 4.650. Disponível em Acesso em 10/11/2015. 22  Integra do voto do Ministro Luis Roberto Barroso Disponível em: Acesso em: 10/10/2015 23  Trecho do voto do Ministro Marco Aurélio na ADI 4.650, Disponível em Acesso em 10/11/2015.

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Para o tal Min., o processo eleitoral não pode permitir que a riqueza de poucos seja um obstáculo intransponível ao exercício dos direitos políticos de muitos. Ministro Ricardo Lewandowski O atual presidente Corte deixou claro que a participação financeira de empresas no processo eleitoral desequilibrava candidatos, ferindo o princípio da Igualdade. O financiamento de partidos e campanhas por empresas fere profundamente o equilíbrio dos pleitos, que nas democracias deve se reger pelo princípio do ‘one man, one vote’. A cada cidadão deve corresponder um voto, com igual peso e idêntico valor. As doações milionárias feitas por empresas a políticos claramente desfiguram esse princípio multissecular, pois as pessoas comuns não têm como contrapor-se ao poder econômico.24

Ministra Rosa Weber De acordo com a Min. Rosa Weber: o financiamento de campanhas eleitorais e partidos políticos é uma questão delicada, de difícil equacionamento. A face real do problema é sombria, e não há um sistema perfeito ou ideal que possa afastar possibilidade de fraude25

Continuou, tratando que o artigo 14, §9º, da Lei Maior oferece densidade normativa suficiente para o controle da constitucionalidade dos dispositivos questionados.

Ao citar essa disparidade entre os candidatos a cargos políticos, gerada pela participação destacada do capital nas campanhas eleitorais, a Ministra reforça que essa intromissão culmina por transformar o pleito eleitoral em um “jogo de cartas marcadas”. Ministra Cármen Lúcia A Min. Cármen Lúcia delineou seu voto, utilizando o parágrafo único do art. 1º da CF26: “No processo eleitoral, na democracia representativa ou semidireta, povo é quem elege e pode ser eleito, quem vota e pode ser votado”. Para a Min., os princípios da paridade de armas e da igualdade restam violados por força da infiltração excessiva do capital, o que desequilibra tanto os partidos políticos quanto os candidatos a cargos eletivos. Acrescenta que essa contribuição financeira por vezes é reembolsada pelas pessoas jurídicas - que contribuíram na fase de campanhas - em razão de privilégios com os atores políticos, agora eleitos. CONCLUSÃO Com a propositura da ADI 4.650/DF, ajuizada pelo Conselho Federal da OAB, o Poder Judiciário foi provocado a se posicionar sobre o tema do financiamento privado de campanhas eleitorais por pessoas jurídicas. 24  Trecho do voto do Ministro Ricardo Lewandowski na ADI 4.650 Disponível em Acesso em 05/10/2015 25  Trecho do voto da Ministra Rosa Weber na ADI 4.650, Disponível em Acesso em 09/10/2015. 26  Art. 1º, parágrafo único, Constituição Federal de 1988: “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”

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É necessário o entendimento de que o STF possui a legitimidade para tratar da matéria, como abordou pormenorizadamente o relator, Min. Luiz Fux, em seu voto. Também se faz observa que a Corte não invadiu a esfera dos outros poderes. Nesse sentido pontuou o Min. Luís Roberto Barroso que o STF não exerceu uma postura acentuadamente contramajoritária, mas sim, representativa, a fim de concretizar valores e fins republicanos e constitucionais travados no processo legislativo, por interesses políticos e monetários. No que tange ao protagonismo judicial, a Corte se tornou o local de deliberação - não o locus ideal mas -, talvez o único, que demonstrou capacidade institucional e interesse em dar cabo à discussão. Assim, parece legítimo ao Tribunal julgar a matéria mesmo que traga consigo grande teor político, não se diferenciando de outras hipóteses de controle concentrado de constitucionalidade. Foi neste contexto que um comportamento do Poder Judiciário mais proativo quanto à interpretação e aplicação do texto constitucional se fez necessário. REFERÊNCIAS ABRAMO, Cláudio Weber Um mapa do financiamento político nas eleições municipais brasileiras de 2004, apud Petição Inicial da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.650 Disponível em: . BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda; FRAGALE FILHO, Roberto; LOBÃO, Ronaldo (Orgs.). Constituição & ativismo judicial: limites e possibilidades da norma constitucional e da decisão judicial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011 _______.Judicialização não se confunde com ativismo judicial Disponível em _______. A Reforma Política: Uma Proposta de Sistema de Governo, Eleitoral e Partidário para o Brasil. In: http://www.luisrobertobarroso.com.br Cf. KMIEC, Keenan D. The origin and current meanings of “judicial activism”. California Law Review, Berkeley, CA, v. 92, n. 5, oct., 2004, p. 1.441-1477. ZOVATTO, Daniel, 2005. Financiamento dos partidos e campanhas eleitorais na América Latina: uma análise comparada Disponível em . KMIEC, Keenan D. The origin and current meanings of ‘judicial activism’.In.: California Law Review, 2004. Disponível em: http://scholarship.law.berkeley.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1324&context=californialawreview>. CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo. Dimensões do ativismo judicial do Supremo Tribunal Federal – Rio de Janeiro : Forense, 2014. MENDES. Gilmar Ferreira. Recurso extraordinário 635.659, São Paulo. Disponível em: < http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/RE635659.pdf>. BARROSO, Luís Roberto. A razão sem voto: o Supremo Tribunal Federal e o governo da maioria. Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 5, Número Especial, 2015 p. 23-50 Salomão Leite, G. (2015, 01). INÉRCIA LEGISLATIVA E ATIVISMO JUDICIAL: a dinâmica da separação dos poderes na ordem constitucional brasileira. Biblioteca PPGD UNICAP. Retirado 12, 2015, de http://www. unicap.br/biblioteca/pages/wp-content/uploads/2015/09/Processo-hermeneutica.pdf BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda; FRAGALE FILHO, Roberto; LOBÃO, Ronaldo (Orgs.). Constituição & ativismo judicial: limites e possibilidades da norma constitucional e da decisão judicial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 275-290. BICKEL, Alexander M. The least dangerous branch: the Supreme Court at the Bar of Politics. Indianapolis: Bobbs- Merrill, 1962. LIMA, Flávia Danielle Santiago. Ativismo e autocontenção no Supremo Tribunal Federal: uma proposta de delimitação do debate. Tese (Doutorado em Direito). Universidade Federal de Pernambuco, 2013.

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ASPECTOS E CONTROVÉRSIAS SOBRE A JUDICIALIZAÇÃO DA PRISÃO NO BRASIL: UMA ANÁLISE DA ADPF 347

Glebson Weslley Bezerra da Silva Graduando em Direito – Centro Universitário do Vale do Ipojuca - UNIFAVIP. Extensionista no Projeto de Assessoria Jurídica Popular – PROJURIS e no Projeto Escola Legal. [email protected] Mariane Izabel Silva dos Santos Graduanda em Direito – Centro Universitário do Vale do Ipojuca - UNIFAVIP [email protected] Roberta Rayza Silva de Mendonça Graduada em Direito – Centro Universitário do Vale do Ipojuca – UNIFAVIP. [email protected]

SUMÁRIO: Introdução; 1. Principais aspectos da adpf 347; 2. Cárcere e direitos humanos: quanto vale uma vida?; 3. Reflexos sobre a dignidade do sujeito encarcerado; Conclusão; Referências.

INTRODUÇÃO O sistema carcerário brasileiro se constitui, historicamente, como sendo um mecanismo panóptico e excludente. Analisando a concepção de poder exercida pelo Estado brasileiro, para garantir a ideia de segurança e bem estar social, recorre-se a um modelo arcaico e desumano de punição. Em nosso ordenamento jurídico pátrio a competência privativa para legislar sobre matéria penal é da União. Contudo, ao analisarmos a recente decisão proferida pelo STF, que concedeu parcialmente liminar, através da solicitação da ADPF 347, pedindo providências para a crise prisional do país, vê-se que esta decisão vem corroborar a falibilidade do atual modelo e o grave cenário de violações de direitos humanos. Assim, o objetivo deste trabalho é analisar os aspectos –explícitos e/ou implícitos – existentes nos termos deste decisório, apontando alguns elementos que evidenciam o preocupante cenário político-criminal no Brasil. Este estudo consiste em uma pesquisa de caráter bibliográfico-exploratório. Neste julgado, observamos o reflexo da preocupação que o país vive quanto ao sistema prisional. Há uma dicotomia acentuada nesse sentido, ao mesmo tempo que é desacredidato por todos como solução para o crime e a ressocialização, é, na mesma proporção, almejado pela sociedade para que seja retirada do seu meio os “bandidos”. Nesse contexto, observamos a luta pelos direitos humanos desses indivíduos e a busca por políticas públicas eficazes. Os relatores da medida cautelar da ADPF 347 trazem em sua fala “o estado de coisa inconstitucional” que temos vivido, que resulta em constantes violações dos direitos fundamentais dos sujeitos presos. A ausência de fundamentação nas decisões, embora seja um dever dos magistrados, é um dos aspectos violadores do Estado Democrático de Direito que vivemos. Dessa forma, os ministros do Supremo frisam a importância de se ter a audiência de custódia, pois, é preciso ter certeza da necessidade de se manter um indivíduo encarcerado, tendo em vista as violações ocorridas.

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VERONESE, A recente Alexandre. decisãoAnos judicialização importa a saber da política que no na sistema Américapenitenciário Latina: panorama brasileiro do debate ocorre teórico um sequestro contemporâneo. Escritos: revista da Casa de Rui Barbosa, Rio de janeiro, v. 3, p. 215-265, 2009. social, aqui entendido não como um sequestro físico, mas sim, um sequestro da significação humana, que consiste na retirada da condição humana, de se reconhecer enquanto ser humano. Destarte, podemos compreender que a dignidade da pessoa humana, enquanto princípio constitucional, e uma possível garantia aos Direitos Humanos, é pensada e instituída na decisão do STF como marco ao posicionamento dos ministros, neste julgamento. 1. PRINCIPAIS ASPECTOS DA ADPF 347. A insatisfação com o sistema carcerário brasileiro tem aumentado com o passar dos anos, revelando-se como um sistema desumano e distante de cumprir com um de seus objetivos, qual seja, o da ressocialização. Nesse contexto, o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) ajuizou a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 347 pedindo providências aos Poderes Públicos quanto ao sistema penitenciário brasileiro, para que reconhecesse o “estado de coisas inconstitucional”, bem como realizasse mudanças estruturais no sistema para que cessem as violações aos direitos fundamentais dos presos. Assim, o PSOL demonstrou a deplorável situação em que os presos vivem, em ambientes superlotados, tendo sua dignidade constantemente violada, e atribui, em seguida, essa realidade aos Poderes Públicos, em todas as suas esferas, tendo em vista que eles são os responsáveis por criarem vagas e não o fazem, colaborando para que a superlotação só aumente. Ao observar a Constituição Federal de 1988 em seu art. 24, I, constata-se que a competência para legislar sobre o Sistema Penitenciário é concorrente, ou seja, da União, dos Estados e do Distrito Federal, de modo que a responsabilidade pela falibilidade do sistema carcerário recai sobre essas esferas. Além disso, outro aspecto criticado pelo Partido é o fato dos recursos do Fundo Penitenciário – FUNPEN, que devem ser repassados aos Estados e usados para a melhoria dos presídios, estavam sendo retidos pela União, sendo importa uma grande burocracia, de modo que só acentuava a situação de calamidade do sistema carcerário. Coloca-se, ainda, em destaque que: O Poder Judiciário, [...], não observa os artigos 9.3 do Pacto dos Direitos Civis e Políticos e 7.5 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, nos quais é previsto o direito à audiência de custódia. [...] o procedimento poderia reduzir a superlotação prisional (BRASIL, p.4, 2015).

Assim, vemos que além dos direitos fundamentais previstos na Constituição Federal serem violados, ocorre o mesmo com os tratados internacionais de direitos humanos os quais o Brasil é signatário. Destaque-se que os referidos tratados, que preveem a audiência de custódia, entraram em vigor no território nacional desde 1992, só vindo a fazer parte do Poder Judiciário em fevereiro de 2015 (BRASIL, 2015), de modo que fica evidente as décadas de violações quanto a esse direito. Constata-se que a audiência de custódia é um possível1 instrumento de combate a superlotação carcerária, pois deve ser realizada em sede preliminar, isto é, em até vinte e quatro horas após a efetuação do encarceramento, momento em que o preso poderá informar sobre a realidade dos fatos, podendo ter sua prisão relaxada. Trata-se, portanto, de um instituto inovador na realidade em que se encontra o sistema carcerário brasileiro, pois rompe com a figura de um “preso invisível”, tão presente em momentos atuais.

1  Fala-se em possibilidade pois o instituto ainda é muito recente no Brasil, sendo implementado como um projeto somente em fevereiro de 2015 (BRASIL, 2015) e ainda não foi aderido por todos os Estados brasileiros, de modo que ainda não há dados concretos dessa aplicação.

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Vê-se que, além das décadas de violações de um direito pelo Poder Judiciário, como acima citado, ainda há o Poder Legislativo que, para dar uma resposta a sociedade e a mídia, legisla “políticas criminais insensíveis ao cenário carcerário, contribuindo para a superlotação dos presídios e para a falta de segurança na sociedade” (BRASIL, p.4, 2015). Como dito acima, o PSOL requereu que fosse reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal o “estado de coisas inconstitucional”, de modo que para que esse instituto fosse reconhecido são necessários: [...] três pressupostos principais: situação de violação generalizada de direitos fundamentais; inércia ou incapacidade reiterada e persistente das autoridades públicas em modificar a situação; a superação das transgressões exigir a atuação não apenas de um órgão, e sim de uma pluralidade de autoridades (BRASIL, p. 24, 2015).

Verifica-se que os pressupostos ficaram comprovados de plano, tendo em vista todo o quadro prisional brasileiro. No entanto, torna-se necessário saber quais as consequências que esse reconhecimento traria para o STF, de maneira que essa dúvida foi esclarecida pelo relator da ADPF, o Ministro Marco Aurélio, em seu voto: [...] cabe ao Tribunal exercer função típica de racionalizar a concretização da ordem jurídico-penal de modo a minimizar o quadro, em vez de agravá-lo, como vem ocorrendo. Há dificuldades, no entanto, quanto à necessidade de o Supremo exercer função atípica, excepcional, que é a de interferir em políticas públicas e escolhas orçamentárias. Controvérsias teóricas não são aptas a afastar o convencimento no sentido de que o reconhecimento de estarem atendidos os pressupostos do estado de coisas inconstitucional resulta na possibilidade de o Tribunal tomar parte, na adequada medida, em decisões primariamente políticas sem que se possa cogitar de afronta ao princípio democrático e da separação de poderes (BRASIL, p. 25-26, 2015).

Desse modo, fica evidente que o Supremo é o órgão que se apresenta capaz de retirar os Poderes Públicos da inércia, para que novas medidas sejam tomadas, de modo que não pode ser utilizada a justificativa de uma possível violação ao princípio da democracia se o STF assim intervir. Pois, se ele não for o instrumento ativo para iniciar essa mudança, a probalidade de somar inércias é ainda maior (BRASIL, 2015). A ADPF 347 é, portanto, uma provocação pioneira ao Poder Judiciário, pois conseguiu, em sede cautelar, o reconhecimento da audiência de custódia como instrumento de possível combate a superpopulação carcerária, bem como alcançou a liberação dos recursos do FUNPEN e o reconhecimento do “estado de coisas inconstitucional” em que se encontra o sistema penitenciário nacional. 2. CÁRCERE E DIREITOS HUMANOS: QUANTO VALE UMA VIDA? Sabemos que no Brasil o sistema carcerário é composto por um emaranhado de problemas, sejam eles em decorrência da má gestão das penitenciarias, da falta de verbas que deveriam chegar até as unidades, a falta de agentes policiais, o quantitativo de encarcerados, que não corriqueiramente, é superior ao número para o qual essas unidades foram construídas, e tantos outros. Além de todos esses problemas, ainda nos deparamos com uma sociedade em que os sujeitos encarcerados são excluídos da sociedade, e onde a ressocialização é tida como impossível. Os sujeitos encarcerados, mesmo que cumpram suas penas, e assim “paguem sua dívida com a sociedade”, encontrarão poucas, e nos arriscamos a dizer, quase nenhuma oportunidade de espaço na sociedade ocidental, carregarão consigo a marca de ex-presidiário.

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Aqui vamos estudar como se dão as violações aos direitos humanos dentro dessas unidades, onde se formam “submundos”, sociedades onde são estabelecidas novas regras, um mundo que fica a margem da sociedade ocidental, sociedade esta que não se preocupa com os encarcerados, e que não mais os veem como seres humanos, claro, até que chegue sua vez de participar desse “submundo”. No Brasil, a população carcerária chegou ao número de 607.7312, tendo um déficit de 231.062, déficit este que corresponde ao excedente de vagas disponíveis nas unidades prisionais, o que colocou o país na quarta posição dos países com maior população prisional do mundo, ficando abaixo apenas de países como Estados Unidos, China e Rússia, respectivamente. Considerando o número de vagas disponíveis, e o número que ultrapassa essa disponibilidade, é possível observarmos, no mínimo, problemas de superlotação na maioria das unidades, o que nos faz pensar: onde e como dormem aqueles que excedem o número possível de pessoas que deveriam ocupar as celas? Existe um quadro de funcionários, sejam eles de equipe médica, assistentes sociais, ou mesmo policiais suficientes para o número de presos que ali se encontram? Mameluque (2006) traça um perfil histórico da pena, de como ela era vista pela sociedade, observando que era tida como uma espécie de castigo, que se dava sobre o corpo do indivíduo, e assim o era porque acreditava-se ser possível uma “salvação”, um provável arrependimento do apenado. O que não se distancia muito da realidade do nosso país, onde a população acredita que “bandido bom é bandido morto”, e que aqueles que se encontram sob algum tipo de pena, devem ser segregados e esquecidos, devem se manter à margem do convívio da sociedade, uma espécie de seletivismo entre o bem e o mal, mas afinal, o que é ser bom? O que é ser mau? A situação das unidades carcerárias são as piores possíveis, insalubridade dos locais, ou a superlotação, que é um dos principais problemas, acarretando em tantos outros, fazendo proliferar doenças, além de deixar os encarcerados mais vulneráveis, psicologicamente, o que, por vezes, deixa um clima acirrado entre eles, tornando o ambiente propicio a brigas (MAMELUQUE, 2006). Como não existe espaço, de maneira digna, para todos os encarcerados, eles são colocados em um mesmo espaço, sem observar se algum deles possui alguma doença, seja ela mental ou não, fazendo com que um preso sadio seja duplamente punido, além da pena privativa de liberdade, fica sujeito a contrair possíveis doenças. É preciso ainda lembrar das encarceradas, pois, ao falarmos das violações de direitos humanos dentro dessas unidades, inconscientemente, ou não, esquecemos das mulheres, que também são vitimas deste cenário de violações. Algumas características são particulares as mulheres, e nem sempre essas unidades estão preparadas para recebe-las. As grávidas, por exemplo, que tem seus filhos nessas unidades, precisam amamentá-los e criar um vínculo com ele, e nem sempre as penitenciárias oferecem condições dignas para isso, o que coloca não só a mãe, mas seu filho em condições degradantes. Modesti (2011) nos mostra o drama de algumas mães, que não sabem se preferem que o bebê fique com elas, para que possam criar um vinculo afetivo com eles, os se optam por seus familiares o criarem, devido às condições do cárcere, pois acreditam que eles não merecem estar naquele ambiente. Os direitos humanos possuem três características, como bem nos mostra Hunt (2009), onde ela nos diz que eles são naturais, pois são inerentes a todo e qualquer ser humano; iguais, pois são os mesmos para todos; e universais, aplicados por toda parte, mas diante deste cenário do sistema prisional, como garantir tais direitos? É preciso observar a dignidade da pessoa humana, entender que o fato do indivíduo estar cumprindo uma pena não lhe retira a condição de ser humano, Grubba (2011) nos fala que deve haver uma “ética” que 2  Dados INFOPEN de 2014.

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o símbolo da felicidade capitalista, pelo menos para aqueles que são capazes de inserir-se neste modelo de sociedade” (KHALED JR, 2009, p. 118). Desta forma, a mídia rotula como perigosas àquelas classes sociais que combatem a manutenção do sistema, construindo a criminalidade e contribuindo para a manutenção do discurso dominante, “a informação é uma mercadoria como qualquer outra, que pode ser vendida através de um marketing sensacionalista (que inclusive distorce os acontecimentos) visando tornar os desinteressados devidamente interessados, de acordo com interesses econômicos e políticos” (KHALED JR, 2009, p . 117). Resultando, então, na relação da imagem do MST à desordem, os taxando como ‘invasores’, transformando a sua luta em uma ameaça à ordem social: “Nos últimos anos assistimos a uma sucessão contínua de discursos veiculados na imprensa nos quais os movimentos sociais em meio às suas ações e mobilizações são apresentados como baderneiros e criminosos, sendo os seus líderes e defensores considerados radicais, extremistas e violadores da lei.(SILVA FILHO, 2008, p. 8). Desse modo, a mídia acaba por construir a imagem de um movimento bárbaro, desordeiro, violento, ilegítimo e, consequentemente, ilegal, “existe um estigma consolidado pela mídia de que aqui é o lugar do mal” (SILVA FILHO, 2008, p. 09). Ainda para este autor: As pessoas que só se informam a partir da televisão e das grandes revistas e jornais possuem, via de regra, uma visão parcial dos fatos conflituosos da nossa sociedade. Como disse o grande advogado Jacques Alfonsin: se tu quiseres informações sobre o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra te aconselho a procurar no Google, pois a televisão não irá te informar nada.  Ela só mostrará as ocupações, as supostas e as reais violências cometidas pelo movimento, o trânsito que ficou estagnado por causa das passeatas, os trabalhadores que chegaram atrasados no trabalho, e dificilmente dirá ao telespectador sobre os abusos e violências cometidos contra os integrantes do movimento, qual a razão daquela manifestação e do próprio movimento, porque é necessária a reforma agrária no Brasil, ou ainda quais e como são os inúmeros trabalhos e ações de caráter comunitário e coletivo empreendidos pelo movimento, tais como escolas, cooperativas, atendimentos de saúde, etc. (SILVA FILHO, 2008, p. 10)

Assim, como a construção de um estado de medo prega a insegurança social, a mídia cumpre seu papel de base para a ideologia penal dominante. 4. A INVERSAO DO SISTEMA PENAL E A CRIMINALIZAÇÃO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS AGRÁRIOS. Os meios de controle social, tanto formal quanto informal, corroboram para que os excluídos sejam cada vez mais excluídos e que, dessa forma, as estruturas se mantenham inabaladas, tratando qualquer fato que possa resultar em um possível balanço a essas estruturas como um comportamento desviante, socialmente inaceitável. Dessa forma, nas palavras de Khaled Jr. “se de um lado, o Estado retira cada vez mais da esfera social, abandonando qualquer pretensão a propiciar um estado de bem-estar [...], de outro lado, a resposta para a questão social é dada através de um endurecimento cada vez maior da legislação penal”. Ou seja, para um Estado Democrático de Direito, que se legitima enquanto tal, se intitulando um estado de bem-estar social, enquanto na verdade pretende manter a estrutura de privilégios de poucos em detrimento de muitos, em que a questão social é tratada como “caso de polícia”, nada mais útil que um sistema penal “igualitário”, que é duplamente seletivo: em primeiro lugar quando assume um caráter fragmentário, que, ao invés de privilegiar a natureza das coisas, como teoricamente se forma sua justificação, privilegia os interesses da classe dominante imunizando do processo de criminalização comportamentos socialmente danosos típicos dessas classes e tende a criminalizar as formas de desvio típicos das classes subalternas. E em segundo lugar, quando revela a contradição entre igualdade formal e igualdade substancial dos indivíduos, distribuindo de forma desigual o status de criminoso, que coincidentemente, recaem sobre as classes mais vulneráveis e que precisariam de uma maior prestação por parte do estado.

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Resulta disso, então, a criminalização daqueles que legitimamente lutam em nome de seus direitos, pois que na grande tensão existente entre a propriedade e necessidades fundamentais, dá-se preferência, em geral, pela tutela da primeira. Importante ressaltar, que o processo de criminalização das ações do MST e, em especial, de seus líderes, busca, em suma, deslegitimar as reivindicações sociais e desestruturar o movimento. Dessa maneira, é interessante apontar que as acusações que recaem sobre o MST são, precisamente, de crimes contra a propriedade, como o crime de dano (pela destruição de cercas e demais estruturas destruídas nas ocupações), crime de furto (pelo desaparecimento de animais e cercas de arame), crime de usurpação (pelas ocupações de terra) e formação de quadrilha (para cometer os crimes acima dispostos). Nas palavras de Silva Filho: Percebe-se, ademais, a ampla utilização, por parte das autoridades públicas, de estratégias judiciais como a expedição de mandados de prisão e a negação de liminares para seu relaxamento, mesmo quando estão presentes todos os requisitos formais necessários. Quando tais movimentos reúnem pessoas em ações e atitudes reivindicatórias são estas acusadas de formarem quadrilha. [...] A ocupação de terras não se dá aqui, e em muitas outras ações semelhantes, com o objetivo de esbulhar a propriedade, mas sim com o fim de protestar, chamando a atenção para um grave problema brasileiro que segue sem solução adequada e que remonta à chegada dos europeus às terras brasileiras.[...] O indiciamento veio acompanhado de uma campanha de difamação do movimento por parte da imprensa, conforme narra o relatório do MNDH. (SILVA FILHO, 2008, p. 08)

Tendo em vista, como apontado por Silva Filho, que as invasões não se dão com o objetivo de atingir a propriedade, e sim com o intuito de reivindicar, fazer pressão para que aqueles direitos que já lhes são assegurados venham a ser cumpridos, fica claro que o dolo - referente aos exemplos de imputação já mencionados – pode ser afastado sob diversos argumentos. Desse modo, a criminalização dos movimentos agrários confirma e legitima a dominação histórica do latifúndio, fazendo com que a busca por mudanças seja comprometida, ao passo que esses movimentos são barrados pela própria estrutura de deveria defendê-los. Além disso, colocam na ilegalidade aqueles que justamente buscam o cumprimento do texto constitucional, no que se refere aos direitos fundamentais e à dignidade da pessoa humana, alicerces do Estado Democrático de Direito que deveriam ser respeitados e efetivamente aplicados para que muitas das desigualdades existentes em nossa sociedade fossem sanadas. CONSIDERAÇÕES FINAIS Importa ressaltar que o estudo do presente tema não se esgota neste ensaio. Cada tópico aqui tratado – de maneira um tanto quanto superficial – merece um vasto aprofundamento para que possa ser entendido em toda sua complexidade. No entanto, não há espaço no presente estudo para que se façam todas as explanações necessárias. Sabe-se que o direito à propriedade é consagrado no Brasil como direito fundamental, limitado pelo princípio da função social, ambos previsto na Constituição Federal da República. Desse modo, a propriedade deve ser entendida como um instrumento à realização do bem-estar social, prestando-se não só à acumulação do capital e a especulação, mas ao atendimento das necessidades básicas do cidadão. Ocorre que, a história do Brasil demonstra que por aqui nunca houve uma efetiva política de distribuição da terra, que desde os tempos colônias ficou concentrada na mão de uma pequena parcela da população, perpetuando o Brasil como o país do latifúndio. Nesse contexto, ao longo da história vários conflitos surgiram pautados na luta por uma justa distribuição da propriedade e pela necessária realização da reforma agrária. Assim, com o passar dos anos, os trabalhadores rurais foram se organizando e hoje formam movimentos sociais organizados de luta pela terra em que se destaca, principalmente, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra.

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Ocorre que, historicamente a questão social no Brasil é vista como “caso de polícia”. A pequena parcela da população que detém o poder econômico/político se aproveita do Estado para manter a dominação, utilizando-se principalmente do sistema penal. Dentro desse modelo, foi de extrema importância a colaboração da criminologia crítica para explicar essa ligação existente entre dominação/estrutura/criminalização, explicando que o status de criminoso é adquirido em um processo social de criminalização que pouco tem a ver com o desvalor da conduta/resultado. A teoria do etiquetamento parte de uma concepção interacionista, assim odesvio é tido como o fruto da interpretação de um comportamento, que feita a partir de regras criadas pela própria interação social assume o papel de desvio a essas regras. Dessa maneira, para o Labelling Approacho desvio é fruto de uma reação social, que ao identificar o comportamento como “anormal” passa a assumir a identidade social de desvio. Destacam-se, na estrutura proposta por essa teoria, as ações dos meios de controle social formal e informal. Assim, enquanto que os meios de controle social formal selecionam as condutas e as tipificam como crimes, ao mesmo tempo em que determinam que alguns sujeitos responderão por essas práticas, enquanto outros não – seletividade e cifra oculta –, os meios de controle informal – ressalte-se o papel assumido pela mídia nesta interação – legitimam a atuação do sistema formal, reforçando os estereótipos e os divulgando em uma velocidade elevadíssima, o que eleva a criminalização secundária ao grau máximo. Ocorre que, como demonstrado, a luta dos movimentos sociais agrários não se restringe a um bem específico, trata-se de uma luta pela efetivação de direitos, uma luta pela própria afirmação e garantia da legalidade. Em que pese já estar em gestação o processo de mudança de posicionamento do judiciário brasileiro diante da luta pela terra, a caminhada é lenta e o que se tem ainda é muito pouco. Assim, é preciso avançar! Faz-se necessário um abandono da velha cultura, o rompimento com o paradigma, a superação das tradições. O avanço está em um novo olhar sobre a realidade social brasileira, na percepção de que mais do que empreender esforços para a mudança do Direito, é preciso efetivar aqueles já garantidos. REFERÊNCIAS BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: Introdução à Sociologia do Direito Penal. 3ª Ed., Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2002. BECKER, Howard Saul. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. 1ª. ed., Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008. BOMFIM, D. Vasti. Competência: Ação de desapropriação para fins de reforma agrária. In: Revista de Direito Agrário, Brasília, 1º semestre, 2000. BORTOLOZZI, Flávio. A criminalização dos movimentos sociais como obstáculo à consolidação dos direitos fundamentais. Disponível em: http://www.buscalegis.ufsc.br/revistas/index.php/ buscalegis/article/viewFile/30372/29747 Acesso em: 28 nov. 2009, 16:30:30. CORRÊA, Darcísio. A construção da cidadania: Reflexões histórico-políticas. 3. ed. Ijuí,RS: Editora UNIJUÍ, 2002. ___. Movimentos sociais, direito e Estado. In: Revista Direito em Debate, Ijuí-RS: Unijuí, n. 5., jan./jun. 1995.

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POLÍTICAS PÚBLICAS, O DIREITO SOCIAL À SAÚDE E A EXTRAFISCALIDADE DA TRIBUTAÇÃO SOBRE O CIGARRO Idalina Cecília Fonseca da Cunha Pós-graduanda em Direito Urbanístico e Ambiental (PUC-MG) e Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP) com período sanduíche na Universidad de Salamanca (USAL). Advoga na área de Direito Público com ênfase em Direito Tributário e Administrativo. Ensina Direito Tributário no Pejuris Cursos Jurídicos. idalinacfcunha@gmail. com

SUMÁRIO: Introdução; 1. A promoção do direito social à saúde e a extrafiscalidade da tributação; 2. Análise econômica do direito como instrumento de investigação; 3. O tributo como instrumento de indução de comportamento; 4. O imposto pigouviano; Considerações finais; Referências.

INTRODUÇÃO O presente trabalho visa apresentar uma interpretação da questão da extrafiscalidade do Imposto sobre Produtos Industrializados incidente sobre o cigarro como mecanismo indutor para combater o tabagismo e promover a saúde pública no país, elencada como direito social fundamental. No entanto, para que o trabalho em formato de artigo seja possível, alguns cortes devem ser feitos a fim de reduzir a amplitude da matéria, haja vista a sua interdisciplinaridade, envolvendo especialmente direito constitucional, direito tributário, ciência política e economia. Busca-se verificar a efetividade das políticas públicas de desincentivo ao tabagismo, utilizando-se de levantamento bibliográfico e legislativo, além de dados emprestados de órgãos oficiais. Algumas advertências, no entanto, devem ser dadas. A primeira advertência – e a mais fundamental delas – é de que ainda que exista um grande número de variáveis que influenciam direta e indiretamente os números e índices referentes ao consumo do cigarro, tenta-se, aqui, analisar a relação entre o preço – influenciado pela tributação – e a demanda, abstraindo-se importantes fatores como vício, renda, idade, entre outros, o que evidentemente torna as observações incompletas e passíveis de imperfeições. A segunda advertência é de que, observadas as limitações do presente trabalho, é possível prever, desde logo, que a medida a ser analisada não conseguirá atingir a população por inteiro, tendo como verdadeiro público-alvo a os jovens e as camadas mais pobres da população brasileira. Por fim, frise-se que apesar de pretender-se analisar a função da extrafiscalidade em geral, o tributo em espécie a ser analisado é o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI). Dessa maneira, acredita-se ser possível alcançar um resultado satisfatório no desenvolvimento da presente pesquisa a fim de confirmar ou negar a real efetividade da tributação como política pública promotora da à saúde pública. 1. A PROMOÇÃO DO DIREITO SOCIAL À SAÚDE E A EXTRAFISCALIDADE DA TRIBUTAÇÃO O direito à saúde, previsto no artigo 6° da Constituição da República Federativa do Brasil como direito social, é também assegurado no artigo 196 da referida Carta, que dispõe (BRASIL, 1988) acerca do dever do Estado de garantir políticas sociais e econômicas que “visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. É, então, nesse contexto, que se encontram as políticas públicas que promovem a saúde pública, as quais

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englobam desde campanhas de conscientização para a prevenção de doenças sexualmente transmissíveis ou para o combate ao acúmulo de dejetos facilitadores da proliferação de insetos transmissores de vírus até a alta tributação sobre alimentos e produtos prejudiciais à saúde, objeto de análise do presente estudo. Ao se analisar a conjuntura da saúde pública brasileira, é fácil perceber, segundo Haber Neto (2013, p.159), que o Estado pode intervir no referido setor sem que tenha necessariamente que arcar com ônus financeiro. Pode o Estado, contrariamente, incorrer em arrecadação de receita na promoção da saúde pública, através da exação tributária como instrumento interventivo, através da majoração da incidência tributária sobre atividades que possam acarretar danos à saúde e da minoração de tal incidência sobre as práticas que beneficiem de alguma forma o desenvolvimento e a promoção da saúde pública. Dessa forma, ainda segundo o autor acima citado (HABER NETO, 2013, p.160), a relação entre a saúde pública e tributo não deve ser vinculada estritamente à ideia de gasto público. Isso porque a tributação, por si só, pode funcionar também como mecanismo de estímulo a práticas favoráveis à saúde ou de inibição de práticas danosas a ela – como é o caso do tabagismo, – através de uma maior onerosidade. Quanto ao papel da tributação extrafiscal, esse não é proibitivo ou punitivo, o que, inclusive, seria incompatível com a natureza do tributo, conforme art. 3° do Código Tributário Nacional (BRASIL, 1966), mas indutivo, com o propósito de, segundo Barbosa (2003, p.264), influenciar nas preferências e escolhas do contribuinte no sentido de que sejam tomadas decisões favoráveis aos bens ou direitos a que se visa tutelar ou promover. Não é demais lembrar que, no caso em tela, pretende-se proteger com a referida extrafiscalidade o direito social à saúde, disposto constitucionalmente. 2. ANÁLISE ECONÔMICA DO DIREITO COMO INSTRUMENTO DE INVESTIGAÇÃO. A economia, conforme defendem Cooter e Ulen (2010, p.25), fornece uma teoria comportamental que ajuda na previsão da reação das pessoas às leis, o que demonstra sua grande utilidade não só no processo legislativo, mas também na tomada de decisões estatais em geral. Desse modo, com a análise econômica, torna-se possível prever os efeitos das políticas públicas de forma mais segura do que com a mera intuição. Ainda segundo Cooter e Ulen (2010, p. 26), além de uma teoria científica do comportamento, a economia fornece um padrão normativo útil para avaliar o direito e as políticas públicas. As leis não são apenas argumentos arcanos, técnicos; elas são instrumentos para atingir objetivos sociais importantes. (...) A economia prevê os efeitos das políticas públicas sobre a eficiência. A eficiência sempre é relevante para a definição de políticas já que é melhor atingir qualquer política dada a um custo menor do que a um custo mais alto.

Assim, ao se analisar as consequências da alta carga tributária – e consequente aumento do preço de venda – incidente sobre o cigarro como medida de política pública antitabagista, a economia apresenta-se bastante adequada. Isso porque ela possui (COOTER; ULEN, 2010, p. 25), teorias matematicamente precisas e métodos empiricamente sólidos, tais como a estatística e a econometria, de avaliação dos efeitos dos preços sobre o comportamento. Com isso presente, pretende-se analisar como os consumidores – e contribuintes – reagem a incentivos, em especial aqueles vinculados à seara fiscal. Nesse contexto, merece destaque a expressão “normas tributárias indutoras”, trazida à doutrina brasileira por Luís Eduardo Schoueri (2005, p. 351) e que, segundo o referido autor, são instrumentos de que se vale o legislador para induzir o comportamento dos contribuintes, através de estímulos positivos ou negativos. A extrafiscalidade da tributação sobre o cigarro ganha, portanto, espaço como importante política pública de combate ao tabagismo, de modo a sobreonerar ou desonerar práticas a ele vinculadas.

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tenha por objetivo buscar condições que venham a assegurar a todos os indivíduos um caminho que tenha por objetivo garantir a dignidade humana, analisando ainda, que não existe nada mais importante do que atestar que todos tenham sua dignidade respeitada e garantida, independente de suas escolhas. Million (2007) observa que quando falamos de dignidade da pessoa humana existe uma forte ligação com alguns direitos fundamentais, como por exemplo o direito de não ser torturado, e que são estes direitos fundamentais que podem assegurar aos indivíduos uma vida digna, garantindo uma humanização maior e de respeito para com o outro. Existem algumas normas que foram estabelecidas pela ONU, que nos mostram como devem ser tratados os que estão reclusos, entre tantas regras, encontramos uma que nos parece ser a mais difícil de ser realizadas, devido ao número de encarcerados que temos no Brasil, que é: “as celas ou quartos destinados ao descanso noturno, não devem ser ocupados por mais de um prisioneiro” (BRASIL, 2009, p. 14). No entanto, o cenário que se apresenta em nosso país é de um sistema prisional onde os seres humanos são depositados sem nenhuma condição de higiene, apoio médico, segurança, garantias processuais ou constitucionais, ou qualquer outro tipo de cuidado, um lugar onde a dignidade da pessoa humana pouco importa, um lugar onde os direitos humanos não passam de mera fantasia, um lugar onde o ser humano perde seu significado, sua própria humanidade.

3. REFLEXOS SOBRE A DIGNIDADE DO SUJEITO ENCARCERADO Ao tratarmos sobre pessoa no ordenamento jurídico brasileiro, temos de maneira implícita o exercício do principio da dignidade da pessoa humana. De tal modo, é de ciência que todos os seres humanos têm esse direito inerente a si mesmo. Como é possível observar no atual cenário político-econômico brasileiro, os cortes precisam ser realizados para que se tenha um mínimo de estrutura ao país. Contudo, o que veio a ser proposto pelo executivo, são cortes relacionados aos sujeitos em situação de cárcere, ou seja, aos sujeitos que são menos privilegiados na sociedade. Ao propor a retirada desses elementos básicos dos sujeitos encarcerados através da redução de custos, é possível chegar a conclusão que subjulgamento social que estes estão enfrentando, o que por sua vez acaba menosprezando o princípio da dignidade da pessoa humana, consequentemente coisificando o sujeito encarcerado. Sarlet (2005, p.32-33).ao tratar sobre esse princípio nos fala que Como limite, a dignidade implica não apenas que a pessoa não pode ser reduzida à condição de mero objeto da ação própria e de terceiros, mas também o fato de [que] a dignidade gera direitos fundamentais (negativos) contra atos que a violem ou a exponham a graves ameaças. Como tarefa, da previsão constitucional (explícita ou implícita) da dignidade da pessoa humana, […] decorrem deveres concretos de tutela por parte dos órgãos estatais, no sentido de proteger a dignidade de todos, assegurando-lhe também por meio de medidas positivas (prestações) o devido respeito e promoção.

Desta forma, nos fica claro o real condicionamento a qual é empregado ao sujeito encarcerado e as políticas publicas que o alcançam de uma forma ineficaz. Roger Bortoluzzi (2005, p. 5), ainda sobre o principio da dignidade da pessoa humana e seus objetivos, nos fala que: Disso resulta que todos os órgãos, funções e atividades estatais ficam vinculados ao principio da dignidade da pessoa humana, devendo todos um respeito e proteção, explicitados na obrigação de abstenção, por parte do Estado, de

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ingerências na esfera individual que sejam contrárias à dignidade pessoal, e de proteção desta contra possíveis agressões oriundas de terceiros.

Nesse mesmo sentido, afirma José Afonso da Silva (2000, p. 146) que: a dignidade da pessoa humana, na condição de valor (e princípio normativo) fundamental que ‘atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais’, exige e pressupõe o reconhecimento e proteção dos direitos fundamentais de todas as dimensões […]. Assim, sem que se reconheçam à pessoa humana os direitos fundamentais que lhe são inerentes, em verdade estar-se-á negando a própria dignidade.

Sabemos que a prisão no Brasil é toda como uma maneira de exteriorizar o poder estatal acerca das relações humanas. Sendo assim, esse poder vem a se destacar por se fazer presente em meio a construção social, sendo um elemento essencial para formação desta, articulando-se pela maneira de agir. Ao falarmos de poder na conjuntura prisional vamos levar em consideração o que Godinho (1995, p.68) nos diz, tratando-se que: Na concepção foucaultiana de poder, existem poderes disseminados em toda a estrutura social por intermédio de uma rede de dispositivos da qual ninguém, nada escapa. O poder único não existe, mas, sim, práticas de poder, [...] o poder não é algo que se possui, mas algo que se exerce, [...]

Sendo assim, podemos observar que a atual estrutura prisional brasileira permeia essas relações de poder, através de suas práticas. O objeto a ser discutido no presente diz respeito a ADPF que não atendeu a uma decisão do poder executivo em realizar cortes, uma vez que estaria dentre outras questões negar a dignidade daquele sujeito que se encontra em situação de cárcere. É certo e notório que o tratamento dos sujeitos encarcerados chega a ser degradante e desumano. Contudo, pe necessário levar em consideração a condição de ser humano daquele sujeito. Ao pensar dessa forma, a ADPF em questão vem trazer fortemente de uma maneira implícita a condição de ser humano, apesar de estarmos vivendo um colapso social e econômico no país, não é possível retirar humanidade de quem já não tem reconhecimento desta. Ou seja, não há a menor possibilidade de reter fundos destinados a penitenciária, na tentativa de diminuir os gastos, uma vez que os sujeitos que estão encarcerados necessitam de no mínimo a dignidade que lhe é inerente. É de pesar observar a atual situação dos presídios brasileiros, uma vez que não temos a sensibilidade de reconhecer o outro enquanto ser humano, enquanto detentor de direitos apenas porque se encontra em uma situação distinta dos demais. Esse mecanismo utilizado pelas penitenciárias e pelo próprio poder executivo acaba por criar o mecanismo de prisionização do indivíduo, onde na maioria das vezes isso acaba ocorrendo em razão das instituições totais, é necessário atentar para o real entendimento do que vem a ser a pena imposta pelo Estado, afinal queremos punir o agressor na tentativa que este entenda o mal que cometeu e se corrija ou queremos apenas punir por vingança, para que a sociedade se sinta mais segura? Thompson (1980, p. 23) nos explica isso ao afirmar que: Todo encarcerado sofre, em alguma medida, o processo de prisionização, a começar pela perda de status, ao se transformar, de um momento para outro, numa figura de um grupo subordinado.

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Nesse ponto, chegamos à conclusão que ao retirar direitos desses sujeitos, estamos punindo meramente por punir. Segundo Castro (1990) ninguém aprende a viver em liberdade, sem liberdade. Não temos aqui a pretensão de adentrar especificamente no sistema falido da ressocialização. Contudo, faz-se necessário apontar que a pena não vem sendo cumprida de maneira correta por parte do Estado, uma vez que não consegue exprimir basicamente o que deve ser feito, a reinserção deste indivíduo. Colocamos o nome reinserção, uma vez que acredita-se que o sujeito encarcerado enquanto detentor de direitos no ordenamento jurídico pátrio, deve se colocar a disposição como agente ativo de sua volta à sociedade. Embora, na maioria das vezes isso não venha a acontecer em razão do próprio Estado não permitir essa reinserção social. CONCLUSÃO Após realizarmos algumas análises sobre a ADPF 347, sobre as violações aos direitos fundamentais/direitos humanos dentro das unidades aqui no Brasil, e da dignidade do sujeito encarcerado se faz necessário fazer algumas considerações. A situação das penitenciárias brasileiras não foge ao conhecimento de sua população, nem de seus representantes, sejam eles de qualquer esfera do Poder Judiciário, no entanto, e mesmo com todos os danos que essa situação acarreta para o desenvolvimento da sociedade, esse sistema é tratado e visto, por muitos, como um descarte humano. O ministro Marco Aurélio, em seu voto avaliou a “situação vexaminosa”, algo que é perceptível aos olhos de todos, do sistema penitenciário brasileiro, dizendo que o PSOL apontou violações de direitos fundamentais dos presos decorrentes do quadro revelado por nosso sistema carcerário, para ele os dados da Comissão Parlamentar de Inquérito da Câmara dos Deputados (2007-2009), do CNJ e da Clínica de Direitos Fundamentais da Faculdade de Direito da UERJ confirmavam o cenário descrito pelo PSOL. O ministro ainda observou que a maior parte dos detentos está sujeita às seguintes condições: superlotação dos presídios, violência sexual, celas imundas e insalubres, proliferação de doenças infectocontagiosas, comida imprestável, discriminação social, racial, de gênero e de orientação sexual, e tantas outras violências que nós já citamos. Assim, a medida cautelar na ADPF 347, ajuizada pelo PSOL pedindo o reconhecimento da violação de direitos fundamentais da população carcerária, busca nada mais do que garantir a dignidade humana desses sujeitos encarcerados. Observando que não só o princípio da dignidade da pessoa humana é violado, como também artigos que estão explícitos em nossa Constituição, como: ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante (art. 5º, III); suspensão ou interdição de direitos (art. 5º, inciso XLVII, alínea “e”); a pena será cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado (art. 5º, inciso XLVIII) entre outros direitos previsto em nossa Carta Magna, além dos tratados internacionais do qual somos signatários. É preciso fazer com que o sistema penitenciário brasileiro passe por uma reforma, e que seja reconhecida a figura do “estado de coisas inconstitucional”, para que assim seja possível fazer com que esse sistema cumpra seu papel, que é o de ressocializar este sujeito, embora, para nós, seja mais coerente usar o termo reeducar, para que o sujeito encarcerado tenha garantida sua dignidade humana, e se reconheça como tal. REFERÊNCIAS BORTOLUZZI, Roger Guardiola. A dignidade da pessoa humana e sua orientação sexual. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 625, 25 março 2005.

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BRASIL. Ministério da Justiça. Secretaria Nacional de Justiça. Normas e princípios das Nações Unidas sobre prevenção ao crime e justiça criminal /Organização: Secretaria Nacional de Justiça. – Brasília : Secretaria Nacional de Justiça, 2009. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 347. Relator Ministro Marco Aurélio, 2015. Conselho Nacional de Justiça. Audiência de Custódia. 2015. Disponível em: . Acesso em: 26 janeiro, 2015. GODINHO, Eunice Maria. Educação e Disciplina. Rio de Janeiro: Diadorim, 1995. GRUBBA, Leilane Serratine. O discurso dos direitos humanos para a humanização: uma análise da concepção tradicional dos direitos humanos à luz da teoria da reinvenção de Herrera Flores. 2011. 104 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Direito, Departamento de Direito, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2011. HUNT, Lynn. A Invenção dos direitos humanos. São Paulo: Cia.das Letras, 2009. MAMELUQUE, Maria da Glória Caxito. A subjetividade do encarcerado, um desafio para a psicologia. Psicol. cienc. prof.,  Brasília ,  v. 26, n. 4, p. 620-631, dezembro.  2006 . SARLET, Ingo Wolfgang. As dimensões da dignidade da pessoa humana: construindo uma compreensão jurídico-constitucional necessária e possível. In Dimensões da dignidade: ensaios de Filosofia do Direito e Direito Constitucional. Org. SARLET, Ingo Wolfgang. Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed., 2005. SILVA, José Afonso da. Dignidade da pessoa Humana como valor supremo da sociedade democrática in Anais da XV Conferência Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil. São Paulo: JBA Comunicações, 1995. THOMPSON, A. A questão penitenciária. 2ed. Rio de Janeiro: Forense, 1980.

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MOVIMENTOS SOCIAIS AGRÁRIOS: TEORIA DO ETIQUETAMENTO E CRIMINALIZAÇÃO

Indira Capela Rodrigues Advogada. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande Raquel Fabiana Lopes Sparemberger Pós-Doutora em Direito pela UFSC, Doutora em Direito pela UFPR, professora adjunta do Programa de Mestrado em Direito e do Curso de Graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande-FURG. Professora do Mestrado em Direito da Fundação Escola Superior do Ministério Público- FMP. Professora visitante na FURBBlumenau. Coordenadora do Grupo de Pesquisa sobre o Constitucionalismo latinoamericano e decolonialidade da FURG e do IMIgracidadania da Furg. Professora Pesquisadora do CNPq e FAPERGS

SUMÁRIO: Introdução; 1. O papel dos movimentos sociais; 2. Direito a propriedade e função social da propriedade; 3. Etiquetamento e seletividade; 4. A inversao do sistema penal e a criminalização dos movimentos sociais agrários; Considerações finais; Referências.

INTRODUÇÃO O presente artigo discute o problema da criminalização e da seletividade do direito penal e da sua conseqüência prática em relação aos movimentos sociais agrários. Aborda, nesse sentido o papel dos movimentos sociais no “Estado Democrático de Direito”. Apresenta questões relativas ao direito a propriedade e o modo como se dá a efetividade desse direito, bem como, a transformação, pelos meios de controle social, de um luta legítima e justa em uma figura de barbárie e medo, que deve ser combatida. Por fim traz algumas reflexões sobre a inversão do sistema penal e a criminalização dos movimentos socais agrários. 1. O PAPEL DOS MOVIMENTOS SOCIAIS Nas últimas décadas os movimentos sociais acompanharam os passos democráticos de inúmeras nações, inclusive do Brasil, nas últimas décadas. Estiveram presentes constantemente em acontecimentos históricos relevantes, principalmente no que se refere a conquistas sociais. As vitórias democráticas tiveram participação decisiva destes atores. Para Gohn (2004, p. 13), os movimentos sociais são vistos para como ações sociais coletivas de caráter sócio-político e cultural que viabilizam distintas formas da população se organizar e expressar suas demandas. Na ação concreta, essas formas adotam diferentes estratégias que variam da simples denúncia, passando pela pressão direta (mobilizações, marchas, concentrações, passeatas, distúrbios à ordem constituída, atos de desobediência civil, negociações etc.), até as pressões indiretas.

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Na verdade, os movimentos sociais são um mecanismo que os cidadãos utilizam para reivindicar e ver reconhecidos seus interesses e anseios. A sociedade civil serve-se destes movimentos para conquistar direitos negados ou não disponibilizados pelo Estado. Segundo Corrêa, Sabe-se sobejamente que nos Estados contemporâneos a usurpação do espaço público é uma constante, sem dúvida muito presente no Estado brasileiro. No entanto, é preciso admitir que, apresar deste desvirtuamento a privilegiar o poder econômico, não se pode jogar fora a conformação estatal deste espaço público, em torno da qual se estabelece a relação de forças caracterizadora da institucionalização da luta de classes e do confronto dos demais poderes sociais. Tanto as classes dominantes que hegemonizam a ocupação dos aparelhos estatais como as classes e grupos dominados que neles atuam sob forma de pressão e resistência combativa lutam em nome de tal espaço público. É esta a atual guerra de posições, na expressão de Gramsci. E é nela que devem ser entendidos os próprios movimentos sociais (1995, p.57).

Percebe-se, assim que estes são atores sociais que estão ajudando a escrever a história social. Para Corrêa, “os vários movimentos sociais representam, sem a menor dúvida, uma das mais fecundas fontes de criação jurídica, sendo neste sentido importantes sujeitos coletivos”. (1995, p. 60). Estão presentes na sociedade para desempenhar um papel protetor da população, especialmente das camadas menos favorecidas, e inovador na busca de novos direitos. Os movimentos sociais são tentativas coletivas de buscar mudanças em determinadas instituições sociais ou estipular uma nova ordem social (RIOS, 1987). Tiveram, como já dito, demasiada importância na formação histórica social, representam forças sociais organizadas que aglutinam as pessoas não como força-tarefa, de ordem numérica, mas como campo de atividades e de experimentação social, e essas atividades são fontes geradoras de criatividade e inovações socioculturais. O fruto das reivindicações dos movimentos sociais resultaram, quase que geralmente, em amplas conquistas sociais. Na relação Estado e sociedade, os movimentos sociais sempre foram o mais forte, e talvez último, meio de buscar um equilíbrio de forças. Apesar da força estatal ter, quase sempre, larga vantagem sobre a sociedade, pelas movimentações sociais esta vantagem é reduzida. O Estado Democrático de Direito é aquele que tem como objetivo garantir, respeitar e proteger os direitos e liberdades fundamentais. Ele ultrapassa o Estado de Direito, pois se propõe a uma superação da simples obediência a lei, hierarquizando todo o ordenamento com base em um fundamento constitucional. Assim, além do respeito às leis, todas as circunstâncias devem ter com pilares de sinalização os princípios constitucionais. Não há duvidas, principalmente, após a Constituição Federal de 1988, de que vivemos em um Estado Democrático de Direito, garantidor de direitos fundamentais e limitador do poder punitivo. Porém, o que muitos não enxergam, é que na verdade, esse dito “Estado Democrático de Direito”, antes mesmo de se tornar efetivo, assumiu o papel de máscara, que se presta, de forma muito eficiente, a esconder um estado de exceção. Nas palavras de Roberto Aguiar citado por Lyra Filho (1988, p. 8), “a lei sempre emana do estado e permanece, em última análise, ligada à classe dominante, pois o estado, como sistema de órgãos que regem a sociedade politicamente organizada, fica sob o controle daqueles que comandam o processo econômico, na qualidade de proprietários dos meios de produção”. E assim, “o Direito aparece tão-só como forma de controle social, ligado à organização do poder classístico, que tanto pode exprimir-se através das leis, como desprezá-las, rasgar constituições, derrubar titulares e órgãos do Estado legal, tomando diretamente as rédeas do poder” (LYRA FILHO, 1988, p.. 43). Os altos custos cobrados por esse estado “garantidor” de direitos acabou por ocasionar, nas palavras de Wacquant, “a substituição de um (semi) Estado do bem-estar por um Estado penal e policial onde a criminalização da miséria e o enclausuramento das categorias marginalizadas tomam o lugar da política social”

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(WACQUANT, 2002, p. 09). Assim, ao invés da garantia, passa a ocorrer a supressão dos direitos, principalmente, aqueles ligados a igualdade e a dignidade da pessoa humana, garantindo uma política, que nada mais é, do que uma legitimação do poder e dos privilégios de uma classe dominante, e tudo isso muito bem camuflado por uma razão ardilosa que justifica o injustificável. Neste contexto, todos aqueles grupos que tentam travar uma batalha contra-hegemônica em nome daqueles direitos que, em um Estado que de diz democrático de direito, são verdadeiramente seus, acabam sendo estigmatizados, se tornando um inimigo do estado e da sociedade, que deve ser cassado e enclausurado pela justiça penal. Ainda nas palavras de Wacquant, “uma guerra contra os componentes da população considerados menos úteis e potencialmente mais perigosos, como desempregados, sem-tetos, sem-documentos, vadios e outros marginais” (WACQUANT, 2002, p. 10). Diante disso, tentarei abordar, a partir da teoria do etiquetamento, essa inversão do sistema penal e a criminalização dos movimentos sociais agrários. .2. DIREITO A PROPRIEDADE E FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE O direito a propriedade é consagrado no primeiro rol de direitos humanos, aqueles denominados Direitos ou Liberdades Individuais. Essa primeira geração de direitos é totalmente ligada a uma concepção racionalista, - advinda dos ideais iluministas - e assegura os interesses da crescente burguesia. Diante disso, o Estado assume uma posição liberal e passa a ter o simples papel de preservar as liberdades agora positivadas, ou seja, os direitos que passam a ter superioridade normativa deixando de ser meros direitos naturais, abstendo-se, porém, de intervir ou opinar sobre essas liberdades. O direito a propriedade, fica caracterizado por assumir um caráter absoluto, classificação essa que pode ser observada na “Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, segundo o qual o seu exercício não estaria limitado senão na medida em que ficasse assegurado aos demais indivíduos o exercício de seus direitos” (SILVA, 2010, p . 272). Outra característica bastante importante é que, as liberdades consagradas no primeiro rol dos direitos humanos não chegaram a toda a população. E a propriedade, inegavelmente, é um dos exemplos. Sua concentração ficou detida nas mãos de poucos, ficando ao alcance de uma pequena fração da população, a burguesia, que por deter a propriedade, passava a assumir privilegiada função no poder e em nome desse poder conseguia de toda a forma manter essa ordem desigual que se estabelecia. A prática desenfreada desses direitos individuais acabou por deteriorar a própria sociedade, abrindo caminho para uma necessária reestruturação desses direitos. Assim surgem os direitos sociais, os direitos coletivos e difusos e assim sucessivamente. Dentro desse contexto de transformação social que clama por novos direitos, principalmente, aqueles que tornariam a sociedade, senão por completo iguais, menos desiguais, a transformação do direito a propriedade, torna-se não só uma vontade, mas uma necessidade. Com isso, deixa-se de dar um contorno absoluto, passando a exigir-se que esse direito, como os demais, assumisse um caráter social. Surge assim, a função social da propriedade. Nas sábias palavras de José Afonso da Silva: O caráter absoluto do direito de propriedade, na concepção da Declaração dos Direitos do Homem e do cidadão de 1789 [...] foi sendo superado pela evolução, desde a aplicação da teoria do abuso do direito, do sistema de limitações negativas e depois também de imposições positivas, deveres e ônus, até chegar-se a concepção da propriedade como função social. (SILVA, 2010, p. 272)

Se pensarmos na enorme vastidão territorial do Brasil, há de pensarmos que propriedade, por aqui, nunca foi problema. No entanto, no Brasil não foi diferente: a terra e a propriedade, desde os tempos primórdios, das capitanias hereditárias ao atual modelo de aquisição, estiveram concentradas nas mãos de poucos. Destarte, também o Brasil, de maneira simples ou através de lutas, foi ao longo do tempo sofrendo transformações sociais, e essas transformações foram modificando, também aqui, o sentido que era empregado ao direito a propriedade.

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A Constituição Federal de 1988 consagra a tese segundo a qual a propriedade constitui várias instituições diferenciadas, em correlação com os diversos tipos de bens e de titulares. Sendo explicita e precisa, a constituição garante o direito de propriedade em geral, mas distingue claramente a propriedade urbana e a propriedade rural. Como o interesse do presente estudo, enfoca principalmente a concepção que é dada a propriedade rural e a sua função social, cabe agora, para melhor entendimento, um breve apanhado histórico, sobre a evolução dos conceitos, até chegarmos à função social da propriedade rural. Como já mencionado, o primeiro sistema oficial de aquisição de terra no Brasil, foi instituído por D. João III, em 1532, as capitanias hereditárias, que tinham por base o regime de sesmarias. No início do séc. XIX esse sistema entra em crise por diversos motivos e juntamente ao fato da independência do Brasil, estabelece-se o regime de posses. Este regime reconhece a figura do posseiro, concedendo-lhe direitos sobre as terras que havia cultivado. Este novo sistema sofre grandes modificações quando da instituição, em 1850, da Lei da Terra, que estabeleceu a compra e venda como forma de aquisição da propriedade fundiária e limitou quase que totalmente o usucapião. Estava claro que a Lei da Terra pretendia favorecer a grande propriedade e assim, perpetuou a estrutura agrária desigual herdada dos tempos coloniais. Essa profunda desigualdade acabou por gerar diversos conflitos, destancando-se, em um primeiro momento, os de origem messiânica, intimamente ligados a figura de um líder. Nesse período, estão inseridos os movimentos Canudos, na Bahia, liderado por Antônio Conselheiro e o movimento do Contestado, que se desenvolve de 1912 até 1916 em Santa Catarina, liderado pelo monge José Maria. A segunda fase é definida como “lutas radicais localizadas”: Nesta fase ocorreram diversos conflitos violentos por terras e revoltas populares, em diversos lugares do Brasil. Na segunda metade do século XX, em todo o país, diversos conflitos e eventos nasceram da organização camponesa. Desenvolve-se um processo de organização política do campesinato, fruto das lutas de posseiros e pequenos proprietários para resistirem nas terras. A luta pela reforma agrária se popularizava, alcançando espaço político através do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e da Igreja Católica (BORTOLOZZI, 2008, p. 49)

Por volta de 1945, nasce no nordeste, as Ligas Camponesas, forte movimento de luta contra os desmandos dos latifundiários locais. Em 1947 o PCB (Partido Comunista Brasileiro) é posto na ilegalidade e a forte repressão acaba com as ligas camponesas, muitas vezes, pela atuação de jagunços contratados pelos próprios latifundiários. A questão agrária só volta a ser discutida no período de 1950-1960. As ligas camponesas, ressurgem em 1954, agora com o apoio do PSB (Partido Socialista Brasileiro). Um dos grandes problemas do movimento pela reforma agrária antes de 1964 era o fato de que a Constituição brasileira de 1946, primeira constituição a consagrar o instituto da desapropriação por interesse social, só admitia a desapropriação de terras mediante indenização prévia em dinheiro: “Mas somente com a Constituição de 1946 é que surgiu a figurada desapropriação por interesse social, infelizmente incubada em estado latente até 1962, com o advento da Lei n. 4.132 de 1962, definidora das hipóteses de desapropriação por interesse social” (BOMFIM, 2000, p. 74). Com João Goulart no governo, a questão social voltou a figurar no cenário político, ele defendia, desde 1961, uma reforma de base, que além de outras reformas, tinha como pleito a reforma agrária. “Criou-se assim, em 1962, a Superintendência de Política Agrária SUPRA), e posteriormente o Estatuto do Trabalhador Rural, aprovado em 1963. Este estendia aos trabalhadores do campo uma série de garantias e direitos já garantidos aos trabalhadores urbanos na Era Vargas” (BORTOLOZZI, 2008, p. 26 ). Como parte importante do seu projeto, João Goulart enviou ao Congresso Nacional um projeto de reforma agrária, como havia prometido em um comício popular realizado em 15 de março de 1964. O projeto não chegou a ser votado, e em 1º de abril de 1964 com o apoio de grupos mais conservadores e dos EUA, que temiam uma expansão comunista e uma revolução no campo aos moldes da que ocorrera em Cuba, as forças armadas derrubaram o governo democrático de João Goulart.

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A ditadura militar, com a premissa de controlar as tensões agrárias, que ganhavam força, em especial no nordeste (Ligas camponesas) e no Sul (‘Master’, encabeçado por Leonel Brizola), emitiu, ainda em 1964, o Estatuto da Terra que reconhecia a função social da propriedade privada e permitia a desapropriação para fins de assentamento agrário em caso de tensão social, e, mais tarde, na chamada Emenda Constitucional no.1, de 1969 à Constituição brasileira de 1967, passou a admitir a desapropriação mediante pagamento em títulos de dívida pública. Mesmo que dentro do contexto da ditadura essa idéia não tenha tido a devida eficácia, mais tarde foi de suma importância, servindo de base para as tentativas de reforma agrária no pós-ditadura militar. A Constituição Federal de 1988, que reflete todas as tensões vividas em peródos anteriores, principalmente, no período ditatorial, traz em si os direitos que não raras vezes foram motivos de luta, principalmente aqueles direitos ligados a igualdade e a justiça social e, portanto, com os direitos ligados à reforma agrária não seria diferente. Institui em seu art. 5º, XXII o direito a propriedade e logo a seguir, no art. 5, XXIII, a exigência de que a mesma atenderá a sua função social. Além disso, insere a propriedade privada e a sua função social não só no rol dos direitos individuas, mas também como instituição da ordem economica (art. 170, I e II) e que como tal, devem seguir a realização de seu fim, qual seja, assegurar a todos a existência digna, conforme os ditames da justiça social. Isso, no entanto, não quer dizer que efetivamente a reforma agrária tenha acontecido. São diversos os motivos encontrados para tornar o direito inócuo. A função social deve seguir certos requistivos, que, nem de longe, referem-se a fundamentos puramente econômicos: Reza o Art. 186. da Constituição Federal que a função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I – aproveitamento racional e adequado; II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores. Dessa maneira a função social da propriedade nada mais é, do que o uso com liberdade do direito a propriedade, mas sem desrespeitar o bem maior, que é o da coletividade, visando o bem-estar humano e não permitindo que os imóveis rurais sirvam apenas a objetivos especulativos e acabem por resultar no êxodo rural, massacre dos indivíduos e principalmente na miséria dos trabalhadores rurais. No entanto, a função social e seus requisitos não são os únicos fatores a serem observados. Mesmo que a função social não seja um fator meramente econômico, que obedeça somente a requisitos como produtividade ou tamanho, não se pode entender que a constituição permita que todos os imóveis rurais, sejam desapropriados para esse fim. Existe uma classificação agrária prevista no art. 185 da Constituição Federal - que não pode deixar de ser levada em consideração – referente ao tamanho da propriedade: de pequena, média ou grande propriedade. E, assim, somente aquela que é definida como grande propriedade pode sofrer ação expropriatória mediante indenização, pelo instituto da desapropriação, para que não se caracterize o confisco, ou seja, para que mais uma vez, se proteja o direito à propriedade em seu caráter absoluto. Evidente que o conteúdo do art. 185 se reveste de extrema relevância, porém, não raras vezes, a função social da propriedade fica restrita a esse mero fator. O que, claramente, é inaceitável. Como já visto, o real sentido do cumprimento da função social da propriedade está para além da economicidade do bem em questão, e o seu alcance abrange a todos os imóveis rurais. Ainda nesse sentido, sendo esse um problema de direito público, para que as já citadas exigências sejam cumpridas e a propriedade realmente siga o verdadeiro objetivo da função social é preciso responsabilidade e fiscalização: O estado exerce o papel de fiscalizador e orientador do princípio da imposição assumida pela propriedade, uma vez que é responsável pela vigilância e direcionamento dos diversos segmentos da sociedade e, em especial, encarregado da promoção do bem-estar social. Portanto, essa obrigação estatal decorre da necessidade de se efetivar o enfoque constitucional do direito de propriedade, onde esta – a propriedade- deixa de ter características privativas, egoísticas de outrora, para dar cumprimento aos princípios embutidos ao novo conceito de detenção da propriedade, onde a justiça social tem sempre

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que prevalecer, até mesmo para fortalecimento da democracia. (OLIVEIRA, 2000, p. 36)

Destarte, é de se observar que nunca houve no Brasil uma efetiva fiscalização, nem ao mesmo, um efetivo interesse para que houvesse uma real política de redistribuição de terras, de reforma agrária, permanecendo até hoje um modelo estrutural semelhante ao do período de colonização, baseado no grande latifúndio. Sendo assim, para que suas reivindicações fossem garantidas constitucionalmente e para que, depois de serem reconhecidos, esses direitos sejam plenamente efetivados não pode se abrir mão da constante luta. E então, ainda a partir do fim da ditadura militar e da retomada democrática no Brasil, os camponeses puderam se reorganizar e retomar sua luta histórica pela reforma agrária. Surge então, com o apoio da igreja e dos partidos de esquerda, através de ocupações de terras no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina, em 1980, mesmo período em que havia no Paraná um conflito entre famílias e o governo devido as inundações de terras para construção da Itaipu, o movimento do trabalhadores sem terra (MST). “Outras lutas aconteciam pelo Brasil todo, sendo que a partir do descobrimento da área do Pontal do Paranapanema (São Paulo), o MST ganhou notoriedade nacional”. (BORTOLOZZI, 2008, p. 53) Para entermos como o MST, movimento cuja luta é legitma, devido a instituições em que estão alicerçadas, passa de um movimento social a um inimigo do estado e da sociedade, é preciso que conheçamos de que forma se da a criminalização. 3. ETIQUETAMENTO E SELETIVIDADE A teoria do etiquetamento ou Labelling Approach surge na década de 60, no âmbito da criminologia norte-americana. Apesar de não derivar diretamente das teorias marxistas, traz em seu bojo algumas concepções oriundas delas. Ela, como as demais teorias da reação social, surge como uma limitação as teorias estruturais, rompendo com o paradigma etiológico, tornando-se um novo paradigma. “Muitos autores queixaram-se de que a teoria da rotulação não fornece uma explicação etiológica do desvio, nem diz como as pessoas que cometem atos desviantes passam a fazê-lo – e especialmente porque elas o fazem, enquanto outras à sua volta não.” (BECKER, 2008, p.180). Para ela, o delinqüente não pode mais ser o objeto de investigação, em seu lugar aparecem às instâncias de controle social. O interesse da pesquisa se desvia do desviado e do seu meio social e se aproxima daqueles que o definem como tal, ao invés de explicar a criminalidade passa a explicar o processo de criminalização. Dessa forma, o Labelling Approach acaba por se inserir na dogmática como um teoria crítica. Para Munhoz Conde e Hassemer (2008), dentro da teoria do etiquetamento a criminalização é vista como fruto de uma estigmatização. Segundo eles, para os autores mais radicais é simplesmente a etiqueta aplicada pelos meios de controle social formal. Já os menos radicais admitem que os mecanismos de etiquetamento estejam presentes também nos meios de controle informais. Baratta (2002) defende que, partindo de uma concepção interacionista, o labelling approach aponta que o desvio é tido como o fruto da interpretação de um comportamento, que feito a partir de regras criadas pela interação social, assume o papel de desvio a essas regras. Dessa maneira, o desvio é fruto de uma reação social, que ao identificar o comportamento como “anormal” tendo em vista não estar de acordo com as regras, passa a assumir a identidade social de desvio. Nas palavras de Goffman, “A diferença, em si, deriva da sociedade, porque, em geral, antes que uma diferença seja importante ela deve ser coletivamente conceptualizada pela sociedade como um todo.” (GOFFMAN, 1988, p. 134), já Becker se refere da seguinte maneira: Todos os grupos sociais fazem regras e tentam, em certos momentos e em algumas circunstâncias, impô-las. Regras sociais definem situações e tipos de comportamento a elas apropriados, especificando algumas ações como “certas” e proibindo outras como “erradas”. Quando uma regra é imposta, a pessoa que presumivelmente a infringiu pode ser vista como um tipo especial,

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alguém de quem não se espera viver de acordo com as regras estipuladas pelo grupo. Essa pessoa é encarada como um outsider. (BECKER, 2008, p.15)

Então, para que um comportamento seja tido como desviante, ele tem de romper com a idéia de “normalidade”, idéia essa que é criada pelas próprias estruturas, no entanto, “o simples desvio objetivo em relação a um modelo, ou uma norma, não é suficiente: é necessário que desencadeie uma reação social correspondente” (BARATTA, 2002, p. 96). Para que um comportamento seja então, rotulado com sucesso como desviante pelo senso comum, ele deve, além de se distanciar das normas estabelecidas, pressupor que se o autor tivesse querido poderia ter agido de acordo com as normas e que ele sabia o que estava fazendo. Na ausência dos requisitos citados, o comportamento, mesmo infringido as normas, constituiria uma exceção. Como se pode ver, os elementos utilizados na definição de comportamento desviante no âmbito do senso comum correspondem exatamente às categorias construídas pela ciência jurídica para a imputação de um delito a um sujeito. Desse modo, “o processo de definição interno ao senso comum corresponde ao que se produz no âmbito jurídico” (BARATTA, 2002, p. 97) Dito isso, para que o comportamento já definido pela sociedade como “desviante” assuma, definitivamente, o papel de comportamento criminoso, alterando a identidade social do individuo, ou seja, tornando-o uma pessoa estigmatizada, é necessário que haja a ação do sistema penal, que define e reage sobre esse comportamento. O status de delinqüente prescinde necessariamente, do efeito da atividade das instâncias oficiais, de modo que, aqueles que praticam a mesma ação e não sofrem a ação dessas instituições, não recebem o status de delinqüente. “Desse ponto de vista, o desvio não é uma qualidade do ato que a pessoa comete, mas uma conseqüência da aplicação por outros de regras e sanções a um infrator. O desviante é alguém a quem esse rótulo foi aplicado com sucesso” (BECKER, 2008, p. 22). Munhoz Conde e Hassemer (2008) registraram que, dessa forma, o sistema penal não leva em conta, no momento de sua atuação, o problema da estigmatização, pois é o próprio sistema quem cria o delinqüente. Denunciam que isso se deve a diversos fatores, alguns jurídicos e alguns não jurídicos. Primeiramente, referem-se ao argumento não jurídico da cifra negra, que consiste na crítica do uso de estatísticas oficias para embasar certos argumentos, tendo em vista que, o que esta ali representando é uma imagem distorcida da realidade, tomando como um dos argumentos que “aqueles grupos cuja posição social lhes dá armas e poder são mais capazes de impor suas regras” (BECKER, 2008, p. 30) pode-se afirmar que nem tudo o que efetivamente acontece é efetivamente apontado por esses dados. Segundo Becker: Se o impositor [das regras] não vai atacar todos os casos de que tem conhecimento ao mesmo tempo, ele precisa ter uma base para decidir quando impor a regra, que pessoas cometendo quais atos devem ser rotuladas como desviantes. [...] Algumas pessoas tem influência política ou know-how suficiente para serem capazes de evitar tentativas de imposição, se não no momento da detenção, pelo menos num estágio posterior do processo. (BECKER, 2008, p. 164)

Dessa forma, deve-se tomar muito cuidado ao levar em conta os dados publicados com base em registros oficiais, pois “um exame mais atento de pessoas agindo juntas nos mostrou que registros também são produzidos por pessoas que agem juntas, e devem ser compreendidos nesse contexto” (BECKER, 2008, p.193). Para Munhoz Conde e Hassemer (2008), são os poderosos que se inserem no âmbito da cifra negra e, portanto, “as regras que determinam a definição de desvio e de criminalidade no sentido comum, estão ligadas as leis, mecanismos e estruturas objetivas da sociedade, baseadas sobre relações de poder (e propriedade) entre grupos e sobre as relações sociais de produção.” (BARATTA, 2002, p. 106) Outros dois fatores citados são: O papel que o juiz assume como criado do direito e o relativo ao caráter invisível da esfera interna do delito. O primeiro nos remete ao fato de que a lei por si só não pode assegurar por completo a sua aplicação, de modo que, a etiqueta advém não da lei, mas da interpretação que é feita pelos órgãos encarregados por

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sua aplicação. No entanto, não podemos esperar como fazia Montesquieu, que o juiz seja mera boca da lei. Para Coutinho, “hoje, dogmas como o isolamento kelseniano do direito são coisa do passado, a neutralidade dos juristas é quase arqueologia jurídica e sua imparcialidade só é imaginável com muito discurso que lhe dê conta” (apud KHALED JR, 2009, p. 286). Destarte, quem dita à lei, ou “distribui a etiqueta”, é o agente do controle social formal, que como já sabemos introduz elementos de cunho subjetivo a interpretação da lei, e, o que se torna ainda mais perigoso, detém o livre convencimento sobre as provas, momento em que pode ser ainda mais influenciado por preconceitos pessoais. Outro problema suscitado se baseia na invisibilidade da esfera interna do delito, ou seja, a dificuldade que o juiz tem de ascender à subjetividade do autor, fato que é exigível no âmbito do processo penal que se utiliza de elementos como o grau de consciência e vontade. Isso significa que quando se trata do interior do indivíduo, os agentes do controle social formal, devem deduzi-las com base em fatos ou dados nem sempre inequívocos. Dessa forma, abre ainda mais precedentes para uma interpretação com base em convicções pessoais. “O juiz inevitavelmente irá interpretar, seja intencionalmente ou não. Ele deve estar consciente disso, para que possa exercer um mínimo de controle sobre sua própria subjetividade” (KHALED JR, 2009, p. 291), no entanto, a maioria das pessoas, ainda acredita que seja possível a total imparcialidade e neutralidade desses agentes, inclusive eles próprios, e partir disso, deixam de lado a busca por uma verdade problemática, acreditando que são capazes de obter a verdade real. Com isso, “a criminalidade como realidade social não é uma entidade preconstituída em relação à atividade dos juízes, mas uma qualidade atribuída por estes últimos a determinados indivíduos” (BARATTA, 2002, p. 107) e ainda, reafirmando e reproduzindo, no âmbito da criminalização, “os mesmos mecanismos de interação, de antagonismo e de poder que dão conta, em uma dada estrutura social, da desigual distribuição de bens e oportunidades entre os indivíduos” (BARATTA, 2002, p. 106). Contudo, a etiqueta de criminoso é desigualmente distribuída entre os indivíduos, alterando a identidade social do estigmatizado, fazendo com que, na maioria das vezes, o individuo permaneça nessa condição. Segundo Goffman: Por definição, é claro, acreditamos que alguém com um estigma não seja completamente humano. Com base nisso, fazemos vários tipos de discriminações, através das quais efetivamente, e muitas vezes sem pensar, reduzimos suas chances de vida. Construímos uma teoria do estigma, uma ideologia para explicar a sua inferioridade e dar conta do perigo que ela representa, racionalizando algumas vezes uma animosidade baseada em outras diferenças, tais como as de classe social. (GOFFMAN, 1988, p. 15)

E assim, por exemplo, “o delinqüente de classe baixa que luta para defender seu “território” faz apenas o que considera necessário e direito, mas professores, assistente sociais e a polícia vêem isso de maneira diferente” (BECKER, 2008, p. 28). Como já vimos, as instâncias oficiais de controle assumem um papel fundamental no processo de criminalização dos indivíduos, principalmente no que concerne a distribuição da etiqueta de criminoso a indivíduos dos estratos mais baixos da sociedade, como uma maneira de manter o status quo. No entanto, outros meios de controle social também auxiliam nesse processo. Faremos breves considerações acerca do papel da mídia enquanto meio de controle social informal e formadora de opinião. É evidente o papel da mídia na construção de estereótipos criminosos, bem como na construção da própria criminalidade. O sensacionalismo jornalístico acaba por criar mitos que são incorporados pela sociedade, nas palavras de Khaled Jr. “neste contexto de espetáculo midiático, o convencimento da população é obtido a partir de um discurso eminentemente sedutor, que faz com que o próprio publico para o qual é voltado este direito penal repressivo acredite que essas medidas são eficazes”(KHALED JR, 2009, p. 116). Um destes mitos, por exemplo, é a luta entre o bem e o mal, sendo que, o cidadão “proprietário” representa o bem, enquanto que aqueles que se revoltam contra as instituições representam o mal. Segundo Khaled Jr., “a ânsia de adquirir bens deixa de ser um meio para a realização da vida, tornando-se um fim em si mesmo,

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3. O TRIBUTO COMO INSTRUMENTO DE INDUÇÃO DE COMPORTAMENTO. Importante ressaltar que apesar da alta carga tributária e consequente alto preço final dos produtos, o que faria surgir, teoricamente, um conflito entre as preferências e os obstáculos à sua satisfação (COOTER; ULEN, 2010, p.44), nem sempre o consumidor precisa abdicar de algo. Isso porque há uma parcela dos consumidores, devido a fatores como renda, cultura, vício, restrição/possibilidade de consumo que não terão seu poder aquisitivo afetado. No entanto, apesar dessa faixa da população ser indiferente às medidas aqui trabalhadas, ressalve-se que aqueles mais afetados – e mais dependentes das prestações de serviços públicos de saúde – são, em sua maioria, atingidos pela política de sobreoneração tributária. A Convenção-Quadro para Controle do Tabaco da Organização Mundial da Saúde representa um tratado internacional de saúde pública contra o tabagismo, e foi recepcionada no ordenamento jurídico brasileiro através do Decreto Legislativo n. 1.012, de 2005. A referida Convenção, em sua parte III, ao tratar das medidas relativas à redução da demanda de tabaco, traz, em seu artigo 6°, dispõe: 1.As Partes reconhecem que medidas relacionadas a preços e impostos são meios eficazes e importantes para que diversos segmentos da população, em particular os jovens, reduzam o consumo de tabaco. 2. Sem prejuízo do direito soberano das Partes em decidir e estabelecer suas respectivas políticas tributárias, cada Parte levará em conta seus objetivos nacionais de saúde no que se refere ao controle do tabaco e adotará ou manterá, quando aplicável, medidas como as que seguem: a) aplicar aos produtos do tabaco políticas tributárias e, quando aplicável, políticas de preços para contribuir com a consecução dos objetivos de saúde tendentes a reduzir o consumo do tabaco; (...)

Assim, não é de se ignorar a importância da tributação como instrumento de redução do tabagismo, principalmente quando tal ideia é proposta (INCA, [2015]) por um tratado internacional elaborado pela Organização Mundial de Saúde e ratificado – até a data de 04 de março de 2015 – por 180 (cento e oitenta) países. É de fundamental importância ressaltar que a finalidade indutiva de determinada atuação estatal, como a tributação aqui discutida, pode possuir tanto um caráter de incentivo como de desincentivo, quando o que se busca, na verdade, é evitar tal prática. Para tanto, Grau escreve (2014, p. 145): (...) Dois aspectos devo, no entanto, ainda pontualizar. O primeiro respeita ao fato de nem sempre a indução manifestar-se em termos positivos. Também há norma de intervenção por indução quando o Estado, v.g., onera por imposto elevado o exercício de determinado comportamento, tal como no caso de importação de certos bens. A indução, então, é negativa. A norma não proíbe a importação desses bens, mas a onera de tal sorte que ela se torna economicamente proibitiva.

Ressalte-se, ainda, que resultados publicados pela Fiocruz (2014) confirmam ser a elevação dos impostos sobre o cigarro fortes indutores na redução do consumo do produto e afirmam que ao se tornar o cigarro economicamente menos acessível, houve uma redução média anual de 2% entre os anos de 2009 e 2013. Além disso, ainda segundo a Fiocruz (2014), o número de experimentação de cigarros por adolescentes também diminuiu. Demonstra-se aqui, portanto, que a tributação é forte elemento de desestímulo ao consumo do tabaco, revelando-se como um instrumento multiuso e multifacetado, capaz de arrecadar receita enquanto inibe práticas indesejadas.

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4. O IMPOSTO PIGOUVIANO. O imposto pigouviano, que recebe esse nome em homenagem ao economista britânico Arthur Pigou, refere-se, segundo Mankiw (2005, p.213) aos impostos criados para a correção dos efeitos de externalidades negativas. Por sua vez, externalidade negativa, ainda segundo Mankiw (2005, p.204), pode ser definida como “o impacto das ações de uma pessoa sobre o bem-estar de outras que não tomam parte da ação”. Assim, apenas a título de exemplo, diante de infinitas possibilidades, pode-se citar as externalidades negativas a poluição resultante do consumo de combustíveis fósseis ou de quaisquer outras atividades industrias e, em especial, as externalidades negativas provenientes do tabagismo. Nesse sentido, ao se levar em conta os ônus resultantes do consumo de cigarro, como (INCA, [2015]) os gastos com programas de prevenção e conscientização sobre malefícios da referida prática, o tratamento de inúmeras doenças que assolam fumantes ativos e passivos, a concessão de aposentadorias, pensões e outros benefícios previdenciários são apenas algumas das externalidades a que se visa corrigir. Com o objetivo de sanar as mencionadas externalidades negativas, não apenas consequentes do uso do tabaco, mas de muitos outros produtos, diversos países recorrem à majoração de tributos e preços para conduzir a uma redução de consumo. Foi exatamente nesse intuito que o governo dinamarquês instituiu o denominado “fat tax” incidente sobre alimentos ricos em gordura saturada. Apesar de tal medida não ter continuidade em decorrrência de grande insatisfação da população, sendo extinta após cerca de um ano de sua instituição (TERRA, 2012), percebe-se a finalidade de corrigir externalidades causadas por tal substância, como combater a obesidade em seu país e evitar (ou, até mesmo, ajudar a arcar com) futuros gastos da máquina estatal com tratamentos de doenças decorrentes do sobrepeso, como diabetes e cardiopatias. Nessa mesma linha, chegou também a se pensar, ainda na Dinamarca, na instituição de imposto sobre o açúcar e produtos como o chocolate, mas, novamente, devido a pressões externas, a medida acabou por não se concretizar. Nesse sentido, observe-se o que Paes (2014, p. 180) assevera: Um segundo motivo para se aumentar a arrecadação com o tabaco é a correção de externalidades (...). Produtos como cigarros, bebidas e combustíveis, por exemplo, impõem custos a sociedade, e não apenas aos indivíduos que os consomem. Assim, receitas extras são necessárias para cobrir este custo excedente. Neste caso a tributação de cigarros é vista como uma forma de fazer com que os fumantes arquem com os custos que impõem à sociedade. [...] alguns exemplos de custos impostos a outras pessoas pelo fumante, como o mal-estar de se ficar perto de alguém que fuma, os prejuízos à saúde de quem convive com fumantes (‘fumante passivo’) e os custos ao sistema público de saúde por doenças relacionadas ao fumo.

Acerca do Imposto sobre Produtos Industrializados incidente sobre o cigarro, tributo objeto de estudo, esse teve sua sistemática alterada pela Lei n. 12.546 de 2011, que, entre outras medidas, instituiu (INCA [2015]) uma política de preços mínimos para os cigarros, além de estabelecer a utilização de alíquota ad valorem de 300% aplicada sobre 15% do preço de venda a varejo do cigarro, resultando em uma carga efetiva de 45% de IPI sobre o preço final de venda. Com a vigência da supracitada lei (BRASIL, 2011), a carga tributária total incidente sobre o cigarro chegou ao patamar de 81%, dos quais 45% destinam-se ao IPI, 11% a título de PIS/Confins e, ainda, 26% relativo ao Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). Ademais, conforme Haber Neto (2013, p.166), “o hábito de fumar é um dos principais fatores de risco para o desenvolvimento de doenças crônicas, como o câncer e as enfermidades respiratórias”, o que deixa claro que tal prática inviabiliza ou, no mínimo, dificulta a consecução do esculpido no artigo 196 da Magna Carta. Assim, a utilização do IPI como um “imposto pigouviano” mostra-se como meio de arrecadação de receita, desincentivo de consumo e custeio das atividades estatais necessárias à prestação estatal para correção das externalidades provocadas.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS Foi apresentada uma brevíssima consideração acerca da questão da extrafiscalidade do IPI incidente sobre o cigarro como instrumento de indução comportamental e política pública de combate ao tabagismo com a finalidade de proteger e promover a o direito social à saúde, demonstrando a grande utilidade de tal medida. Ao se analisar a relação preço versus demanda, foram esses dois elementos isolados de outro que inevitavelmente influenciam nos resultados obtidos. Entretanto, o presente trabalho faz parte de um projeto de longa duração, que busca, na verdade, questionar a real efetividade da tributação como política pública de combate ao tabagismo. Pretende-se, a longo prazo, analisar cada uma – ou, ao menos, algumas – das variáveis que trazem grande complexidade e dificuldade ao alcance do objetivo buscado, destacando-se, entre elas, o vício. De todo modo, é inegável a importância do contínuo debate acerca das possibilidades de resultados provenientes de políticas públicas que combatam o tabagismo e demais práticas que possam influenciar negativamente o saúde e o bem estar social. A tributação ganha, então, destaque por figurar como um meio economicamente viável – e rentável – para o Estado, haja vista ser responsável por um acréscimo patrimonial do Estado, enquanto grande parte das políticas antitabagistas resulta em dispêndio de recursos públicos. REFERÊNCIAS BARBOSA, Hermano Antonio do Cabo Notaroberto. Regulação econômica e tributação: o papel dos incentivos fiscais. In: DOMINGUES, José Marcos (Coord.). Direito tributário e políticas públicas. São Paulo: MP ed., 2008. p. 237-298. BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. DOU, Brasília, DF, 05 out. 1988. Disponível em: . Acesso em: 21 jan. 2016. ______. Decreto Legislativo n. 1.012, de 2005. Aprova o texto da Convenção-Quadro sobre Controle do Uso do Tabaco, assinada pelo Brasil, em 16 de junho de 2003. DSF, Brasília, DF, 27 out. 2005. Disponível em: < http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decleg/2005/decretolegislativo-1012-27-outubro-2005-539059-convencao-quadro-36837-pl.html>. Acesso em: 21 jan. 2016. ______. Lei n. 5.172, de 25 de outubro de 1966. DOU, Brasília, DF, 27 out. 1966. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L5172.htm>. Acesso em: 20 jan. 2016. ______. Lei n. 12.546, de 14 de dezembro de 2011. DOU, Brasília, DF, 15 dez. 2011. Disponível em: < http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Lei/L12546.htm>. Acesso em: 21 jan. 2016. COOTER, Robert; ULEN, Thomas. Direito & economia. Tradução de Luis Marcos Sander e Francisco Araújo da Costa. 5. ed. Porto Alegre: Bookman, 2010. 560p. ELALI, André. Tributação e regulação econômica: um exame da tributação como instrumento de regulação econômica na busca da redução das desigualdades regionais. São Paulo: MP Ed., 2007. 190p. FIOCRUZ. Pesquisa aponta que aumento de impostos reduz consumo de cigarros. Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 02 jun. 2014. Disponível em: < http://portal.fiocruz.br/pt-br/content/pesquisa-aponta-que-aumento-de-impostos-reduz-consumo-de-cigarros>. Acesso em: 08 jan. 2016. GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na constituição de 1988: interpretação e crítica. 16. ed. São Paulo: Malheiros, 2014. 384p.

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SOLUÇÃO DE VIA ÚNICA: O PUNITIVISMO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS E A IMPOSIÇÃO DA PENA PELO SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

Iricherlly Dayane da Costa Barbosa Graduanda em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco, integrante do Grupo Asa Branca de Criminologia e bolsista na Iniciação Científica (PIBIC/CNPq). [email protected] João André da Silva Neto Graduando em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco, integrante do Grupo Asa Branca de Criminologia e voluntário na Iniciação Científica (PIBIC/UNICAP). [email protected] Marília Montenegro Pessoa de Mello Doutora em Direito pela UFSC, professora de Direito Penal na Universidade Católica de Pernambuco e UFPE e coordenadora do grupo Asa Branca de Criminologia. [email protected]

SUMÁRIO: 1. Considerações preliminares; 2. Metodologia; 3. PERSPECTIVAS DO SISTEMA PENAL; 4. DEAMs, JECrims e a Lei Maria da Penha; 5. “Proteção” que silencia: constatações de uma pesquisa de campo; Considerações finais; Referências.

CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES A Lei 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha, surge num contexto de grande reivindicação popular e midiática, como também, dos movimentos de mulheres e organizações feministas. Os seus objetivos declarados que são o da prevenção e coibição da violência doméstica e familiar contra a mulher, estão inseridos num contexto constituído por muitas barreiras e resistências. Uma delas é o próprio motivo de sua criação, ou seja, o machismo e os tradicionais estereótipos de gênero ainda entranhados na sociedade brasileira, assim como as resistências, para além do social, que encontram seus representantes no cenário político. Medidas que procuram enrijecer o sistema penal, maximizá-lo no que tange a violência doméstica e familiar contra a mulher, assim como controlar e silenciá-la encontram largo espaço na sociedade brasileira. Nessa perspectiva, foi feita a pergunta pela eficácia e aplicabilidade da Lei Maria da Penha. Adotou-se como referencial teórico um discurso à luz da Criminologia Crítica, tendo em foco o dilema do sistema penal como propagador de violência estatal (e estrutural) seletiva que oculta a origem do conflito, escolhendo seletivamente e simbolicamente um culpado para impor-lhe uma pena. E sua inapropriação para resolver os conflitos domésticos e familiares, tendo em vista o fato de que o Direito Penal ao invés de minimizar o conflito, acaba criando outros novos conflitos, que terminam por envolver além da mulher, seus familiares e o seu agressor, a partir da consciência de que o processo penal já corresponde a uma pena.

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1. METODOLOGIA. O levantamento dos dados desta pesquisa se deu pela utilização de duas técnicas distintas, porém complementares, visto que uma fornece elementos para a possível construção da outra: a documentação indireta e a documentação direta (cf. LAKATOS; MARCONI, 1991, 174-183). Por meio da primeira técnica, foram feitas análises e estudos interpretativos e críticos, tanto de fontes documentais (textos legislativos e jurisprudenciais), quanto de fontes bibliográficas (livros, artigos, revistas especializadas e publicações avulsas). O estudo documental e bibliográfico desenvolvido na primeira parte da pesquisa teve a finalidade de munir a pesquisadora de fundamentação teórica para o desenvolvimento satisfatório da segunda etapa da pesquisa, que foi realizada na 1ª Vara de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher do Recife (VVDFMR), que consistiu na pesquisa de campo. Na pesquisa de campo foram coletados e analisados os processos criminais com sentenças prolatadas ao longo de 1 (um) ano, de 01 de junho de 2013 a 31 de maio de 2014, na VVDFMR. Entretanto, faz-se necessário pontuar que a pesquisa deveria contar com a totalidade dos processos criminais com sentenças prolatadas no lapso temporal supracitado (contabilizando um universo de 177 processos); no entanto 09 deles tiveram que ser descartados porque não foram encontrados, em hipótese alguma, na Vara. Contudo, a pesquisa não ficou comprometida, tendo em vista que será realizada a análise de 168 processos (94.91% do total). 2. PERSPECTIVAS DO SISTEMA PENAL. O sistema penal que conhecemos hoje se desenvolveu durante os séculos XVIII e XIX tendo sua base nas ideias liberais e na ideologia da defesa social, além de afirmar-se como ultima ratio, sendo usado teoricamente apenas quando os demais ramos do Direito não conseguissem resolver o conflito em questão (PINTO, 2002). Esse sistema trouxe consigo a ideia de uma proteção que atuaria tanto de forma geral, intimidando a sociedade e consequentemente desmotivando o advento de novas infrações penais, quanto de forma especial, visando uma “ressocialização” do infrator. Contudo, o que é visto na prática é a atuação de um sistema seletivo que escolhe sua clientela e que atua através da lógica de higienização social imposta pelo capital; de tal forma que para uns existirão as garantias individuas e para outros a mão de ferro do Estado Punitivo. O sistema que atuaria como última medida apresenta-se hoje como um sistema em larga expansão. Por trás de um discurso emergencialista trazido por uma lógica de medo e justificador do Estado de Exceção esconde-se uma lógica liberal de atuação, onde o Estado garantidor é mínimo e o Estado punitivo é máximo. Por sua vez, analisando-se especificamente a questão de gênero, o Direito Penal tem um histórico no qual a mulher sempre foi colocada no polo passivo, por sua condição de “vulnerável” e “inferior”, desde que atendesse à “lógica da honestidade” (ANDRADE, 2005). Foi seguindo essa lógica que se firmou ainda mais uma sociedade patriarcal, que legitimava, com o auxílio do sistema penal, condutas que diziam visar a “defesa da honra” e a “proteção da família”. E por trás dessa “defesa” legitimada pelo sistema, muitos casos de violência contra a mulher foram silenciados. (BARATTA, 2009). Como não havia igualdade de direitos entre homens e mulheres, a maioria dos crimes praticados contra a mulher não chegava ao conhecimento das autoridades ou, quando chegava, por algum motivo, não resultava em processo criminal, gerando a chamada “cifra oculta” do crime. Por conseguinte, tinha-se falsa impressão de que não havia violência alguma contra a mulher. A mulher só começou a ter algum tipo de visibilidade após a vigência da Constituição Federal Brasileira de 1988, quando os direitos das mulheres e dos homens foram equiparados. Contudo, a violência doméstica e familiar contra a mulher só começou a ser evidenciada a partir do surgimento dos Juizados Especiais Criminais, em 1995, quando o número de denúncias relativas a esse tipo de violência passou a ser alarmante.

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Depois de evidenciada pelo sistema, a violência doméstica e familiar contra a mulher começou a ser publicizada e assim aumentaram os clamores por uma punição mais severa e um meio emancipador para a mulher, clamores que não vieram mais exclusivamente do movimento feminista, mas da sociedade como um todo. Foi devido a essa pressão social que o legislador viu-se obrigado a tomar uma medida, e de forma imediatista elaborou a Lei 11.340/2006 – Lei Maria da Penha. Entretanto, faz-se necessário avaliar até que ponto essa lei penal tem condições de solucionar o conflito relativo à violência doméstica e familiar contra a mulher, sendo, também, um meio emancipatório. E é imprescindível atentar para o fato de que nas últimas décadas nossa política criminal foi sempre uma política emergencial, não amparada por qualquer arcabouço teórico e apartada de dimensões axiológicas, resultando assim em um Direito Penal Máximo, inflacionário e inefetivo (FERRAJOLI, 2002). 3. DEAMS, JECRIMS E A LEI MARIA DA PENHA. O combate institucionalizado à violência doméstica teve seu início na década de 70, através do SOS Mulher, que servia como um centro de atendimento para as vítimas. De modo que através dele as agressões sofridas pelas mulheres tomaram certa visibilidade, o que possibilitou a criação das Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAM). Apesar de terem sido criadas com o propósito de atuar como as demais delegacias, na prática, tais delegacias tiveram suas funções alteradas. Ao invés de instaurar um inquérito, as mulheres procuravam as DEAMs para que seu conflito fosse mediado. A pretensão não era penalizar o agressor, mas apenas intimidá-lo (uma coação informal). O espaço servia para um aconselhamento e evitava a atuação impessoal da Lei Penal. Por sua vez, os Juizados Especiais Criminais (JECrims), regulamentados pela Lei 9.099/95 em atenção ao disposto no artigo 98, I, da Constituição Federal, surgiram como uma alternativa à desburocratização da pesada máquina de persecução penal (CAMPOS; CARVALHO, 2006). Esses juizados passaram a receber os casos de violência doméstica contra a mulher, com exceção apenas do homicídio, do abuso sexual e das lesões mais graves. Dos casos que chegavam aos juizados especiais cerca de 70% tinham como autoras mulheres vítimas de violência doméstica. Contudo, por mais que os JECrims tenham implicado no desvelamento da violência doméstica, tal fato não foi capaz de minimizá-la ou de encontrar outras formas de tratamento preventivo ou repressivo (CAMPOS; CARVALHO, 2006). O tratamento dado aos casos de violência doméstica contra a mulher equiparando-os aos crimes classificados como de menor potencial ofensivo menosprezou a peculiaridade e a complexidade da situação, e tirou do debate a violação a direitos fundamentais que é tal violência. De modo que 90% dos casos de violência doméstica contra a mulher trazidos aos juizados eram arquivados, e os que tinham alguma resposta do poder público à violência sofrida, o agressor era condenado, por meio da substituição das penas privativas de liberdade por penas restritivas de direitos, a pagar cestas básicas a alguma entidade filantrópica ou pequena multa em dinheiro. (CAMPOS, 2011). Dessa forma, não demorou muito para que o modelo de atuação dos Juizados Especiais Criminais começasse a ser questionado. Como afirma Campos e Carvalho (2006, p. 413) Sem observar a predominância histórica do paradigma masculino que se infiltrou na nova Lei, a maioria dos juristas, inclusive número expressivo da crítica jurídica, acabou por não considerar em suas análises tais implicações. A mais importante deriva do fato de que, em se tratando de violência de gênero, o polo passivo (da relação penal material) é composto majoritariamente de mulheres. Assim, a exclusão da análise de gênero sobre a Lei 9.099/95 impossibilitou compreender as diferenças da incidência do controle formal sobre as mulheres.

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De maneira que a banalização feita nos juizados especiais em relação a violência doméstica, tornou-se algo latente até aos olhos das novelas brasileiras (a exemplo da novela Mulheres Apaixonadas, 2003, do canal Globo). As críticas em relação ao crescimento da violência doméstica (o que não corresponde necessariamente a um aumento real dos casos de violência doméstica, mas que estes estavam tomando visibilidade) e a permissividade da lei com os agressores, ensejaram o apoio midiático e populacional, que pressionaram o Estado a tomar uma resposta política, e a Lei 11.340 foi sancionada. A Lei Maria da Penha veio com o escopo de ampliar os mecanismos estatais de proteção da mulher, criando meios de prevenir e coibir a violência doméstica e familiar. A Lei 9.099/1995 foi afastada, não incidindo mais sobre os casos de violência doméstica e familiar (art. 41, Lei 11.340/06), uma vez que a violência doméstica não poderia mais ser vista como um delito de menor potencial ofensivo, mas deve ser tratada em toda a sua complexidade no que tange áreas penais, cíveis etc., como a peculiaridade do envolvimento afetivo característico da agressão. Além de facilitar o acesso à Justiça, a nova Lei possibilitou a utilização de medidas protetivas de urgência, previu a criação de grupos multidisciplinares de apoio à vítima, unidades de atendimento aos agressores e trouxe para o Estado a responsabilidade de se utilizar de medidas de prevenção à violência doméstica contra a mulher. A Lei expressamente declara seu objetivo de amplificar os mecanismos de atuação do Estado no tratamento dos casos de violência doméstica e familiar, não se restringindo ao viés da punição penal do agressor: uma previsão que não resistiu a empiria. Contundo, faz-se necessário evidenciar o enrijecimento trazido pela Lei Maria da Penha. Tal lei também aumentou o referencial quantitativo da pena em abstrato dos crimes de violência doméstica (de seis meses a um ano, para de três meses a três anos) de modo que eles deixaram de ser considerados Crimes de Baixo Potencial Ofensivo; possibilitou a utilização da prisão preventiva quando o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher; vedou a possibilidade de condenação à prestação pecuniária ou ao pagamento isolado de multa; e afastou expressamente, no seu artigo 41, ou seja, a aplicação da Lei nº 9.099/95. A incidência da Lei Maria da Penha e consequente vedação de atuação dos Juizados Especiais Criminais em casos de violência doméstica não vem conseguindo minorar, no âmbito familiar, a figura da violência doméstica. Essa Lei, que pretendia também trazer um empoderamento para a mulher vem fraquejando frente à lógica penal (e ainda patriarcal) vigente.

4. “PROTEÇÃO” QUE SILENCIA: CONSTATAÇÕES DE UMA PESQUISA DE CAMPO Depois de um ano de pesquisa o que pôde ser visto foi que a lei, que deveria dar voz a mulher, até então calada por esse Sistema, vem mais uma vez reforçar o caráter apropriador de conflitos da lógica penal. A vítima, maior interessada na resolução do conflito, continua tendo sua voz usurpada por um Sistema que diz (falsamente) a proteger; que tem como função real, como nos diz Andrade (2006, p.28), “manter estruturas, instituições e simbolismos, razão pela qual, repita-se, não pode ser um aliado no fortalecimento da autonomia feminina”. Na maioria das vezes, como pôde ser visto no desenvolver da pesquisa de campo, o que é almejado pela mulher não é a persecução penal, mas o rompimento do ciclo de violência e a consequente retomada da paz familiar. Conforme os dados coletados na pesquisa de campo, dos casos passíveis de retratação, a porcentagem de mulheres que pediram a retratação foi de 41%, as que expressaram o desejo de retratar e foram obstadas em razão da superação do prazo legal para tanto foi de 6%, quase 50% das mulheres, valendo a ressalva presente no comentário acerca do fato pela pesquisadora Carolina Salazar, essa parcela poderia ultrapassar os 50%:

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Observe, no gráfico acima, que há a indicação de casos em que a mulher desejou retratar-se e foi obstada de assim proceder em razão da superação do prazo legal concedido para tanto (6%). A prévia contemplação dessa possibilidade na pesquisa documental se deu em razão da visualização, na pesquisa etnográfica, de inúmeros casos em que a vontade de retratar da mulher era tolhida pela superação do prazo no qual a lei lhe facultava o exercício da retratação da representação. Já esperava, entretanto, a baixa frequência de tal informação nos resultados da pesquisa documental porque constatei que, no cotidiano da VVDFMR, a informação de que uma mulher manifestou a sua vontade de retratar no período em que a Lei não mais lhe permitia é raramente é incluída no processo. (MEDEIROS, 2015, pg 110)

Dados ainda mais significativos são os dos processos em que há a referência expressa que a mulher manifestou vontade de “desistir” do processo, nos casos em que os crimes não são passíveis de retratação. Corresponde a 28,8% o percentual no qual foi expresso no processo a vontade de desistência da mulher. Levando em consideração a mesma ressalva feita para os crimes passíveis de retratação, o percentual aqui mostrado de 28,8% é quando pensado nos desejos não incluídos no documento do processo. Estes dados só confirmam o fato de que uma parcela considerável das mulheres não deseja a continuação do processo, nem a criminalização dos seus agressores, tendo suas vontades tolhidas. Nesse Sistema Penal que impera não há espaço para outras formas de resolução de conflitos; ele reduz o possível leque de soluções que a vítima poderia trazer, tendo em vista que ninguém sabe mais de suas necessidades do que ela própria, à única resposta que o Direito Penal sabe dar: o punitivismo encarcerador. Frente à lógica processual penal, é relegado à mulher o papel secundário na ação penal. Após a informação oficial da ocorrência ou após a representação penal, a vítima não passa de uma mera informante e seus anseios pouco importam; a prioridade nesse momento passa a ser a condenação do réu. Trata-se de uma estrutura processualística que neutraliza a vítima e apropria-se do conflito (FAYET JÚNIOR; VARELA, 2014). As audiências do artigo 16, que antes eram realizadas para saber se a mulher desejaria retratar ou não, nem são mais realizadas na Vara na qual se deu a pesquisa de campo, como forma de fazer com que elas não se sintam pressionadas a desistir (e aqui já vemos uma atuação que, visando “proteger” a mulher, acaba por retirar parte do seu poder de resolução do conflito). Sem as audiências, muitas das mulheres que desejavam retratar acabam não o fazendo por não conhecerem os trâmites legais. Sendo importante pontuar o baixo nível de instrução dos homens (apenas 12,5% tem o ensino superior completo ou incompleto) e mulheres (apenas 15,5% tem o ensino superior completo ou incompleto) que frequentam a Vara. Quando vêm após o prazo para retratação, muitas vezes não entendem do que se trata e acabam por retornar várias e várias vezes na tentativa de desistir de um processo que não procuraram. E é nesse contexto que começa a acontecer um novo silenciamento por parte das mulheres. Quando ficam sabendo da possibilidade de prisão do seu agressor e da sua “impotência” perante o processo penal, as vítimas acabam preferindo o silêncio à denúncia. O Sistema Penal foi criado em uma lógica que trabalha com delitos que envolvem partes que pouco se conhecem (ou nem se conhecem) e lida com tais delitos de forma objetiva, pragmática. Entretanto a violência doméstica foge completamente a essa lógica. Trata-se de um crime que envolve, em sua maioria (73,7%), pessoas que já foram ou ainda são parceiros íntimos e que, por sua vez, possuem um forte laço afetivo, com o qual o Sistema Penal não está preparado para trabalhar. E ainda, dos homens e mulheres que tiveram um relacionamento íntimo, 64% deles tiveram filhos; o que só tende a aumentar a ligação afetiva entre vítima e suposto agressor. Fica claro também que o maior interesse das vítimas é pelas Medidas Protetivas de Urgência, tendo em vista que em 70,2% dos processos analisados tais Medidas foram solicitadas (sendo 89,6% delas solicitadas pela própria vítima perante à autoridade policial). No entanto, as mulheres só têm direito às Medidas

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Protetivas caso estas estejam vinculadas à um Processo Criminal, Processo esse que não é bem quisto por boa parte das vítimas, tendo em vista que 43,5% dos processos averiguados foram extintos sem resolução do mérito por motivos diretamente relacionados à vontade da mulher (29,8% retratação; 10,1% decadência; 2,4 % renúncia ao direito de queixa ou perdão; e 1,2% perempção). Dessa forma fica evidente que o Sistema de Justiça Criminal só “protege” aquelas mulheres que permitem a sua atuação. A decisão pela aplicação das medidas protetivas de urgência em Ação Cível, ou seja, autônomas ao processo penal, encontra divergência na jurisprudência do STJ, sendo infelizmente, minoria no tocante ao tema. (Vide Recurso Especial Nº 1.419.421, do Relator Luis Felipe Salomão, 2014). Há uma resistência por parte da doutrina e da jurisprudência em fundir as esferas cíveis e penais no tratamento da violência doméstica, o que vai de encontro com o escopo da Lei, que visa, para além da alçada penal, prevenir e coibir a violência de gênero através de mecanismos além dos penais, sejam cíveis, administrativos ou de qualquer outra natureza, sendo um retrocesso limitar os mecanismos da Lei a criminalização penal (Vide art. 7 da Lei 11.340/06). De forma que o entendimento preponderante de que as medidas protetivas de urgência devem estar atreladas a um processo penal, ao invés de tornar as medidas protetivas uma possível solução do conflito sem necessidade da intervenção penal, faz com que elas se configuram como uma antecipação ou acréscimo da punição: As medidas não-penais de proteção à mulher em situação de violência, previstas nos arts. 9º, 22 e 23 da Lei Maria da Penha, mostram-se providências muito mais sensatas para fazer cessar as agressões e, ao mesmo tempo, menos estigmatizantes para o agressor. Entretanto, inseridas em um contexto criminalizante, pode-se imaginar que logo estaremos assistindo à colonização das medidas protetivas pelas iniciativas tendentes à punição (mesmo antes da condenação) dos supostos agressores, nos casos que conseguirem ultrapassar a barreira do inquérito e alcançarem uma audiência judicial, quem sabe quanto tempo depois do momento da agressão (AZEVEDO; CELMER, 2007, p. 12, apud MEDEIROS, 2015, p. 40).

O que se evidencia é que em nenhum momento é dado à mulher o protagonismo da Ação Penal. Não cabe, dessa forma, à mulher decidir qual a melhor maneira de resolver ou amenizar seu conflito; até porque, a partir do momento em que a vítima autoriza a persecução penal o conflito deixa de ser dela e seus anseios não mais importam, a única coisa que importa é saciar a sede punitiva do Sistema e da população que buscam em todos os casos de violência doméstica encontrar uma Maria da Penha. A mulher que vinha sendo subjugada no âmbito privado, pelo seu suposto agressor, agora passou a ser subjugada no âmbito público, pelo Sistema de Justiça Criminal. Sistema esse que como nos diz Andrade (2003, p. 120): [...] não apenas é estruturalmente incapaz de oferecer alguma proteção à mulher, como a única resposta que está capacitado a acionar – o castigo – é desigualmente distribuído e não cumpre as funções intimidatória e simbólica que se lhe atribui. Em suma, tentar a domesticação da violência com a repressão implica exercer, sobre um controle masculino violento de condutas, um controle estatal tão ou mais violento; implica uma duplicação do controle, da dor e da violência inútil.

Dessa forma, o Sistema Penal, devido a seus mecanismos processuais e sua lógica de atuação, fez o que seu histórico mais remoto já vinha apontando: as calou. É como diz Otero (2008, p.47-49), “o conflito, portanto, é subtraído, por completo, da órbita de alcance das partes envolvidas e as múltiplas formas de solução disponíveis são forçosamente substituídas pela aplicação de uma lógica punitiva”. E uma das consequências disso tudo é que as mulheres estão começando a preferir o silêncio à dolorosa e ineficiente intervenção penal.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS É evidente a necessidade de mecanismos que minorem a violência doméstica. Contudo é preciso que tais mecanismos sejam pensados para além do Sistema de Justiça Criminal. O Sistema Penal não protege as mulheres de novas violências, não escuta os anseios das partes envolvidas (principalmente os da vítima), não contribui para transformação das relações de gênero (tendo em vista seu caráter predominantemente repressor) e pior, revitimiza as mulheres que veem-se sem poder algum diante de seu próprio conflito. O Direito Penal tem um histórico de subjugamento da figura feminina, de manutenção de um pátrio poder, e essa característica perdura até a atualidade. Não é possível que o Sistema que até hoje oprime, e que ainda trabalha com parâmetro de honestidade feminina, venha trazer a proteção tão almejada. É preciso dar espaço para que novas medidas sejam postas em prática, ou que medias já existentes possam ter uma aplicação diferente, como é o caso das Medidas Protetivas de Urgência que poderiam começar a ser aplicadas independentemente da existência de um Processo Criminal vinculado a elas. Entretanto, o principal é dar voz às mulheres vítimas da violência, é considerar que só elas sabem as particularidades que envolvem o seu conflito, só elas sabem os desdobramentos que determinadas medidas podem proporcionar. É preciso perceber que essas mulheres não podem continuar sendo caladas, nem mesmo por outra mulher. E por fim, faz-se necessário pontuar que ao desconsiderar a forte questão afetiva que envolve o crime de violência doméstica, muito provavelmente, a Lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha) está incorrendo em um erro tão grave quanto o cometido pela Lei 9.099/95 (Lei dos Juizados Especiais) ao desconsiderar a questão de gênero que este crime também envolve. REFERÊNCIAS ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A soberania patriarcal: o sistema de justiça criminal no tratamento da violência sexual contra a mulher. Revista Sequência, Florianópolis, ano XXV, n. 50, p. 71-102, julho, 2005. ______. Criminologia e feminismo. In: CAMPOS, Carmen Hein de (org.). Criminologia e feminismo. Porto Alegre: Sulina, 1999. _______. Sistema Penal Máximo x Cidadania Mínima: códigos da violência na era da globalização. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. 2. Ed., Rio de Janeiro: Freitas Bastos: Instituto Carioca de Criminologia, 1999. ______. O paradigma do gênero: da questão criminal à questão humana. In: CAMPOS, Carmen Hein de (org.). Criminologia e feminismo. Porto Alegre: Sulina, 1999. BATISTA, Nilo. Os sistemas penais brasileiros. In: ANDRADE, Vera Regina Pereira de. (org.). Verso e reverso do controle penal: (des) aprisionando a sociedade da cultura punitiva. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2002b. BECKER, Howard S. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Zahar: Rio de Janeiro, 2009. CAMPOS, Carmen Hein de. Lei Maria da Penha comentada em uma pesquisa jurídico-feminista. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2011.

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NEOCONSTITUCIONALISMO E NEOPROCESSUALISMO COMO INSTRUMENTOS PARA EFETIVAÇÃO DA JUSTIÇA E FORTALECIMENTO DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO Jaqueline Maria de Vasconcelos Graduanda em Direito pela Faculdade Boa Viagem, monitora em Direito Constitucional, pesquisadora do PICT/FBV DeVry-Brasil, colaboradora do Núcleo Multidisciplinar de Pesquisa em Direito e Sociedade (NPD/CNPq/UFRPE) e estagiária concursada da Caixa Econômica Federal. [email protected] Patrícia Freire de Paiva Carvalho Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP), pós-graduada em Direito Processual Civil pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (MACKENZIE), mestre em Direito Processual pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). Professora de Direito da Faculdade Boa Viagem – Devry (FBV-DEVRY). [email protected]

SUMÁRIO: 1. Contextualização; 2. A cooperação entre os sujeitos processuais e o “novo” juiz no Estado Democrático de Direito; 3. Influências do Novo Código de Processo Civil e os princípios da Dignidade da Pessoa Humana e Acesso à Justiça; Considerações finais; Bibliografia

CONTEXTUALIZAÇÃO Como já dizia Franco Júnior (1999, p. 180) “um mundo obsessionado pela atualidade é um mundo obsessionado pelo esquecimento.” Tendo isso em vista, o presente trabalho foi disposto de modo a realizar um breve retrospecto histórico. Neste ano de 2015, a Magna Carta do Rei João Sem Terra completa os seus 800 anos e pergunta-se, oportunamente, o porquê de toda sua relevância. Ora, é indubitável que a Carta de 1215 constituiu uma verdadeira quebra de paradigma, uma vez que ousou ao impor diversas limitações ao poder do rei, o Absolutista. Mas, além disso, ela já trouxe consigo institutos que são utilizados até hoje, no qual, dentre eles, tem-se o Law of the Land (lei da terra/ devido processo legal), que hoje configura a base para manutenção do Estado Democrático de Direito, como Lucon (1999, p. 113) compreende: “a cláusula genérica do devido processo legal tutela os direitos e as garantias típicas ou atípicas que emergem da ordem jurídica, desde que fundadas nas colunas democráticas eleitas pela nação e com o fim último de oferecer oportunidades efetivas e equilibradas no processo.” Imerso nesse contexto histórico de lutas sociais, Revoluções e conquistas, verifica-se, por outro lado, a carência de um “novo” juiz que se adeque às necessidade de um mundo dinâmico e globalizado, que desenvolva de forma criativa sua função interpretativa da norma à luz dos preceitos constitucionais, trazendo consequências ao resultado da sua aplicação, demonstrando a preocupação do Estado, a quem recebeu a missão de representar, com as exigências sociais. Atualmente, não se admite mais o juiz como mero expectador, simples reprodutor na lei, como se dava no Estado Liberal, no qual ele era servo da legislação, sua atividade se restringia a aplicar a lei. Em contraposição ao que ocorria no Direito Liberal, o formalismo moderno repudia o juiz limitado a aplicação

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das normas de forma automática, desassociado dos valores sociais, do direito material e da efetividade do processo. Ademais, nota-se o enorme avanço da iminente legislação processualista no momento em que promete conferir a possibilidade de influir na decisão do juiz de modo preventivo, antes mesmo do recurso, estimulando um Estado-juiz mais proativo e ativo em prol de um Estado efetivo, que paulatinamente desentranhe da população a inerente imagem de uma justiça lenta, falha e que olvida os direitos e garantias fundamentais. É nesse espectro de mudanças e busca por um juiz mais ativo e proativo no processo civil, com vistas a aproximá-lo do direito material, que surge o princípio da cooperação entre os sujeitos processuais, que se devidamente aplicado, dá uma nova roupagem a garantia constitucional do contraditório, tornando-o mais eficaz no sentido de oportunizar as partes não apenas a possibilidade de se manifestar (PARCHEIN, 2012). Mas também de ajudar, efetivamente, o juiz na apuração e esclarecimento dos fatos ensejadores do conflito, a fim de que o raciocínio jurídico por ele firmado quando na prolação da decisão seja com base na verdade real, verdade material e não na verdade dos autos, verdade formal, muitas vezes construída em cima de presunções decorrente de omissão da parte, ou alegações truncadas, provas mal instruídas, por exemplo. Nesse sentido, é que o Novo Código de Processo Civil enfatiza os princípios processuais constitucionais, como o do contraditório, ampla defesa e motivação das decisões Os dois primeiros encontram ênfase na maior cooperação entre os sujeitos processuais, a partir de uma dialética mais ampla, dinâmica e horizontal do processo (LAUAR, 2011) O diálogo entre as partes e dessas com o magistrado a partir do novo código de processo civil ganha contornos mais profundos. Está previsto o dever do juiz auxiliar as partes quando estiverem com dificuldades para realização de qualquer diligência ou obtenção de alguma prova, a possibilidade do juiz pedir esclarecimento as partes de assunto que vislumbrou pouco ou mal explorado na inicial ou contestação, de prevenir as partes dando a possibilidade de sanar vícios e evitar decisões surpresas, advertindo-lhes, por exemplo, de questões de ordem pública que pensam estar visualizando nos autos, dando-lhes oportunidade de se manifestarem a respeito, antes de ser emitida qualquer decisão, ou seja,  ofertando a possibilidade de influir no poder de decisão do juiz nessas matérias de modo preventivo e não apenas por meio de recursos. Com isso, almeja-se um juiz que não apenas estimula as partes a prestarem esclarecimentos de alegações por elas realizadas, como também as ajudam a afastar pequenos empecilhos que surjam para que consigam dar o bom andamento ao processo e, ainda, as consultam acerca de alguma questão de mérito que surja, até mesmo de ordem pública, para que se manifestem antes de proferir sua decisão, evitando decisões surpresas e as proferindo de forma mais madura, com maior poder de convencimento (PARCHEIN, 2012). Não há de se admitir uma interpretação gramatical da norma, como no Estado Liberal, tampouco o juiz como sujeito supremo, um deus, no processo. Requer uma atividade interpretativa que vá além do texto impresso da lei, que supere por definitivo o Estado Legalista, que descaracterize a Constituição simbólica, aos moldes do professor Marcelo Neves, que não apenas garanta o direito de poucos, mas o direito de todos. O juiz como sujeito cooperativo às partes e essa iteração total entre todos os sujeitos processuais ultrapassará as barreiras da doutrina e jurisprudência com a vigência do Novo Código de Processo Civil, em 2016. Isso porque o seu texto positivará essa postura colaborativa, dará sustento a esse novo conceito de contraditório, influenciado pelo princípio da cooperação, modificando por completo a estrutura processual do Código de Processo Civil de 1973, vinculado ao direito formal (GRECO, 2005). Desta forma, através do método dedutivo com o levantamento bibliográfico de livros, artigos e periódicos, serão postos em xeque os avanços e as limitações neoprocessuais, assim como a intensidade de sua ligação com o movimento neoconstitucionalista em busca dos valores sociais e da construção de técnicas que torne a prestação jurisdicional mais célere e efetiva.

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1. A COOPERAÇÃO ENTRE OS SUJEITOS PROCESSUAIS E A NECESSIDADE DO JUIZ HERMES. O Estado Democrático de Direito é de salutar importância para a construção e manutenção de uma sociedade justa e harmônica. Entretanto, construir e manter esses ideais sociais não é uma tarefa fácil e faz emergir a busca constante a novas técnicas para o aperfeiçoamento jurídico. Como traz Eduardo Cambi (2007, p.24), “a função dos juízes, pois, ao contrário do que desenvolvia Giuseppe Chiovenda, no início do século XX, deixou de ser apenas atuar (declarar) a vontade concreta da lei e assumiu o caráter constitucional.” Dessa forma, tem-se um processo como produto da relação e interação de todos os sujeitos. Um juiz proativo buscando a apuração e demonstração da verdade, juntamente com as partes, seja esclarecendo dúvidas, seja ele mesmo solicitando esclarecimentos sobre as alegações das partes ou as orientando, quando necessário. Sob esse prisma de cooperação, o contraditório passa contribuir efetivamente, como busca à verdade material e efetivação da decisão judicial, para a formação do convencimento do juiz. Isso porque passará a atuar como anteparo à lacunosidade ou insuficiência da sua cognição, por meio do caráter dialético do processo, nitidamente presente ante os deveres conexos ao princípio da cooperação, a saber: de esclarecimento, auxílio, consulta e prevenção. O que se percebe é que mesmo diante de uma legislação processual civil que privilegia a verdade formal, como o código vigente, de 1973, os anseios da sociedade moderno começou a cobrar mais do juiz da condução do processo, exigindo um ativismo antes desconhecido. Por essa razão, é que surgiu o princípio da cooperação entre os sujeitos processuais, dando nova interpretação e aplicação às regras processuais. O direito moderno, exige um formalismo menos burocrático, com maior margem de liberdade aos sujeitos processuais para demonstrarem e buscarem a verdade real nos autos, o que é essencial para se aproximar ao ideal de justiça, esperada da atividade jurisdicional do Estado. A partir daí é que os juízes modernos passaram a modificar a sua postura, como se pode perceber por meio dos julgados colacionados nesse artigo (LAUAR, 2011). O Estado Democrático de Direito busca de forma progressiva o acesso justo à justiça e é nessa proposta que se encaixa o neoprocessualismo, trazendo consigo uma verdadeira quebra de paradigma, realçando o princípio da dignidade da pessoa humana. Na contramão desse ideal, tem-se a resistência do judiciário para se adequar a essa nova realidade, aos novos tempos. Mas, na verdade, qual modelo de juiz (e de justiça) que se busca? O professor Belga François Ost (MELEU, 2013), traz três modelos de juízes: o Júpter, o Hércules e o Hermes. O primeiro é vinculado a um formalismo exacerbado; o segundo um juiz utópico, com tempo ilimitado e conhecimento absoluto, capaz de exercer a atividade hermenêutica no processo isoladamente, solitário na construção de seu raciocínio para dar solução à lide. Já o modelo herculeano está sustentado na figura do juiz, que seria a única fonte do direito válido. Trata-se de uma pirâmide invertida, no dizer de Ost. É Dworkin quem, no dizer do autor, ao revalorizar até o extremo a figura do juiz moderno, atribui-lhe as características de Hércules. Embora diga que não pretende “equiparar” a tese de Dworkin aos realistas ou pragmatistas, Ost termina por colocar no Hércules dworkiano os “defeitos” que caracterizariam o juiz “monopolizador da jurisdição” no modelo de direito do Estado Social, em que o direito “se reduz ao fato”, enfim, à indiscutível materialidade da decisão. Esse juiz propiciaria um deciosionismo, a partir da proliferação de decisões particulares (STRECK, 2010, p. 22).

O último juiz – Hermes – privilegia a dialética entre os sujeitos processuais, que segue o princípio da cooperação no processo civil, que demonstra a sua influência na atividade judicial através da condução do processo, trazendo consequentemente uma maior efetividade, credibilidade e segurança jurídica, sem a

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própria imparcialidade. “O juiz Hermes não é nem transcendência nem imanência; encontra-se em uma e outra dialética ou paradoxalmente (uma e outra)” (STRECK, 2010, p. 22). Nesse sentido, o Estado Liberal, que possui de forma metafórica o modelo jupteriano de juiz, utiliza(va) a igualdade formal como critério de justiça, com uma interpretação gramatical da lei. A atividade do judiciário, por conseguinte, se torna engessada, limitando-se à literalidade da norma como se fosse o interesse estatal cristalino e legítimo. Nota-se que com essa prática a atividade hermenêutica é tão somente reduzia à técnica gramatical, sem preocupação com a finalidade da norma ou com a sua devida adequação à realidade. Esse modelo hoje tão repudiado, possuía em sua essência o temor do retorno ao modelo de Estado Absolutista. Dessa forma, acreditava-se que se houvesse diferença entre o julgamento e a lei, a liberdade política estaria sendo violada, resultando em uma época do formalismo extremo, sendo conhecida a era da geometrização do Direito. A analogia que se fazia do direito com as ciências exatas se justifica com a missão, hoje sabidamente impossível, conferida ao legislador, de prever solução para todos os casos que pudessem ser objeto de conflito, bem como de acompanhar, a contento, as modificações sociais (GRECO, 2005) Emergia, então, novas necessidades sociais e a modificação dos costumes não comportava mais um direito exacerbadamente formal, dando vez ao modelo de Estado Social decorrente de numerosas lutas sociais entre o proletariado e os detentores do capital. Ao contrário do que se tinha no liberalismo, a proposta do Estado Social era de natureza intervencionista e de compromisso social no que se refere à tutela dos interesses coletivos (BONAVIDAES, 2009).  Mas o Estado Social foi frustrado pelos modelos antagônicos à democracia. Hitler e Mussolini, na Alemanha e Itália, também pleiteavam pela satisfação das necessidades primárias do povo. Ocorre que o totalitarismo anulava a liberdade, as garantias e os direitos humanos. Assim, o pós Segunda Guerra Mundial cravou um verdadeiro marco na luta por instrumentos para efetivação da justiça e de proteção à democracia e ao cidadão, trazendo consigo o Estado Democrático de Direito.   O Estado Democrático de Direito, enquanto paradigma superador de outros tipos de Estado que aconteceram, requer não apenas uma nova hermenêutica constitucional, mas também, um “novo juiz” cujo modo de interpretar e aplicar o direito supere a figura do juiz que poderia servir no Estado absolutista ou no Estado liberal, mas não, no Estado Democrático de Direito. Este, em razão de sua constituição principiológica, necessita de uma hermenêutica constitucional capaz de trabalhar não apenas com regras, mas também com princípios. [...] Essa nova hermenêutica pressupõe a presença de um “novo juiz”. Um juiz que mantenha os olhos abertos aos novos tempos, tempos estes que, se, por um lado, apontam para muitos riscos, por outro, são também de renovação e esperança. Este “novo juiz” caracteriza-se não em razão da idade, mas da mentalidade, isto é, do pensamento que orienta suas ações (GOMES, 2009, p.363).

Nesse contexto, o juiz desempenha função de extrema e reconhecida importância na busca de uma argumentação jurídica mais próxima da hermenêutica constitucional ao invés da legal. O “novo juiz” assumi papel crucial na construção do neoprocessualismo, que consiste em uma verdadeira constitucionalização do processo civil (LOURENÇO, 2011). 2. INFLUÊNCIAS DO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL E O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. Não há que se discutir que o princípio da dignidade da pessoa humana é a premissa maior para o Estado Democrático de Direito e o ponto de partida para qualquer discussão sobre a teoria do direito. Contudo, se observa uma espécie de atrofiamento, que enfraquece a magnitude desse princípio, como Ferreira (2013, p. 9) compreende: “Devido a sua excessiva invocação em muitos casos em que a dignidade da pessoa huma-

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na deveria ser defendida de forma mais vigorosa devido a sua clara violação ela acaba sendo tratada de forma leviana e sem a necessária importância que lhe é devida.” Mesmo com isso, a inclusão de alguns dispositivos no Novo Código de Processo Civil foi algo de diversas críticas. Havia um verdadeiro clamor contra a consignação expressa na legislação infraconstitucional dos preceitos constitucionais e a justificativa se dava no sentido de que aqueles elementos só desempenham meramente papel simbólico, uma vez que mesmo se não houvesse previsão, deveriam ser aplicados (MARINONI, 2010). A argumentação possui bastante coerência, mas desconsiderou o déficit cultural que a sociedade brasileira possui quanto à dependência da legislação infraconstitucional, pois na prática e por vezes, ela se sobrepõe aos ditames constitucionais. Já o neoconstitucionalismo visa fazer da Constituição o início e o fim da interpretação jurídica (ALMEIDA, 2014). Essa revisitação do fenômeno constitucional parte do pressuposto da reafirmação da força normativa da Constituição e sua consequente densificação. Assim, com seu fortalecimento, em que a imperatividade de suas normas atinge todas as searas do Direito, surge uma legalidade superior à legalidade ordinária, deslocando a primazia do legislador infraconstitucional para o cumprimento da vontade do sujeito constituinte, composto de forma plural pelos mais variados segmentos da sociedade (AGRA, 2008, p. 436 Apud LOURENÇO)

Diante desse cenário, o legislador infraconstitucional se preocupou em trazer no Anteprojeto do Novo Código disposições que aproximassem expressamente a Constituição Federal do Processo Civil, no intuito de complementariedade, conforme a teoria circular dos planos processual e material do italiano Francesco Carnelutti. De modo a trabalhar o direito formal e material sem hierarquia, uma vez que ambos são instrumentos para efetivação de uma sociedade livre, justa, solidária. Ora, a atuação do poder judiciário deve ser pautada na busca da efetivação da justiça e dos princípios e fundamentos do Estado Democrático de Direito, de modo que haja pragmatismo dos direitos e garantias fundamentais estabelecidos na Constituição Federal. Dessa forma, verifica-se que essa nova fase do pensamento jurídico, a interpretação da legislação infraconstitucional, que ensejou a nomenclatura “neoprocessualismo”, exige uma adaptação da norma, mas acima de tudo, do sujeito processual, do jurista aplicador do direito (LOURENÇO, 2011). E mesmo sob fortes críticas de prolixidade e simbolismo do anteprojeto do novo código de processo civil, deve-se ter em mente que as cláusulas gerais que serão trazidas na lei buscará tão somente atender aos fins sociais com a devida observância da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência sob ligação direta ao princípio da dignidade da pessoa humana, que não deveria ser novidade em ordenamento jurídico que já trata desses dispositivos em sua Carta Magna há mais de 25 anos. CONSIDERAÇÕES FINAIS A Constituição do Estado e a sua legislação processual, por vezes, são apresentadas dentro de uma faceta hierarquizada, como se o direito material estivesse sempre acima do direito formal. Decerto e não há de se negar que o Direito Constitucional compreende um complexo axiológico que reflete e guia todo o ordenamento jurídico. O Novo Código de Processo Civil, por sua vez, vem quebrando os paradigmas enfatizando os princípios processuais constitucionais, como o do contraditório, ampla defesa e motivação das decisões. Os dois primeiros encontram ênfase na maior cooperação entre os sujeitos processuais, a partir de uma dialética mais ampla, dinâmica e horizontal do processo, no momento em que prevê o dever de o juiz auxiliar as par-

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tes, se necessário, na realização de diligências ou na empreitada pela busca da verdade real com a obtenção de alguma prova. Por meio da consagração do princípio da cooperação, ter-se-á uma quebra de paradigma e forte transubstanciação no processo civil, que passará a adotar novas bases na busca da solução do litígio, a partir da preocupação com a apuração da verdade real, exigindo-se para isso o estabelecimento de uma dialética processual que rompa a simples formalidade do contraditório como binômio de ciência e participação. Em outros termos, exigindo-se do magistrado uma postura bem mais ativa e perto de ambas as partes, estabelecendo-se uma real efetividade à dialética processual na busca de uma resolução mais justa ao caso concreto. A estrutura triangular do processo, na qual o juiz se encontra em posição superior e onipotente cede espaça a sua horizontalização, que prevalece durante o regular desenvolvimento do processo na apuração dos fatos para formar o convencimento do juiz. Com essas percepções, encara-se o novo cenário global e a obsoleta legislação processualista vigente, que diferente do almejado, se torna um elemento aberto para fomentação da cultura protelatória brasileira. Em outras palavras, o direito processual que deveria efetivar a justiça e fortalecer as diretrizes do Estado Democrático de Direito, parafraseando Rui Barbosa, é tardio institucionalizando a injustiça. Dessa forma, a presente pesquisa se pauta na teoria circular dos planos processual e material de Carnelutti, defendendo um sistema de complementariedade entre o direito formal e material, uma vez que ambos são instrumentos para efetivação de uma sociedade livre, justa, solidária. Sabendo que é preciso uma atividade jurisdicional que entenda a necessidade da hermenêutica constitucional da norma à luz dos anseios da sociedade, bem como de um processo civil com menos presunções e mais apuração na busca da verdade material, da visão da importância de uma decisão mais próxima da realidade e, portanto, de uma dialética mais ativa entre os sujeitos processuais. Não se admite mais a interpretação gramatical da norma, como no Estado Liberal, tampouco o juiz como sujeito supremo, um deus, no processo. A atividade interpretativa vai além do que se encontra no texto impresso da norma, pois deve se buscar nele os valores sociais. O século XXI já clama por um juiz ao moldes Hermes, que traceje o seu caminho sob a imparcialidade, sem comprometer a efetividade da jurisdição, com margens para uma atividade que lhe permita ir em busca de uma solução verdadeiramente justa à luz da Constituição Federal. REFENRÊNCIAS ALMEIDA, Plínio Régis Baima. No neoconstitucionalismo, o neoprocessualismo: sobre a eficácia normativa dos princípios e seu uso indiscriminado. XXIII Congresso Nacional CONPEDI, 2014. BONAVIDES. Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros Editores, 2009. CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e neoprocessualismo. Panóptica, Vitória, ano 1, n.6, fev. 2007. Disponível em >. Acesso em dez de 2015. FERREIRA, Renato dos Santos. Neoprocessualismo: o processo como mecanismo de afirmação e efetivação dos direitos fundamentais e como ferramenta de acesso à justiça. Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, 2013. FRANCO JÚNIOR, Hilário. A Idade Média: nascimento do Ocidente. São Paulo: Brasiliense, 1999. GOMES, Sérgio Alves. Hermenêutica Constitucional: um contributo à constituição do Estado Democrático de Direito. Curitiba:Juruá Editora, 2009.

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JURISDIÇÃO E DESCONSTRUÇÃO: UMA ANÁLISE PROCEDIMENTAL DA ARGUIÇÃO DE DESCUPRIMENTO FUNDAMENTAL NO CONSTITUCIONALISMO BRASILEIRO A PARTIR DE JACQUES DERRIDA

Joyce Batista do Nascimento Graduada em Direito pela UNICAP (2012) Pós- graduação em Direito Público, e pósgraduanda em Direito Penal; Sócia fundadora da Bassani & Nascimento Advogados Associados, atua nas áreas Consultiva e Contencioso. Bolsista do CNPQ durante 3 anos desenvolvendo pesquisa na área de Direito Constitucional e Filosofia do Direito. João Paulo Allain Teixeira Professor da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP), Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Católica de Pernambuco (PPGD-UNICAP) (Mestrado e Doutorado), Doutor e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Professor da Faculdade de Direito do Recife (CCJ/UFPE), Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco (Mestrado e Doutorado). Líder do Grupo de Pesquisa REC – Recife Estudos Constitucionais. (CNPq).

SUMÁRIO: Introdução; 1. Teoria da desconstrução por Jacques Derrida; 1.1 Justiça e desconstrução; 1.2 Justiça como aporias;

INTRODUÇÃO A jurisdição constitucional brasileira foi construída num ambiente constitucional democrático e republicano, apesar das interrupções causadas pelos regimes autoritários. Se as influências do modelo difuso de origem norte-americana foram decisivas para a adoção inicial de um sistema de fiscalização judicial da constitucionalidade das leis e dos atos normativos em geral, o desenvolvimento das instituições democráticas acabou resultando num peculiar sistema de jurisdição constitucional (MENDES, 2010). O desenho e organização da jurisdição constitucional brasileira reúnem, de forma híbrida, características marcantes dos clássicos modelos de controle abstrato e de controle concreto de constitucionalidade. A presente pesquisa utiliza-se da teoria da desconstrução como postura filosófico-epistemológica importante para se entender o fenômeno jurídico enquanto algo aberto, complexo e multifacetado. Esta abordagem é encetada por um pensador contemporâneo, um “crítico” da modernidade, que tem como principais influências as novidades trazidas pela reviravolta lingüística. Trata-se de Jacques Derrida e a obra Força de Lei, que traz importantes elementos para se pensar o direito e a justiça sob outras bases filosóficas e epistemológicas, para além do pendular movimento entre as correntes juspositivistas e jusnaturalistas sob as quais se encerrou o problema jurídico nos séculos. Na referida obra o filósofo encaminhou a temática da justiça a partir de um questionamento da força da lei e do direito. Foi possível observar que o mesmo pensou o direito a partir da exposição de suas aporias e enquanto texto (regra, norma, decisão) em busca de realização da justiça, apontando a inevitável (des) construção da própria estrutura interna da normatividade posta (DERRIDA, 2007).

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Esse entendimento permeará as discussões a cerca dos conceitos de justiça e direito a fim de se chegar a um denominador comum, a saber: o papel das cortes constitucionais, em particular o do Supremo Tribunal Federal no Controle de Constitucionalidade Brasileiro bem como os dizeres dos ministros em sede de ADPF nos últimos anos. 1. TEORIA DA DESCONSTRUÇÃO POR JACQUES DERRIDA. Em sua obra Força de Lei, Jacques Derrida questiona a força da lei, com este o autor busca compreender o que faz com que uma lei seja aplicada. Derrida enceta o caminho de uma resposta a partir daquilo que no inglês se diz como “enforceability”. Esta remissão à língua inglesa é esclarecedora, pois com isso se mostra um dos aspectos envoltos na aplicabilidade de uma lei: a aplicação de uma lei exige força. Esta tomada em sentido físico mesmo, tal como Kant postulou na sua teoria do Direito: “(...) o direito apóia-se (...) no princípio da possibilidade de uma coação exterior”. Facilmente se é levado juntamente com Kant a perguntar pela legitimidade da força, - ‘Gewalt’, em alemão - por que a força é justa? Em outras palavras, o que justifica o uso da força? (FERNANDEZ E PACKER, 2008). Interessante frisar que o mesmo pode-se encontrar em Pascal. No fragmento deste último trazido por Derrida, lê-se: “Justiça, força – É justo que aquilo que é justo seja seguido, é necessário que aquilo que é mais forte seja seguido” (DERRIDA, 2007). A primeira parte desse aforismo é tautológica, diz apenas que o justo deve ser seguido porque é justo; a lei deve ser obedecida pelo fato de ser justa, como se a justiça da lei justificasse a sua aplicabilidade. A lei é justa e a justiça é a aplicação da lei. Na segunda parte do aforismo, encontra-se a idéia de que pra que a justiça seja realizada, para que a lei seja obedecida, necessita-se de força; fica claro que justiça e força andam juntas. E o que justifica a força presente na lei é a justiça. Assim, a força não é algo que se acrescenta ou não ao direito, ela faz parte da sua essência. Não há direito sem força. Esse tipo de concepção, porém, tem raízes muito mais antigas, pois Platão já colocava na boca do sofista Trasímaco a afirmação de que a justiça não é outra coisa senão a conveniência do mais forte, e que, portanto, os valores entendidos como justos não são o fundamento da autoridade, mas decorrência das relações de poder (PLATÃO,1994). Todavia, Fernandez e Packer (2008) afirmam que quando Kant menciona o uso da força, ainda não se solucionou de todo o problema, e o mesmo pode se dizer da explicação de Pascal, haja vista que afirmar que aplicar a lei justa é fazer é justiça é incorrer em circularidade, em falta de fundamentação, em falta de razões, em aporia. Resta ainda a pergunta pela força de uma lei, e também a pergunta pela força da força e assim indefinidamente. Não se recorreria a outra força física para justificar o uso da primeira, pois se cairia na mesma aporia, em regressão ao infinito. A partir de Derrida(2007) pode-se enxergar um outro modo de força que não seja físico. O autor afirma: No começo da justiça, terá havido o logos, a linguagem ou a língua, mas isso não é necessariamente contraditório com outro incipit que dissesse: ‘No começo, terá havido a força’. O que se deve pensar é, pois, esse exercício da força na própria linguagem.

Neste trecho, Derrida aponta para um outro tipo de força que não é físico, ele se refere à força da linguagem. Logo, poderíamos pensar a justificativa/justiça de uma força física a partir da linguagem; seria esta capaz de apresentar argumentos ou razões que justificassem o uso da força ou a mostrassem como legítima? Segundo Derrida (2007), isto não é possível, pois não temos como apresentar razões para dizer que um ato de força que funda, instaura e aplica a lei é justo ou injusto. Ele afirma: Ora, a operação de fundar, inaugurar, justificar o direito, fazer a lei, consistiria num golpe de força, numa violência performativa e, portanto, interpreta-

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tiva que, nela mesma, não é nem justa nem injusta, e que nenhuma justiça, nenhum direito prévio e anteriormente fundador, nenhuma fundação preexistente, por definição, poderia nem garantir nem contradizer ou invalidar.

Em outras palavras e em última instância, não há como legitimar o uso da força, não há como dizer que uma força ou uma lei é justa e tampouco dizer que é injusta recorrendo-se a noções anteriores ao direito ou à linguagem. Nessa tentativa, o discurso encontra seu limite6. Tentar falar de ou estipular um critério preexistente ao ato fundador da lei e que justificasse a sua aplicação mediante a força é tentar extrapolar limites. O limite aqui não é pensado como o que separa uma coisa de outra, mas como aquilo que impõe barreiras e que não podem ser transpostas; o que está em jogo aqui é a noção de finitude. A impossibilidade de transpô-lo marca a impossibilidade de se falar; não se pode tentar expor através da linguagem um critério último e definidor de justo ou injusto, sobre isso devemos nos calar e nos silenciar. Derrida (2007) fortalece essa afirmação a partir de Montaigne: “Ora, as leis se mantêm em crédito não porque elas são justas. É o fundamento místico da autoridade, elas não têm outro...”. O termo místico usado aqui por Montaigne diz respeito justamente à falta de fundamento, o qual é impossível de ser demonstrado e destarte ilusório e irreal. Toda a tentativa de pensar a justiça identificada com a lei, direito e a força inerente a este, resulta em aporia, numa falta de fundamento e razões. 1.1 JUSTIÇA E DESCONSTRUÇÃO.

Dando seguimento ao pensamento de Derrida (2007), observou-se que o autor se propõe a tarefa de pensar a justiça não mais com relação ao direito, mas separada e descolada do direito, afirma ele: (...), para reservar a possibilidade de uma justiça, ou de uma lei, que não apenas exceda ou contradiga o direito, mas que talvez não tenha nenhuma relação com o direito, ou mantenha com ele uma relação tão estranha que pode tanto exigir o direito quanto excluí-lo.

Infere-se que essa outra forma a que Derrida se refere é a maneira de pensar a justiça a partir da desconstrução, que pode ser entendida de forma não-definitiva, seria, portanto, uma desestabilização de teorias e construtos teóricos por meio da denunciação de suas aporias, desmascaramento de seus antagonismos e contradições, marcada por uma reinterpretação e releitura de tudo o que nos foi legado historicamente na filosofia e no direito. Sendo que tudo o que nos foi legado historicamente o foi através da escrita, a desconstrução é a releitura dessas concepções herdadas, que, em razão de terem sido construídas em determinado contexto e historicamente datadas, podem ser desestabilizadas e reconstruídas, relidas. Kelsen, em sua época, operou uma espécie de desconstrução epistemológica em nome da verdade, o que levou a negar cientificamente às construções jurídicas existentes e enveredar-se no desenvolvimento de uma teoria verdadeiramente científica sobre o direito. Como um bom relativista, ele não buscou afirmar que sua concepção pessoal de justiça é a Justiça, mas atuou vivamente contra a apropriação da idéia de justiça pelas ideologias jurídicas, na tentativa de justificar suas próprias opções políticas em um valor objetivo (KELSEN, 1998). Acrescenta Derrida (2007) afirmando que, pensando no caso da nossa época, engloba a desconstrução de alguns pilares da modernidade tais como a noção de sujeito, consciência, sujeito de direito, sujeito responsável, a oposição entre convenção e natureza, em suma, é a investida contra uma metafísica antropocêntrica que alçou o homem ao lugar de fundamento e fim último sobre a terra (DERRIDA, 2007). Logo, se pensarmos que tanto o direito atual quanto a noção de justiça que nos foi legada, qual seja, a da identidade entre justiça e direito, estão pautados nas teses desestabilizadas e desmascaradas pela desconstrução, seria sensato, à primeira vista, pensar que a relação que a desconstrução guarda com o direito e com

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a justiça seria uma relação de desconstruir o direito e também a desconstrução da justiça e de suas regras tal como conhecemos tradicionalmente. Segundo Fernandez e Packer (2008) para fugir dessa situação e então poder estabelecer relações entre a desconstrução e a justiça, é necessário diferenciar que o direito é algo posto, herdado, criado por meio da escrita e datado, “construído por camadas textuais interpretáveis e transformáveis”, que pode ser apreendido e conceituado, que permite destacar o legal do ilegal, que é medível e manipulável; por outro lado, a respeito da justiça, Derrida afirma (2007): “(...) não se pode falar diretamente da justiça, tematizar ou objetivar a justiça, dizer ‘isto é justo’ e, ainda menos, ‘eu sou justo’, sem trair imediatamente a justiça(...)”. Isto é, não se pode tematizar a justiça, ela não é um conceito, dado, pronto e acabado, pois não existe a justiça enquanto tal, existindo separadamente de nós homens alhures (uma concepção substancialista), a ser alcançada e conhecida, e por não ser passível disso, por ela não estar pronta é que ela não pode ser desconstruída. No pensamento Derridiano, o direito por estar posto, sedimentado na linguagem e na escrita, é algo que pode ser desconstruído; a justiça não se encontrara pronta no direito e tampouco fora dele e além dele, por não ter esse caráter, não pode ser desconstruída, ela é indesconstruível. A desconstrução não desconstrói a justiça, a desconstrução é a justiça. A desconstrução como modo de se apresentar contradições e apontar aporias, deixa as nossas concepções na falta de fundamento, deixa-as em aberto para ao mesmo tempo fechá-las; em outras palavras, desconstrói respostas dadas anteriormente e herdadas por nós e põe novas respostas, as quais nunca são definitivas, totalizantes e universais; o que é “construído” nunca é definitivo, pelo contrário, já traz em si a possibilidade de ser desconstruído. Neste contexto, pelo fato de não se tentar postular algo eterno e imutável, a justiça se manifesta mais propriamente como puro movimento de desconstrução cujos resultados nunca são fechados e acabados, sendo sempre algo por vir e por se realizar (DERRIDA, 2007). Mister frisar que no dizer de Derrida, a justiça é um apelo à justiça, ela é sempre algo por vir e que nunca se completa, mas que, no entanto, não pode nunca sair debaixo de nossas vistas, sob pena de cairmos num irracionalismo e assentir que, uma vez que não existem respostas últimas e definitivas para os problemas do homem, tudo é possível e já não há sentido em nos guiarmos por algo. Pelo contrário, contra os riscos substancialistas (da existência de uma justiça para fora ou além do direito) e irracionalistas (que não há nada e que tudo vale) há algo que sustenta a esse movimento, esse algo é o próprio impulso, vontade de justiça. Segundo o autor (DERRIDA, 2007, p.39): “Pois, afinal, onde a desconstrução encontraria sua força, seu movimento ou sua motivação, senão nesse apelo sempre insatisfeito(...)”. Se ao pensarmos a justiça colada ao direito nos vimos em aporia, quando a pensamos a partir da desconstrução, e, portanto, já descolada dele, de certa forma também estamos em aporia, pois não se postula a existência de fundamentos sólidos e inabaláveis, porém, a peculiaridade da desconstrução é que ela assume essa falta de fundamento e a utiliza de tal forma que sempre permite o novo e a mudança. Costa (2007) corrobora a ideia de Derrida no tocante ao fato de que a justiça que é desconstrução não pode ser reduzida a um sistema dogmático nem cabe em uma descrição fechada, pois ela é sempre abertura para o novo e para a diferença. Isso não quer dizer, porém, que não se possa praticar atos em nome da justiça, isso é feito a cada momento, pois a justiça pretende realizar-se em cada uma das nossas ações, especialmente naquelas que instituem ou aplicam normas jurídicas. Portanto, para que um decisão jurídica seja justa, não basta que ele seja conforme a lei, mas é preciso que ela ponha em suspenso a validade da lei, para, em cada caso, reinventá-la, re-justificá-la, reinventá-la pelo menos na reafirmação e na confirmação nova e livre do seu princípio. Para Fernandez e Packer (2008) impelidos pelo pensamento de Derrida, sustentam que concebendo a justiça como esse nada, este por vir que não é o futuro; mas um impulso ou vontade de transformação que está sempre acolá; esta não pode ser construída (desconstruída) e presentificada, ou seja, manipulada, calculada e estabilizada. Este papel de fixação, estruturação do presente a fim de assegurar alguma calculabilidade ou estabilidade das relações em determinado momento pertence ao direito, à lei. Deste modo o direito, para não se apresentar como mera regulação, conservação e dominação, deve, ao fechar-se, abrir-se. Ao colocar-se

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enquanto determinado conteúdo de sentidos em textos legais, deve-se admitir as n possibilidades de sentidos negadas para poder presentificar-se. 1.2 JUSTIÇA COMO APORIAS.

“Uma aporia é um não-caminho. A justiça será, deste ponto de vista, a experiência daquilo que nós não podemos experimentar (...) eu acredito que não exista justiça sem essa experiência, tão impossível quanto ela seja, de uma aporia. A justiça é a experiência do impossível. Uma vontade, um desejo, uma exigência de justiça cuja estrutura não seja a experiência de uma aporia não terá a chance de ser o que ela é, notadamente, um chamado por justiça.”(DERRIDA, 2007)

Para Derrida (2007) o direito não é a justiça. O direito é um elemento de cálculo e é justo que exista o direito, mas a justiça é o incalculável, ela requer que nós calculemos o incalculável; e as experiências aporéticas são experiências, tão improváveis quanto necessárias, da justiça, quer dizer, de momentos em que a decisão entre o justo e o injusto não é jamais assegurada por uma regra. Por esse prisma a justiça se caracterizaria por ser infinita, incalculável, avessa à simetria, enquanto o direito existe no âmbito da legalidade, estável e estatutária, como um sistema regulador e normativo. Uma das mais difíceis tarefas para a reconciliação do direito com a justiça é equacionar a generalidade daquele com a necessária singularidade desta. Essa é a questão que está por detrás de toda a aplicação do direito pelos tribunais: Como nós podemos conciliar o ato da justiça que sempre é concernente à singularidade, a indivíduos, insubstituíveis grupos e vidas, com o outro ou eu mesmo como outro, em uma situação única, com a regra, a norma, o valor ou o imperativo de justiça, o qual, necessariamente, tem uma forma genérica, ainda que esta generalidade prescreva uma aplicação singular em cada caso? Ou seja, interpretar e aplicar o direito obriga sempre a um balanceamento entre o geral e o singular, entre o texto passado da norma e a exigência presente da justiça. Atender ao chamado da justiça exige a recriação da norma contida no texto legal, não somente no sentido de que toda leitura/interpretação implica na construção de um sentido novo, mas também no sentido de que a interpretação jurídica deve atender à singularidade de cada caso, através dos padrões gerais contidos na norma. Como fazer isso sem violar a generalidade da regra, sem abandonar mesmo essa regra ou, ainda, sem tornar seu conteúdo, inscrito no texto passado, tão fluido que ele já não sirva mais como um instrumento de mediação e estabilização, funções caracterizadoras do direito? Na resposta a essa questão é possível perceber a importância da desconstrução para o direito — e sua interpretação — e para a democracia. Pois tal resposta revela: a) a adequação entre o passado, o presente e o futuro — no sentido de que a construção do sentido da norma se dá na sua interpretação e a aplicação da mesma implica uma busca incessante pela justiça; b) essa busca incessante pela justiça, através de um compromisso ético dos tribunais para com a mesma pode levar à transformação do direito e à sua melhor adequação a uma sociedade democrática; c) o direito, servindo como elemento de estabilização das relações e efetivamente comprometido com a realização da justiça, pode levar à consolidação dos princípios políticos constitutivos da sociedade política (liberdade e igualdade, basicamente) fortalecendo os laços de solidariedade social e, por fim; d) um tipo de interpretação do direito que reconheça a sua indeterminação de sentido e que reconheça a contingência e fragmentação do social estaria melhor preparada para fazer frente ao crescente grau de complexidade e ao incremento do número de conflitos, típicos das sociedades contemporâneas. O caminho teórico para buscar a resposta a essa questão implica um compromisso ético com a obtenção da justiça e a visualização desta como aporia, ou seja, como algo impossível de ser experimentado, mas

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cuja experiência é imprescindível. Em primeiro lugar, o que se coloca é uma responsabilidade sem limites perante a memória, no sentido de se recuperarem as direções e os limites contidos nas concepções de direito e justiça historicamente construídos em cada sociedade. A desconstrução pode significar um clamor infinito pela justiça e por um incremento incalculável de responsabilidade. É no intervalo entre o direito e a justiça que a desconstrução encontra seu lugar privilegiado; desconstruindo-o, desestabilizando o tradicional do direito, a justiça pode encontrar caminhos para a sua expressão. Partindo da obra de Emmanuel Levinas, Derrida considera ser a ética a primeira filosofia, em termos de ética como uma relação entre pessoas. A ética, tal como Levinas a concebe, coloca em questão minha liberdade e espontaneidade, minha subjetividade, e o outro. Para Levinas (2000), a justiça define e é definida por uma relação ética com o outro, em resposta ao sofrimento do outro, para com o qual o sujeito tem uma infinita responsabilidade. Mas esta concepção ética de justiça também se coaduna com uma noção política de justiça, no sentido de que toda relação ética é sempre situada em um determinado contexto sócio-político, o qual implica diferentes concepções éticas, levando à necessidade da escolha entre estas, ou de uma decisão. Na realidade, a concepção ética da justiça em Derrida, configurada na leitura que este faz de Levinas, é também uma concepção política, no sentido de que envolve a ideia de transformação política, a abertura para o futuro que pode trazer mudanças. A ideia de justiça como a experiência daquilo que não pode ser decidido é o que leva o sujeito à política (e pode-se dizer que ao direito, também), dada a necessidade da decisão. Do indecidível para a decisão, esse é o momento do julgamento, a passagem de uma experiência ética da justiça para a ação política. De que forma isso pode ser feito, ou quais são os conteúdos dessa ação política? A resposta, em Derrida, jamais se encontra no presente, ou em alguma forma específica de ação política (assim também, como vai ser referido adiante, nunca uma decisão judicial específica pode ser considerada justa); a justiça deve servir de guia, de elemento crítico, mas ela jamais poderá ser tornada presente. Um aporte desconstrutivista da política, baseado na separação radical entre justiça e direito e na não presença da primeira dentro do último, leva-nos ao que se pode chamar de descorporificação da justiça, onde nenhum Estado, comunidade ou território pode ser tido como expressão da justiça. Alguém pode dizer que a “experiência” da justiça é a de uma absoluta alteridade ou transcendência, a qual guia a política sem estar completamente no reino público. A forma política que melhor poderia conduzir a essa experiência da justiça seria a democracia. Não uma democracia realizada aqui e agora, mas a democracia entendida como possibilidade, como abertura para o futuro. Outrossim, justiça e democracia se entrelaçam como representações que escapam ao aqui e agora, escapam ao presente, representando algo que está sempre por acontecer. Algo que não se realiza no presente, mas também não no futuro (DERRIDA, 2007). A justiça permanece, é ainda, é algo por vir, a verdadeira dimensão de eventos irredutíveis no tempo. Ela sempre terá esse por vir, por acontecer, sempre o tem. Talvez seja por essa razão que, desde que a justiça não é somente um conceito jurídico ou político, ela se abre para esse por vir da transformação, a reformulação ou refundação do direito e da política. Para Derrida (2007) se a justiça representa o encontro com o outro, a infinita responsabilidade que o outro demanda, a verdadeira experiência da alteridade, ela é algo que nunca se apresenta. Ainda assim, ela pode significar a possibilidade da transformação do direito e da política, enquanto percebida como uma responsabilidade inafastável e inadiável. E por isso se torna importante ressaltar, com o autor, a separação das idéias de futuro e o que ele chama de àvenir/ to come: o futuro pode significar a mera reprodução do presente ou, quando muito, a sua evolução. Ao contrário, a idéia de algo que está por acontecer representa a possibilidade da transformação, um recriar, repensar, reformular. Talvez seja essa a principal conclusão que se pode retirar da percepção de justiça como aporia, neste autor: a de que o fato de a justiça exceder as fronteiras do jurídico e do político, e o fato de que ela não é um elemento de cálculo, não pode servir como álibi para alguém negar a responsabilidade na busca da transformação das instituições que compõem a sociedade. Essa idéia está diretamente ligada ao ideal de emancipação, que Derrida afirma jamais ter sido realizado e o qual deve sempre ser perseguido.

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Justiça e direito. A justiça fora do direito. A justiça enquanto algo por acontecer. Assim como a democracia. A descorporificação ou despersonalização da justiça, que pode ser melhor representada a partir da democracia, como esta também significou a descorporificação ou despersonalização do poder; o corpo do príncipe que deixou de ser identificado com o Estado/soberania. Nesse sentido, a democracia seria a forma política mais apta a significar tal perspectiva de justiça. Perspectiva esta que não se esgota na ação política, mas pressupõe a ação política. Não se contém nos limites do ordenamento jurídico, mas pressupõe o direito como elemento de estabilização e prioriza o momento da decisão, ou melhor, do julgamento (significado este por um compromisso ético). Essa democracia pode ser significada pela busca infinita da justiça e representada por um compromisso com o outro. Democracia que em si também é um por acontecer. A radicalização da democracia, compreendida pelo aprofundamento das relações democráticas; uma democracia plural, que possa reconhecer o outro em toda sua plenitude e que, indo além da razão, possa captar a importância das paixões como força motriz das ações humanas. Para que o direito possa significar um instrumento para viabilizar a justiça e a democracia é necessária que efetivamente exista um compromisso dos seus órgãos aplicadores com a justiça e a democracia 2. JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL E O PROCESSO DE DEMOCRATIZAÇÃO. A Jurisdição Constitucional no Brasil pode ser hoje caracterizada pela originalidade e diversidade de instrumentos processuais destinados à fiscalização da constitucionalidade dos atos do poder público e à proteção dos direitos fundamentais, como o mandado de segurança – uma criação genuína do sistema constitucional brasileiro – o habeas corpus, o habeas data, o mandado de injunção, a ação civil pública e a ação popular. Essa diversidade de ações constitucionais próprias do modelo difuso é ainda complementada por uma variedade de instrumentos voltados ao exercício do controle abstrato de constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal, como a ação direta de inconstitucionalidade, a ação direta de inconstitucionalidade por omissão, a ação declaratória de constitucionalidade e a argüição de descumprimento de preceito fundamental (MENDES, 2010). Jurisdição ou justiça constitucional, no dizer de Canotilho (2000), consiste em decidir vinculativamente, num processo jurisdicional, o que é o direito, tomando como parâmetro material a constituição ou o bloco de legalidade reforçada, consoante se trate de fiscalização da constitucionalidade ou de fiscalização da legalidade. Como em qualquer jurisdição, trata-se de obter a ‘medida do recto e do justo’ de acordo com uma norma jurídica. Só que, no nosso caso, essa norma é a Constituição considerada como norma fundamental do Estado e da comunidade. Bonavides (2004) remata que o conceito de jurisdição constitucional, qual é entendida na sua versão contemporânea , prende-se à necessidade do estabelecimento de uma instância neutra, mediadora e imparcial na solução dos conflitos constitucionais. E em se tratando de sociedades pluralistas e complexas, regidas por um princípio democrático e jurídico de limitações do poder, essa instância há de ser, sobretudo, moderadora de tais conflitos. Mendes (2010) a multiplicidade de mecanismos processuais e a robustez do texto constitucional, o qual possui um dos catálogos de direitos fundamentais mais extensos do mundo, têm permitido ao Supremo Tribunal Federal do Brasil desenvolver o controle de constitucionalidade com extrema desenvoltura. Assim, o início deste Século XXI tem sido marcado, no Brasil, por uma vertiginosa evolução da jurisdição constitucional, o que pode também ser caracterizado pelo ativismo judicial do Supremo Tribunal Federal na proteção da Constituição e dos direitos fundamentais. Os desafios, não obstante, ainda são variados e complexos. A Constituição de 1988 instituiu uma extensa agenda social, ao incorporar os mais diversos anseios sociais e políticos. São visíveis os déficits na elaboração e implementação das políticas públicas necessárias à efetivação de direitos elementares, o que gera uma enorme carga jurisdicional e política em torno da jurisdição constitucional, que se vê compelida a atuar diante de patentes casos de omissão legislativa e administrativa (MENDES, 2010).

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2.1 CONTROLE CONCENTRADO DE CONSTITUCIONALIDADE – ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL - ADPF.

A lei sobre a arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) surgiu ante a necessidade de haver um mecanismo, dentro do controle concentrado de constitucionalidade, para discutir acerca das questões relativas ao direito pré-constitucional, controvérsia constitucional sobre normas revogadas, controle de constitucionalidade do direito municipal em face da Constituição Federal, além da interpretação direta das cláusulas constitucionais pelos juízes e tribunais (MENDES, 2009) A arguição de descumprimento de preceito fundamental está prevista no artigo 102, § 1º, da Constituição Federal e regulamentada pela Lei nº 9.882/99, fazendo parte do rol das ações aptas a suscitar o controle judicial de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal, tornando relevante a apreciação das inovações impostas por ela ao ordenamento jurídico pátrio (BARROSO, 2008) Dessarte, a ADPF veio completar o sistema de controle de constitucionalidade de perfil relativamente concentrado no Supremo Tribunal Federal, uma vez que as questões até então não apreciadas no âmbito do controle abstrato de constitucionalidade (ação direta de inconstitucionalidade e ação declaratória de constitucionalidade) poderão ser objeto de exame no âmbito da nova ação (MENDES, 2009). A arguição de descumprimento de preceito fundamental se insere no rol dos institutos voltados ao controle concentrado de constitucionalidade, mormente devido a característica específica da ação, qual seja, tutela dos preceitos fundamentais constitucionais fundamentais (TAVARES E ROTHENBURG, 2001). A Constituição Federal determina em seu § 1º, do art. 102, introduzido pela Emenda Constitucional nº 3, de 17-3-1993, que a ADPF decorrente da Constituição será apreciada pelo Supremo Tribunal Federal na forma da lei. Com efeito, verifica-se que se trata de norma constitucional de eficácia limitada, e por esta razão o Congresso Nacional editou a Lei nº 9.882/99, a fim de regulamentar a ADPF. É sabido que a ADPF é cabível para evitar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do poder público, para reparar lesão a preceito fundamental, também resultante de ato do poder público e quando for relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição (OLIVEIRA, 2004). Ademais, verifica-se a existência de duas modalidades de ADPF, quais sejam, a arguição autônoma e a incidental. A autônoma está prevista no art. 1º, caput, da Lei nº 9.882/99, o qual prevê o cabimento da ADPF para evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do poder público. Já a incidental, conforme dispõe o art. 1º, parágrafo único, do mesmo diploma legal, caberá ADPF quando for relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição (MENDES, 2009). A arguição autônoma constitui ação voltada para o controle concentrado de constitucionalidade, sendo assim, esta será utilizada na hipótese em que as outras ações constitucionais não forem cabíveis, ou seja, não sendo o caso de ajuizar ADIN ou ADC caberá ADPF, ante o caráter subsidiário desta última, como veremos adiante (TAVARES E ROTHENBURG, 2001). Já em relação a arguição incidental, esta pressupõe a existência de uma ação, ou seja, de uma demanda já submetida ao Judiciário. Logo, esta modalidade da ADPF representa um mecanismo destinado a provocar a apreciação do STF sobre a controvérsia constitucional relevante, que esteja sendo discutida em qualquer juízo ou tribunal (OLIVEIRA, 2004). Insta frisar que é possível a concessão de medida liminar no âmbito na arguição de descumprimento, mediante decisão da maioria absoluta dos membros do Tribunal.

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Entretanto, em caso de extrema urgência ou perigo de lesão grave, ou ainda, em período de recesso, poderá o relator conceder a medida liminar, ad referendum do Tribunal Pleno (BARROSO, 2008) Caso haja necessidade, poderá o relator, antes de decidir acerca da liminar,ouvir os órgãos ou autoridades responsáveis pelo ato questionado, bem como o Advogado Geral da União ou o Procurador-Geral da República, no prazo comum de cinco dias (art. 5º, § § 1º e 2º). O deferimento da liminar tem o condão de decretar a suspensão direta do ato impugnado. Além do mais, a liminar poderá consistir na determinação de que juízes e tribunais suspendam o andamento de processo ou os efeitos de decisões judiciais, ou de qualquer outra medida que apresente relação com a matéria objeto da arguição de descumprimento de preceito fundamental, salvo se decorrentes da coisa julgada (MENDES, 2009; TAVARES E ROTHENBURG, 2001). A seguir foram elaborados quadros que facilitarão o entendimento e aplicação dos conceitos abordados na presente pesquisa, uma vez que serão analisadas, apenas, aquelas ADPFs que já tiveram algum tipo de decisão formada. Tais informações foram coletadas pelo site oficial do Supremo Tribunal Federal no período de dezembro/2010 a janeiro/2012. Os dados estão atualizados até o dia fevereiro de 2012.

3. RESULTADOS E DISCUSSÕES. QUADRO DAS ADPF’S 1993 – 2012. DECISÃO FINAL

QUANTIDADE

6 2 3 126 137

PROCEDENTES PROCEDENTE EM PARTE IMPROCEDENTES NÃO CONHECIDA TOTAL DA DECISAO FINAL LIMINAR

QUANTIDADE

8 1 6 0 15 88 240

COM LIMINAR DEFERIDA COM LIMINAR DEFERIDA EM PARTE COM LIMINAR INDEFERIDA PREJUDICADO TOTAL LIMINAR AGUARDANDO JULGAMENTO TOTAL DE DISTRIBUIDAS

A primeira questão que pode ser aqui levantada é quanto à existência, ou não, de uma efetiva preocupação da chamada teoria desconstrutivista com a justiça. Nas palavras do próprio Derrida, la déconstruction est la justice vislumbra-se o questionamento do Por que desconstrução é justiça? É devido à existência do caos que a estabilidade é necessária; é precisamente porque o mundo se apresenta aos homens “em desordem” que estes necessitam de instrumentos para “ordená-lo”. Nesse sentido, foi afirmado que o direito pode ser compreendido como um instrumento para a obtenção de estabilidade, ainda que parcial e provisória. O direito como uma construção do homem, pode ser sempre desconstruído. Desconstruir o direito pode ser considerado uma prática destinada a demonstrar que qualquer lei, qualquer ordenamento jurídico, pode ser “desestabilizado”. O sentido de todo texto — e o direito se revela através dos textos — resta sempre em aberto; qualquer fechamento final ou definitivo de sentido é autoritário. A desconstrução exige que toda leitura de um texto possa ser submetida a uma nova leitura,em um movimento que une presente e passado, futuro e presente. Uma leitura/ interpretação de um texto é um reescrever do texto passado, a sua tradução para o presente, ao mesmo tempo em que o texto presente é ele mesmo um não

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texto, na medida em que existe apenas enquanto possibilidade para a construção futura de um novo texto, a qual se dará pela sua leitura. Dessa forma, uma prática desconstrutiva do direito pode significar um avanço no sentido do enriquecimento de seus conteúdos, pois, permanecendo o sentido em aberto, novas interpretações podem ser obtidas, expondo o aparato jurídico e judiciário a novas formulações. Em suma, a desestabilização do direito é realizada em nome da possibilidade de uma transformação deste e, em uma última análise, em nome da justiça. A análise preliminar dessa pesquisa será fundada na interrelação existente entre os conceitos estudados, anteriormente, de Derrida, acerca da justiça, do direito, da democracia e da força da lei. Insta frisar que a totalidade de ADPF’s distribuídas já ultrapassam os números apresentados no relatório parcial do presente trabalho. Houve a necessidade de renovação da bolsa, uma vez que o número de ADPF’s a serem analisadas é elevado. Para finalizar essa etapa, foram selecionadas 4 decisões com resultado pela procedência dos pedidos em sede de controle concentrado. A- Ementa ADPF nº 33: Procedente, por unanimidade dos votos. “ Argüição de descumprimento de preceito fundamental ajuizada com o objetivo de impugnar o art. 34 do Regulamento de Pessoal do Instituto de Desenvolvimento Econômico-Social do Pará (IDESP), sob o fundamento de ofensa ao princípio federativo, no que diz respeito à autonomia dos Estados e Municípios (art. 60, § 4o , CF/88) e à vedação constitucional de vinculação do salário mínimo para qualquer fim (art. 7º, IV, CF/88). 2. Existência de ADI contra a Lei nº 9.882/99 não constitui óbice à continuidade do julgamento de argüição de descumprimento de preceito fundamental ajuizada perante o Supremo Tribunal Federal. 3. Admissão de amicus curiae mesmo após terem sido prestadas as informações 4. Norma impugnada que trata da remuneração do pessoal de autarquia estadual, vinculando o quadro de salários ao salário mínimo. 5. Cabimento da argüição de descumprimento de preceito fundamental (sob o prisma do art. 3º, V, da Lei nº 9.882/99) em virtude da existência de inúmeras decisoes do Tribunal de Justiça do Pará em sentido manifestamente oposto à jurisprudência pacificada desta Corte quanto à vinculação de salários a múltiplos do salário mínimo. 6. Cabimento de argüição de descumprimento de preceito fundamental para solver controvérsia sobre legitimidade de lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, inclusive anterior à Constituição (norma pré-constitucional). 7. Requisito de admissibilidade implícito relativo à relevância do interesse público presente no caso. 8. Governador de Estado detém aptidão processual plena para propor ação direta (ADIMC 127/AL, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 04.12.92), bem como argüição de descumprimento de preceito fundamental, constituindo-se verdadeira hipótese excepcional de jus postulandi. 9. ADPF configura modalidade de integração entre os modelos de perfil difuso e concentrado no Supremo Tribunal Federal. 10. Revogação da lei ou a to normativo não impede o exame da matéria em sede de ADPF, porque o que se postula nessa ação é a declaração de ilegitimidade ou de não-recepção da norma pela ordem constitucional superveniente. 11. Eventual cogitação sobre a inconstitucionalidade da norma impugnada em face da Constituição anterior, sob cujo império ela foi editada, não constitui óbice ao conhecimento da argüição de descumprimento de preceito fundamental, uma vez que nessa ação o que se persegue é a verificação da compatibilidade, ou não, da norma pré-constitucional com a ordem constitucional superveniente. 12. Caracterizada controvérsia relevante sobre a legitimidade do Decreto Estadual nº 4.307/86, que aprovou o Regulamento de Pessoal do IDESP (Resolução do Conselho Administrativo nº 8/86), ambos anteriores à Constituição, em face de preceitos fundamentais da Constituição (art. 60, § 4º, I, c/c art. 7º, inciso IV, in fine, da Constituição Federal) revela-se cabível a ADPF. 13. Princípio da subsidiariedade (art. 4o ,§ 1o, da Lei no 9.882/99): inexistência de outro meio eficaz de sanar a lesão, compreendido no contexto da ordem cons-

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titucional global, como aquele apto a solver a controvérsia constitucional relevante de forma ampla, geral e imediata. 14. A existência de processos ordinários e recursos extraordinários não deve excluir, a priori, a utilização da argüição de descumprimento de preceito fundamental, em virtude da feição marcadamente objetiva dessa ação. 15. Argüição de descumprimento de preceito fundamental julgada procedente para declarar a ilegitimidade (não-recepção) do Regulamento de Pessoal do extinto IDESP em face do princípio federativo e da proibição de vinculação de salários a múltiplos do salário mínimo (art. 60, § 4º, I, c/c art. 7º, inciso IV, in fine, da Constituição Federal)”

No primeiro e segundo pronunciamentos encontram-se algumas características de um modelo dogmático de se ver a justiça, onde vincula o justo ao que esta expresso na lei e nas formas da lei. Resta, entretanto, aferir a força da lei Constitucional frente à aplicação inadequada dos princípios nela regidos. Para Derrida, a lei é justa e a justiça é a aplicação da lei, e o que justifica a força presente na lei é a justiça. Assim, a força não é algo que se acrescenta ou não ao direito, ela faz parte da sua essência. Não há direito sem força. B- Ementa ADPF nº 47: Procedente por unanimidade de votos. “ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. ARTIGO 2º DO DECRETO N. 4.726/87 DO ESTADO DO PARÁ. ATO REGULAMENTAR. AUTARQUIA ESTADUAL. DEPARTAMENTO DE ESTRADAS DE RODAGEM. REMUNERAÇÃO DOS SERVIDORES. VINCULAÇÃO AO SALÁRIO MÍNIMO. NÃO-RECEBIMENTO DO ATO IMPUGNADO PELA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. AFRONTA AO DISPOSTO NO ARTIGO 7º, INCISO IV, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. 1. A controvérsia posta nestes autos foi anteriormente examinada por esta Corte quando do julgamento da ADPF n. 33.2. Decreto estadual que vinculava os vencimentos dos servidores da autarquia estadual ao salário mínimo. 3. Utilização do salário mínimo como fator de reajuste automático de remuneração dos servidores da autarquia estadual. Vedação expressa veiculada pela Constituição do Brasil. Afronta ao disposto no artigo 7º, inciso IV, da CB/88. 4. Liminar deferida por esta Corte em 7 de setembro de 2.005. 5. Argüição de descumprimento de preceito fundamental julgada procedente para declarar o não-recebimento, pela Constituição do Brasil, do artigo 2º do decreto n. 4.726/87 do Estado do Pará.” C- Ementa ADPF nº 130: Procedente, por maioria dos votos. “ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL (ADPF). LEI DE IMPRENSA. ADEQUAÇÃO DA AÇÃO. REGIME CONSTITUCIONAL DA “LIBERDADE DE INFORMAÇÃO JORNALÍSTICA”, EXPRESSÃO SINÔNIMA DE LIBERDADE DE IMPRENSA. A “PLENA” LIBERDADE DE IMPRENSA COMO CATEGORIA JURÍDICA PROIBITIVA DE QUALQUER TIPO DE CENSURA PRÉVIA. A PLENITUDE DA LIBERDADE DE IMPRENSA COMO REFORÇO OU SOBRETUTELA DAS LIBERDADES DE MANIFESTAÇÃO DO PENSAMENTO, DE INFORMAÇÃO E DE EXPRESSÃO ARTÍSTICA, CIENTÍFICA, INTELECTUAL E COMUNICACIONAL. LIBERDADES QUE DÃO CONTEÚDO ÀS RELAÇÕES DE IMPRENSA E QUE SE PÕEM COMO SUPERIORES BENS DE PERSONALIDADE E MAIS DIRETA EMANAÇÃO DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. O CAPÍTULO CONSTITUCIONAL DA COMUNICAÇÃO SOCIAL COMO SEGMENTO PROLONGADOR DAS LIBERDADES DE MANIFESTAÇÃO DO PENSAMENTO, DE INFORMAÇÃO E DE EXPRESSÃO ARTÍSTICA, CIENTÍFICA, INTELECTUAL E COMUNICACIONAL. TRANSPASSE DA FUNDAMENTALIDADE DOS DIREITOS PROLONGADOS AO CAPÍTULO PROLONGADOR. PONDERAÇÃO DIRETAMENTE CONSTITUCIONAL ENTRE BLOCOS DE BENS DE PERSONALIDADE: O BLOCO DOS DIREITOS QUE DÃO CONTEÚDO À LIBERDADE DE IMPRENSA E O BLOCO DOS DIREITOS À IMAGEM, HONRA, INTIMI-

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DADE E VIDA PRIVADA. PRECEDÊNCIA DO PRIMEIRO BLOCO. INCIDÊNCIA A POSTERIORI DO SEGUNDO BLOCO DE DIREITOS, PARA O EFEITO DE ASSEGURAR O DIREITO DE RESPOSTA E ASSENTAR RESPONSABILIDADES PENAL, CIVIL E ADMINISTRATIVA, ENTRE OUTRAS CONSEQUÊNCIAS DO PLENO GOZO DA LIBERDADE DE IMPRENSA. PECULIAR FÓRMULA CONSTITUCIONAL DE PROTEÇÃO A INTERESSES PRIVADOS QUE, MESMO INCIDINDO A POSTERIORI, ATUA SOBRE AS CAUSAS PARA INIBIR ABUSOS POR PARTE DA IMPRENSA. PROPORCIONALIDADE ENTRE LIBERDADE DE IMPRENSA E RESPONSABILIDADE CIVIL POR DANOS MORAIS E MATERIAIS A TERCEIROS. RELAÇÃO DE MÚTUA CAUSALIDADE ENTRE LIBERDADE DE IMPRENSA E DEMOCRACIA. RELAÇÃO DE INERÊNCIA ENTRE PENSAMENTO CRÍTICO E IMPRENSA LIVRE. A IMPRENSA COMO INSTÂNCIA NATURAL DE FORMAÇÃO DA OPINIÃO PÚBLICA E COMO ALTERNATIVA À VERSÃO OFICIAL DOS FATOS. PROIBIÇÃO DE MONOPOLIZAR OU OLIGOPOLIZAR ÓRGÃOS DE IMPRENSA COMO NOVO E AUTÔNOMO FATOR DE INIBIÇÃO DE ABUSOS. NÚCLEO DA LIBERDADE DE IMPRENSA E MATÉRIAS APENAS PERIFERICAMENTE DE IMPRENSA. AUTORREGULAÇÃO E REGULAÇÃO SOCIAL DA ATIVIDADE DE IMPRENSA. NÃO RECEPÇÃO EM BLOCO DA LEI Nº 5.250/1967 PELA NOVA ORDEM CONSTITUCIONAL. EFEITOS JURÍDICOS DA DECISÃO. PROCEDÊNCIA DA AÇÃO.” D- Ementa ADPF nº 132: Procedente, por maioria dos votos. 1. ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL (ADPF). PERDA PARCIAL DE OBJETO. RECEBIMENTO, NA PARTE REMANESCENTE, COMO AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. UNIÃO HOMOAFETIVA E SEU RECONHECIMENTO COMO INSTITUTO JURÍDICO. CONVERGÊNCIA DE OBJETOS ENTRE AÇÕES DE NATUREZA ABSTRATA. JULGAMENTO CONJUNTO. Encampação dos fundamentos da ADPF nº 132-RJ pela ADI nº 4.277-DF, com a finalidade de conferir “interpretação conforme à Constituição” ao art. 1.723 do Código Civil. Atendimento das condições da ação. 2. PROIBIÇÃO DE DISCRIMINAÇÃO DAS PESSOAS EM RAZÃO DO SEXO, SEJA NO PLANO DA DICOTOMIA HOMEM/MULHER (GÊNERO), SEJA NO PLANO DA ORIENTAÇÃO SEXUAL DE CADA QUAL DELES. A PROIBIÇÃO DO PRECONCEITO COMO CAPÍTULO DO CONSTITUCIONALISMO FRATERNAL. HOMENAGEM AO PLURALISMO COMO VALOR SÓCIO-POLÍTICO-CULTURAL. LIBERDADE PARA DISPOR DA PRÓPRIA SEXUALIDADE, INSERIDA NA CATEGORIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DO INDIVÍDUO, EXPRESSÃO QUE É DA AUTONOMIA DE VONTADE. DIREITO À INTIMIDADE E À VIDA PRIVADA. CLÁUSULA PÉTREA. O sexo das pessoas, salvo disposição constitucional expressa ou implícita em sentido contrário, não se presta como fator de desigualação jurídica. Proibição de preconceito, à luz do inciso IV do art. 3º da Constituição Federal, por colidir frontalmente com o objetivo constitucional de “promover o bem de todos”. Silêncio normativo da Carta Magna a respeito do concreto uso do sexo dos indivíduos como saque da kelseniana “norma geral negativa”, segundo a qual “o que não estiver juridicamente proibido, ou obrigado, está juridicamente permitido”. Reconhecimento do direito à preferência sexual como direta emanação do princípio da “dignidade da pessoa humana”: direito a auto-estima no mais elevado ponto da consciência do indivíduo. Direito à busca da felicidade. Salto normativo da proibição do preconceito para a proclamação do direito à liberdade sexual. O concreto uso da sexualidade faz parte da autonomia da vontade das pessoas naturais. Empírico uso da sexualidade nos planos da intimidade e da privacidade constitucionalmente tuteladas. Autonomia da vontade. Cláusula pétrea.

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3. TRATAMENTO CONSTITUCIONAL DA INSTITUIÇÃO DA FAMÍLIA. RECONHECIMENTO DE QUE A CONSTITUIÇÃO FEDERAL NÃO EMPRESTA AO SUBSTANTIVO “FAMÍLIA” NENHUM SIGNIFICADO ORTODOXO OU DA PRÓPRIA TÉCNICA JURÍDICA. A FAMÍLIA COMO CATEGORIA SÓCIO-CULTURAL E PRINCÍPIO ESPIRITUAL. DIREITO SUBJETIVO DE CONSTITUIR FAMÍLIA. INTERPRETAÇÃO NÃO-REDUCIONISTA. O caput do art. 226 confere à família, base da sociedade, especial proteção do Estado. Ênfase constitucional à instituição da família. Família em seu coloquial ou proverbial significado de núcleo doméstico, pouco importando se formal ou informalmente constituída, ou se integrada por casais heteroafetivos ou por pares homoafetivos. A Constituição de 1988, ao utilizar-se da expressão “família”, não limita sua formação a casais heteroafetivos nem a formalidade cartorária, celebração civil ou liturgia religiosa. Família como instituição privada que, voluntariamente constituída entre pessoas adultas, mantém com o Estado e a sociedade civil uma necessária relação tricotômica. Núcleo familiar que é o principal lócus institucional de concreção dos direitos fundamentais que a própria Constituição designa por “intimidade e vida privada” (inciso X do art. 5º). Isonomia entre casais heteroafetivos e pares homoafetivos que somente ganha plenitude de sentido se desembocar no igual direito subjetivo à formação de uma autonomizada família. Família como figura central ou continente, de que tudo o mais é conteúdo. Imperiosidade da interpretação não-reducionista do conceito de família como instituição que também se forma por vias distintas do casamento civil. Avanço da Constituição Federal de 1988 no plano dos costumes. Caminhada na direção do pluralismo como categoria sócio-político-cultural. Competência do Supremo Tribunal Federal para manter, interpretativamente, o Texto Magno na posse do seu fundamental atributo da coerência, o que passa pela eliminação de preconceito quanto à orientação sexual das pessoas. 4. UNIÃO ESTÁVEL. NORMAÇÃO CONSTITUCIONAL REFERIDA A HOMEM E MULHER, MAS APENAS PARA ESPECIAL PROTEÇÃO DESTA ÚLTIMA. FOCADO PROPÓSITO CONSTITUCIONAL DE ESTABELECER RELAÇÕES JURÍDICAS HORIZONTAIS OU SEM HIERARQUIA ENTRE AS DUAS TIPOLOGIAS DO GÊNERO HUMANO. IDENTIDADE CONSTITUCIONAL DOS CONCEITOS DE “ENTIDADE FAMILIAR” E “FAMÍLIA”. A referência constitucional à dualidade básica homem/mulher, no §3º do seu art. 226, deve-se ao centrado intuito de não se perder a menor oportunidade para favorecer relações jurídicas horizontais ou sem hierarquia no âmbito das sociedades domésticas. Reforço normativo a um mais eficiente combate à renitência patriarcal dos costumes brasileiros. Impossibilidade de uso da letra da Constituição para ressuscitar o art. 175 da Carta de 1967/1969. Não há como fazer rolar a cabeça do art. 226 no patíbulo do seu parágrafo terceiro. Dispositivo que, ao utilizar da terminologia “entidade familiar”, não pretendeu diferenciá-la da “família”. Inexistência de hierarquia ou diferença de qualidade jurídica entre as duas formas de constituição de um novo e autonomizado núcleo doméstico. Emprego do fraseado “entidade familiar” como sinônimo perfeito de família. A Constituição não interdita a formação de família por pessoas do mesmo sexo. Consagração do juízo de que não se proíbe nada a ninguém senão em face de um direito ou de proteção de um legítimo interesse de outrem, ou de toda a sociedade, o que não se dá na hipótese sub judice. Inexistência do direito dos indivíduos heteroafetivos à sua não-equiparação jurídica com os indivíduos homoafetivos. Aplicabilidade do §2º do art. 5º da Constituição Federal, a evidenciar que outros direitos e garantias, não expressamente listados na Constituição, emergem “do regime e dos princípios por ela adotados”, verbis: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.

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5. DIVERGÊNCIAS LATERAIS QUANTO À FUNDAMENTAÇÃO DO ACÓRDÃO. Anotação de que os Ministros Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Cezar Peluso convergiram no particular entendimento da impossibilidade de ortodoxo enquadramento da união homoafetiva nas espécies de família constitucionalmente estabelecidas. Sem embargo, reconheceram a união entre parceiros do mesmo sexo como uma nova forma de entidade familiar. Matéria aberta à conformação legislativa, sem prejuízo do reconhecimento da imediata auto-aplicabilidade da Constituição. 6. INTERPRETAÇÃO DO ART. 1.723 DO CÓDIGO CIVIL EM CONFORMIDADE COM A CONSTITUIÇÃO FEDERAL (TÉCNICA DA “INTERPRETAÇÃO CONFORME”). RECONHECIMENTO DA UNIÃO HOMOAFETIVA COMO FAMÍLIA. PROCEDÊNCIA DAS AÇÕES. Ante a possibilidade de interpretação em sentido preconceituoso ou discriminatório do art. 1.723 do Código Civil, não resolúvel à luz dele próprio, faz-se necessária a utilização da técnica de “interpretação conforme à Constituição”. Isso para excluir do dispositivo em causa qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como família. Reconhecimento que é de ser feito segundo as mesmas regras e com as mesmas consequências da união estável heteroafetiva. (ADF 132-RJ e ADI 4277-DF, Min. Ayres Britto, Tribunal Pleno, julgado em 05/05/2011, DJe-198 DIVULG 13-10-2011 PUBLIC 14-10-2011).

Diante de tais ementas é possível verificar que a forma de pensar o direito e a justiça dos operadores do direito, neste caso dos Ministros do Supremo, pouco se assemelham ao defendido por Derrida em sua Desconstrução. Derrida se refere é a maneira de pensar a justiça a partir da desconstrução, que pode ser entendida de forma não-definitiva, seria, portanto, uma desestabilização de teorias e construtos teóricos por meio da denunciação de suas aporias, desmascaramento de seus antagonismos e contradições, marcada por uma reinterpretação e releitura de tudo o que nos foi legado historicamente na filosofia e no direito. Sendo que tudo o que nos foi legado historicamente o foi através da escrita, a desconstrução é a releitura dessas concepções herdadas, que, em razão de terem sido construídas em determinado contexto e historicamente datadas, podem ser desestabilizadas e reconstruídas, relidas. Em suma, a concepção pré-formada do que é justiça e direito vista por Derrida, desencadearia uma mudança de pensamento e de operação do direito pelos Ministros do STF, visto que no inteiro teor dos seus acórdãos verifica-se uma repleto bloco de colagem, ou melhor , uma concatenização de idéias já consolidadas, de resultados já efetivados e não uma desconstrução desse resultado para formação do “por vir” que é a Justiça. Neste contexto, Derrida afirma que pelo fato de não se tentar postular algo eterno e imutável, a justiça se manifesta mais propriamente como puro movimento de desconstrução cujos resultados nunca são fechados e acabados, sendo sempre algo por vir e por se realizar.

4. REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARROSO, Luís Roberto. O Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008. BONAVIDES, p. Jurisdição constitucional e legitimidade. Revista Estudos Avançados, 18 (51), 2004. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. Coimbra: ed. Livraria Almedina, 4ª. ed. 2000, pp. 904-905

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COSTA, A. A. Direito, desconstrução e justiça: reflexões sobre o texto força de lei, de Jacques Derrida. Revista Virtual de Filosofia Jurídica e Teoria Constitucional, v.1, p. 1, 2007. DERRIDA, J.. Força de Lei: o fundamento místico da autoridade. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007. FERNANDEZ, D.B; PACKER, L.A. Outro paradigma para o direito: reflexões a partir da teoria da desconstrução de Jacques Derrida e da vida concreta de Enrique Dussel. Revista Eletrônica do CEJUR, Curitiba-PR, a.2, v.1, n. 3, ago./dez. 2008. KELSEN, H. O que é Justiça?. 2. ed., São Paulo: Martins Fontes, 1998. LÉVINAS, E. “Ética e Infinito”. Lisboa: Edições 70, 2000. MENDES, G. Os novos desafios da Jurisdição Constitucional no Século XXI: a perspectiva brasileira. Disponível em: www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaArtigoDiscurso/anexo/Jurisdicao_Constitucional_no_Seculo_ XXI__v__Port.pdf Acessado em: 27 jan. 2010. MENDES, Gilmar Ferreira, Gilmar Ferreira. Arguição de descumprimento de preceito fundamental. 1ª ed, 2ª tiragem. São Paulo: Saraiva, 2009. OLIVEIRA, Fábio Cesar dos Santos. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. PLATÃO. A República. Bauru: EDIPRO, 1994. TAVARES, André Ramos; ROTHENBURG, Walter Claudius (Orgs.). Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental: análises à luz da Lei nº 9.882/99. São Paulo: Atlas, 2001.

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DIREITO À MEMÓRIA, À VERDADE E À JUSTIÇA: A PERMANÊNCIA DAS VIOLAÇÕES AOS DIREITOS HUMANOS NA ATUALIDADE

Julia Santa Cruz Gutman Graduanda em Direito pela PUC/RJ. [email protected] Renata Santa Cruz Coelho Mestre em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Especialista em Direito do Trabalho pela Universidade Federal de Pernambuco. Graduada em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. [email protected]

SUMÁRIO: Introdução; 1. Democracia e proteção aos direitos humanos; 2. Justiça Transicional; 3. Direito à Memória e à Verdade; 4. Comissão da Verdade; 5. Passado e Presente - o sentido da Memória; 6. Justiça Anamnética; 7. Os Mortos e Desaparecidos da Democracia - A Permanência das Violações aos Direitos Humanos na Atualidade; Considerações finais; Referências.

INTRODUÇÃO O objeto do presente estudo consiste na análise das violações aos direitos humanos ocorridas no período da ditadura civil-militar e no quanto elas influenciaram na vida de diversas famílias e de jovens que tiveram seus sonhos interrompidos. Mais do que isso, cabe mostrar aqui que a ditadura continua influenciando, de certa forma, na vida de muitos. Esta última afirmação se deve, pois, à conclusão de que há uma perpetuação de violações aos direitos humanos mesmo nos dias atuais. Se pretende, com o presente artigo, a compreensão de que se não nos desfizermos desta “dívida” passada, não teremos condições de seguir em frente. Assim, a realização de políticas de memória no nosso país, tal como a publicização e correta punição dos torturadores e mandantes da ditadura, precisa ser feita para que os erros do passado não se repitam e para que as presentes e futuras gerações tenham conhecimento do ocorrido. Para que nunca se esqueça, para que nunca mais aconteça. Nas palavras de Wadih Damous (2014), “A memória e a verdade não são temas fáceis. Sua complexidade pode ser comprovada diante da demora do Estado na investigação dos crimes cometidos por seus agentes, com a chancela dos superiores hierárquicos, incluindo a mais alta cúpula das Forças Armadas. Eles mataram, torturaram e desapareceram com centenas de pessoas em nosso país, antes e durante a ditadura. A Comissão da Verdade do Rio considera que todos os casos, sem exceção, precisam de esclarecimento”. 1. DEMOCRACIA E PROTEÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS. Os regimes ditatoriais se instalaram na década de 70, na América Latina, com o falso argumento de garantia da segurança nacional, sob o controle da mais alta cúpula das Forças Armadas. O contexto de grande parte destes Estados era uma frágil democracia que produzia situações de instabilidade política e de grandes desigualdades sociais. Para que tais países se mantivessem no poder, foram negados aos cidadãos o respeito aos direitos humanos, através de governos repressores, instituindo o chamado terrorismo de Estado.

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Com a transição do Regime Militar para o Estado Democrático de Direito, se mostrou essencial a proteção dos direitos humanos, tendo em vista a observância de massivas violações destes e de garantias fundamentais durante o período de autoritarismo. Cabe destacar, neste ponto, que os direitos humanos abrangem diversos significados, estando sempre associados a evolução dos direitos naturais e à proteção do princípio da dignidade da pessoa humana. Eles são considerados como os direitos gerais de todos os seres humanos, sem distinção de raça, religião, gênero ou qualquer outra especificidade. Atualmente a noção de democracia é uma espécie de “conquista”, sendo essencial num “Estado Democrático de Direito”. Desta forma, democratização consiste em fazer com que um regime politicamente repressor e violador das garantias fundamentais adote como princípio básico e como forma de governo a democracia, considerada como um princípio fundamental. 2. JUSTIÇA TRANSICIONAL. O termo “Justiça Transicional” se concretizou conforme se deram as transições políticas, as mudanças de regimes ditatoriais ou autoritários para regimes democráticos. Desta forma, a Justiça Transicional é o marco pelo qual são analisadas as relações entre história, memória e justiça, com a intenção de explorar seus limites e possibilidades. (TEITEL, 2003) Com o intuito de que se efetive o Estado Democrático de Direito, a justiça de transição tem por base quatro características fundamentais: reparação às vítimas, busca da verdade e construção da memória, restabelecimento da igualdade perante a lei e a reforma das instituições perpetradoras dos crimes contra os direitos humanos, visando, assim, evitar que violações à dignidade humana se repitam. Em outras palavras, reconhecer o direito das vítimas, promover a paz, facilitar a reconciliação e garantir o fortalecimento da democracia são objetivos que pretendem ser alcançados de acordo com o ideal de justiça transicional. No período ditatorial a produção de violência tinha um caráter político, tendo em vista que havia o emprego de aparatos ou instituições estatais, efetivando a realização do crime de perpetração de violações aos direitos humanos. Em outras palavras, a violação em massa dos direitos e liberdades mais fundamentais está associada a práticas institucionalizadas, ou ao menos, respaldadas ou deliberadamente ignoradas pelo aparato estatal, ou seja, consistem em violações praticadas pelo Estado ou em situações nas quais se tornou omisso. O pior aspecto de tudo isso consiste no fato de que os crimes e as violações cometidas eram acompanhados por práticas de ocultação e esquecimento que asseguravam sua impunidade: desvalorizar ou criminalizar a memória, infundir o medo e obrigar o esquecimento para poder sobreviver, ocultar fatos e destruir provas, escrever a história pela perspectiva dos violadores, entre outros métodos de aniquilação total da identidade dos indivíduos. Neste sentido, Zamora (2013, p.21-46): As vítimas demandam, após o reconhecimento da verdade, que haja o fim da impunidade, que se faça justiça. Os violadores obtiveram vantagens, por meio do crime, construíram seu presente sobre injustiça cometida e pretendem assegurar um futuro que os permita seguir vivendo como se nada tivesse ocorrido. A condenação dos fatos e dos responsáveis é imprescindível para assegurar a verdade do crime.

Como forma de o Estado reconhecer sua parcela de culpa por ter se posicionado de maneira conivente com os crimes cometidos na época da ditadura civil-militar, existem diversas medidas conciliatórias que podem ser realizadas pelo atual governo brasileiro. Um exemplo é o pedido oficial de perdão à família dos desaparecidos políticos e às vítimas de perseguições e práticas de tortura, que consiste em um ato simbólico, porém, de extrema importância para quem sofreu as arbitrariedades de um governo violador de seus direitos. Ligada ao conhecimento da verdade, tendo em vista que somente a partir do reconhecimento dos erros co-

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metidos que a reconciliação se torna possível, constrói-se um espaço para que as vítimas e familiares possam recomeçar, prevalecendo a certeza da não repetição, da intolerância à repetição destes mesmos erros. No que diz respeito à perspectiva internacional, se mostra importante destacar o sucesso na realização efetiva da justiça de transição. Foi intensificada a busca pela verdade, memória e justiça em diversos países da América Latina que possuem significativos avanços, como o Chile, Peru e, principalmente, a Argentina. Contrariamente, no Brasil não houve nenhuma movimentação relevante, política ou legal, no sentido de se rever a Lei de Anistia. Passados mais de 25 anos da promulgação da Carta Constitucional de 1988, as políticas de Verdade, Memória, Justiça e Reparação ainda não se consolidaram em nosso país, não se podendo afirmar que a Justiça de Transição se efetivou. Consequentemente, o país se encontra na contramão do seu continente e das decisões internacionais. 3. DIREITO À MEMÓRIA E À VERDADE. É importante ressaltar que o direito à verdade não busca encerrar o debate histórico, mas sim fomentá-lo. Na prática, o direito à verdade refere-se ao esclarecimento público sobre o funcionamento da repressão e, especialmente, a abertura de todos os arquivos oficiais existentes, pois neles está contida “a mentira”, ou seja: a “verdade” do sistema repressor jamais exposta a qualquer controle ou filtro. Por outro lado, o direito à memória é essencial pois, a partir dele as vítimas podem construir seus discursos com pretensão de verdade e apresentá-los ao Estado como meio de disputa democrática da versão oficial sobre o passado. Em outras palavras, o direito à memória visa garantir a equidade destes cidadãos para com os outros, permitindo que sua história de luta e reivindicação também possa ser acessada e avaliada publicamente. Desta forma, pode-se dizer que o binômio Verdade-Memória possui também a função de dentro do aspecto da justiça transicional, construir uma “memória coletiva”, ou seja, um “senso comum democrático”, como se pode verificar a partir da análise do escrito de Hannah Arendt (1989) que se segue: Lembrar ou esquecer, individual e/ou coletivamente, implica, portanto, em alterar os elementos que dão significado e sentido ao futuro, uma vez que o que lembramos do passado é fundamental para que possamos refletir sobre quem somos no mundo e onde nos encontramos no tempo. Mais ainda: nossas lembranças configuram nossas percepções sobre o universo ao nosso redor e são determinantes para a orientação de nosso agir, pois a memória (bem como o esquecimento seletivo) contribuem para a formação de nossos juízos mesmo nos planos não-conscientes.

Os mecanismos de justiça transicional, como a reparação e a promoção da memória, do ponto de vista individual representam o resgate da dignidade humana negligenciada durante os períodos de exceção, mas do ponto de vista coletivo representam um acerto de contas do Estado violador de liberdades e direitos para com seus cidadãos. Isto porque, mesmo que uma vítima possa, individualmente, abrir mão da reparação que teria direito individualmente, uma sociedade não pode abrir mão da memória de seu passado sem violar individualmente seus cidadãos. RUIZ (2009), em sua obra “Justiça e Memória: para uma crítica ética da violência», propõe a reflexão crítica acerca de uma teoria da justiça que leve em conta a condição das vítimas e que tenha como objetivo a reparação da injustiça sofrida. Ele desconstrói a afirmativa de que a violência se legitima como necessária para preservação da ordem, afirmativa esta que foi utilizada pelos Estados de Exceção, que se legitimaram a partir deste artifício jurídico-político e ocultando seu objetivo real: o controle da vida humana. O ser humano não pode abrir mão de seus direitos fundamentais, ficando “na mão” das autoridades hierarquicamente superiores que se legitimam através de massivas e frequentes violações de direitos humanos, alegando serem essas necessárias para a preservação da ordem e necessárias para a segurança da vida.

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É neste sentido que se entende a memória como condição essencial para fazer justiça às vítimas. Nas palavras de Ruiz (2009), “A memória da violência, feita pelas suas vítimas, tem o poder de neutralizar sua potência, isto porque a recordação da violência inibe sua repetição, a violência esquecida propicia sua reprodução”. Assim, a vítima possui um papel essencial para a construção do verdadeiro conceito de justiça. “Isto porque sem injustiça não há vítima, sem vítima não há injustiça”. (Ruiz, 2009). O que define a injustiça é a alteridade humana negada. Portanto, nesse sentido, a justiça tem como objetivo reparar a injustiça cometida contra as vítimas, levando em conta a sua condição, só dessa forma sendo efetivamente justa. 4. COMISSÃO DA VERDADE. No dia 21 de dezembro de 2009 foi sancionado, no Brasil, o 3º Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3). Seu maior mérito foi lançar a pauta de Direitos Humanos no debate público, como política de Estado, criando, no capítulo que trata do Direito à Memória e à Verdade, uma Comissão Nacional da Verdade1. A Comissão Nacional da Verdade, criada pela Lei n° 12.528, de 2011, e instituída em 16 de maio de 2012, deu sequência à dois processos legais de busca pela verdade: a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos, criada pela Lei 9.140/95, pelo governo Fernando Henrique Cardoso, bem sucedida experiência de reparação aos familiares de mortos e desaparecidos políticos entre 1961 e 1985; e a Comissão de Anistia, criada pela Lei 10.559/02, que desde o governo Lula propicia medidas indenizatórias de reparação a pessoas atingidas por atos arbitrários cometidos antes da promulgação da Constituição de 1988. A Lei n° 12.528/2011 estabelece, em seu artigo 1º, que a Comissão Nacional da Verdade é criada “com a finalidade de examinar e esclarecer as graves violações aos direitos humanos praticadas no período fixado no artigo 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias a fim de efetivar o direito à Memória e à Verdade histórica e promover a reconciliação nacional2”. A Comissão Nacional da Verdade, portanto, possuía como tarefa promover o esclarecimento público das violações de direitos humanos praticadas por agentes do Estado na repressão aos que não se calaram diante da ditadura civil-militar, e teve seu “fim” em dezembro de 2014, com a formulação de um relatório mencionando os trabalhos realizados durante este período. Algumas medidas realizadas pela Comissão Nacional e pelas diversas Comissões Estaduais e Municipais de promoção da Verdade e preservação da Memória são os testemunhos da verdade, depoimentos, oitivas, audiências públicas, fóruns de participação, seminários, reuniões ampliadas, entre outras ações e atividades culturais. Além de revelar a Verdade, as Comissões podem ser criadas por iniciativa governamental de maior importância para responder a violências ocorridas no passado e, simultaneamente, ser o ponto de partida para que outras medidas essenciais da justiça de transição sejam estabelecidas. O relatório da CNV, como é conhecida a Comissão Nacional da Verdade, encontra-se em discussão por diversos movimentos sociais, meios acadêmicos, movimentos ligados aos direitos humanos, assim como pelos familiares de mortos e desaparecidos políticos. Segundo Maria Auxiliadora Santa Cruz, irmã de Fernando Santa Cruz, desaparecido político desde 1974, o relatório final da Comissão Nacional da Verdade foi muito vago, afinal já tínhamos a lista de todos os torturadores e diversas informações. Dora, como vários outros familiares de desaparecidos políticos, acredita que foi um erro tal relatório de tamanha importância não apontar para punição de nenhum dos torturadores, mandantes ou até financiadores do período. Como familiar de Fernando Santa Cruz, pessoalmente, acredito que o relatório final da Comissão Nacional da Verdade possui diversas lacunas e omissões, prolongando o silêncio que perpetua como resposta 1  2 

Disponível em http://portal.mj.gov.br/sedh/pndh3/pndh3.pdf. Acesso em out/2015. Disponível em . Acesso em out/2015.

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à tantas perguntas que sempre tivemos com relação ao desaparecimento de Fernando e de outros militantes. Mas não podemos deixar de mencionar a enorme importância política da Comissão da Verdade no nosso país, que avançou muito no sentido da publicização das imensuráveis violações ocorridas na ditadura civil-militar. Por fim, a conclusão que se chega é de que a luta e a dimensão política dos que ainda militam pela memória de suas mães e pais, filhas e filhos, amigas e amigos, companheiras e companheiros ainda continua, ela não começou nem vai terminar com o trabalho das Comissões da Verdade. Portanto, diversas medidas já realizadas em resposta a graves violações aos direitos humanos, como a criação das Comissões da Verdade, fortalecem o diálogo entre Justiça e Memória e o debate da responsabilidade que a geração presente tem com o tempo passado. 5. PASSADO E PRESENTE - O SENTIDO DA MEMÓRIA. O debate estimulado no presente artigo não é “do passado”, como muitos pensam, mas sim uma questão da contemporaneidade muito atual, tendo em vista que as futuras gerações precisam ter conhecimento do ocorrido. Isto porque memória é passado, mas também presente e futuro. A memória é, em todo o momento e necessariamente, uma interação entre o esquecimento e conservação. Tais debates relacionados ao tema direito à Verdade e à Memória estimulam, ou melhor, tem como finalidade auxiliar na formação de consciência da sociedade brasileira, principalmente dos jovens, a partir da desconstrução de determinados conceitos preestabelecidos. É importante ressaltar que, em períodos de redemocratização, a cultura de memória está vinculada a uma luta pelos direitos humanos e ao fortalecimento das esferas públicas da sociedade civil. Com isso, uma justiça efetiva tem que ir além do horizonte estreito da equidade e da mera reparação. 6. JUSTIÇA ANAMNÉTICA. A efetivação da justiça de transição não pode desmerecer a busca pelo direito à memória. Deve ser combatida a amnésia das sociedades que passaram por ações estatais criminosas, sustentados por uma ideologia política. Uma verdadeira política de esquecimento, que banalizou a barbárie da sociedade a tal ponto de naturalizar-se a violência através de ações formais de atos de governos ao longo de séculos. As políticas de esquecimento, além de difundirem a violência na sociedade cometem uma segunda injustiça contra as vítimas dessas violências, apagando-as da história. Nas palavras de Ruiz (2013, p. 79-108), “Uma secreta voz ecoa desde a fundura dos tempos clamando por uma justiça devida, por uma verdade não dita e por uma memória negada. É a voz das vítimas da injustiça histórica que subsiste como potência e memória de uma justiça a ser feita”. O mesmo autor afirma: “Ao desconhecer a injustiça sofrida negam a sua existência como vítimas e as condenam ao esquecimento definitivo, sua segunda morte.” Tal combate se faz justamente pelo resgate da Verdade dos fatos e pela desconstrução de versões falsas de crimes praticados por agentes do Estado. Nesses períodos ditatoriais, em diversos locais, contra diversos povos, foram cometidas cruéis violações aos direitos humanos, como torturas, detenções ilegais, desaparecimentos forçados, execuções, entre outros. Os torturadores e os mandantes da época da ditadura civil-militar tinham como objetivo a aniquilação da identidade dos presos políticos, tanto como pessoas, quanto como militantes. Se praticava a negação jurídica, a negação de direitos, ou seja, eles não tinham direito a absolutamente nada. Assim, é importante esclarecer também que muitas pessoas foram atingidas indiretamente pelo Regime Militar, como os familiares dos mortos e desaparecidos políticos, tendo em vista a enorme repercussão que tal fato trouxe para suas vidas.

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No depoimento de Lúcia Murat (CNV, 2014): (...). Puseram baratas passeando pelo meu corpo. Colocaram uma barata na minha vagina. (...). Enquanto o torturador ficava mexendo nos meios seios, na minha vagina, penetrando com o dedo na vagina, eu ficava impossibilitada de me defender. (...). Essa foi talvez a pior sensação da minha vida, a sensação de não poder morrer. Eu chorava igual uma louca dentro do carro e pedia por favor para eles me matarem. (...)3

Um ponto considerado por muitos como essencial consiste no fato de que a vítima tem que ser inserida no debate do direito à verdade e à memória. Essa ideia de inserção da vítima no debate teórico é importante e inclui o conceito de justiça anamnética, utilizando a memória como instrumento para dar voz a esse sujeito. Isto porque muitos personagens dessa história de violações silenciada ainda estão vivos. Neste sentido, o depoimento de Rosalina Santa Cruz, na carta a seu irmão, o desaparecido político Fernando Santa Cruz, publicada no livro “Onde está meu filho?”: “Sobrevivi a ti, mas com a tua morte fui assassinada e torturada cem mil vezes mais do que em todas as sessões de tortura que passei nas minhas prisões4.” Ao se resgatar a memória e evitar a amnésia social, se constrói, gradativamente, uma ideia que vai sendo incorporada pela sociedade: a de que não se pode deixar passar em branco os crimes de tortura, desaparecimentos forçados e mortes praticadas por agentes do Estado. Com relação à cultura de memória, é sabido que a vida em democracia imprescinde o direito de saber, que se converte num dever de recordar. Dessa forma, a expressão “nunca mais”, não impõe a ideia de deixar o passado para trás, mas de, relembrando, evitar suas repetições. Afinal, reconstruir não é sinônimo de esquecer. 7. OS MORTOS E DESAPARECIDOS DA DEMOCRACIA - A PERMANÊNCIA DAS VIOLAÇÕES AOS DIREITOS HUMANOS NA ATUALIDADE. O processo de democratização no Brasil foi incapaz de romper em absoluto com as práticas autoritárias do Regime Militar, permanecendo um padrão de violência sistemática por parte da polícia (PIOVESAN, 2010). A transição democrática possui marcas de um continuísmo autoritário, além da violência policial, diversos casos demonstram a violência cometida contra grupos socialmente vulneráveis como os povos indígenas, a população negra, as mulheres, as crianças e os adolescentes. Segundo NEGREIROS (2014), há uma relação de causalidade entre a atual violência de Estado no Brasil e a enorme necessidade da criação de políticas públicas que objetivem e possibilitem a chamada “transição democrática”, desde o fim da ditadura civil militar (1964-1985). Um dos legados deixados pela ditadura, que influencia de forma significativa no funcionamento das instituições de segurança pública e na realidade cotidiana de violações sistemáticas aos direitos humanos cometidas por agentes do Estado brasileiro, foi a Polícia Militar. Tal instituição não surgiu nesse período, porém, seu papel de destaque nas atuais políticas públicas da cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, teve como forte influência sua função exercida durante o Regime Militar. Conforme a análise de NEGREIROS (2014), toda a arquitetura institucional da ditadura civil-militar se manteve até os dias de hoje e está fadada à produção de violência. Há uma clara relação entre a atualidade da violência de Estado e a nossa “transição democrática”. Esta transição foi feita para não ser, de fato, uma transição. 3  Lúcia Murat para a Comissão da Verdade do Rio de Janeiro no dia 28 de maio de 2014. 4  Rosalina Santa Cruz, na carta a seu irmão, o desaparecido político Fernando Santa Cruz, publicada no livro “Onde está meu filho?” Editora Paz e Terra, 1985. ASSIS, Chico de; TAVARES, Cristina; FILHO, Gilvandro; BRANDÃO, Glória; DUARTE, Jodeval; NETO, Nagib Jorge. Onde Está Meu Filho? Pernambuco: Companhia Editora de Pernambuco (Cepe Editora), 2012.

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Trabalhando com dados concretos, em nove anos (2003-2012), a Polícia Militar do Rio de Janeiro matou 9.646 pessoas, ou seja, mais de 1.000 pessoas por ano. Já a Polícia Militar de São Paulo, em cinco anos (2005-2009), matou 2.045 pessoas. Para se ter uma ideia do que isto significa, basta imaginar que todas as polícias dos Estados Unidos juntas mataram, nesses mesmos 5 anos, 1.915 pessoas. O Estado de São Paulo, portanto, que tem 40 milhões de habitantes, mata mais do que os EUA, que têm mais de 300 milhões de habitantes. E o Rio de Janeiro, com 16 milhões de habitantes, isto é, com apenas 5% da população dos EUA, demora somente dois anos para matar o mesmo número de pessoas que todas as polícias norte-americanas somadas matam em cinco. “Direitos para brancos, direitos para ricos; migalhas e porradas aos pretos, porradas e migalhas aos pobres”. Pode-se dizer que o Brasil está diante de uma tragédia histórica. Segundo Luiz Eduardo Soares, citado por Negreiros (2014): Está em curso no Brasil um verdadeiro genocídio [...] são sobretudo os jovens pobres e negros, do sexo masculino, entre 15 e 24 anos [que são mortos] [...]. O problema alcançou um ponto tão grave que já há um déficit de jovens do sexo masculino na estrutura demográfica brasileira. Um déficit que só se verifica nas sociedades que estão em guerra.

Tal continuísmo autoritário, confirmado anteriormente por Flávia Piovesan (2010), é potencializado diante de um sentimento de autoanistia e esquecimento. Pode-se chegar à conclusão de que no Brasil a Justiça de Transição não foi completa e efetiva, tendo em vista que não houve preocupação com a reparação integral da vítima, reabilitação ou com as garantias de não repetição. Foi contemplado, até a criação das Comissões da Verdade, tão somente o direito à reparação financeira com o pagamento de indenizações aos familiares dos desaparecidos com a Lei 9140/95 e Lei de Anistia. Consequentemente, não houve um compromisso da sociedade em manter algo do passado para o futuro, instituindo uma política de memória. Portanto, pode-se dizer que a “falsa conciliação” representada pela anistia nega a memória, a verdade e a justiça. Da mesma forma do ocorrido na ditadura civil militar, os agentes do Estado responsáveis pelos crimes de lesa-humanidade permanecem impunes e no mais completo anonimato nos dias atuais. As circunstâncias em que acontecem esses crimes não são elucidadas, os fatos quase nunca vêm a público. O deputado estadual Marcelo Freixo (2015) em entrevista afirmou: A mão que aperta o gatilho e que mata é acompanhada de uma outra mão: de uma caneta que assina o arquivamento, que é feito pelo promotor”. Durante a entrevista, afirmou também que o Ministério Público tem sido mais do que omisso, tem sido conivente. “O auto de resistência só não é investigado porque o MP não quer investigar, porque ele pede o arquivamento. E o juiz arquiva

Segundo Negreiros (2014): O Estado Oligárquico de Direito é organizado fundamentalmente a partir da noção de margem. Quem está para além da margem – ou para além da ponte, como se fala na periferia, para além dos rios que dividem a cidade – não é um cidadão desse Estado. Ele não é ninguém, não tem nenhum direito. E é por isso que ele pode ser morto. E é por isso que, quando ele é morto, ninguém liga. Porque quem foi morto não é ninguém. Ou, se quisermos, podemos inverter a proposição: ninguém foi morto”.

Tendo em vista este mais absoluto abandono, se mostra urgente a constituição de políticas públicas de reparação às vítimas do presente: reparação financeira, psíquica, entre outras, ou seja, uma política de reparação integral. Em outras palavras, é de extrema urgência a criação de políticas de memória e de verdade.

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Neste sentido o poema de Eduardo Galeano: (...). Os ninguéns: os filhos de ninguém, os donos de nada. Os ninguéns: os nenhuns, correndo soltos, morrendo a vida, fodidos e mal pagos: Que não são, embora sejam. Que não falam idiomas, falam dialetos. Que não praticam religiões, praticam superstições. Que não fazem arte, fazem artesanato. Que não são seres humanos, são recursos humanos. Que não tem cultura, têm folclore. Que não têm cara, têm braços. Que não têm nome, têm número. Que não aparecem na história universal, aparecem nas páginas policiais da imprensa local. Os ninguéns, que custam menos do que a bala que os mata5.

A escolha do impactante trecho do artigo “Memória, Verdade, Justiça e Reparação para os crimes do Brasil pós-ditatorial”, de Dario de Negreiros e do poema do escritor Eduardo Galeano, respectivamente, demonstra o fato de que as vítimas do nosso Estado Democrático de Direito estão fadadas a um esquecimento muito semelhante àquele que o Estado Ditatorial as tentou imputar. É preciso deixar claro que a voz dos mortos de hoje é tão importante quanto a dos mortos na época da ditadura civil militar. Isto porque, como sabiamente disse Débora Silva, “os nossos mortos têm voz6”. CONSIDERAÇÕES FINAIS A reprovação moral dos crimes passados, feita de forma difundida e oficial, influencia na formação da identidade de uma sociedade e na seleção de suas memórias. Nesse sentido, é de fundamental importância o estudo sobre direito à memória e à verdade, tal como a análise das atuações das Comissões da Verdade. Caso as violações aos direitos humanos ocorridas no passado não forem elucidadas, não teremos condições de impedir que estas se perpetuem nos dias atuais. É preciso reconstituir com rigor a verdade histórica, até hoje negada pela repressão. Da mesma forma, é preciso conscientizar as atuais gerações do ocorrido na época da ditadura civil-militar, com o intuito de que estas conheçam sua verdadeira história. A democracia é uma luta, uma conquista diária e não podemos viver num Estado Democrático de Direito sem a identificação e a justa responsabilização dos mandantes e executores da época da ditadura civil-militar. A verdade precisa vir à tona. É importante ser colocado que não se trata de uma vingança, mas sim a busca pela verdade e respeito à memória das vítimas e seus familiares. Com isso, podemos concluir que a luta pelo direito à memória e à verdade é uma condição essencial para que o ocorrido na ditadura civil-militar nunca mais se repita. REFERÊNCIAS AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo Editorial. 2008. ARENDT, Hannah. As Origens do Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras. 1989 ASSIS, Chico de; TAVARES, Cristina; FILHO, Gilvandro; BRANDÃO, Glória; DUARTE, Jodeval; NETO, Nagib Jorge. Onde Está Meu Filho?. Pernambuco: Companhia Editora de Pernambuco (Cepe Editora). 2012. ASSY, Bethania; MELO, Carolina de Campos; DORNELLES, João Ricardo; GÓMEZ, José Maria (orgs.). Direitos Humanos. Justiça, Verdade e Memória. Rio de Janeiro: Lumen Juris Editora. 2012. DAMOUS, Wadih. Informe do Relatório Parcial da Comissão da Verdade do Rio. 2014. 5 

Disponível em http://www.vermelho.org.br/noticia/262485-11. Acesso em out/2015.

6 

Fundadora do movimento Mães de Maio, que teve o filho morto pela polícia em 2006.

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MIGUENS, Marcela Siqueira. A Justiça de Transição no Contexto Latino-Americano: suas características, fundamentos e uma comparação entre Brasil e Argentina. (Dissertação apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-Graduação em Direito, da Universidade do Estadodo Rio de Janeiro). Rio de Janeiro. 2011. NEGREIROS, Dario de. Memória, Verdade, Justiça e Reparação para os Crimes do Brasil Pós-Ditatorial. Publicado no dia 26/06/14 no site http://ponteorg/memoria-verdadejustica-e-reparacao-para-os-crimes-do-brasil-pos-ditatorial/. PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 11 ed. São Paulo: Saraiva. 2010. RUIZ, Castor Bartolomé (org). Justiça e Memória: para uma crítica ética da violência. São Leopoldo, RS: UNISINOS. 2009. RUIZ, Castor M. M. Bartolomé. (In)justiça, violência e memória: o que se oculta pelo esquecimento tornará a repetir-se pela impunidade. In: SILVA FILHO, José Carlos Moreira da; ABRÃO, Paulo; TORELLY, Marcelo D. (Coord.) Justiça de Transição nas Américas: olhares interdisciplinares, fundamentos e padrões de efetivação. Belo Horizonte. Editora Fórum. 2013. p. 79-108. TEITEL, Ruti. Transitional Justice Genealogy. (Symposium: Human Rights in Transition). In: Harvard Human Rights Journal. 2003. TORELLY, Marcelo D. Justiça Transicional e Estado Constitucional de Direito: perspectiva teórico-comparativa e análise do caso brasileiro. (Dissertação submetida à Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB) como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Direito, Estado e Constituição). Brasília. 2010. ZAMORA, José A. História, memória e justiça: da Justiça Transicional à justiça anamnética. In: SILVA FILHO, José Carlos Moreira da; ABRÃO, Paulo; TORELLY, Marcelo D. (Coord.) Justiça de Transição nas Américas: olhares interdisciplinares, fundamentos e padrões de efetivação. Belo Horizonte. Editora Fórum. 2013. p. 21-46. Relatório da Comissão Nacional da Verdade. 2014.

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CARACTERÍSTICAS DOS SISTEMAS DE CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE: BREVE CONSIDERAÇÕES DIDÁTICAS SOBRE ASPECTOS CONCEITUAIS E PROCESSUAIS

Luciano José Pinheiro Barros Mestre pela UFPE. Professor da Universidade Católica de Pernambuco. Raquel Alves Almeida Silva Estudante de Direito da Universidade Católica de Pernambuco. Ana Beatriz Oliveira de Souza Estudante de Direito da Universidade Católica de Pernambuco.

SUMÁRIO: 1. Apresentação; 2. Características em sentidos opostos; 3. Características e aspectos processuais; 3.1 Concentrado x difuso: competência; 3.2 Direto x indireto: competência; 3.3 Objetivo x subjetivo: legitimidade; 3.4 Principal x Incidental: objeto (pedido x causa de pedir); 3.5 Abstrato x concreto: obejto. 4. Conclusão; 5. Referências.

1. APRESENTAÇÃO A Constituição propõe um conjunto de ideias e valores que se materializam em normas reveladoras de direitos e garantias fundamentais, com a perspectiva voltada para o desenvolvimento e afirmação da democracia e da justiça social. Todavia, a acelerada e plural dinâmica dos tempos atuais, a suscitar situações diversas - que vão da obviedade à perplexidade -, impõe a provocação de um eficaz diálogo entre o texto constitucional e a realidade, em vista da concretização de uma verdadeira ideologia constitucional, atualizando o seu alcance. Os meios para a consolidação de uma pauta que encarne conceitos como dignidade e cidadania, entre outros que pavimentam um Estado Democrático e Social de Direito, nos termos da Constituição de 1988, devem ser acessíveis aos cidadãos. Em caso de ameaça ou lesão a direitos individuais e sociais, a inafastabilidade da apreciação do Poder Judiciário a situações concretas, sobretudo, mediante a disponibilização de instrumentos adequados, pode ser a garantia eficaz em prol da legitimação da agitada ideologia constitucional. A jovem democracia brasileira e a baixa densidade da nossa cultura constitucional revelam um ainda tímido – e, por vezes, descalibrado – manejo da matéria constitucional, sobretudo em sede de controle difuso de constitucionalidade. Nesse diapasão, a presente abordagem parte da constatação de um problema de ordem didática: o tratamento pouco rigoroso da doutrina, em relação aos termos e expressões que designam as características dos dois principais sistemas de controle de constitucionalidade (europeu e norte-americano), cujas premissas informam o sistema de controle misto de constitucionalidade brasileiro. É consabido que o sistema brasileiro de controle de constitucionalidade consagra a convivência das vias de controle difuso e concentrado, com a potencial ventura de angariar ganhos para a consolidação da vida democrática do país. Ocorre que a instrumentalização da matéria constitucional em juízo, depende do pleno domínio do que significa cada característica que inspira o nosso sistema misto de fiscalização constitucional e seus aspectos processuais.

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Ora, não se pode presumir que toda pessoa que entre em contato com a matéria já tenha alguma intimidade com ela olvide da necessária abordagem sobre os aspectos processuais que marcam cada característica das vias do controle de constitucionalidade brasileiro, sob pena de sério comprometimento à sua compreensão. A título de ilustração, não se pode discorrer sobre o controle difuso, ora o chamando de incidental, ora de concreto (às vezes no mesmo parágrafo) - ao sabor do estilo redacional do doutrinador -, sem antes adentrar no significado de cada característica reveladora da sua correspondente dimensão processual. A observação do aspecto processual que encerra cada característica da via de controle de constitucionalidade, além de necessária ao esclarecimento do tema, ainda tem o condão de trazer considerações de ordem prática a abordagens eminentemente teóricas, conjugando substância e forma no tratamento de tema tão caro à formação de intérpretes do direito, indispensáveis à construção da nossa democracia. Assim, as considerações adiante alinhadas apresentarão as características dos sistemas europeu e norte-americano, dispostas em sentidos opostos, bem como o seu desdobramento na experiência brasileira, a partir de definições conceituais e do caráter processual que as distingue, com menção ou referência aos correspondentes dispositivos normativos. 2. CARACTERÍSTICAS EM SENTIDOS OPOSTOS. A experiência de fiscalização constitucional brasileira gerou a convivência entre os modelos europeu e norte-americano de controle de constitucionalidade, numa evidência de que não se cogita de pretensa excelência teórica de um modelo em detrimento do outro. Enquanto na Europa do início do Século XX, a Constituição da Áustria preconizava um modelo de controle de constitucionalidade, segundo as ideias positivistas de Hans Kelsen (suprimidas com o advento da Primeira Guerra Mundial e aperfeiçoadas com o pós Segunda Guerra Mundial); nos Estados Unidos, no ano de 1803, a célebre decisão da Suprema Corte norte-americana, a partir do voto de John Marshall, no caso Marbury vs Madison, ofertou os fundamentos do respectivo sistema de controle de constitucionalidade, assimilado no Brasil em 1891. O modelo de fiscalização constitucional europeu somente foi absorvido no Brasil, a partir de 1965, com a criação da Ação Direta de Inconstitucionalidade. Com efeito, as características que definem dimensões importantes da jurisdição constitucional no Brasil, encontram a sua gênese em processos político-culturais que preconizaram os sistemas de controle de constitucionalidade na Europa e nos Estados Unidos. Numa breve análise, tem-se que: a) na Europa, o legado dos movimentos constitucionalistas firmou alicerces a partir da ideia de supremacia parlamentar e da lei enquanto vontade geral do povo; a legitimidade para deflagração do controle de constitucionalidade toca às autoridades políticas; a competência para conhecer diretamente, processar e julgar as questões constitucionais articuladas, cabe a órgãos de natureza política, as chamadas Cortes Constitucionais; casos concretos não são objeto de exame pelas Cortes Constitucionais; e, nesse passo, os interesses subjetivos também não se inscrevem no âmbito do controle de constitucionalidade, mas apenas o exame da compatibilização entre norma infraconstitucional e Constituição, abstrata e objetivamente considerada, para efeito da harmonização do ordenamento jurídico; b) nos Estados Unidos foi concebida a ideia de supremacia constitucional, que confere à Constituição o status de Lei Maior, decorrente do reconhecimento da sua força normativa; todo sujeito de direito tem legitimidade para pleitear uma proteção eficaz do seu patrimônio jurídico, a partir de casos concretos; todo e qualquer juiz investido em funções jurisdicionais – respeitadas as regras processuais de competência – pode decidir questões constitucionais a ele incidentalmente apresentadas, com a possibilidade de recurso a uma Corte Suprema. A fim de atender a critérios didáticos, voltados para uma melhor apresentação das características dos sistemas europeu e norte-americano, é possível organizar as considerações sobre a matéria, reafirmando as respectivas oposições e salientando os aspectos processuais envolvidos, sob o seguinte esquema:

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Em linhas gerais, enquanto o modelo norte-americano destaca a supremacia do Poder Judicial, em face do histórico de lutas pela liberdade que marca os Estados Unidos; o modelo europeu realça a supremacia parlamentar, presente o caráter político prognosticado por Kelsen no ambiente do controle de constitucionalidade. Francisco Fernández Segado afirma que o modelo de controle de constitucionalidade europeu (informado pela ideia kelseniana do legislador negativo) não confiou aos juízes o poder para exercer a jurisdição constitucional, por não enxergar representatividade nessa casta aristocrática. Ainda assim, o citado doutrinador entende que, mesmo na Europa, os ordenamentos jurídicos contemporâneos vêm se aproximando mais do modelo norte-americano do que do formatado por Kelsen, em busca de legitimidade (SEGADO, ano 2003, p. 64). 3. CARACTERÍSTICAS E ASPECTOS PROCESSUAIS. Presentes as características da fiscalização constitucional na Europa e nos Estados Unidos, bem como os fatores de concepção de cada sistema – ainda que em breves linhas -, cumpre avançar sobre os aspectos conceituais que autorizam a compreensão de uma verdadeira oposição de critérios na formulação dos respectivos sistemas de controle de constitucionalidade; todavia, ambientada na experiência do sistema de controle de constitucionalidade brasileiro, com remissões aos aspectos processuais então observados. 3.1. CONCENTRADO X DIFUSO: COMPETÊNCIA.

As características difusa e concentrada que marcam o sistema de controle de constitucionalidade brasileiro, designando-o misto, dizem respeito às vias de instrumentalização das questões constitucionais apresentadas ao Poder Judiciário, que recebeu da Constituição de 1988, a competência exclusiva para o exercício da jurisdição constitucional no país. Assim, no particular, cumpre realçar os aspectos dizentes com a competência para conhecer, processar e julgar questões constitucionais. A designação adjetiva difusa revela a característica do sistema de fiscalização constitucional que atribui a todo e qualquer juiz, investido em função jurisdicional, competência – em razão da pessoa, matéria ou lugar - para declarar a inconstitucionalidade de uma lei. Trata-se de um espaço de jurisdição constitucional que se apresenta bastante adequado à tutela dos direitos fundamentais (o que não significa que o controle concentrado também não responda a essa expectativa) (RÊGO, 2001, p.259). Saliente-se que o controle difuso decorre da livre prerrogativa conferida aos órgãos jurisdicionais de proteger a Constituição e resolver as questões constitucionais a eles submetidas. A Constituição de 1988 prevê expressamente o controle difuso em, pelo menos, dois dispositivos: no inciso XXXV do art. 5º, que assegura o acesso ao Poder Judiciário; e, no art. 97, relativo ao procedimento dizente com a declaração de inconstitucionalidade pelos tribunais. Intimamente ligado à garantia de acesso à justiça, o controle difuso é manejado através dos instrumentos colocados à disposição dos cidadãos e as suas decisões não estão tão expostas a interferências políticas, como se vê no controle concentrado. Sem dúvida, a ampliação do acesso à justiça atende a uma necessidade óbvia de efetivação ou concretização dos direitos fundamentais, na sociedade a que se dirige a Constituição. Amparado pelo sobredito

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princípio da inafastabilidade do Poder Judiciário, desde o julgador comum é possível se desempenhar o controle de constitucionalidade, na medida em que se observe lesão ou ameaça a direito. Assim, o cidadão sempre terá à disposição uma via pavimentada para a proteção dos seus direitos fundamentais. Essa perspectiva deixa claro que o controle difuso pode ser a regra para a proteção ou afirmação dos direitos fundamentais no sistema de fiscalização constitucional brasileiro, uma vez que - ao menos, em tese - é acessível a quem a ele necessite recorrer. Já o caráter concentrado atribuído à jurisdição constitucional revela a existência de um único órgão investido de competência para realizar a fiscalização constitucional, mediante ações específicas. No caso do sistema misto brasileiro, pavimentou-se uma via de acesso ao Supremo Tribunal Federal, conferindo à mais alta instância do Poder Judiciário, a competência para a realização do controle concentrado de constitucionalidade, no Brasil. A competência concentrada em único órgão, para realização do controle de constitucionalidade, objetiva conceder estabilidade a decisões que tem o mister de harmonizar o ordenamento jurídico com os princípios e regras insculpidos na Carta Magna, resguardando os bens e valores jurídicos mais caros à sociedade brasileira. A Constituição de 1988 concentrou no Supremo Tribunal Federal a competência para conhecer, processar e julgar as chamadas ações constitucionais: Ação Direta de Inconstitucionalidade, em suas modalidades Genérica (art. 102, I, “a”), por Omissão (art. 103, ̕2º) e Interventiva (art. 36, III); Ação Declaratória de Constitucionalidade (art. 102, I, “a”); e Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (art. 102, p 1º). Ora, vê-se que o marco teórico do chamado neoconstitucionalismo brasileiro, dizente com a expansão da jurisdição constitucional, deu-se de modo eloquente no âmbito do controle concentrado: antes da Constituição de 1988 havia apenas uma ação constitucional que poderia ser manejada perante o STF; e, com a promulgação da nossa atual Carta Magna, são cinco as possibilidades de fiscalização constitucional, através do controle concentrado, em inegável avanço democrático, na medida em que se tem ampliadas as possibilidades de defesa da atual constituição, promulgada após quase trinta anos de ditadura. Assim, resta salientada a relação do aspecto processual da competência, a designar as características difusa e concentrada do sistema misto de controle de constitucionalidade brasileiro, enquanto corolário de nossa jurisdição constitucional a realçar um projeto de país democrático. 3.2. DIRETO X INDIRETO: COMPETÊNCIA.

O Supremo Tribunal Federal desempenha o papel de guardião da Constituição. O acesso a esta que é a mais alta corte do Poder Judiciário brasileiro, está diretamente relacionado com as características ditas direta e indireta do nosso sistema misto de controle de constitucionalidade. O chamado controle direto de constitucionalidade decorre da concentração de competência, num único órgão, para conhecer, processar e julgar questões constitucionais, numa quase redundância ao que revela a característica concentrada. Diz-se direto o controle de constitucionalidade que autoriza o ingresso da ação constitucional diretamente na Corte Constitucional: sem escalas entre os entes legitimados à respectiva propositura da ação e o dito órgão. No Brasil, o uso da expressão controle direto pressupõe a atuação do STF, enquanto instância primeira e única num processo de fiscalização constitucional. Sobre o controle indireto de constitucionalidade, tem-se que a sua realização se dá no âmbito difuso da fiscalização constitucional, estando condicionada à admissibilidade do Recurso Extraordinário pelo Supremo Tribunal Federal (art. 102, III, da Constituição de 1988)1, face à negativa de vigência à Lei Maior pela instância judicante a quo. Nesse diapasão, nem todo controle difuso é controle indireto, uma vez que o juiz singular e as instâncias recursais anteriores ao Supremo Tribunal Federal podem realizar a fiscalização constitucional, pronun1  O STF não admite Recursos Extraordinários nos quais se pretenda discutir o que se denomina de inconstitucionalidade reflexa ou indireta; e ainda requisita que a matéria tenha repercussão geral.

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ciando-se sobre os incidentes de constitucionalidade presentes no processo, em razão do que preceituam os arts. 5º e 97 da Constituição de 1988. Todavia, caso não se interponha o Recurso Extraordinário que demande a palavra final do STF, no caso sub judice, ou na hipótese de inadmissibilidade desse recurso derradeiro, não há que se falar em controle indireto, uma vez que a questão constitucional não chegou ao conhecimento do Supremo Tribunal Federal. Nesse passo, não se pode dizer que as expressões controle difuso e controle indireto seriam sinônimas. Embora guardem relação com o mesmo aspecto processual da competência, correspondem a dimensões diferentes, que não autorizam o seu uso indiscriminado: o controle de constitucionalidade sem a participação do STF, não se compadece da expressão controle indireto. 3.3. OBJETIVO X SUBJETIVO: LEGITIMIDADE.

O sistema de controle de constitucionalidade brasileiro, no que pertine aos interesses sob tutela, traz consigo os caracteres objetivo ou subjetivo, cujo aspecto processual implica a legitimidade de autoridades políticas ou sujeitos de direito, respectivamente autorizados à dedução de questões constitucionais em juízo, a depender da via eleita para os correspondentes processos. Na via difusa, o controle será subjetivo; na concentrada, objetivo. O controle subjetivo oportuniza ao cidadão buscar e obter uma declaração de inconstitucionalidade, tornando-o também responsável pela preservação da ordem constitucional. Na medida em que um conflito de interesses intersubjetivos agasalhe uma controvérsia sobre a constitucionalidade de uma lei, e isso configure uma lide instalada no Poder Judiciário; tem-se, por meio da defesa de interesses pessoais, a defesa da Constituição, desde a judicatura de primeira instância. Presente eventual inércia dos entes legitimados à propositura das chamadas ações constitucionais, diante de questões que suscitem uma declaração de inconstitucionalidade, o cidadão pode se valer do controle subjetivo2 para ver respeitado o seu direito fundamental e não ser obrigado a cumprir lei ou ato normativo inconstitucional. Destaque-se que os efeitos produzidos por decisão que declara a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, em sede de controle subjetivo, alcançam apenas aqueles que protagonizam os polos ativo e passivo do processo judicial (inter parts), não alcançando pessoas alheias à lide e quem ficou inerte, ante a ameaça ou lesão a seu patrimônio jurídico. Assim, em caso de declaração de inconstitucionalidade, a lei é nula apenas para as partes do processo, fazendo valer o brocardo de que “o direito não socorre a quem dorme”. De sua parte, o controle objetivo de constitucionalidade é alheio a interesses pessoais e se presta à tutela objetiva do ordenamento jurídico, em vista da pretendida harmonia entre norma infraconstitucional e Constituição. Por esse motivo, não se confere legitimidade ao cidadão comum para instrumentalizar questões constitucionais perante qualquer órgão do Poder Judiciário, mas a autoridades políticas arroladas na Lei Maior, tocadas com o condão constitucionalmente legitimador para a propositura das ações constitucionais, perante o órgão competente para conhecê-las, processá-las e julgá-las. No Brasil, os incisos do art. 103 da Constituição da República e do art. 2º da Lei 9868/99 reproduzem o mesmo texto, atribuindo legitimidade a órgãos, pessoas e entes para promover ADIn ou ADC; bem como o 2º da Lei 9.882/99 faz o mesmo em relação à ADPF, tudo, perante o Supremo Tribunal Federal. Todavia, a jurisprudência do STF exige a demonstração de uma pertinência entre as prerrogativas ou fins institucionais desses órgãos, pessoas ou entes e a matéria tratada pelo ato normativo questionado, passando a exigir a caracterização do chamado interesse de agir, como critério objetivo para o conhecimento das ditas ações constitucionais, no âmbito do processo objetivo do controle de constitucionalidade. Vê-se, na experiência brasileira, um fenômeno de verdadeira aproximação entre os controles objetivo e subjetivo, na medida em que um instituto originalmente previsto neste – tido como condição de ação - é requisitado para aquele – sob a alcunha de “pertinência temática” -, a fim de evitar o indevido uso político do controle objetivo conferir legitimidade e qualidade ao debate judicial. 2 

v.g. mandado de segurança.

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Assinale-se que os efeitos produzidos por decisão que declara a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, mediante controle objetivo, alcançam a todos os cidadãos indistintamente (erga omnes); ou seja, em caso de declaração de inconstitucionalidade, a lei é objetivamente extirpada do ordenamento jurídico. Uma vez assinalada a relação entre o aspecto processual da legitimidade e as características subjetiva e objetiva do nosso sistema de controle de constitucionalidade, tem-se evidenciados os contornos da jurisdição constitucional brasileira que lidam com a possibilidade de consolidação cotidiana dos direitos fundamentais, de um lado; e, de outro, conferem alcance geral à discussão da matéria constitucional, alicerçados no instituto da legitimidade. 3.4. PRINCIPAL X INCIDENTAL: OBJETO (PEDIDO X CAUSA DE PEDIR).

As características que denominam as vias principal e incidental de controle de constitucionalidade, tem a ver, respectivamente, com a articulação da questão constitucional no pedido ou na causa de pedir das peças processuais que suscitam a fiscalização constitucional. Diz-se principal a via de controle de constitucionalidade acessada através das chamadas ações constitucionais, cujo manejo localiza a questão constitucional no pedido apresentado ao Supremo Tribunal Federal, encerrando o objeto principal do processo. Na estrutura de uma petição inicial, após a qualificação das partes e apresentadas as razões de direito (causa de pedir), tem-se o pedido: a manifestação do que se deseja na demanda apresentada ao Poder Judiciário: a materialização de uma pretensão deduzida em juízo. Ora, o pedido define o objeto da demanda e corresponde ao próprio objeto do processo: aquilo que se pretende com a instauração da demanda e se extrai a partir de uma interpretação lógico-sistemática do afirmado na petição inicial. O controle de constitucionalidade principal objetiva as declarações de inconstitucionalidade (ADIN), constitucionalidade (ADC) ou a verificação de descumprimento de preceito fundamental (ADPF), manejado através das ações constitucionais, com os respectivos objetos expressamente indicados no pedido. A via incidental de controle de constitucionalidade revela a possibilidade de fiscalização constitucional de uma lei, mediante a ocorrência de um incidente processual. A questão constitucional não corresponde ao objeto principal da ação. No âmbito de um conflito intersubjetivo de interesses, confiado a um juiz investido em funções jurisdicionais, a declaração de inconstitucionalidade é articulada como causa de pedir algo no processo. Ao enfrentar as razões de fato e de direito envolvidas na lide, o juiz decide o incidente de inconstitucionalidade, enquanto questão prejudicial de mérito; para, enfim, pronunciar-se sobre o pedido (objeto principal do processo). Nesse passo, a via incidental de controle de constitucionalidade oportuniza a concretização de direitos fundamentais; cotidianamente. A doutrina autorizada de Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano Nunes Júnior afirma que a declaração incidental de inconstitucionalidade “será sempre incidenter tantum, ou seja, pressuposto para a procedência ou improcedência da ação, que apreciará a tutela concreta do interesse instalado em juízo. Aqui, a declaração de inconstitucionalidade antecede o mérito da questão” (ARAUJO; JUNIOR, 2003, p. 28) e a fiscalização constitucional se dá quase que acidentalmente, pois as partes envolvidas no processo - seja o requerente do pedido principal, seja a parte adversa - tem por objetivo ver os seus problemas pessoais resolvidos. A questão constitucional é causa de pedir a procedência ou improcedência do pedido. Anote-se que a causa de pedir se divide em próxima (imediata), que correspondente aos fundamentos fáticos articulados na petição inicial: os fatos da vida que servirão de alicerce para o pedido jurídico; e remota (mediata), equivalente aos fundamentos jurídicos que também sustentam o pedido: a contextualização de um fato qualquer da vida, dentro do ordenamento jurídico. As causas próxima e remota (ou imediata e mediata) estão diretamente relacionadas, pois não há como se alegar a titularidade de determinado direito, sem antes se analisar os fatos que fundamentem o pedido a ser feito.

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Assim, na causa de pedir ou no pedido de uma ação, a questão constitucional encontra espaço de veiculação no sistema misto de controle de constitucionalidade brasileiro, ampliando as expectativas de adensamento de nossa cultura constitucional e, consequentemente, de aprofundamento de uma recente experiência democrática, cujos instrumentos de defesa não podem ficar confinados a espaço de pretensa sofisticação jurídica, distante da necessária e legítima elaboração do direito, a partir do manejo dos controles principal e incidental. 3.5. ABSTRATO X CONCRETO: OBJETO.

No Brasil, o controle de constitucionalidade denota as características abstrata e concreta, enquanto aspecto processual dizente com o objeto do processo que instrumentaliza a questão constitucional. Sobre o objeto do processo recai enorme esforço doutrinário para alcançar o que pode significar tal instituto. No entanto, a acepção sinônima correspondente ao mérito da causa, esclarece o sentido da expressão jurídica que se relaciona com as citadas características abstrata e concreta da fiscalização constitucional (ao menos, para o presente momento de breves considerações didáticas). Em regra, o controle concreto é levado a efeito no âmbito de um debate judicial em torno de um caso concreto e suas especificidades, ao ensejo da defesa de interesses pessoais ou de algum direito. Nesse âmbito, o pronunciamento judicial leva em consideração um fato previsto em norma e a sua significação, que coexistem em uma unidade concreta: o objeto processual (REALE, 1979 apud RÊGO, 2001, p.280).3 O controle concreto tem o condão de produzir julgamentos sob medida, limitados aos respectivos objetos processuais, realizando o direito específico a ser aplicado em cada caso, sob a perspectiva da conformidade ou não com a Constituição. O controle abstrato, no mais das vezes, é exercido em razão da verificação da validade de uma lei ou ato normativo, em face da Constituição, em análises alheias a ocorrências reais. Marcado por elevado teor político, o controle abstrato pode recorrer a expedientes presentes em processos que oportunizam a realização do controle concreto de constitucionalidade, na medida em que passou a admitir a convocação de peritos ou de comissão de peritos, na condição de especialistas em matérias que estejam submetidas a sua apreciação. Ora, ordinariamente, peritos são requisitados para ajudar na elucidação de situações fáticas; mas, em nome da delimitação do objeto processual, disponibilizam o seu conhecimento à realização do controle abstrato. Presente, pois, a relação existente entre o aspecto processual do objeto e as características concreta e abstrata do sistema de controle de constitucionalidade brasileiro, tem-se que as respectivas perspectivas de concretização da vontade constitucional podem se materializar desde a instalação de situações cotidianas no Poder Judiciário, até as considerações dizentes com a harmonização do ordenamento jurídico em face da Lei Maior, requisitando argumentação específica e tecnicamente ajustada à revelação do objeto, em cada via de fiscalização constitucional. 4. CONCLUSÃO. O domínio sobre o que encerra cada característica do sistema misto de controle de constitucionalidade brasileiro, presentes os correspondentes aspectos processuais, parece ter a sua importância para uma compreensão mais fluída da matéria, cuja instrumentalização materializa as possibilidades de defesa da Constituição e promoção da democracia. Parece ser o caso em que o rigor na categorização de cada característica contribui para a pavimentação de um conhecimento basilar, que pode oportunizar outros estudos e o exercício mesmo de um controle de constitucionalidade eficaz.

3  REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. São Paulo: Saraiva, 1979. p. 67. Apud RÊGO, Bruno Noura de Moraes Rêgo. Ob. cit. p. 280.

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REFERÊNCIAS ARAUJO, Luiz Alberto David; JÚNIOR, Vidal Serrano Nunes. Curso de Direito Constitucional. 7ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2003. RÊGO, Bruno Noura de Moraes. Ação rescisória e a retroatividade das decisões de controle de constitucionalidade das leis no brasil. 1ª Edição. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2001. SEGADO, Francisco Fernández. “La Obsolescencia de la Bipolaridad Tradicional (Modelo Americano – Modelo Europeo-Kelseniano) de los Sistemas de Justicia Constitucional”. In: Revista de Direito Público n 02 (out-nov-dez/2003)

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CRISE, JURISDIÇÃO E DEMOCRACIA Luciano José Pinheiro Barros Mestre pela UFPE. Professor da Universidade Católica de Pernambuco Mateus Siqueira Pacheco Advogado. Graduado em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco

Sumário: 1. Crise, Democracia e Jurisdição Constitucional: Constitucionalismo; 2. Crise, Democracia e a Expansão da Jurisdição Constitucional; 3. Crise, Jurisdição e o Papel do Juiz; 4. Jurisdição, Democracia e o Ativismo Judicial; 5. Conclusão; Referências

1. CRISE, DEMOCRACIA E JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL: CONSTITUCIONALISMO. Pode-se dizer que o constitucionalismo é um movimento que se apoia numa “teoria normativa da política”, que “ergue o princípio de um estado limitado, indispensável à garantia dos direitos em dimensão estruturante da organização político-social de uma comunidade” (CANOTILHO, ano 1993, p.51). A afirmação conceitual do constitucionalismo envolve uma articulação complexa de institutos plasmados nos universos da política e do direito, construídos na base de uma realidade em transformação, por vezes, reveladora de uma situação de crise. O empirismo que ressai dessa assertiva enxerga nas soluções orientadas a partir de ideias e valores constitucionais (ideologias e práticas políticas e judiciárias), importante elemento legitimador de um movimento que encerra a pretensão de superar situações de crise ou evidenciá-las, a partir da instrumentalização do direito. O movimento do constitucionalismo corresponde a uma dinâmica em torno e a partir do direito constitucional, que articula e atualiza os fundamentos da vida democrática, ao estruturar e organizar o Estado e projetar direitos e garantias individuais e sociais, numa perspectiva de limitação do poder e – atualmente, pode-se dizer - empoderamento da pluralidade (CARDDUCCI, ano 2015, p. 205). A história registra que o constitucionalismo se alimenta de realidades em crise e tem a ventura de produzir normas jurídicas, redimensionar espaços e funções jurisdicionais, bem como patentear novas tecnologias hermenêuticas, em nome de uma ideologia constitucional cada vez mais complexa e de difícil conciliação na (des)construção de paradigmas democráticos. Entende-se por crise uma experiência de dificuldades agudas ou perigosas. Em uma palavra, a tradução de uma conjuntura difícil. Interessa, presentemente, alcançar a dimensão de dificuldades ou problemas contemporâneos que se relacionem com o constitucionalismo, através da instalação de questões constitucionais no Poder Judiciário, realçando a dificuldade deste em lidar com a ressignificação de metavalores como liberdade e dignidade, presente o desafiador ideal de realização da justiça. Nesse passo, a jurisdição constitucional corresponde a um espaço especializado para a compreensão das situações de crise, a partir das demandas a ela apresentadas, restando-lhe a missão de produzir decisões que se legitimem junto aos destinatários e titulares de direitos fundamentais. A jurisdição constitucional é expressão indeclinável da soberania de um país. Na definição kelseniana corresponderia à garantia jurisdicional da Constituição que, ambientada na experiência brasileira, é exercida pelo Poder Judiciário. O nobre instituto jurídico encerra uma competência conferida pela própria Lei Maior,

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voltada para a dicção do que se projeta sobre os sentimentos, ideias e vontades mais caros a uma sociedade em permanente transformação. Ocorre que as decisões emanadas em sede de controle de constitucionalidade, cada vez mais, expõem evidentes dificuldades de diálogo entre as premissas que fundamentam o seu juízo e legitimam o binômio Constituição/Democracia. É de se perguntar: a jurisdição constitucional deveria estar preocupada com as causas que compõem o objeto das demandas que lhe são apresentadas? Deveria a jurisdição constitucional dar respostas argumentadas que promovam um constitucionalismo jurídico, ou orbitar em torno de consensos, atendendo a um constitucionalismo político? (CARDDUCCI, ano 2015, p. 206). Com efeito, a democracia corresponde a um produto histórico da civilização ocidental, cuja materialização em texto constitucional decorre de uma decisão política fundamental que reconhece a coexistência de valores como liberdade e dignidade humana (já mencionados), sufrágio universal e acesso à justiça, entre outros, convertidos em direitos e garantias elevados ao status de Lei Maior. Na perspectiva das presentes considerações, assinalar que a democracia, hoje, corresponde a uma filosofia, um modo de viver ou uma quase “forma de governo”; impõe questionar se a gestão dos conflitos que marcam o pluralismo contemporâneo, ainda que relativos a direitos fundamentais, encontra legitimidade na atuação dos juízes e no fundamento de suas decisões argumentadas ou se a dimensão democrática da jurisdição constitucional reconhece e compartilha autoridade com os demais órgãos que representam a diversidade das opiniões votadas pelos cidadãos. A dinâmica imposta por situações de crise, protagonizada no âmbito da jurisdição constitucional, em vista da promoção da democracia, enquanto valor quase dogmático do mundo ocidental, demanda por respostas constitucionalmente atentas às transformações de um mundo que dialoga com humanismos diversos, fundando um constitucionalismo concreto e originalmente mundializado, com mais imprecisões do que respostas prontas, desde o que é fundamental ao que requisita soluções sistêmicas. Sendo certo que os movimentos constitucionalistas se apresentam como resposta a situações de crise, suscitando transformações na modelagem do Estado Constitucional, faz-se relevante observar que o conjunto de transformações experimentadas com o neoconstitucionalismo forjado na Europa (pós II Guerra Mundial) e observado no Brasil (pós ditadura militar), pode não se revelar suficiente para garantir a proteção dos direitos individuais, sociais e culturais de cidadãos inseridos em outras realidades, ainda que próximas. Para empreender essa reflexão, busca-se apoio no Novo Constitucionalismo Latino-Americano que, ao atentar para situações próprias da América do Sul, procurou fixar novos fundamentos para a vida democrática de alguns países. O Novo Constitucionalismo Latino-Americano surge em um contexto de revoltas populares na Venezuela (Caracazo, 1989), Bolívia (Guerra del Gas, 2003) e Equador (protestos de 2005), em face de crises econômicas, sociais e de representatividade política, marcadas por protestos, depredações e saques em série (VIEIRA, 2009, p. 02). A edição de novos documentos constitucionais nesses países [Venezuela (1999), Equador (2008) e Bolívia (2009)], inspirados por um constitucionalismo que pugna por maior legitimidade democrática e privilegia a participação popular nos processos de deliberação fundamental, instituiu a figura do Estado Plurinacional Comunitário, que subscreve o exercício de uma democracia direta, enquanto marco: a Constituição é elaborada por uma assembleia constituinte participativa e, posteriormente, aprovada por meio de referendo – por exemplo. Nesse modelo, a própria Constituição consagra uma série de institutos que autorizam a participação popular no governo, como o “Poder Ciudadano” (Venezuela), o “Control Social” (Bolívia) e o “Quinto Poder” (Equador), retirando a hegemonia absoluta do mandato representativo que caracteriza o sistema de representação política tradicional (VIEIRA, 2009, p. 15). Apesar de propor um modelo de participação direta e mais intensa do povo, na construção da vida democrática de um país, o Novo Constitucionalismo Latino-Americano não se restringe a um aspecto apenas quantitativo da representação popular. O pluralismo é uma característica intrínseca desse movimento, projetado sobre os textos constitucionais, que contemplam as culturas indígenas e toda a diversidade presente na expressão de um Estado Plurinacional, cuja soberania também se manifesta através da criação de “Justiças Comunitárias” e das decisões dos Tribunais Constitucionais.

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Com efeito, as Justiças Comunitárias e Tribunais Constitucionais correspondem a espaços de participação efetiva, conferida às comunidades, para a criação do direito - sobretudo o constitucional - pertinente à dignidade da pessoa humana. É de se registrar que a produção de decisões sobre questões jurídico-políticas, com amplos efeitos sociais, dá ensejo à concretização de princípios insculpidos nas constituições desses países, máxime ante a forte intervenção do Poder Executivo, na condução de políticas econômicas; o que salienta a importância do processo constitucional, na mediação da relação existente entre os diversos poderes do Estado Plurinacional. O Novo Constitucionalismo Latino Americano aposta na intensa participação popular e respeita o condão multicultural que toca a composição do estado contemporâneo e o respectivo sistema jurídico, de modo a garantir a legitimidade das premissas em que se apoia. Assim, tem-se superada a visão de um estado nacional universalista por uma perspectiva decolonial, atenta às singularidades dos diversos grupos que compõem a sociedade plural dos dias de hoje. 2. CRISE, DEMOCRACIA E A EXPANSÃO DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL. A história do mundo ocidental registra situações de crises relacionadas a experiências de regimes totalitários, que impuseram o peso de suas concepções, em atentados contra a democracia e os direitos humanos. A concertação de fatores políticos e jurídicos preconizaram a formulação de movimentos em torno e a partir da Constituição, cujos marcos teóricos preconizam a construção de modelos que se afeiçoam democráticos em cada realidade de Estado. Presentemente, cumpre contextualizar a expansão da jurisdição constitucional, enquanto marco teórico do neoconstitucionalismo europeu e brasileiro, a fim de trazer uma dimensão que instrumentaliza o exercício do direito de acesso à justiça, em vista da concretização de direitos fundamentais e promoção de um ideal democrático, através de decisões afirmativas de um direito constitucional atento aos anseios de sociedades, então assombradas pelo julgo totalitário. Numa Europa arrasada pela Segunda Guerra Mundial, a expansão da jurisdição constitucional se deu – não por acaso -, a partir da edição da Constituição da Itália, em 1947, e da Lei Fundamental de Bonn (Alemanha), em 1949. Os respectivos textos constitucionais previram a criação de Tribunais Constitucionais: órgãos autônomos (independentes dos poderes constituídos), dotados de competência e destinados à realização do controle de constitucionalidade. O primeiro Tribunal Constitucional Federal da Europa foi criado, na Alemanha, em 1951; a Corte Constitucional italiana foi criada posteriormente, em 1956. Nesses países, a necessidade de superação dos traumas nazi-fascistas reclamava uma resposta urgente e em condições de assegurar uma proteção eficaz aos direitos fundamentais. No Brasil, os contornos do neoconstitucionalismo estão identificados com os movimentos que resultaram na promulgação da Constituição de 1988, após quase três décadas de autoritarismo militar no país. A expansão da jurisdição constitucional brasileira assinala a ampliação do direito de propositura das ações constitucionais, como expressão desse marco teórico. Na definição de um modelo misto de fiscalização constitucional, a atual Constituição, preservou a convivência da via difusa de controle de constitucionalidade (característico do judicial review norte-americano) com a via concentrada (inspirada pela experiência concentrada) , ampliando o acesso à jurisdição constitucional, por essa última, de caráter objetivo, abstrato e direto, que tem a questão constitucional como objeto principal do pedido deduzido perante a nossa Corte Constitucional, o Supremo Tribunal Federal. Com efeito, antes da atual Constituição, o controle concentrado de constitucionalidade somente poderia ser acessado através de uma única ação constitucional, a Ação Direta de Inconstitucionalidade - ADIN, criada em 1965, cuja instrumentalização era reservada tão só ao Procurador Geral da República. Após a promulgação da Constituição de 1988, o sistema pátrio de controle concentrado de constitucionalidade passou a dispor de cinco ações constitucionais: a Ação Direta de Inconstitucionalidade Genérica - ADIN (art. 102, I, “a”), a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão – ADO (art. 103, § 2º), a Ação Direta de Inconstitucionalidade Interventiva (art. 36, III), a Ação Declaratória de Constitucionalidade – ADC (art. 102, I,

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“a”) e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF (art. 102, § 1º), as quais podem ser manejadas, não mais apenas por uma única autoridade política; mas, agora, por nove órgãos ou autoridades, conforme prevê o art. 103, I a IX, da Carta Magna. Vê-se, nesse passo, a nítida preocupação do Poder Constituinte em promover e proteger os avanços democráticos consagrados na Constituição de 1988, ao legitimar entes e ofertar instrumentos na perspectiva da preservação da ordem constitucional. A ampliação do direito de propositura, pois, corresponde a importante dimensão da democracia brasileira, cujo caráter instrumental – além de disponibilizar mecanismos de defesa da Constituição e incrementar o rol de autoridades habilitadas para tanto – ainda estabelece contatos com a sociedade organizada, através dos institutos da audiência pública e do amicus curiae, previstas na legislação que regulamenta os processos de ADIN, ADC e ADPF, na busca de uma maior legitimidade para o exercício da jurisdição constitucional. 3. CRISE, JURISDIÇÃO E O PAPEL DO JUIZ. A democracia brasileira atravessa um período de crise que atinge as estruturas do poder e, consequentemente, a legitimidade da representação popular identificada com as instâncias políticas tradicionais (legislativa e executiva). O quadro de instabilidade política que inspira processos de impeachment, as repetidas acusações de corrupção feitas a membros dos Poderes Legislativo e Executivo, bem como a representantes de diversos partidos políticos e grandes grupos empresariais, perfazem um cenário que reclama soluções baseadas em regras e princípios constitucionais, garantidores da ordem democrática, cuja palavra final está reservada ao Poder Judiciário, que também não está imune a críticas. No atual momento de crise, registre-se que a apresentação do Projeto de Lei nº 280/2016, ao versar sobre a regulação do crime de abuso de autoridade, criminalizando uma série de condutas praticadas pelo agente público, ou aquele a ele equiparado, foi recebida como um acinte às prerrogativas da autoridade policial, do Ministério Público e da magistratura; máxime em razão de membros dos Poderes Legislativo e Executivo estarem sob investigação, respondendo a processos e até cumprindo penas. O referido PL precisa ser bem discutido, cumprindo pontuar, entretanto, que os críticos dessa medida legislativa dizem que ela representaria a abertura para a criminalização1 dos membros dos outros poderes, agravando a atual situação de crise democrática. Em relação à magistratura, por exemplo, há uma percepção de que estar-se-ia agredindo prerrogativas que atingiriam a autonomia do Poder Judiciário, no cumprimento da função jurisdicional. Tem-se como relevante para o processo democrático a preservação de garantias conferidas à magistratura (art. 95, I a III, da CF), na medida em que a ela foi destinada competência – e até ampliada, na CF de 1988 - para concretizar a vontade constitucional. Com efeito, as garantias constitucionais que tocam a magistratura, como a autonomia orgânico-administrativa e orçamentária; bem como a vitaliciedade, inamovibilidade e a irredutibilidade de subsídios, correspondem a fatores que não podem ser vulnerados, sob pena de grave prejuízo à preservação da ordem democrática, desde a tutela dos direitos subjetivos, no controle concreto, como do direito objetivo, em sede de controle abstrato. A ordem jurídica contemporânea não se caracteriza por um positivismo estrito, marcadamente legalista. Tem-se a transfiguração do juiz “bouche de la loi” para a concepção de um juiz intérprete. O texto normativo, de per si, não tem mais a pretensão de oferecer a solução integral para todos os problemas experimentados em sociedade; e requisita a exegese do magistrado ou corte, cuja interpretação se integra ao seu relato abstrato, revigorando o Estado Constitucional Democrático e integrando o Poder Judiciário à dinâmica 1  Cabe ressaltar que o processo de criminalização não envolve apenas a condenação dos indiciados, ele se inicia desde a edição de uma lei criminalizadora que já restringe o âmbito de pessoas que serão criminalizadas pelo novo delito. Outro aspecto importante deste processo é a imposição de um rótulo (BECKER, 2008, p. 17-24) na figura da pessoa criminalizada desde o início do processo criminal. A possibilidade de abertura de processos criminais contra os membros da magistratura, pelo exercício de sua atividade, parece afetar a imagem do Poder Judiciário e agravar a situação de crise. A conduta abusiva do magistrado, na condução do processo, pode ser impugnada no âmbito recursal e levar o magistrado a responder processo administrativo disciplinar movido nos Tribunais respectivos e Conselho Nacional de Justiça, conforme determinado na Resolução n° 135/2011/CNJ. Logo, a utilização da justiça criminal parece uma atitude desarrazoada e atentatória contra as garantias da magistratura.

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de promoção da ordem constitucional, como guardião da Lei Maior. Nesse passo, o juiz ou a corte não se limitam a apenas aplicar o texto normativo em sua literalidade. Os limites restritos da atividade interpretativa do juiz, observado o dever de fundamentação (art. 93, X, da CF) foram dilatados ante a necessidade de concretização das normas constitucionais, mediante a interpretação mais condizente com a vontade expressa na Constituição (ROMBOLI, ano 2013 p. 2-4). Ora, tem-se uma crescente valorização da jurisprudência na realidade jurídico-política brasileira, consolidando a ideia de ampliação dos poderes interpretativo-criativos do juiz e, principalmente, do STF, que ocupa a posição de cúpula do Poder Judiciário. A importância das decisões do STF e seu alcance político pode ser ilustrada pela possibilidade de o Senado Federal editar Resolução, que retire do ordenamento jurídico, lei declarada inconstitucional pelo STF, em sede de controle subjetivo (art. 52, X): tem-se a interpretação constitucional, enquanto produto do Poder Judiciário, como fator de integração entre os poderes. De fato, aspecto relevante do constitucionalismo brasileiro, em sua intrínseca relação com a democracia, é o protagonismo do Poder Judiciário na afirmação da Supremacia Constitucional, a partir do reconhecimento da força normativa da Lei Maior. No contexto de redemocratização do Brasil, esse protagonismo se deu com a afirmação das garantias conferidas à magistratura, que teria o condão de imunizar a jurisdição constitucional contra interferências anti-republicanas, mas sem invadir o espaço das deliberações majoritárias e o que decorre de sua legitimidade. Nesse diapasão, o perfil do magistrado não se limita ao de um mero técnico especializado; mas, munido das prerrogativas discricionárias que lhe tocam, deve estar imbuído da missão de um verdadeiro protetor da ordem democrática. É indeclinável a perspectiva de interação entre o juiz e a norma escrita, haja vista as categorias presentes na dinâmica de interpretação constitucional, a validar a discricionariedade que dá suporte à sua atuação. A existência de conceitos jurídicos indeterminados no texto constitucional, como “ordem pública” e “boa fé”, entre outros, requisita que a atividade hermenêutica aproxime valores subjetivos e objetivos presentes na realidade, a fim de definir o sentido da norma e realizar a atividade jurisdicional, uma vez que o enunciado normativo de expressões como tais é dotado de flexibilidade para atender à diversidade de situações que demandam soluções, à luz de uma teoria dos direitos fundamentais. No mesmo sentido, a entrega da jurisdição constitucional fundamentada em princípios constitucionais, cuja força normativa deve ser observada, também pedem ao intérprete que defina o conteúdo de valores expressos sob a designação de “dignidade da pessoa humana”, “solidariedade”, por exemplo; sendo certo que a ele caberá imprimir sentido e atribuir alcance às normas com tais características textuais e substanciais, que “encerram fins públicos a serem realizados por diferentes meios” (BARROSO, ano 2005, p. 5). Situações presentes no constitucionalismo contemporâneo, decorrentes do pluralismo que rendeu ensejo a constituições complexas, materializam conflitos entre normas constitucionais, a serem solucionados pela atividade interpretativa do juiz. O direito de ir e vir versus o de liberdade de expressão, meio ambiente equilibrado versus promoção do desenvolvimento econômico, cotidianamente entram em rota de colisão e pedem ao intérprete o uso da ponderação para eliminação da tensão entre valores caros à sociedade. A reabilitação da argumentação, a fim de fundamentar a solução jurisdicional a ser aplicada, orientada pela razoabilidade, fazem parte de um verdadeiro arsenal metodológico disponibilizado ao juiz, a fim de legitimar suas decisões, apoiada nas prerrogativas conferidas à magistratura. 4. JURISDIÇÃO, DEMOCRACIA E O ATIVISMO JUDICIAL. A Constituição Federal de 1988 é um documento complexo, dotado de caráter analítico que enumera uma série de regras e princípios fundamentais, conferindo ao seu texto um sentido axiológico, em vista da materialização de sentimentos, ideias e vontades de um povo. Enquanto fonte de interpretação da realidade, o constituinte concede contornos formais a uma matéria política, encartando-a no ordenamento jurídico, em seu mais alto grau:

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Na medida em que uma questão – seja de direito individual, uma prestação estatal ou um fim público – é disciplinada em uma norma constitucional, ela se transforma, potencialmente, em uma pretensão jurídica, que pode ser formulada sob a forma de ação judicial (Barroso, 2012, p. 24).

Logo, tem-se retirada do legislador a total discricionariedade na definição do que é direito, uma vez que a pluralidade de temas inseridos no texto positivado atrai para o Poder Judiciário demandas que o incluirão na linha de criação do direito, através da entrega da jurisdição, respeitadas as competências constitucionalmente defendidas pelo princípio hermenêutico da conformidade funcional. Pergunta-se, outrossim, se já não estaria havendo uma dilatação dos respectivos limites de competência? Resta consequente a instalação de questões de grande importância política e social no Poder Judiciário, caracterizando o fenômeno da judicialização enquanto um fato, que se apoia em 3 (três) fatores: (a) na constitucionalização abrangente de variadas matérias, (b) na implantação do sistema brasileiro misto de controle de constitucionalidade, e (c) na redemocratização do país (BARROSO, 2012, p. 24-25). A sinergia produzida entre esses fatores, que consubstanciam a judicialização, resulta no aumento do prestígio do Poder Judiciário e reflete a crise de representatividade que toca aos demais poderes, gerando insumo para o ativismo judicial. Com efeito, a judicialização é caracterizada pelo protagonismo dos órgãos do Poder Judiciário, na decisão de questões políticas e sociais de grande repercussão na sociedade (BARROSO, 2012, p. 24). Num contexto de separação dos poderes e, consequentemente, limitação e fiscalização recíproca, cabe ao Poder Judiciário zelar pelo cumprimento da vontade constitucional, desde a prolatação de decisões monocráticas até a manifestação do STF, ainda que – em alguns casos - em contraposição à vontade política majoritária, materializada em lei, se esta for inconstitucional. No exercício da função jurisdicional, o magistrado deve realizar um juízo de valor que concretize uma verdadeira ideologia da Constituição, em cada caso concreto analisado - no âmbito do controle subjetivo - ou situação abstrata a ele confiada - no caso do controle objetivo. A autoridade judicial não poderia exceder os limites de competência propugnados pela própria ordem jurídica, a ponto de intervir na seara de outro poder. Caso o Poder Judiciário extrapole esses limites, estar-se-á diante de um fenômeno que a doutrina chama de ativismo judicial, eis que [...] ao se fazer menção ao ativismo judicial, o que se está a referir é à ultrapassagem das linhas demarcatórias da função jurisdicional, em detrimento principalmente da função legislativa, mas, também, da função administrativa e, até mesmo, da função de governo. Não se trata do exercício desabrido da legiferação (ou de outra função não jurisdicional), que, aliás, em circunstâncias bem delimitadas, pode vir a ser deferido pela própria Constituição aos órgãos superiores do aparelho judiciário, e sim da descaracterização da função típica do Poder Judiciário com incursão insidiosa sobre o núcleo essencial de funções constitucionalmente atribuídas a outros poderes (RAMOS, 2010, p.116-117).

São característica do ativismo judicial a (a) aplicação direta da Constituição a situações não previstas no seu texto e de forma independente da manifestação do legislador ordinário; (b) a declaração de inconstitucionalidade de uma lei, com base em critérios pouco rígidos; e (c) quando há a prescrição de obrigações ou abstenções em questões de políticas públicas inscritas na margem de discricionariedade da Administração Pública (BARROSO, 2012, p. 26): o que encerra uma atitude proativa do magistrado, em face do distanciamento entre as instâncias políticas tradicionais e a sociedade. Essa intervenção do Poder Judiciário, no afã de concretizar os fins constitucionais, deve-se, em grande parte, à crise de legitimidade que afeta os demais poderes constituídos. Presente a incapacidade dos Poderes Executivo e Legislativo - desprestigiados por acusações de corrupção e descalibrada atuação -, em

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responder a demandas sociais, o Poder Judiciário vem sendo impelido a tomar decisões que supram as omissões desses poderes. Entretanto, essa atitude proativa do Poder Judiciário deve ser vista com cautela, em razão da legitimidade reconhecida aos órgãos compostos por representantes eleitos pelo povo, dar a estes as prerrogativas de representação que não são conferidas aos magistrados. Outrossim, em contraposição à atitude ativista do Poder Judiciário, tem-se o passivismo (RAMOS, 2010, p.123) ou a auto-contenção judicial (BARROSO, 2012, p. 26), que orienta a atuação do magistrado pela “primazia absoluta do texto normativo sobre a atividade do intérprete-aplicador, reduzida à mera constatação e aplicação mecânica dos enunciados normativos [...]”. O passivismo ou a auto-contenção judicial é caraterizada pela (a) não aplicação direta da Constituição a situações não previstas no seu texto, ficando dependente da manifestação do legislador ordinário; (b) utilização de critérios rígidos para a declaração de inconstitucionalidade de uma lei; e (c) a não interferência na definição de políticas públicas, deixando esse juízo para o Poder Executivo (BARROSO, 2012, p.26). É de se ver que, enquanto no ativismo judicial é observada uma maior propensão à intervenção nos demais poderes, por meio da atividade jurisdicional; no passivismo ou auto-contenção judicial, o magistrado se abstém do engajamento necessário para a concretização de direitos fundamentais e limita o alcance da sua atuação ao que está conformado pelo Princípio da Separação dos Poderes, ainda que o exercício das respectivas prerrogativas estejam distantes do que postula uma experiência de Estado Democrático e Social de Direito, segundo os cânones da Constituição vigente. Ao tratar da crescente intervenção do Poder Judiciário, na vida democrática brasileira, que caracteriza o ativismo judicial, Barroso (2012, p. 27) destaca as três principais críticas a esta atitude: (a) o risco para a legitimidade democrática, (b) a politização indevida da justiça e (c) a capacidade institucional limitada do Poder Judiciário. O risco da legitimidade democrática está centrada no argumento eleitoral: não sendo os componentes do Poder Judiciário eleitos pelo povo, seria legítimo que suas decisões se sobreponham às dos outros poderes constituídos, que gozam da aprovação popular? Na tentativa de responder a essa questão, faz-se relevante compreender a própria função dos órgãos jurisdicionais, no que pertine à competência que lhes é atribuída pela Lei Maior, autorizando-os a realizar o controle de constitucionalidade, seja em sede difusa ou concentrada. Tem-se o próprio fundamento constitucional a legitimar que o magistrado, no exercício da jurisdição, faça prevalecer a deliberação constituinte sobre as de natureza ordinária. Nesse sentido, a obra precursora do judicial review, o Federalista, em seu §78, afirma que “Não há posição que se apóie em princípios mais claros que a de declarar nulo o ato de uma autoridade delegada, que não esteja afinada com as determinações de quem delegou essa autoridade. Consequentemente, não será válido qualquer ato legislativo contrário à Constituição. Negar tal evidência corresponde a afirmar que o representante é superior ao representado, que o escravo é mais graduado que o senhor, que os delegados do povo estão acima do próprio povo, que aqueles que agem em razão de delegações de poderes, [não] estão impossibilitados de fazer não apenas o que tais poderes não autorizam, mas sobretudo o que eles proíbem. (HAMILTON, 2003, p. 578).

Assim, a doutrina clássica também vê legitimidade na atuação do Poder Judiciário ao dizer que seria “mais racional supor que as cortes foram destinadas a desempenhar o papel de órgão intermediário entre o povo e o legislativo”. (Hamilton, 2003, p. 578). Os órgãos judiciários, ao realizar o controle de constitucionalidade, ainda que – e sobretudo - no âmbito do controle subjetivo, estão a resguardar a vontade constitucional dos abusos perpetrados contra a própria ordem democrática. Sendo a democracia produto de um constitucionalismo culturalmente engajado na preservação de valores como a dignidade, busca-se a proteção dos direitos de todos e não somente os da maioria. A proteção dos direitos fundamentais e a limitação dos poderes

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do Estado são essenciais para a promoção da vida democrática, escudando o povo da idiossincrasia circunstancial e ilegítima daqueles que possuem o mandato eletivo – e das maiorias eventuais que se organizam ao sabor de campanhas midiáticas. Já em relação à politização indevida da justiça, a crítica se posiciona contrariamente à constante aproximação entre direito e política, ao ponto de se acusar a atividade jurisdicional de absolutamente discricionária e, até mesmo, arbitrária, na medida em que o juiz exerce a sua capacidade criativa e supostamente chega às raias de assumir um pretenso caráter normativo que não se ajusta à competência que constitucionalmente lhe foi deferida. Sem embargo de dúvidas, tem-se que o magistrado carrega consigo convicções ideológicas. Todavia, essa constatação evidente, por si só, não tem o condão de contaminar a objetividade e racionalidade que devem presidir a tutela do direito. Uma decisão judicial não será arbitrária, desde que o magistrado observe os limites da discricionariedade que lhe toca, faça uso da dogmática jurídica e se oriente pelos princípios de interpretação consagrados na doutrina e jurisprudência. Assim, as decisões judiciais não ficariam a mercê da vontade política de seu aplicador, mas refletiriam os valores consagrados num sistema jurídico que é expressão de um Estado Democrático e Social de Direito. Por fim, a crítica ao ativismo judicial ainda recai sobre a capacidade institucional que teria o Poder Judiciário, para tratar de temas presentes numa dinâmica social cada vez mais complexa, mediante soluções processuais e hermenêuticas com indiscutíveis efeitos sistêmicos. As decisões judiciais devem levar em conta os respectivos alcances econômicos, sociais e políticos, reunindo condições de executividade que não se apeguem a casuísmos e garanta a entrega jurisdicional dentro do que é razoável e constitucionalmente parametrizado – o que, todavia, é objeto de permanente redimensionamento. 5. CONCLUSÃO. As respostas constitucionalmente adequadas a realidades de crise, que expressem uma ideologia baseada em valores democráticos, devem pavimentar programas e práticas que respeitem e promovam direitos individuais e sociais, na disposição de concretizar os sentimentos, ideias e vontades mais importantes de uma sociedade. Em sede jurisdicional, a solução de problemas ou o enfrentamento de situações de inconstitucionalidade, sob a forma de decisões, é encaminhada à luz de uma linguagem específica e argumentos que remetam os respectivos fundamentos ao sistema jurídico, de modo a estarem legitimados por deliberações majoritárias, seja de ordem constitucional ou legal. Nesse passo, não se pode negar que existe um caminho em busca de uma maior legitimação para tais respostas, bem como outros a fazer, na medida em que a atual Constituição consagra contornos definidos para o exercício de cada competência. De efeito, as formulações desenhadas pelos movimentos constitucionalistas consagram teorias, renovam paradigmas e impõem uma dinâmica criativa que revisita os parâmetros estabelecidos pela separação dos poderes ou fontes de interpretação da realidade e, consequentemente, do direito; a fim de questionar os sistemas de representatividade popular e definição de competências, ou realizar ajustes na linguagem e no alcance contemporâneo dos fundamentos constitucionais e legais, requisitados para dar sustentação a decisões judiciais. Assim, premissas dizentes com o processo de construção de uma ordem democrática plural, como a que está em curso, sinaliza para o reconhecimento de dimensões da vida pela jurisdição constitucional, não claramente identificadas nos indicadores sociais tradicionais. Tem-se a necessidade de uma percepção aguçada para o exercício jurídico-político ora demandado às instâncias jurisdicionais, que devem ter legitimadas as portas de acesso à justiça e cidadania, bem como de saída das suas decisões, ambas aptas à materialização de uma ordem democrática voltada para todos e não para apenas uma maioria.

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DIREITOS CONSTITUCIONAIS E INTERNACIONAIS DOS REFUGIADOS Maria Alana Calado Capitó Graduanda do curso de Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Pedro Victor Montenegro de Albuquerque Graduanda do curso de Direito pela Universidade Católica de Pernambuco.

SUMÁRIO: 1. Considerações iniciais; 2. Enfrentamento da Definição de Refugiado; 3. Breve Histórico; 4. Situação Jurídica: óbices, desafios e conquistas; Considerações finais; Referências.

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS. Durante os últimos anos, foi observado um aumento sem precedentes do número de deslocamento populacional forçado, como expressão e resultado da dos conflitos bélicos do Oriente Médio e adjacências. Os números apresentados pelo sítio do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) mostram que uma média diária de 42.500 mil pessoas deixaram seu lar para buscar proteção, em seu próprio país ou em outro, no ano de 2014. Os refugiados foram, e continuam sendo, objeto de notícias, seja pelo infortúnio por eles enfrentado durante penosas travessias em busca de outro ambiente para viver, seja em virtude de declarações de países visando reduzir o número de refugiados a abrigar em seu território. Entretanto, apesar dos holofotes que pairam sobre o tema, cumpre ressaltar o desconhecimento por parte de setores da população brasileira, em relação aos refugiados abrigados no país, em virtude da escassez de políticas públicas de integração e de divulgação das entidades comprometidas com a causa. 2. ENFRENTAMENTO DA DEFINIÇÃO DE REFUGIADO. O fenômeno da migração humana enquanto evento propulsor de modificações significativas é característica essencial do mundo moderno. Entretanto, o simples ato de mover-se ao redor do globo pode ter múltiplos significados, gerando diferentes consequências ao redor do mundo em virtude, principalmente, da causa geradora do movimento, que acaba por definir vários institutos de direito internacional. Atualmente, em virtude de diversas crises de cunho socioeconômico, observa-se alarmante aumento do movimento humano, seja voluntário ou involuntário, consequência direta da crise humana/humanitária, consequência das profundas múltiplas crises (econômica, política e cultural) que marcam o presente contexto internacional, suscitando graves impassem também do ponto de vista jurídico, ângulo sob o qual conduzimos esta análise. Sob este ponto de vista, tais conflitos se regem por diferentes códigos, conforme a tradição de cada país, e sobre os quais a ONU cuida de estabelecer balizas comuns. Ademais, a diferença entre institutos de movimento humano como asilo e refúgio não gravita apenas em torno da motivação, do elemento volitivo que gera o movimento, mas também no que tange à recepção dos países a esses homens e mulheres que ousam deixar para trás o país.

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A emigração, por si só, não possui outro elemento cerne que não o simples ato volitivo de mudar-se, com esperança de encontrar um novo ambiente capaz de concretizar as oportunidades que trarão satisfação pessoal ou financeira ao migrante. Em sentido oposto, observe-se que o instituto do refúgio está intrinsecamente relacionado a grave violação de direitos humanos, ausência de elemento puramente volitivo e necessidade de fazer cessar a violação ou ameaça de violação de direitos. Como consequência, os países signatários não possuem discricionariedade na emissão da documentação dos refugiados se os requisitos estiverem devidamente preenchidos. Tal não ocorre no instituto do asilo, posto que este se caracteriza por uma proteção concedida pelo país receptor a um indivíduo estrangeiro cuja vida, liberdade ou dignidade esteja ameaçada por outro Estado, geralmente por motivo de perseguição ou dissidência política. Nesse caso, o país pode ou não conceder o asilo, de forma discricionária, pois se trata de ato de soberania do Estado, uma decisão puramente política. Diferentemente do instituto do refúgio, o asilo não possui um tratado de alcance global, sendo garantido em solo brasileiro pelo artigo 4º da Constituição da República. Entretanto, a previsão constitucional não vincula o Estado a conceder o asilo em caso expressamente previsto, como ocorre com o refúgio. Outra diferença a ser apontada é o alcance dos institutos; enquanto o asilo diz respeito, em geral, a perseguição de cunho político, a concepção de Refugiado adotada pela Convenção de 1951 estende o status a todos aqueles que Em consequência dos acontecimentos ocorridos antes de 1º de janeiro de 1951 e temendo ser perseguida por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, se encontra fora do país de sua nacionalidade e que não pode ou, em virtude desse temor, não quer valer-se da proteção desse país, ou que, se não tem nacionalidade e se encontra fora do país no qual tinha sua residência habitual em consequência de tais acontecimentos, não pode ou, devido ao referido temor, não quer voltar a ele.

Observe-se, ainda, que o Direito Internacional dos refugiados tem como princípio geral e fundamental o non-refoulement, ou não-devolução, que protege a dignidade da pessoa humana ao impedir que seja devolvida contra sua vontade ao país de origem, onde sofria lesões a direitos fundamentais ou os tinha ameaçados. Dada a sua importância, destaca-se como um dos princípios basilares do instituto do refúgio no direito interno e internacional, sendo condição essencial para a efetiva proteção do refugiado em âmbito internacional. Consoante José Francisco Sieber Luz Filho (apud SOARES, 2012), “trata-se de princípio inerente à proteção internacional do refugiado, compreendido pela doutrina como o pilar de sua aplicabilidade. Na ausência do princípio a proteção internacional resta vazia e ineficiente. Entretanto, importa salientar que o instituto do refúgio, apesar de mais abrangente, ainda guarda falhas quanto a sua atualização. Tomando como exemplo o desastre ocorrido no Haiti no ano de 2010, que teve um nível de destruição de 50% em algumas áreas segundo a ONU, verifica-se que não há hipótese expressa para abarcar catástrofes ambientais nas disposições normativas sobre o refúgio. Tanto o é que inúmeros requerentes haitianos tiveram seus status de refúgio negados no Brasil em virtude do não enquadramento na lei. Há que se admitir, portanto, a conveniência de constante atualização da definição, buscando abarcar casos que impliquem necessidade de garantir o status de refugiado. 3. BREVE HISTÓRICO.

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Como uma síntese evolutiva do instituto, durante o período entre guerras, a Europa passou por uma crise de deslocados forçados, em sua maioria russos. Durante a crise, a liderança da Liga das Nações foi a responsável por tentar amenizar as tensões provocadas pela resistência dos países em abrigar os refugiados em seu território, não havendo logrado grande sucesso, em virtude da ausência de organização. Finda a Segunda Grande Guerra, surgiu uma nova organização, responsável por substituir a Liga das Nações no trato do tema. A Organização Internacional dos Refugiados (IRO) foi apoiada pelos países europeus e pelos EUA na promoção de grandes avanços acerca do tema. Apesar de o fluxo migratório ser evento bastante comum desde a Antiguidade, os grandes movimentos humanos apenas começaram a despertar a atenção da comunidade internacional, de modo a ensejar uma regulamentação protetiva, durante o período após a Segunda Guerra. O primeiro movimento que buscou reunir diretrizes gerais para a definição, com amplo reconhecimento da condição de refugiados, foi a Convenção realizada pela recém-criada ONU, a fim de regular a situação jurídica dos refugiados. Desse modo, a Convenção de 1951, realizada em Genebra, é a grande responsável por consolidar, ainda que de forma mais elementar possível, o tratamento devido aos Estados signatários para com os refugiados. Saliente-se que, à época, foram criados dois limites, geográfico e temporal, que incluíam apenas os deslocados radicados na Europa e apenas até a Segunda Grande Guerra. O limite temporal, entretanto, foi revogado pela ONU, em atenção aos efeitos devastadores da crise húngara, estendendo o status de refugiado também aos nacionais que sofriam com a mencionada crise. No que tange ao limite geográfico, este foi jogado por terra, quando da descolonização europeia na África, com o Protocolo de Nova Iorque, em 1967, tornando o trabalho da ACNUR global. Logo em seguida, a ONU aprovou a Convenção da Organização da Unidade Africana sobre os refugiados, que vigora desde 1974, dando a atual e ampla definição de refugiado. Em âmbito nacional, o Brasil assinou a Convenção de Genebra, apenas em 1961, mantendo as ressalvas geográficas e temporais até a década de 1990. Durante a Ditadura Militar, o Estatuto do Refugiado foi regulado pela Lei nº 6815/80, e atualmente a matéria se encontra disciplinada na Lei nº 9474/97 que, internalizando as disposições da Convenção, reconhece como refugiado todo indivíduo que, devido a temores de perseguição por motivo de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, se encontre fora do seu país de nacionalidade e não possa ou não queira acolher-se à proteção de tal país; não tendo nacionalidade e estando fora do país onde teve residência habitual, não possa ou não queira regressar a ele, em função das circunstâncias descritas anteriormente; e devido à grave e generalizada violação dos direitos humanos, seja obrigada a deixar o seu país de nacionalidade, para buscar refúgio em outro país. O artigo 2º da referida lei dispõe também que a condição de refugiados será extensiva aos cônjuges, ascendentes, descendentes e demais membros do grupo familiar que dependerem economicamente do refugiado. A promulgação da lei foi responsável por instituir o CONARE - Comitê Nacional para os Refugiados, no âmbito do Ministério da Justiça, cujas atribuições encontram-se elencadas no artigo 12, dentre as quais se destacam a análise do pedido e a declaração do reconhecimento da condição de refugiado. Internacionalmente, diante da complexidade que envolve o tema, foi criado em 1950, no âmbito da ONU, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR). Deve-se destacar que o ACNUR tem desempenhado trabalho sério e árduo, no que concerne ao problema da migração forçada, tendo como principais missões a proteção dos refugiados, seu repatriamento e assistência. Ao mesmo tempo, participa de atividades consideradas fora de seu mandato, como: proteção ambiental, desativação de minas terrestres, desenvolvimento comunitário e campanhas anti-racistas, como maneira de incentivar os Estados a acolherem refugiados.

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Avaliando-se dados estatísticos, verifica-se a evolução dos requerimentos e status efetivamente concedidos pelo Brasil, segundo o CONARE: o salto de 150 no ano de 2010 para 2.032 em 2014 representa um aumento de aproximadamente 1.240%. Entretanto, cumpre ressaltar que, muito embora o número de requerimentos e concessões tenha aumentado de forma exponencial, há que se observar que os recursos de manutenção não acompanharam esse crescimento, fazendo surgir um novo problema a ser corrigido. 4. SITUAÇÃO JURÍDICA: ÓBICES, DESAFIOS E CONQUISTAS. A concessão do status de refugiado, entretanto, não é o fim dos desafios enfrentados pelas vítimas de violação de direitos humanos. A integração dos refugiados nos países acolhedores é, também, fonte de preocupações, tendo em vista a multiplicidade cultural, social, religiosa. O instituto é, em essência, de uma dialeticidade complexa, delicada. Há, de um lado, um país receptor, solidário, mas também portador de singularidades culturais, inclusive contendo ambiguidades, a exemplo de alguns traços de xenofobia, dificultando assim a uma convivência desejável com os refugiados. De outro lado, o refugiado, que busca um recomeço, traz em sua bagagem uma cultura não raro bastante diferente do país receptor, com tradições muitas vezes imutáveis, de difícil acomodação no novo país. A situação-problema se agrava quando não há o devido diálogo entre refugiado e país receptor, entre população refugiada e população originária do país receptor. Cumpre salientar que o processo, muitas vezes equivocado, de acolhimento dos refugiados, não importa uma assimilação cultural pela cultura “dominante” do país receptor. Há, de forma evidente, a adaptação às normas legais da nova sociedade pelo refugiado, mas não há, nem deve haver, a ruptura cultural daquele com sua cultura originária. Dessa forma, vivencia-se um processo dialético de forma puramente predatória, segregando o diferente, submetendo-o a um domínio cultural do país. Em âmbito nacional, os problemas enfrentados pelos refugiados podem ser observados desde o início do procedimento de requisição do status de refugiado, quando se verifica que a autoridade competente para lidar com os recém-chegados e pretendentes ao instituto é a Polícia Federal. Recapitulando: os indivíduos que tiveram direitos essenciais ameaçados pelo ambiente em que viviam, fugiram muitas vezes com pouquíssima bagagem, em virtude da pressa de simplesmente deixar o país, possui o primeiro contato não com um órgão estruturalmente preparado, de forma especial, a dar suporte e orientação exclusiva para casos tão excepcionais, mas com um órgão cuja função principal é a repressão criminal e a manutenção da ordem. Ultrapassar o primeiro óbice, ou seja, reestruturando-se o modus operandi de recepcionar “candidatos” a refugiados, não torna a vida dos refugiados mais fácil no Brasil, em virtude da clara ausência de políticas integrativas, que promovam a dialeticidade necessária anteriormente mencionada. Em verdade, há ausência de política pública para o próprio povo brasileiro. Nesse diapasão, o refugiado que vinha sofrendo limitações em seus direitos é, muitas vezes, agredido no país receptor, de forma indireta, pela ausência de promoção políticas que integrem o refugiado na língua pátria, na sociedade brasileira e, consequentemente, no mercado de trabalho brasileiro, fruto de seus rendimentos e sem o qual se torna mais um marginalizado, com seus direitos falsamente protegidos pelo novo Estado. A ausência de dialeticidade e de políticas integrativas, portanto, findam por promover novas violações de direitos humanos, partilhadas pela parcela marginalizada da sociedade brasileira. Ainda, abre espaço para novos abusos por parte da sociedade receptora, como no âmbito trabalhista, em que não é raro um sistema quase escravagista que se aproveita da ausência de suporte devido por parte do Estado, alimentando um sistema cada vez mais cruel.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

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Observando-se a conjuntura social apresentada, percebe-se a importância não só da constante atualização do instituto em âmbito internacional como forma de acompanhar as mudanças e necessidades da população global, como também, em âmbito nacional, da modificação da postura estatal e social em relação aos indivíduos protegidos pelo status de refugiado. Na comunidade nacional, é necessário buscar maior engajamento do governo em relação a promoção de políticas integrativas mais eficazes, que levem o refugiado de outra cultura a aproximar-se do povo brasileiro de modo que barreiras linguísticas e culturais deixem de ser um problema para o efetivo estabelecimento do refugiado, mas um enriquecimento maior para a cultura de miscigenação brasileira. REFERÊNCIAS ACNUR. CONARE e ACNUR anunciam nova Declaração e Plano de Ação sobre refugiados nas Américas e divulgam perfil do refúgio no Brasil. Disponível em: . Acesso em: 28/09/2015. ACNUR. Dados sobre refúgio no Brasil. Disponível em: . Acesso em 30/10/2015. ACNUR. O que é a Convenção de 1951?. Disponível em: . Acesso em: 28/09/2015. ACNUR. Tendências Globais sobre refugiados e pessoas de interesse do ACNUR. Disponível em: . Acesso em 30.10.2015 BARCELLOS, Andreia. O Refugiado e a Evolução de seus Direitos. Disponível em . Acesso em 29/10/2015 MENDES, Gustavo Catunda. A tutela jurídica dos refugiados no direito brasileiro e internacional. Disponível em: . Acesso em: 28/09/2015. MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Refugiados. Disponível em: . Acesso em 20/10/2015. RODRIGUES, Noronha. A história do direito de asilo no Direito Internacional. Disponível em . Acesso em 01.11.2015. SOARES, Carina de Oliveira. A extradição e o princípio de não-devolução (non-refoulement) no direito internacional dos refugiados. Disponível em < http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=9429> Acesso em 28/10/2015. SOARES, Carina de Oliveira. A proteção internacional dos refugiados e o sistema brasileiro de concessão de refúgio. Disponível em: < http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=9430>. Acesso em 28/09/2015.

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CRISE FEDERATIVA E FINANÇAS MUNICIPAIS: A PROBLEMÁTICA DA EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS

Maria Raquel Firmino Ramos Mestranda em Direito Público pela Universidade Federal em Alagoas – UFAL; Estudante de especialização no Instituto Brasileiro de Estudos Tributários – IBET; Bolsista CNPQ-CAPES.

SUMÁRIO: Introdução; 1. Repartição de receitas e o dever de cooperação entre os entes federados; 2. A importância do Município na organização estatal; 3. Finanças municipais e cumprimento dos direitos sociais; Conclusão; Referências.

INTRODUÇÃO O Município foi erigido como ente federativo na Constituição de 1988, recebendo, com isso, ampla gama de tarefas próprias do Estado Social a fim de que promova serviços na área de educação, saúde, moradia, saneamento básico, transporte, entre outros. A Federação brasileira, assim, tornou-se tripartite, situação singular no mundo. A partir dessa configuração, a Constituição equiparou todos os entes pactuantes a fim de que todos contribuíssem para o desenvolvimento nacional. A implicação imediata dessa configuração tripartite é a difícil repartição equânime de encargos e receitas. Nesse quesito, a atividade financeira do Estado se destaca, pois não será possível concretizar demandas dos direitos sociais prestacionais sem que haja a munição dos recursos nos entes encarregados de exercê-los. A descentralização é umas das características elementares do sistema federal e pilar das sociedades democráticas. A República Federativa do Brasil, por sua vez, constituiu-se tanto em bases federalistas quanto nas democráticas, razão pela qual o Estado deve seguir essas bases. Infelizmente, no plano pragmático, há enorme distorção dos enunciados inscritos na Magna Carta que preconizam a organização do Estado Federal. Com o intuito de deliberar sobre novos caminhos a ser perseguido na Federação, o Congresso Nacional, via Senado, criou a Comissão Especial do Pacto Federativo. Nesse órgão, a pauta mais discutida é uma repartição justa de recursos e de obrigações entre União, Estados e Municípios. Representantes de Estados e Municípios requerem ao Congresso Nacional uma repactuação das obrigações orçamentárias, tendo em vista que há uma concentração das receitas derivadas perante a União e, em detrimento a isso, a população cobra uma demanda cada vez maior de serviços. Muitas são as reivindicações dos entes descentralizados, sobretudo quanto à equalização das finanças públicas, pois a concentração só agrava as desigualdades socioeconômicas existentes, tornando-as quase que insuperáveis. As populações dos Municípios são as mais prejudicadas diante dessa desarmonia federal, pois a máquina estatal se torna impossibilitada de executar as atividades a que estão obrigadas. Em grande medida, isso é causado pela falta de recursos. Assim, garantir autonomia financeira aos entes municipais, deve ser o primeiro grande passo para exigir e construir uma máquina estatal eficiente e cumpridora dos direitos sociais a que essa esfera também está obrigada.

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O presente artigo, portanto, pretende discutir essas questões, relacionando como a crise federativa, que afeta, sobretudo, as finanças municipais, repercute negativamente no cumprimento dos direitos sociais, preconizados pela Magna Carta de 1988. 1. REPARTIÇÃO DE RECEITAS E O DEVER DE COOPERAÇÃO ENTRE OS ENTES FEDERADOS. Primeiramente, antes de adentrar na questão da repartição das receitas públicas em uma Federação, convém esclarecer, em breves apontamentos, como o Brasil desenvolveu esse modelo de Estado. Assim, a instituição da Federação Brasileira ocorreu por meio da Constituição Republicana de 1891, sob a influência da Convenção da Filadélfia, de 1787, que uniu os Estados independentes em Estados Unidos da América, tornando-o uma federação (CANOTILHO et al, 2014, p. 110). Inicialmente, o Brasil assumiu o modelo federativo dual, tendo a União e os Estados como entes federativos autônomos. Foi a partir da Constituição de 1934, entretanto, que o federalismo brasileiro transformou-se em um modelo federal cooperativo, quando a União passou a ajudar financeiramente os estados mais pobres a suprirem às suas necessidades (CANOTILHO et al, 2014, p. 112). Por isso, é compreensível a afirmação de Wallace Oates, segundo o qual “[...] o federalismo de cooperação surge com o ente central atuando, outrossim, nas políticas distributivas de renda.” (Apud CARVALHO, 2010, p. 167). Salienta, ainda, Ferreri, que o federalismo cooperativo, ou federalismo novo, com o fito de definir objetivos comuns entre os entes, recorreu ao estabelecimento de uma interação federal-estadual. E pode ser compreendido como uma redefinição do federalismo estadunidense, por meio da prestação de auxílio financeiro do ente central direcionadas aos entes periféricos (FERRERI, 1995, p. 21). O federalismo cooperativo, modelo perceptível em vista do engrandecimento do Estado Federal e seu consequente aumento de recursos, permitindo a distribuição dessas fontes de renda aos governos locais. O governo federal, nesse contexto, assume a posição de líder da política doméstica a fim de assegurar a uniformidade e equidade na distribuição de recursos. Não obstante o federalismo estadunidense ser considerado o parâmetro de Estado Federal, que tem por característica basilar a descentralização do poder, percebe-se uma tendência centralizadora após 1930. No Brasil, a tendência centralizadora expandiu-se ao longo das Constituições de 1937, 1946 e a de 1967, e com a Emenda Constitucional n. 1/69 (há quem diga que sequer existia uma Federação). Foi a Constituição de 1988 que institui uma nova fase do Federalismo Brasileiro, reconstruindo-o no plano jurídico e, consequentemente, no plano fático. Inaugurou, portanto, a fase do federalismo de equilíbrio, elevando o caráter cooperativo a fim de dissipar as desigualdades típicas no nosso federalismo assimétrico (OLIVEIRA, 2012, p.42-43). Para Castro Carvalho, no “[...] Brasil, a Constituição Federal de 1988 adotou claramente os preceitos de federalismo cooperativo ao erigir os municípios como componentes da federação. Tal modelo, fatalmente, acabou beneficiando-lhes fiscalmente” (CARVALHO, 2010, p. 166). Partindo desse pressuposto de cooperação, é fundamental apontarmos o artigo 43 da Constituição de 1988, pois ele disporá sobre as possibilidades da União desenvolver políticas de desenvolvimento e redução das desigualdades regionais em um determinado espaço geoeconômico e social. Demonstra, portanto, a importância do incentivo de políticas de cooperação intergovernamental erigida pela Carta Magna, a qual fomenta a criação de planos nacional e regional para o desenvolvimento socioeconômico. Nesse mesmo sentido, argui Maurício Conti, que o Brasil adotou um modelo de federalismo cooperativo, o qual apesar de se preservar a autonomia dos entes federados, erigiu um sistema de interpenetração entre eles, manifestando-se de forma mais evidente no campo das finanças públicas, por mecanismos de partilhas de receitas e transferências intergovernamentais (CONTI, 2010, p. 24).

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No federalismo fiscal cooperativo adotado pela Constituição de 1988, os Municípios receberam as competências tributárias para instituírem seus próprios tributos, bem como adquiriram o direito de participarem, direta ou indiretamente, da arrecadação dos tributos arrecadados pela União e pelos Estados. Não obstante se extraia a ideia cooperativa do Texto Constitucional, no plano pragmático é visível a ocorrência de conflitos entre os entes federativos, principalmente relacionados à distribuição e compartilhamento das receitas disponíveis e à disputa pelo controle de gastos e políticas de desenvolvimento regional. Infelizmente, esses são alguns impasses a serem ultrapassados para a efetivação de uma verdadeira cooperação intergovernamental estabelecida pela Constituição de 1988. Desse modo, cabe aludir que a ideia do federalismo cooperativo no Brasil versa sobre os meios constitucionais e infraconstitucionais de reconhecer e tentar diminuir ou dissipar as desigualdades regionais do nosso federalismo assimétrico. Entrementes, esbarra com uma série de conflitos que remontam a história do Brasil e do desenvolvimento do modelo federalista. O principal ponto de partida dos conflitos entre os entes federativos brasileiros, vale dizer, parte da busca por recursos. A principal fonte de renda do Estado advém dos tributos, no entanto a discriminação de rendas tributárias, a partir da divisão da competência para instituir tributos não resolve o problema da equalização de receitas tributárias no Brasil, por causa desigualdade no desenvolvimento econômico dos entes federativos que compõem a nação. É aí que entra em cena a partilha constitucional de receitas fiscais funcionando como propulsor do desenvolvimento econômico e ao mesmo tempo fortalecendo a estrutura estatal dos entes mais periféricos da estrutura federal brasileira. Por isso, as normas que instituem as repartições de receitas tributárias no Brasil são fundamentais para efetivarem a autonomia dos entes federais. Essa autonomia financeira está intimamente ligada ao próprio funcionamento das estruturas estatais, sobretudo dos Estados-membros e Municípios, como entes mais periféricos e mais carentes de recursos frente à União. Isso se deve ao fato de que sem finanças se inviabiliza o cumprimento das múltiplas tarefas inerentes ao Estado de Bem Estar Social. Por isso, percebe-se a relevância da efetividade das normas de transferência de rendas tributárias. Compreender a estrutura dessas normas contribui para a compreensão da própria federação brasileira. 2. A IMPORTÂNCIA DO MUNICÍPIO NA ORGANIZAÇÃO ESTATAL A descentralização e a autonomia regional não são características peculiares ao Estado Federal. Para compreendermos isso, podemos indicar o Estado português, considerado Unitário, em que há uma compatibilização entre autonomia e descentralização do poder com o princípio da unidade territorial. Chamado de regime autonômico insular, a autonomia da municipalidade foi garantida pelo ordenamento jurídico lusitano por meio de dois elementos: a) um núcleo estável e irreformável que garante a autonomia político-administrativa local; e, b) um regime jurídico próprio “[...] entendido como o complexo normativo contido na Constituição, nos estatutos regionais e no bloco de legalidade regional e especificamente respeitante à organização, competências e funcionamento dos órgãos de governo próprio das Regiões Autónomas” (CANOTILHO, 2003, p. 359-360). No Brasil, a autonomia do Município foi garantida constitucionalmente por meio da elevação da “autarquia administrativa” (tal como é conhecida em Portugal) a pessoa política de direito interno, tornando-se integrante do pacto federativo. Essa previsão garante ao ente subnacional autonomia interna comparativamente àquela recebida pelos Estados-membros. Diferentemente do Estado Português, que, não obstante tenha outorgado às regiões vários tipos de autonomias, não perdeu o seu caráter de Estado centralizado. A atribuição de direitos e de deveres para as microrregiões significam muito mais um planejamento de descentralização de poderes, discricionariamente realizado pelo poder central, do que o propriamente o significado de autonomia que é inerente a um ente federativo, em que somente obedece à Constituição. A importância de iniciarmos o tema da descentralização de competências territoriais com esse quadro comparativo objetiva alertar para o fato de que a técnica de descentralização governamental recebe atenção

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não somente no Estado Federal, mas na própria organização estatal. A busca por eficiência do Estado é um dos fatores principais para a repartição de competências ou até mesmo delegação de tarefas. Além da eficiência de gestão que a descentralização visa proporcionar, já é reconhecido que a proximidade da máquina estatal com o cidadão é o objetivo de sociedades democráticas. Nesse entorno, vale acrescentar o reconhecimento do princípio da subsidiariedade pela Carta Europeia da Autonomia Local (artigo 4º, nº 3), segundo o qual: “[...] as decisões devem ser tomadas o mais perto possível dos cidadãos a quem se dirigem, pelo nível administrativo mais próximo e directamente responsável face aos cidadãos, apenas devendo intervir o nível superior nos casos em que isso é indispensável” (MONTALVO, 2003, p. 76). Importa notar que a palavra subsidiariedade possui duplo sentido, o primeiro é o de que o nível superior deve ocupar o segundo lugar na estrutura estatal, ou seja, deve ser subsidiário, e um segundo sentido seria a ideia de que o nível superior serve ao nível inferior, ou aos cidadãos, a fim de satisfazer às suas necessidades ou auxiliar na execução das tarefas estatais do governo local. Para reforçar essa ideia podemos buscar na etimologia da palavra subsidium que significa “ajuda” ou “apoio” (MONTALVO, 2003, p. 77). Nessa perspectiva, o governo local ganha predominância no atendimento às tarefas estatais, pois está intimamente ligado aos anseios democráticos de participação da população diretamente interessada na coisa pública. No Estado Unitário Português, os Municípios constituem elemento de sua organização democrática, tendo auferido autonomia desde o final do século XX, conferida pelo poder Central que estabelece o conteúdo dessa autonomia local. Tal como o Brasil, a história do municipalismo sempre demonstrou movimento pendular, porquanto a autonomia local é encorajada pelos regimes democráticos e combatidos pelos totalitários (MONTALVO, 2003, p. 96). No Brasil, a municipalidade também enfrentou distintas restrições quanto à sua autonomia, mesmo depois da instauração do modelo Federal de Estado, a depender da orientação política de seus governos, sempre na lógica pendular e inversamente proporcional entre autonomia versus totalitarismo. Foi na Constituição Federativa de 1988 que recebeu patente destaque, auferindo competências e autonomias. Dessa forma, os limites autonômicos dos Municípios estão definidos diretamente pela Lei Fundamental e não pela discricionariedade e da contingencialidade dos governos centrais. Isso demonstra o caráter de definitividade dada ao modelo democrático pelo legislador originário. Prova da vontade de não dar margens para o ressurgimento das tiranias dos regimes anteriores. Da mesma sorte, vale ressaltar que o empoderamento do Município como medida de descentralização é fortemente acentuado no texto constitucional português que atribui ao poder central a definição dos direitos das autarquias locais e os limites de suas atividades. Apesar dessa aparente discricionariedade do governo central, “[...] a legitimidade política e formal do Estado não pode afastar a legitimidade histórica e natural dos municípios para a satisfação dos ‘interesses próprios das populações respectivas’ (art. 235, n° 2, da C.R.P).” (MONTALVO, 2003, p. 76). Esse paralelo com o tratamento ofertado ao Município português demonstra como esta estrutura exerce respeitável função na persecução dos objetivos estatais, pois facilita o atingimento dos anseios democráticos, republicanos, e, no nosso caso, também federativo. Além de facilitar a promoção do bem comum, fim de todo Estado, e delineado pelo Estado de bem estar social, bem como preconizado pela nossa República. Por isso, a atual Constituição adotou o sistema de competências reservadas ou enumeradas para a União e os Municípios, enquanto para os Estados-membros outorgou as remanescentes, conforme o § 1º do artigo 25, ou residual – aquela que não fora concedida a União ou ao Município (MEIRELLES, 2014, p. 133). Em relação às atribuições municipais, a Constituição Federativa de 1988 estabeleceu no seu artigo 23, juntamente com os demais entes federados (União, Estados-membros e Distrito Federal), as competências comuns, pois caberá a todos os entes atuar sobre matérias que estejam nas suas atribuições institucionais. Esse delineamento decorre do modelo de cooperação adotado pelo federalismo brasileiro, visando manter o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar no âmbito nacional (MEIRELLES, 2014, p. 134).

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Assim, os incisos II ao IX do artigo 30 elencam as competências municipais, as quais podem ser exercidas privativa, comum ou concorrentemente com Estados e União. No mesmo artigo, no inciso I, a Constituição conferiu ao Município competência para “legislar sobre assuntos de interesse local”. Para Hely Lopes Meirelles, a expressão significa a predominância (e não exclusividade) do interesse em relação aos demais entes federados, “isso porque não há assunto municipal que não seja reflexamente interesse estadual e nacional. A diferença é apenas de grau e não de substância” (MEIRELLES, 2014, p. 136). Nota-se, a partir disso, como o Município recebeu destaque no ordenamento jurídico e organização Federal inaugurados na Constituição de 1988. Apesar de que o primeiro Estado Federal brasileiro tenha sido positivado mediante a promulgação de 1891, esse modelo tem sido cada vez mais aperfeiçoado no contexto brasieliro. Nada a se estranhar, pois o federalismo constantemente é atrelado à Democracia. Isso porque os Estados Federais (Alemanha, Argentina, por exemplos) são também Estados democráticos, tornando quase que automática a vinculação desses modelos. Não obstante esse panorama, alguns Estados já apresentaram a estrutura federalista antes da aderência a regimes democráticos (Império Germânico, por exemplo) (BARACHO, 2014, p. 53-54). Essa associação é de simples visualização porque a descentralização do poder proposta pelo modelo federativo torna-se compatível com o ideal democrático. Ademais, no princípio da subsidiariedade, em que os níveis menores de governo prevalecem sobre os níveis maiores, percebemos a estreiteza de laços entre representação e representados. Afinal, nada mais democrático do que uma melhor participação dos indivíduos na governança. Os problemas sociais por qual passamos ao longo da História brasileira, no entanto, impedem com que esses ideais de participação ativa na política se concretizem. Somado a isso, percebemos que as causas sociais não são colocadas como prioridade na sociedade em geral. E as poucas manifestações reivindicatórias são marginalizadas e condenadas por grande parte da população. Isso pode ser explicado em grande medida porque somos uma Democracia muito recente. E, uma cultura democrática, na qual os indivíduos participem ativamente das coisas do Estado, requer amadurecimento institucional e político, sobretudo quanto à confiança nas instituições que compõem a máquina pública estatal. Como já observado, ao versamos sobre o cumprimento do Estado Social percebemos como o federalismo cooperativo atende bem essa persecução. Observação bem ilustrada por Gilberto Bercovici, quando assinalou que a cooperação é a forma mais apta a realizar os anseios do Estado Social (BERCOVICI, 2003, p. 156). Nesse sentido, o federalismo brasileiro requer as reformas devidas. Podemos considerar que, não obstante, o modelo de Estado Federal no Brasil teve sua inauguração em 1891, a partir da primeira carta Republicana, não podemos considerar que houve uma perenidade das instituições federalistas, pois consideramos que cada Constituição definiu uma nova Federação. Por isso, analisamos a Federação brasileira recortando-a a partir da Constituição de 1988, a qual, apesar de apresentar elementos das experiências federativas constitucionais anteriores, estabelece um novo federalismo, evidenciando, principalmente o caráter cooperativo. No entanto, é na prática que as instituições são aprimoradas. Por isso, nada mais salutar para o amadurecimento da Federação a existência das reivindicações de reformas que se destacam na atualidade, dentre elas, como já vislumbrada, a elaboração da Comissão do Pacto Federativo, a qual levanta, em grande medida, a bandeira municipalista. A descentralização das receitas tributárias ocupa a centralidade na discussão dessa cooperação. Apesar da problemática da distribuição de receitas tributárias não ser a única problemática a ser enfrentada para o aprimoramento institucional nas esferas federativas, essa é uma das suas bases. Afinal, como visto, envolve a garantia da autonomia federativa. Nessa seara, um dos principais indicadores de que a Federação brasileira não cumpre a base cooperativa que a Constituição de 1988 preconiza é, sem olvidar, o descumprimento dos repasses vinculados de receitas para os Municípios. Vimos acima que, na primeira oportunidade, as edilidades são suprimidas de recursos, tanto por parte dos Estados-membros quanto pela União. Na esfera

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federal, observa-se uma concentração de receitas não partilháveis, tendo em vista a crescente participação no percentual da arrecadação das Contribuições dos impostos federais advindas da instituição das Contribuições. De outro lado, os Estados-membros atuam inconstitucionalmente retirando a cota-parte do Município quando concedem unilateralmente isenções sem o crivo do CONFAZ. Dessa simples análise da situação financeira municipal, facilmente se deduz que o comando básico da autonomia do Município não é obedecido. Essa afirmação também é escorreita, pois, como já vislumbrado pela doutrina, é inócua a garantia de autonomia sem a respectiva fonte de financiamento das competências atribuídas ao ente federado. Depreende-se desse panorama o completo desprezo pelo federalismo fiscal cooperativo. 3. FINANÇAS MUNICIPAIS E CUMPRIMENTO DOS DIREITOS SOCIAIS As medidas centralizadoras da União repercutem diretamente nas finanças municipais. Contexto que deve ser superado pela prática constitucional e a proliferação das ações de promoção de base federativa. A União como ente ocupante de posição privilegiada diante dos demais entes, por ter uma visão global sobre o sistema federal a que se destina, possui a função de estabilizar a economia e tornar a divisão dos ingressos financeiros mais equitativos. O federalismo cooperativo é o modelo mais apto para alcançar essa estabilização econômica, ao mesmo tempo redistribuindo a riqueza entre os entes. Configura a forma mais equilibrada de desenvolvimento em um Estado Federal Assimétrico, como é o Brasil. Isso porque fomenta não só o desenvolvimento da economia nacional, como incentiva e patrocina o fortalecimento local. O empoderamento dos entes descentralizados permite que a participação na riqueza da nação seja compartilhada e, em tempos de retração econômica, os governos locais sentem menos os efeitos na queda da arrecadação. No modelo atual, em que os Municípios dependem dos repasses de receitas tributárias da União e dos Estados, advindas sobretudo da arrecadação dos tributos sobre o consumo. E em uma crise econômica a queda na arrecadação desses tributos, tamanha a dependência dos demais entes, gera catastrófica queda nas finanças públicas municipais, invialibizando o funcionamento da máquina pública local e a oferta de serviços públicos. O problema é potencializado porque um dos principais as aspectos da política econômica se consubstancia na política fiscal. No Estado Federal, as políticas fiscais devem ser congruentes e coordenadas com todos os entes federados a fim de não criar tensões, viabilizando o processo de desenvolvimento nacional. Assim, essas políticas não podem ser, a despeito dos demais entes, centralizar seus benefícios em prol do governo central ou somente os estaduais. O poder central assume a responsabilidade primária de estabilizar a economia, de proporcionar a forma mais equitativa de distribuição dos ingressos de receitas, bem como prover bens públicos que impliquem no bem estar de todos. Os níveis subnacionais devem proporcionar certos serviços para suas respectivas jurisdições. Por isso, para os economistas, o federalismo é considerado como uma forma ótima de governo (ATCHABAHIAM, 2011, p. 89-90). A partir desses postulados, percebemos que caso os entes federados não possuam uma equitativa distribuição da riqueza, seja por meio de arrecadação própria ou por via de distribuição de rendas de outros entes, a ideia de eficiência e otimização propostas pelo federalismo se torna inócua. Do modo como a Federação brasileira se apresenta hoje, em termos de distribuição de receitas, permite-nos afirmar que os entes maiores se beneficiam da sua posição de entes mais centrais para realizarem políticas fiscais e econômicas alheias às consequências que causarão nas finanças do Município, comprometendo-lhe a autonomia. Para confirmar essa tendência, podemos exemplificar a aprovação da emenda constitucional proibindo que a União aprove medidas que impliquem em aumento de despesas nos níveis menores, sem a respectiva fonte de financiamento. Ora, essa medida nada mais significa do que se proibir o que ocorre na prática, visto que, na configuração federalista de estado não há algo mais óbvio a se seguir. A crise federativa surge desse panorama desanimador, o qual compromete o desenvolvimento e o financiamento de políticas destinadas a proverem os serviços públicos essenciais de educação, transporte,

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saneamento básico, saúde e, que, estão diretamente ligados à concreção de direitos sociais, os quais são reduzidos ou dizimados por causa da ausência de recursos na esfera municipal. O grande perigo dessa situação se apresenta na medida em que, não obstante, a Constituição de 1988 tenha restabelecido a Democracia, isso não configura condição suficiente para modificar “padrões enraizados de distribuição da renda e de acesso a bens públicos.” Essas transformações nas desigualdades sociais somente se evidenciam com a implementação de políticas com o intuito de promover a inclusão da parcela da população excluída ao acesso aos bens essenciais (ARRETCHE, 2015, p. 7). Diante disso, quando comparamos os dados de que 80% dos entes municipais não conseguem autonomia financeira sem os repasses de receitas dos demais entes federativos, percebemos que a oferta de serviços públicos são os primeiros a serem diminuídos ou comprometidos. E o agravamento das desigualdades, em tempos de recessão só estabiliza a situação de penúria vivida pela população dessas municipalidades. As políticas de universalização na oferta de serviços públicos essenciais realizada no Brasil nos últimos 40 anos contribuíram bastante para colocar o país dentre as nações que diminuíram as desigualdades sociais, enquanto os países que no pós-segunda guerra promoveram a política de bem estar social, apresentaram a tendência contrária (ARRETCHE, 2015, p. 1). Para se compreender a dimensão da mudança convém apontar que nos anos de 1970, a ausência de serviços básicos de água, esgoto e energia elétrica e o baixo nível de escolaridade era uma constante em quase todo o território nacional. Não havia sequer um Município com mais de 50% de alunos com 15 anos e ensino fundamental completo. Em 2010, em 91% das municipalidades havia a oferta de energia elétrica a pelo menos 90% da população. A oferta de água para a população e a coleta de lixo também cresceram bastante nesse período. De 1980 para 2010, a taxa de mortalidade infantil caiu de 69 para 16 por mil nascidos vivos, e longevidade saltou de 62 para 73 anos. A população com mais de 18 anos que atingiu o ensino médio cresceu de 6,2 milhões para 39,7 milhões; e, a que chegou ao ensino passou de 3,4 para 21,5 milhões. Tudo isso, em apenas 40 anos (ARRETCHE, 2015, p. 194-195). Esse cenário animador poderia ter sido melhor, quando comparamos que o país ainda ocupa a 13ª posição em desigualdade de renda. Não obstante, já tenha diminuído de 79 para 36 o nível de renda dos 5% mais ricos em comparação com os 5% mais pobres (ARRETCHE, 2015, p. 1-2). A recessão econômica apresentada desde 2008 no mundo, e com consequências mais visíveis no país a partir de 2013, tem ameaçado os avanços alcançados até o momento no campo social. O agravamento da pobreza municipal vai impedir novos avanços e, provavelmente, causar regressão nas conquistas alcançadas ao longo desses anos. A retomada do federalismo de cooperação por meio do fortalecimento das competências locais e da repartição de receitas para os entes locais consistem nas ferramentas jurídicas capazes de proporcionar o fortalecimento da máquina administrativa municipal, promover o bem estar social da respectiva população. A precariedade das administrações em nível local tem como responsável, em grande medida, o completo abandono do sistema jurídico brasileiro em prover meios de aperfeiçoamento dos governos locais. A dependência de recursos por parte da União e dos Estados, sobretudo quando esses estão sendo vilipendiados, constrói uma velha disputa pelo poder nos níveis municipais, que o tornam apenas como trampolim político para as esferas mais centralizadas de governo (estadual e federal). Não se pode ignorar que temos uma longa tradição patrimonialista, em que a coisa pública é utilizada para alcançar fins particulares. A Constituição Federal de 1988 já avançou bastante ao garantir autonomia aos Municípios, descuidou-se, no entanto, de dar-lhe as armas para poder alcançá-la, impedindo que os demais entes a minassem. CONCLUSÃO

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O presente trabalho analisou como a crise federativa brasileira provoca o empobrecimento dos entes municipais, consequentemente afeta a efetividade dos direitos sociais, tendo em vista que as demandas sociais típicas do Estado de Bem Estar Social são comprometidas com a má distribuição dos recursos. Vimos também que, ao revés do modelo de federalismo fiscal cooperativo extraído das normas jurídicas constitucionais, a União tem agido reiteradamente contra a autonomia financeira dos entes subnacionais, deixando-os cada vez mais dependentes das transferências de receitas tributárias dos tributos federais. No caso dos Municípios, a situação ainda é mais grave, pois a maioria dos cerca de 5.670 entes padecem com as desigualdades socioeconômicas historicamente vivenciadas no Brasil. Tanto é isso que cerca de 80% das municipalidades só conseguem sobreviver mediante o repasse de receitas tributárias. Não obstante esse desprezo pelo ente mais periférico da Federação, a sua função é fundamental para a concretização dos objetivos do Estado de Bem Estar Social. Essa importância da organização municipal se apresenta, inclusive, em Estados Unitários, como Portugal, visto que atribuem ao ente mais periférico a função de efetivar serviços e alcançar as necessidades do cidadão de forma mais eficiente e mais imediata. A própria proporção das políticas públicas e os serviços prestados em nível local tornam a gestão municipal algo muito menos complexo do que uma política executada em nível macro para toda a nação. No entanto, no modelo atual, a Federação brasileira se apresenta um tanto desequilibrada, pois enquanto se distribuíram várias tarefas constitucionais para a execução de serviços e políticas públicas, com vistas a efetivar direitos sociais, as políticas centralistas da União acabam por inviabilizar o cumprimento dessas tarefas, sobretudo quanto aos entes municipais. A crise federativa brasileira agravada por meio da recessão econômica evidenciou como a população dos Municípios mais periféricos – os quais constituem a maioria – , ficam a mercê das políticas da União e dos Estados para usufruírem dos serviços mais básicos, como saúde, saneamento básico, educação, transporte, etc. Vimos que o Brasil avançou em muitos aspectos sociais nos últimos 40 anos, a partir de dados bastante animadores. No entanto, ocupa a 13ª posição em desigualdades sociais diante dos demais países. Em uma Federação composta em sua maioria por municipalidades, as soluções para os avanços na área social devem necessariamente passar por tais entes, visto que os problemas locais são de todo o Estado Federal. Portanto, o novo pacto federativo, que se discute em meio a crise federativa, deve ser realizado com vistas a destacar o papel do ente municipal na promoção dos direitos sociais. E para isso, é de fundamental importância que sejam respeitadas pelos demais entes federados a autonomia financeira municipal, conforme preconiza o federalismo fiscal cooperativo extraído das normas constitucionais. O retorno às bases do federalismo de cooperação diz respeito à própria viabilidade do Estado de Bem Estar Social. REFERÊNCIAS ARRETCHE, Marta (Org.). Trajetórias das desigualdades: como o Brasil mudou nos últimos cinquenta anos. São Paulo: Unesp; CEM, 2015. ATCHABAHIAM, Adolfo. Tributación y desarrollo económico en el federalismo. Buenos Aires: La Ley, 2011. BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Teoria geral do federalismo. Forense: Rio de Janeiro, 1986. BERCOVICI, Gilberto. Desigualdades regionais, estado e constituição. São Paulo: Max Limonad, 2003. CANOTILHO, J. J. Canotilho. Direito Constitucional e teoria da Constituição. 7ª Ed. Coimbra: Almedina, 2003.

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AS MULHERES DIANTE DA LEI 11.343/2006: A CRIMINALIZAÇÃO DA VULNERABILIDADE SOCIAL.

Marília Montenegro Pessoa de Mello (orientadora) Doutora pela Universidade Federal de Santa Catarina e professora da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). [email protected] Juliana Gleymir Casanova da Silva Graduada no curso de Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e integrante do Além das Grades – grupo de extensão da Faculdade de Direito do Recife (UFPE)[email protected].

SUMÁRIO: Introdução; 1. Lei de drogas no Brasil; 1.1. Análise crítica da Lei 11.343/2006; 1.2. Lei de Drogas: aspectos que apontam discriminação de gênero; 1.2.1. Art. 28 e Art. 33: a zona cinzenta entre o uso pessoal e o tráfico de drogas; 1.2.2. Art. 35: associação para o tráfico; 1.2.3. Art. 40, inciso III: tráfico de drogas na entrada do presídio; Conclusão; Referências.

INTRODUÇÃO Mesmo com um número absoluto muito inferior ao masculino o crescimento da população feminina encarcerada aumenta em uma velocidade maior do que a velocidade da população masculina. O processo de criminalização de mulheres antes constituído, majoritariamente, por delitos relacionados à sua condição de gênero, como o aborto, o infanticídio, a prostituição e os crimes passionais (DEL OLMO, 1996), atualmente tem como propulsor o crime de tráfico de drogas, principalmente a partir dos anos noventa. (UNODC), (GIACOMELLO), (SOUZA) e (BOITEUX). A população carcerária brasileira total é composta de 6,4% de presas mulheres. Entre 2007 e 2012, o crescimento das presas por tráfico de drogas foi de 77,11%, tendo praticamente dobrado o número de mulheres presas por tráfico nesse período (InfoPen). Assim, o crime de tráfico de drogas ilícitas é o que mais encarcera mulheres, sendo o maior percentual das condenadas por tal crime 60,63%, seguido pelos crimes contra o patrimônio, especificamente o roubo e o furto os quais representam, respectivamente, 11,41% e 8,71% dos crimes praticados pelo sexo feminino (INFOPEN, 2013). Ainda que as mulheres se mostrem cada vez mais envolvidas na hierarquia do mercado ilícito de drogas, elas permanecem invisibilizadas diante de uma legislação e política pública acerca das drogas guiada por parâmetros androcêntricos. Dessa forma, negam-se as condições específicas do envolvimento feminino com o tráfico que leva ao cárcere, de forma geral, mulheres em situação de extrema vulnerabilidade social, isto é, jovens, desempregadas ou subempregadas, não brancas, com baixa qualificação educacional, mães e chefes do lar, residentes em espaços urbanos marginalizados, ocupantes dos mais baixos níveis na cadeia do tráfico.

A lei de drogas, no fluxo do sistema penal, como um todo, nega qualquer compromisso com a perspectiva de gênero ao conformar o sistema hierárquico de prevalência do masculino sobre o feminino além do

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sistema de classes, impondo, de forma geral, sanções penais rígidas ao elo mais vulnerável na esfera social e no mercado ilícito das drogas: a mulher, pobre e não branca. Com efeito, a criminalização do tráfico de drogas, através da lei nº11.343/2006, representa per si a violação de direitos constitucionais fundamentais como a autonomia da vontade, a exigência da ofensividade da conduta lesiva, a proporcionalidade e outros. A partir do que foi acima exposto, o presente artigo elabora uma análise crítica da atual legislação de drogas, a lei 11.343/2006, atrelada a uma perspectiva de gênero, isto é, resgatando o sujeito feminino da invisibilidade e revelando as especificidades da mulher selecionada e encarcerada por tráfico de drogas. 1. LEI DE DROGAS NO BRASIL. 1.1 ANÁLISE CRÍTICA DA LEI 11.343/2006.

A Lei 11.343, logo de início, no artigo 1°, corrobora com a concepção das leis anteriores ao consolidar uma política criminal de drogas guiada pela ideologia da diferenciação1, tendo em vista a prescrição de medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; por sua vez, estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico (traficante) de drogas ilícitas e define crimes. Podemos destacar como aspectos positivos da nova legislação a rejeição de sanções privativas da liberdade em caso de reincidência, além da descarcerização2 da posse para uso próprio (artigo 28) e a equiparação a este da conduta de quem planta para consumo pessoal (art. 28, § 1o.), a redução da pena para a hipótese de consumo compartilhado de droga ilícita (art. 33, § 3o.), antes equiparada ao tráfico, a previsão expressa do “fortalecimento da autonomia e da responsabilidade individual em relação ao uso indevido de drogas” (art. 19, III), e o reconhecimento dos princípios da liberdade e da diversidade (art. 4º), medidas que refletem uma redução do controle penal sobre o usuário de drogas, especialmente se comparadas com a antiga Lei 6.368/76. Se em relação ao uso pessoal houve um arrefecimento punitivo, no que concerne ao comércio de entorpecentes, a nova lei deu tratamento penal bastante diferenciado. Estabeleceu o aumento da pena mínima do delito de tráfico de três para cinco anos de reclusão, além da pena de multa, obstacularizando, dessa forma, a aplicação das penas alternativas. É de se notar a total desproporcionalidade de uma pena mínima de cinco anos, superior até ao patamar mínimo do crime de roubo, que requer violência ou grave ameaça, percebe-se, assim, a incoerência sistemática da matéria criminal. Ademais, a manutenção, pelo art. 44 da nova lei, da inafiançabilidade do delito, a proibição da concessão de sursis, graça, indulto, anistia e liberdade provisória e vedada a substituição por pena restritiva de direitos, contribuiu fortemente para que os presos por tráfico ficassem encarcerados um 1  Tal discurso estabelece nítida distinção entre consumidor e traficante, isto é, o doente e o delinquente. Dessa forma, sobre o traficante recai o discurso jurídico-penal do qual se cria o estereotipo do criminoso corruptor da moral e da saúde pública; por sua vez, sobre o consumidor incide o discurso médico-psiquiátrico que difunde o estereotipo da dependência. (DEL OLMO, 1990). 2  A opção pelo termo descarcerização se justifica pela concordância com a lição de Salo de Carvalho: ‘Não parecem satisfatórias as leituras que afirmam ter havido descriminalização do porte para uso pessoal em face de o art. 1° da Lei de Introdução ao Código Penal (LICP) considerar crime a ‘(...) a infração penal a qual a lei comina pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa (...)’. Não se pode olvidar que a publicação da LICP ocorreu sob égide da Constituição de 1937. A Constituição de 1988, porém, como novo lócus de interpretação e ilegitimidade das leis, redefine o conceito de delito,, prescrevendo como consequência jurídica, para alem da privação e da restrição da liberdade, a perda de bens, a multa, a prestação social alternativa e a suspensão ou interdição de direitos (Art. 5°, inciso XLVI). O novo cenário constitucional amplia as hipóteses sancionatórias, não sendo cabíveis interpretações retrospectivas que potencializam leis ultrapassadas, dando-lhes maior importância que à Constituição.’ Ademais, conforme explica Silveira (2011), o significado da despenalização não consiste apenas na retirada da pena privativa de liberdade, mas que a conduta não é mais punida, nem com o cárcere nem com qualquer outra medida. Assim, não há que se falar na ocorrência da despenalização, posto que a conduta continua sendo penalizada. A descarcerização, por sua vez, não retira o caráter criminoso, tampouco a incidência de sanção penal. Visa apenas ao afastamento da aplicação da pena privativa de liberdade em virtude da reduzida necessidade de intervenção por parte do Estado (SAMPAIO, 2006).

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tempo ainda maior. Tal situação foi amenizada com os recentes posicionamentos do STF acerca da inconstitucionalidade das vedações à liberdade provisória3 e conversão em penas restritivas de direitos4. Insta dizer que, na prática, a posse de drogas ilícitas para uso próprio já havia sido descarcerizada desde a Lei 9.099/95, que trouxe a possibilidade da suspensão condicional do processo (art. 89) e, mais recentemente, pela Lei 10.259/01, que ampliou o alcance da transação penal (GOMES, 2011). Nesse sentido, não se considera ter havido um avanço significativo, e que melhor seria manter a lei anterior, posto que o usuário não era encarcerado da mesma forma, mas encaminhado ao Juizado Especial, enquanto a pena mínima para o tráfico prevista era de três anos. Ademais, a descarcerização promovida pela atual política só alcança aquele que não precisa traficar para consumir droga, visto que a estratégia penal é fracionada: para o viciado, o modelo descarcerizador, influenciado pelo discurso médico-sanitário; ao traficante a prisão, justificada pelo discurso simbólico do proibicionismo. Assim, a mera descarcerização do uso de drogas, mesmo benéfica ao usuário, é ainda uma medida muito tímida, por insistir em manter o controle penal sobre o uso de determinadas drogas, independente de quantidade ou qualquer parâmetro objetivo, ainda que tal uso não cause qualquer risco concreto aos demais, isto é, consolida crimes sem vítimas e, por consequência, viola diretamente normas fundamentais. O princípio da legalidade e o princípio das liberdades iguais submetem todo o poder estatal ao controle da lei e asseguram a liberdade individual como regra geral, situando quaisquer proibições e restrições no campo da exceção e condicionando sua validade ao objetivo de assegurar o igualmente livre exercício de direitos de terceiros. Desta forma, a criminalização de qualquer ação ou omissão há de estar sempre referida a uma ofensa relevante a um bem jurídico alheio, relacionado ou relacionável a direitos individuais concretos, ou à exposição deste bem jurídico a um perigo de lesão concreto, direto e imediato. Portanto, em uma democracia, o Estado não é autorizado a intervir criminalmente quanto a posse para uso pessoal de drogas ilícitas, que, equivale a um mero perigo de autolesão, assim como na venda ou qualquer outra forma de fornecimento de drogas ilícitas para um adulto que quer adquiri-las tendo em vista a concordância do titular do bem jurídico (KARAM, 2013). Na soma dos retrocessos da ‘nova’ legislação sobre drogas, na contramão da Reforma de 2008, a mesma definiu um rito processual específico com o interrogatório do acusado ao início da instrução, conformando uma mentalidade jurídica inquisitória na qual o interrogatório representa um meio de prova ao invés de um meio de defesa. Inflige, assim, a garantia constitucional da ampla defesa, pois o acusado se defende antes mesmo de conhecer a integralidade da acusação e das provas que pesam contra ele5. Apesar de questionado por seu fracasso, o modelo proibicionista se mantém forte graças à postura norte-americana que mantém a defesa da estratégia punitiva nos fóruns internacionais. Por sua vez, a Europa desenvolve a implementação de estratégias alternativas ao proibicionismo, como as de redução de danos, e leis que prevêem desde a descarcerização da posse e do uso, encontrada na ampla maioria dos países europeus, passando pela descriminalização levada a cabo por Portugal, Itália e Espanha, até a experiência holandesa que despenalizou, além da posse de drogas, o cultivo e o pequeno comércio de cannabis. Por isso, se defende um modelo alternativo mais humano e racional que é o da legalização controlada, que inclui a legalização de todo o processo, do comércio à posse de drogas, que ficaria sujeito à fiscalização pelo Estado, da mesma maneira que hoje se adota para as drogas lícitas (álcool e tabaco). Tal modelo deve incluir necessariamente a proibição de propaganda, o controle de qualidade dos produtos e o maciço investimento em prevenção e em estratégias de redução de danos. 1.2 LEI DE DROGAS: ASPECTOS QUE APONTAM DISCRIMINAÇÃO DE GÊNERO. 3  Na Sessão do Plenário de 10.05.2012, o STF proferiu decisão, por maioria e nos termos do voto do Relator, declarou, incidenter tantum, a inconstitucionalidade da expressão “e liberdade provisória”, constante do caput do artigo 44 da Lei nº 11.343/2006. 4  STF – RESOLUÇÃO N° 5: É suspensa a execução da expressão “vedada a conversão em penas restritivas de direitos” do § 4º do art. 33 da Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006, declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal nos autos do Habeas Corpus nº 97.256/RS. 5  LOPES JR., Aury; ROSA, Alexandre de Moraes da. Interrogatório deve ser o último ato do processo. Disponível em: http://www. conjur.com.br/2015-jul-03/limite-penal-interrogatorio-ultimo-ato-processo. Acesso em: 05 de Julho de 2015.

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As legislações penais brasileiras há muito tempo refletem um misto de preconceito e indiferença em relação à condição feminina. Essa postura legislativa se evidencia, p.e., na disciplina dos crimes relacionados à sexualidade, que até a reforma de 20056 trazia qualificativos de mulher honesta no crime de atentado ao pudor mediante fraude e mulher virgem no extinto crime de sedução. Desta forma, revela-se um posicionamento moralista, conservador e patriarcal sob o pretexto de proteção à mulher. Ainda que a legislação recente tenha trazido avanços, o direito de forma geral mantém a primazia de critérios ou padrões masculinos diante da realidade feminina. Conforme leciona Baratta (1999, apud MOURA, 2005): O direito é sexuado, esta analise sugere que, quando um homem e uma mulher se vêem frente ao direito, não é o direito que não consegue explicar ao sujeito feminino os critérios objetivos, mas ao contrário, aplica exatamente tais critérios, e, estes, são masculinos. Portanto, insistir na igualdade, na neutralidade e na objetividade é, ironicamente, o mesmo que insistir em ser julgado através de valores masculinos. (p.30-31). Ainda que o texto constitucional, em seu artigo 5º, verse sobre a igualdade de todos perante a lei, sem distinção de qualquer natureza (BRASIL, 2013), o Código Penal Brasileiro, destoa dos compromissos constitucionais e, na prática, se revela como instrumento de potencialização de opressões contra às mulheres, uma vez que não garante de fato proteção as mesmas, mas atua como um reforço da desigualdade social construída entre os sexos e a hierarquia masculina sobre a feminina. Segundo Vera Regina de Andrade: [...] o sistema penal, salvo situações contingentes e excepcionais, não apenas é um meio ineficaz para a proteção das mulheres contra a violência, como também duplica a violência exercida contra elas e as divide, sendo uma estratégia excludente que afeta a própria unidade do movimento. Isto porque se trata de um subsistema de controle social, seletivo e desigual, tanto de homens como de mulheres e porque é, ele próprio, um sistema de violência institucional, que exerce seu poder e seu impacto também sobre as vítimas. E, ao incidir sobre a vítima mulher a sua complexa fenomenologia de controle social (Lei, Polícia, Ministério Público, Justiça, prisão) que representa, por sua vez, a culminação de um processo de controle que certamente inicia na família, o sistema penal duplica, ao invés de proteger, a vitimação feminina, pois além da violência sexual representada por diversas condutas masculinas (como estupro, atentados violentos ao pudor, assédio, etc.), a mulher torna-se vítima da violência institucional pluri-facetada do sistema, que expressa e reproduz, por sua vez, dois grandes tipos de violência estrutural da sociedade: a violência estrutural das relações sociais capitalistas (que é a desigualdade de classes) e a violência das relações patriarcais (traduzidas na desigualdade de gênero) recriando os estereótipos inerentes a estas duas formas de desigualdade, o que é particularmente visível no campo da moral sexual (1996, pg.3).

A lei de drogas, no fluxo do sistema penal como um todo, nega qualquer compromisso com a perspectiva de gênero ao conformar o sistema hierárquico de prevalência do masculino sobre o feminino, além do sistema de classes, impondo, de forma geral, sanções penais rígidas ao elo mais vulnerável na esfera social e no mercado ilícito das drogas: a mulher, pobre e não branca. Sobre a importância de adotar uma lente de gênero ao analisar os sujeitos no sistema punitivo, Espinoza ressalta:

Mais do que nunca devemos proceder as análises que adotem a perspectiva de gênero para olhar a mulher e todos os indivíduos inseridos no sistema punitivo. Assim, a óptica do gênero deve nos levar a questionamentos a respeito da própria estrutura do sistema, “desconstruindo o universo das formas 6 

Por meio da Lei n 11.106, de 28 de março de 2005.

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tradicionais de legitimação punitiva e procurando soluções mais equitativas, que valorizem as situações concretas nas quais evoluem os diferentes protagonistas da intervenção penal (2004, p. 77).

Dentro do parâmetro referenciado acima e com base na experiência vivida durante dois anos de estágio em uma vara de feitos relativos a entorpecentes, procederemos a seguir uma análise, sob a perspectiva de gênero, dos principais artigos incriminadores do sexo feminino da Lei de drogas e seus efeitos. 1.2.1 ART. 28 E ART. 33: A ZONA CINZENTA ENTRE O USO PESSOAL E O TRÁFICO DE DROGAS.

As sanções e tratamentos penal, processual penal e penitenciário dos crimes de tráfico (art.33) e de porte para consumo (art. 28) são completamente diversos. Enquanto o primeiro é equiparado a crime hediondo, com tratamento rigoroso da legislação específica ao cominar pena mínima de 5 (cinco) anos de reclusão, e multa elevada, no intuito de atacar a produção não autorizada de drogas e reprimir a venda; o porte para consumo, por outro lado, é equiparado a contravenção penal, sem a possibilidade de aplicação de pena privativa de liberdade pois a finalidade do agente é o consumo pessoal. O art.28 prevê cinco condutas - adquirir, guardar, ter em depósito, transportar e trazer consigo - que também fazem parte do artigo 337, cujo tipo penal abarca 18 (dezoito) verbos nucleares referentes a ações puníveis. A forma de construção da tipicidade penal em ambos os delitos, a desigualdade entre o quantum das penas previstas e a inexistência de tipos penais intermediários entre os dois modelos de condutas – comércio e uso pessoal – acarreta problemas perversos de interpretação. Tais problemas são agravados quando a decisão sobre a conduta do agente, se usuário ou traficante, não se baseia em um sistema de quantificação legal que define um parâmetro – quantidade diária para consumo pessoal- mas em um sistema de reconhecimento judicial ou policial, cabendo ao juiz ou a autoridade policial analisar cada caso concreto e definir o enquadramento típico (GOMES, 2011)8. A existência dessa zona cinzenta intermediária, conforme observa Salo de Carvalho (2013), além da produção de prova vinculada fundamentalmente aos depoimentos policiais, com alta carga subjetiva, tende a projetar a subsunção de condutas ambíguas em alguma das variadas ações puníveis integrantes do artigo 33 da Lei de Drogas, muitas vezes, ensejando condenações injustas. Atualmente, temos, aproximadamente, doze perfis de mulheres presas por tráfico de drogas: bucha9, consumidora, mula-avião10, vendedora, vapor11, cúmplice, assistente/fogueteira, abastecedora/distribuidora, traficante, gerente, dona de boca e caixa/contadora (MUSUMECI; ILGENFRITZ, 2002, p. 87). Ainda que a atuação de mulheres em posições mais valorizadas na hierarquia do tráfico- chefes de boca, gerente, contadoras e traficantes – tenha aumentado nos últimos anos, a grande maioria delas ocupam as funções menos privilegiadas e mais vulneráveis; são condenadas, entretanto, na mesma medida daqueles que ocupam o grande escalão do tráfico de drogas devido à excessiva amplitude do artigo 33 da Lei de Drogas. 1.2.2 ART. 35: ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO

7  Art. 33, caput: Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar: Pena - reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa. 8  Lei 11.343/2006, art. 28: Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas: 2o  Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.(grifos nossos). 9  Bucha é a pessoa que é presa por estar presente na cena em que são efetuadas outras prisões. 10  Mula-avião são aquelas que pegam pequenas quantidades de drogas e transportam para entregar a alguém, em alguma boca, para algum vapor. Fazem a circulação da droga. 11  Quem negocia pequenas quantidades no varejo.

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O artigo 35, caput, da Lei de Drogas estabelece associarem-se duas ou mais pessoas para o fim de praticar, reiteradamente ou não, qualquer dos crimes previstos nos arts.33, caput e § 1o, e 34, da mesma Lei, trata-se de associação para o tráfico. A lei o inclui como crime autônomo, isto é, sendo prescindível para sua configuração efetiva a prática dos crimes previstos no artigo nos arts. 33, caput e § 1o, e 34 da Lei 11.343/2006.12 Quanto a sanção aplica-se a reclusão, de 3 (três) a 10 (dez) anos, e pagamento de 700 (setecentos) a 1.200 (mil e duzentos) dias-multa. A associação para o tráfico exige a reunião de ao menos duas pessoas de forma estável ou em caráter permanente com a finalidade de cometer os crimes previstos no tipo. A reunião eventual é caracterizada como concurso de pessoas. Indispensável, portanto, para a comprovação da materialidade, o animus associativo, ou seja, a intenção de se associar com o intento de praticar o crime almejado, mesmo que essa finalidade não venha a acontecer efetivamente. 13 Apesar de ter entendimento jurisprudencial consolidado, na prática penal ainda é possível observar parte dos operadores do direito, arraigados ao senso comum punitivo, aplicando o art. 35 a associações eventuais sob justificativa da expressão ‘reiteradamente ou não’ que compõe o tipo. Todavia, tal expressão se refere à prática da finalidade e não do ato de se associar como pretendem dar sentido. No âmbito das causas de inserção das mulheres no tráfico de drogas é notória a importância das relações afetivas que mantêm com filhos, irmãos e companheiro. Assim, é recorrente a apreensão de mulheres por associação quando compartilham o espaço comum da residência com o parceiro que exerce atividade de tráfico, algumas vezes elas reconhecem tal atividade ilícita, outras vezes até sem saber do envolvimento do companheiro; muitas delas, por outro lado, acabam por participar de forma “indireta” do tráfico de drogas, exercendo funções acessórias (vigiando, fazendo contabilidade, etc) para ajudar seus parceiros; outro caso recorrente são de casais usuários ou de mulheres, usuárias ou não, presentes no momento da apreensão em flagrante( a bucha), de certa quantia de droga, geralmente pequena, mantida em depósito, mas ainda assim, pela ausência de uma parâmetro objetivo de aferição e por se encaixarem no estereótipo do criminoso (pobre, não branca(o), moradora de favela) são denunciados(as) nos tipos de tráfico (art.33) e associação (art.35) ao invés do porte para uso pessoal (art.28). Desta forma, mediante afronta ao princípio da proporcionalidade, inúmeras mulheres tem suas penas sobrelevadas pelo concurso material entre tráfico de drogas (art.33) e associação para o tráfico (art.35), pena mínima em abstrato de 8 (oito) anos, quando seu envolvimento é, na maioria estatística, pouco significativo e não violento dentro da cadeia produtiva do tráfico. Levando-se em consideração que o perfil das mulheres encarceradas por envolvimento com tráfico de drogas é marcado pela maternidade, os efeitos da condenação ultrapassam a individualidade da mulher e atingem o seio familiar, condenando-se paralelamente seus filhos, deixados, nos melhores casos, aos cuidados de familiares, vizinhos e instituições de acolhimento; outros tantos, com menos fortuna, são deixados a própria sorte e cuidados da rua. O prolongamento das penas femininas, dessa maneira, traz consequências nefastas à estrutura familiar. 1.2.3 ART. 40, INCISO III: TRÁFICO DE DROGAS NA ENTRADA DO PRESÍDIO.

O art. 40 trata das causas de aumento específico sobre as penas previstas nos arts. 33 a 37 da Lei de drogas, prevendo-se frações de um sexto (1/6) a dois terços (2/3) de elevação das penas. Entre as situações 12  STF: HC 74.738/SP, rel. min. Maurício Corrêa, DJU 18.05.2001: EMENTA: HABEAS-CORPUS. CRIMES DE TRÁFICO E DE ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO DE ENTORPECENTES, EM CONCURSO MATERIAL. 1. É da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal que é possível ocorrer concurso material entre os crimes de tráfico e de associação para o tráfico de entorpecentes (arts. 12 e 14 da Lei nº 6.368/76)’, atuais artigos 33 e 35 da Lei n °11.343/2006. 13  O Superior Tribunal de Justiça (STJ) entende que, para a caracterização do crime de associação para o tráfico (previsto no art. 35 da Lei n. 11.343/2006), é preciso que haja o dolo de se associar com permanência e estabilidade. Por isso, a conduta é considerada atípica se não houver ânimo duradouro (associativo permanente), mas apenas eventual (esporádico). Precedentes do STF: HC 64.840-RJ, DJ 21/8/1987; do STJ: HC 166.979-SP, DJe 15/8/2012, e HC 201.256-MG, DJe 29/6/2012. HC 139.942-SP, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 19/11/2012.

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previstas, uma delas é responsável pelo encarceramento de parte considerável da população prisional feminina: a infração ter sido cometida nas dependências ou imediações de estabelecimentos prisionais (inciso III). Sob a promessa de uma recompensa pecuniária ou ainda sob coação, física ou moral, por parte de parentes ou pessoas próximas muitas mulheres arriscam-se na tentativa de adentrar nos presídios carregando entorpecentes. A preparação para o crime envolve, primeiramente, a alocação da droga em um saco de arroz por ser resistente; vedam-no com fita isolante, colocam-no dentro de um preservativo, e, posteriormente, lubrificam-no e o introduzem ou na vagina ou no ânus. Embora algumas levem a droga em bolsas ou em outros objetos externos ao seu corpo, a maioria o faz dentro do próprio corpo, quer na cavidade vaginal, quer na cavidade anal (DIÓGENES, 2007). Geralmente as mulheres são descobertas no momento da revista para entrada no presídio por externarem certo nervosismo, em outros casos são denunciadas através de ligações anônimas, ou pelos presos do estabelecimento onde vão entregar a droga. Nesse momento, muitas delas alegam que a droga seria para consumir junto ao parceiro, tese que geralmente não se sustenta durante a instrução. CONCLUSÃO No presente trabalho, analisou-se a atual legislação sobre drogas brasileira através de uma perspectiva de gênero, ou seja, com enfoque nas condutas e circunstâncias de criminalização do sujeito feminino por tráfico de drogas, mostrando-se, também, como os costumes e os papéis socialmente construídos ao redor do que é próprio aos homens e as mulheres influenciam também a formação das redes criminais de tráfico. Conforme exposto, a participação feminina é, na maioria das vezes, acessória, em posições mais baixas da hierarquia, com menores rendimentos e mais vulneráveis a ação policial. Ademais, nota-se a importância das relações afetivas, principalmente, com companheiros e filhos, para o envolvimento das mulheres no tráfico de drogas. Desta forma, a conivência com a atividade ilícita do companheiro ou até mesmo pela coação desse, e a busca pela subsistência familiar leva um sem número de mulheres ao cárcere. A lei de drogas, nos moldes atuais, renega as especificidades das condições sociais do envolvimento feminino no tráfico, de forma que reprime com rigidez a vulnerabilidade de mulheres já marcadas pela violência, privada e/ou pública, nas suas trajetórias de vida. A desproporção das penas e a cegueira de gênero devem ser revistas e corrigidas à maneira de outros Estados da America Latina, por exemplo, a Costa Rica que recentemente reformou a lei de drogas do país em benefício das mulheres em condição de vulnerabilidade social, visto que a legislação brasileira atual gera danos enormes e desnecessários diante de pouca evidência sobre seus efeitos, pois a aplicação de penas rígidas até então se mostra ineficaz para reduzir o crime ou diminuir a quantidade de drogas ilícitas disponíveis. REFERÊNCIAS ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Criminologia e feminismo: da mulher como vítima à mulher como sujeito de construção da cidadania. In: Criminologia e Feminismo, 1999. Disponível em: https://periodicos.ufsc. br/index.php/sequencia/article/view/15645. Acesso em: 03 maio 2015. BOITEAUX, Luciana. Drogas e cárcere: repressão às drogas, aumento da população penitenciária brasileira e alternativas. In Drogas: uma nova perspectiva. / Clécio Lemos; Cristiano Avila Marona; Jorge Quintas. São Paulo : IBCCRIM, 2014. BRASIL, Lei 11.343/06. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11343. htm. Acessado em: 20 ago. 2015 CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.

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A CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS NO BRASIL PÓS-88: A DEMOCRACIA PARTICIPATIVA COMO INSTRUMENTOS DE EFETIVAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS

Marco Aurélio da Silva Freire Mestrando em Direitos Humanos pela UFPE

João Paulo Rodrigues do Nascimento Bacharelando em Direito – 9º período, pela ASCES.

SUMÁRIO: 1. Histórico e Conceito de Democracia; 2. Democracia representativa; 3. Democracia participativa; 4. Democracia no Brasil; 5. Instrumentos de participação social e seu papel como garantidores das políticas sociais; 5.1. Orçamento participativo; 5.2. Audiências públicas; 5.3. Plebiscito e referendo; Conclusão; Referências.

1. HISTÓRICO E CONCEITO DE DEMOCRACIA. A Grécia Antiga é o berço da civilização ocidental, mas também é o berço do principal instrumento de um Estado justo e politizado, a democracia. Foi na cidade de Atenas, onde apenas os homens livres, poderiam exercer todo e qualquer forma de poder. O sentido da palavra homem neste caso, deve ser interpretado no seu sentido literal, refere-se ao sexo masculino, não de maneira a englobar todos os indivíduos sem exclusão de gênero, a mulher não possuía a mesma instrumentalidade de poder ou autonomia para o seu exercício. As sociedades civilizadas, onde o papel dos cidadãos é mais amplo, a democracia se faz presente nas suas diversas vertentes, onde se divide em democracia deliberativa, representativa e a participativa. A primeira consiste no discurso e reflexão sobre idéias e propostas. É uma discussão continua, já que toda proposta pode vir a ser modificada. Ela permite espaços para que se questione o futuro. Aí, o cidadão pode promover debates e nesses podem justificar e difundir seus argumentos. Em suma, ela exige que o cidadão racionalize sobre determinadas questões por um diálogo. Essa vertente não é o foco do estudo deste trabalho. Nos tópicos que serão apresentados mais à frente discutirmos sobre os outros tipos. A democracia é originária da palavra “demokrátia” , onde o termo “demos” quer dizer povo e “kratos” significa “poder do povo”. O povo é soberanos e a ele pertence esse poder, isto quer dizer que, o fato do povo ser soberano o torna independente e tanto ele quanto o Estado ao qual ele pertence não estão subordinados a ninguém não tem poder acima dele, apenas o da sua própria constituição, que quando democrática de fato, garante isso e protege, é o que modernamente é tido como a soberania popular, exercido pelo povo através de mecanismos institucionalizados. No mundo atual, a soberania dos Estados mais fortes (grandes potências), não é inquestionável pois de um certo modo eles são interdependentes. Quanto aos Estados mais fracos (países em desenvolvimento ou de industrialização tardia), essa soberania é de certo modo relativa, pois é enfraquecida pela superioridade econômica das grandes potencias, foi o que ocorreu com o Brasil durante boa parte da sua história, mais recentemente até o fim da década de 90 e inicio dos anos 2000, devido ao modelo político adotado para

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a governância do país. Um país devidamente soberano é democrático quanto reconhece o povo como ente instrumentalizador da soberania que é inerente a ele, e ele instrumentaliza esse poder quando ele permite o povo participar da política, buscando direitos e mais ainda, buscando o direito de ter direitos. Robert Dhal em sua Teoria Dedutiva sobre a Democracia, caracterizou a democracia como um arranjo advindo do pluralismo, marcado pela competitividade de interesses, dando espaço para a inserção de movimentos sociais no campo político. Essa competitividade está interligada a buscas corriqueiras do homem por direitos, sem distinção, sem diferenciação de classe social. Essa corrida tem que ser entendida como uma busca qualitativa e não quantitativa. Isto quer dizer que, os direitos buscados devem ser adquiridos para atender as necessidades de todos, sem interferir no direito do outro, sem concorrência entre classe A ou B, mas que todos busquem estes de forma pacífica e justa, já que o direito e a justiça é correto que se opte pela justiça . (ABU-EL-HAJ, Jawad. 2008). A democracia não se tornou algo exclusivo ao Ocidente e deixou de ser algo limitado a região A ou B. Na segunda metade do século XX se tornou uma luta universal, onde Oriente e Ocidente, seguem os mesmos anseios quando se trata da luta por um Estado de pluralista respeitável e igualitário. O que fomentou as mudanças relacionadas a práticas e idéias democráticas foi a mudança da Cidade-Estado para o Estado nacional como dito anteriormente, mas também com associações políticas supranacionais que visam proteger e viabilizar o comercio internacional, por meio da internacionalização da economia, do processo produtivo e do trabalho, difundindo a globalização. Como exemplos de órgãos políticos supranacionais, podemos citar a Organização Mundial do Comércio (OMC). Brevemente será discorrido sobre duas das três formas de democracia, a representativa e a participativa.

2. DEMOCRACIA REPRESENTATIVA. É o modelo de democracia mais comumente aplicado no mundo, principalmente no Ocidente, inclusive no Brasil. Por meio desse sistema o individuo exerce o sufrágio ou o voto, dando direito a outro de lhe representar e representar a sua vontade, tomando posições favoráveis ao funcionamento da estrutura e instituições estatais. Bobbio comenta da seguinte forma sobre o significado da democracia representativa: [...] a expressão “democracia representativa” significa genericamente que as deliberações coletivas, isto é, as deliberações que dize, respeito à coletividade inteira, são tomadas não diretamente por aqueles que de dela fazem parte mas por pessoas eleitas para esta finalidade [...]. (BOBBIO, Norberto. 1997, p. 44)

Mas, não se fala de democracia representativa sem falar de democracia liberal. Esta se baseou principalmente sob a vertente norte-americana, onde é sugerido o modelo de campanha eleitoral por meio de mídia, dinheiro, campanha corpo a corpo exclusa e substituída pela TV. Transformou-se em uma relação comercial, empresa-consumidor. A opinião dos cidadãos ou eleitores por assim dizer, está sendo industrializada e colocada em conserva onde o pote só é aberto e esta opinião é usada de quatro em quatro anos, limitando o cidadão à sua zona eleitoral, estreitando no sentido mais negativo a relação entre cidadão-debate, cidadão-diálogo, cidadão-representante e sem sombra de dúvidas, cidadão–democracia. A representação pode ser vista como assim pode ser entendido, para casos de Estados Nacionais vastos e com abrangência política interna complexa devido ao seu tamanho, como meio de atingir a igualdade, mesmo que não plena, mas de modo significativo em relação a realidade da localidade. O embrião para a democratização dos Estados Nacionais está em regiões onde já se tinha o poder legislativo que representavam

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interesses diversos das mais variadas camadas da sociedade. Tais órgãos legislativos já não eram tão democráticos. Os que defendem a reforma dessa ala democrática buscaram torná-la ainda mais representativa por meio do alargamento das garantias de liberdade e a criação de sistemas eleitorais que dariam uma segurança jurídica maior para a escolha dos membros do legislativo (DHAL, Robert. 2012). Com a idéia de igualdade através do sistema representativo a partir da transformação da Cidade-Estado para o Estado Nacional, foi que surgiu a necessidade de a legislação ser sancionada pelos representantes (democracia em larga escala) e não por meio de assembléia cidadã (menor escala). Para aplicar a lógica da igualdade, a assembléia dos cidadãos precisou ser substituída pelos governos representativos. A democracia em grande escala requer instituições da poliarquia e essas instituições políticas possuem direitos políticos primários. Essa ampliação na escala preocupa quanto ao exercício de criação e manutenção de direitos, como forma de participar da vida política. Os direitos individuais visam nesse sentido assegurar a liberdade pessoal que muitas vezes não é oferecida pela participação. Muitas vezes não oferece em virtude do aumento vertiginoso da escala democrática. A poliarquia está associada à sociedade com o alto desenvolvimento dos indicadores sociais como o crescimento da renda per capta, expectativa de vida, crescimento econômico e de produção, migração do campo para a cidade. O que põe em questionamento quanto à democracia representativa é num problema que hoje abarca boa parte do mundo só que principalmente nos países emergentes, que é a corrupção. Isso é a conseqüência de se agir em detrimento de interesses pessoais e não da coletividade, tal qual previamente estabelecido. 3. DEMOCRACIA PARTICIPATIVA. Democracia participativa é o modelo no qual o poder é exercido com a participação popular no tocante a tomada de decisões políticas. A crise moral e os questionamentos quanto a segurança do sistema representativo faz com que isso abra reflexão sobre a implementação de um sistema de participação. É sem duvidas um meio bastante seguro para que grupos que se vêem excluídos, de requerem sua participação através de instrumentos de participação como os conselhos de políticas públicas e o Orçamento Participativo por exemplo, que nas ultimas duas décadas tem se mostrado ferramentas importantes e com resultados louváveis. A democracia participativa é uma forma de democratizar a democracia, reascendendo o sentimento de cidadania, quando se trata da busca de direitos e garantias políticas. É uma forma de tornar a política acessível, tirando-a de dentro dos palácios e dos gabinetes, despersonificando-a, tirando o caráter personalíssimo quando ela é associada a figura de apenas uma pessoa, um líder, um governante como aconteceu na Alemanha com o Nazismo, na Itália com o Facismo e acontece hoje com a Coréia do Norte com o Comunismo, já que a política deve ser tida como um instrumento integralizador e deflagração da luta pelo direito de ter direitos. Se o povo é soberano e democracia significa “poder do povo”, então por que não tirar essas amarras e linhas que prendem e delimitam esse poder que foi concedido ao povo? É algo no mínimo contraditório dizer que o povo é livre para pensar, debater e se expressar, quando na verdade essa liberdade política tem se limitado apenas ao voto, a escolha de seus representantes. Tem que se pensar em uma política participativa não para ser exercida em determinado lapso de tempo, mas proporcionar meios para que seu ciclo de duração seja algo sem prazo de validade e que possa dar condições em vez de impor condições ao seu exercício (GUIMARÃES, Juarez Rocha. 2009). A liberdade é uma das maiores características da república. É a marca de um Estado democrático de direito, o que leva a crer que democracia só é um elemento presente em Estados Republicanos o que seria

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um equívoco, já que Estados como a Inglaterra, por exemplo, são democráticos mas o sistema de governo é a Monarquia Parlamentarista (ARAÚJO, Cícero. 2009). Um dos grandes problemas enfrentados pela democracia participativa está justamente nas criticas feitas pelo liberalismo política. O pensamento liberal em sua essência tem uma tendência ao individualismo. Essa redução do pensamento coletivo e a maximização do individualismo a partir dessa idéia, faz uma conexão entre cidadania e mercado, ode ser cidadão quer dizer uma integração do capitalismo liberal, uma relação de consumidor-produto vitimando assim como o voto, a própria cidadania à conserva e a mercantilização. 4. DEMOCRACIA NO BRASIL. O Brasil ao longo de sua história presenciou ciclos da sua democracia. Não alongando-se ao contexto histórico, mas sem deixar de citá-los, destacam-se os seguintes: após 1889 (Proclamação da República); 1930, apesar do forte conservadorismo do Estado; De 1934 até 1937 durante o governo constitucional de Vargas; de 1937 até 1945 o Brasil viveu sua primeira ditadura, neste que foi fim do primeiro governo de Vargas; Em 1946 houve a retomada do Estado democrático de direito com a instituição da Constituição de 1946; Em 1964 foi instaurado o Governo Militar com o golpe a Jango e a constituição de 1946 perdeu sua eficácia. Por fim, nos final dos anos 80 a democracia foi restabelecida com a promulgação da Constituição de 1988. O Brasil vive uma auto-formação e não uma formação. A primeira mobilização popular em prol da formação e que precedeu o momento que se vive hoje, foi justamente a defesa da constituição da nação e a defesa da soberania em oposição ao imperialismo internacional e até mesmo nacional, com as grandes oligarquias comerciais. Foi a partir daí que surgiu a luta pela reforma agrária através das ligas camponesas e também foi o berço da luta proposta pelo movimento estudantil por meio da UNE (União Nacional dos Estudantes), (GUIMARÃES, Juarez Rocha. 2009)... A partir de meados da década de 1970, surgiu a Teologia da Libertação, com Alceu Amoroso e a Liderança Profética com Dom Hélder Câmara; O Movimento Ecológico com Chico Mendes e Marina Silva e o Movimento Feminista; todos esses movimentos incentivaram uma maturação democrática e por fim na década de 80, surgiu algo inovador, símbolo de vanguarda na política de participação e inclusão, o Orçamento Participativo. Este ciclo de formação foi marcado por diversos momentos que destacaram a mobilização institucional: Diretas Já; Assembléia Constituinte; campanha pelo impeachment de Collor e a eleição do ex-presidente Lula em 2002. O socialismo democrático foi e é incentivado pelo PT (Partido dos Trabalhadores) em sua essência. Este criticou o Stanlismo e resistiu a crise enfrentada pela extinta URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas). Rompeu paradigmas como a idéia dualística de Estado/Sociedade e movimentos sociais/institucionalidade. Em suma, o Brasil provou de todos os lados, desde a ascensão à queda do Estado Democrático de Direito. Graças a inúmeros fatores desde 1988 até os dias atuais, a democracia brasileira tem experimentado sua plenitude. Tendo ficado inserida dentro de governos com tendências neoliberais ou mais sociais (populistas), com a garantia da liberdade de expressão e política. Cabe a cada cidadão exercê-lo de maneira a satisfazer suas necessidades e mais ainda as necessidades e mais ainda as necessidades apresentadas pelas demandas coletivas. 5. INSTRUMENTOS DE PARTICIPAÇÃO SOCIAL E SEU PAPEL COMO GARANTIDORES DAS POLÍTICAS SOCIAIS. Discorrido no tópico anterior sobre a Teoria Democrática, em especial a Democracia Participativa. É necessário comentar sobre o papel que a participação tem na implantação de políticas públicas e os seus mecanismos de efetivação.

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A participação promovida pela democracia participativa é uma importante maneira de ligar de maneira direta a população ao poder público sem que haja hierarquizações, onde as duas partes assumem um compromisso entre si, onde uma parte executa e a outra fiscaliza. Além disso à partir do momento em que a população se insere na política, principalmente à cerca do debate sobre a implantação dessas políticas, o poder público cumpre seu papel de oferecer um serviço de qualidade. A democracia não só permite o cidadão ser realmente um ser político, mas também critico. A critica faz parte da busca por um serviço eficiente, torna a política acessível e torna os serviços públicos essenciais acessíveis ao ponto de muitas vezes até as camadas mais altas serem beneficiadas por eles de alguma forma. E inúmeros são os mecanismos pelos quais se efetivam a participação. Quatro serão brevemente comentados aqui, como o Orçamento Participativo, as Audiências públicas, o Plebiscito e o Referendo. Desses quatro instrumentos os que são mais utilizados são o O.P e a audiências publicas.

5.1 ORÇAMENTO PARTICIPATIVO. [...] Quando os ciclos do mundo estão tendo a mover-se [...] Isso não é algo restrito ao ocidente e nem algo que a china poderá evitar. Eu sei que em menos de 100 anos todos os cinco continentes estarão sob o governo do povo e que a nossa China não irá permanecer imune [a essa tendência][...]. (CHIA, Ling Chi, Apud. AVRITZER; Leonardo, 2002, p.1)

Antes de adentrar na historicidade do Orçamento Participativo, far-se-á uma breve analise do caminho da democracia até a criação desse mecanismo de participação. Entre meados e final do século XVIII, segundo Leonardo Avritzer, o sentido de democracia estava extremamente ligado ao conceito de soberania. Sobre isso ele fez a seguinte citação de o contrato social de Jean Jaques Rousseau: [...] a soberania não pode ser representada pela mesma razão que ela não pode ser alienada. [...] Os deputados eleitos pelo povo não são e não poderiam ser os seus representantes; eles são, unicamente os seus agentes. [...] Toda lei que o povo não ratificar pessoalmente é nula. [...] O povo inglês acredita ser livre. [...] Na verdade, ele está fortemente enganando; ele apenas é livre no dia da eleição dos seus representantes. Assim que os representantes são eleitos, o povo está novamente escravizado. (ROUSSEAU. Jean Jaques, Apud. AVRITZER; Leonardo, 2002, p.1)

Esse trecho foi uma analise que Rousseau à cerca do parlamento inglês. Ele coloca os políticos ali discutidos como de fato deveria ser, “agentes” da população, ou seja, um prestador de serviço à sociedade e quando ele fala da lei ser nula por não ter sido ratificada pela população, ele aponta a participação direta como forma necessária para a legitimação do processo de construção dessa. Vale ressaltar a falsa liberdade do povo inglês, quando ele fala que os cidadãos ingleses só são de fato livres no momento de eleger seus “representantes”, sendo assim escravos de um sistema político onde a liberdade tem um prazo de validade. Avançando décadas a frente, chega-se ao histórico na democracia na America Latina e no Brasil, tratada no primeiro capítulo, quando esta sofreu interrupções bruscas em virtude da imposição de ditaduras militares. Isso ocorreu devido ao fato de as elites tentarem boicotar as eleições amplamente democráticas até então, no Brasil (1964); na Argentina em (1966) e no Chile (1973). Nenhuma dessas interrupções da democracia,obtiveram apoio da população. No Brasil, mais precisamente o período militar, foi marcado pela forte desigualdade em nível local. As grandes cidades cresceram de forma assustadora. Esse aspecto da desigualdade se refletiu principalmente no aspecto social. O processo de modernização da economia brasileira não modernizou as condições de

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sobrevivência da maioria da população, principalmente do interior do Brasil. Essa disparidade entre a condição desigual da população não se limitava apenas à condição que pode-se chamar de Poder de Paridade de Compra ou PPP, que mede a capacidade da população de adquirir bens materiais duráveis ou não. Ela está expressa principalmente no campo das políticas públicas. O crescimento desordenado das grandes centros urbanos não fez com que crescesse também o nível de organização da administração publica e por conseqüência os serviços públicos torram-se críticos. Isso se deveu a dois aspectos: a falta de organização da população e o clientelismo político já explicado nos capítulos anteriores, que tiveram sérias conseqüências diante da distribuição dos bens públicos. A participação limitada ou quase que escassa da população através das associações políticas. E nesse contexto da falta de organização populacional, da má distribuição de recursos públicos, da falta de aplicabilidade de serviços púbicos básicos onde eram necessárias que surgiu uma inovação no campo social, o orçamento participativo. O orçamento participativo surgiu no final da década de 80 (1989), na cidade de Porto Alegre na gestão do prefeito Olivio Dutra (PT). Leonardo Avritzer citou quatro etapas que levaram a constituição do Orçamento participativo que foram as seguintes: o receio dos movimentos comunitários com o manuseio do erário público e a construção do orçamento em nível local; a importância da participação atribuída pelo PT; a descentralização proposta pelas secretarias de governo, ao incentivarem que a população atuasse de formar direta na política e o fato de se propor a centralização das formas de participação no Conselho de Relações com a Comunidade (CRC), (AVRITZER. Leonardo, 2002). Segundo o autor ainda todo o processo de instituição do programa como método de deliberação está associado a outros dois aspectos, como a criação de novos aspectos culturais dentro das comunidades e também o fato de a sociedade brasileira ter reincorporado a noção de cidadania e assim colocá-la na constituição por meio da participação nas associações. Foi um passo inovador para a implementação do novo modelo institucional. Ao analisar os precedentes à implementação do Orçamento Participativo, Boaventura de Souza Santos afirma que a globalização provocou e provoca um aumento acentuado da exclusão social, isso devido ao fato de está cada vez mais difundido na sociedade o pensamento individualista, principalmente quando se trata da corrida comercial provocada pelo capitalismo mal distribuído e minimamente democrático (DE SOUZA SANTOS. Boaventura, 2003) Esse descredenciamento desses grupos exclusos diante da globalização, provocou e provoca o surgimento de movimentos sociais de caráter democrático-inclusivo que visou a participação como forma de inclusão não só política mas social principalmente. Essas políticas de participação são amplamente combatidas pela política liberal, propagada pela globalização. Segundo o autor ainda, desde a redemocratização do Brasil, o poder municipal é dividido entre a prefeitura e a câmara de vereadores e a esta ultima é dada a competência de aprovar o orçamento do município. Ele buscou romper com os vínculos patrimonialistas e por que não paternalistas das políticas públicas. Fala-se paternalista por essas políticas públicas serem planejadas e executadas pelo Estado e no caso discutido aqui, pelo executivo municipal, junto com o legislativo, ampliando a participação da população nas fases de preparação, planejamento, execução e fiscalização dos recursos públicos, definindo quais as áreas que serão prioridades para a aplicação desses recursos. Denise Vitale associou a necessidade de implementação do Orçamento Participativo, as limitações que são intensificadas pelos problemas enfrentados dentro do sistema eleitoral atual, principalmente no âmbito municipal, onde muitas vezes a escassez de recursos e a pratica clientelista é intensificado, onde há dificuldade de coalizão política. Ele promove ainda segundo a autora, a abertura sobre a discussão sobre o orçamento e democratizar a utilização de recursos públicos, criando o que ela chama de “dupla democracia” (VITALE. Denise, 2004).

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Voltando a Boaventura, este colocou o Orçamento Participativo como ponte para uma nova roupagem para a Teoria Democrática, instaurando-o como base para uma nova forma organizacional da administração público-democrática e como um novo modelo de redistribuição dos recursos públicos (DE SOUZA SANTOS. Boaventura, 2003). O O.P segundo o autor ainda, consiste ainda em três instituições: uma que abarca a unidade administrativa do executivo municipal e que é responsável pelo debate com os cidadãos. As unidades são o Gabinete de Planejamento (GAPLAN); a coordenação de Relações com a Comunidade (CRC); as Assessorias de Planejamento (ASSEPLAS); os Fóruns das Assessorias Comunitárias (FASCOM); os Coordenadores Regionais do Orçamento Participativo (CROP’S) e as Coordenações Temáticas (CT’s). Destas, as duas mais importantes é a CRC e a GAPLAN. O segundo tipo de instituições são as organizações comunitárias que possuem autonomia. Nelas e através delas são feitas as escolhas das prioridades. É considerado assim, em virtude do partilhamento do poder entre a população e o poder público, um modelo de co-gestão, onde há a divisão de responsabilidades e nenhuma decisão é tomada unilateralmente nas de forma conjuntam dando desta forma credibilidade ao próprio governo já que a população tem a oportunidade de acompanhar a aplicabilidade do recurso. 5.2 AUDIÊNCIAS PÚBLICAS.

Instrumento que assim como o Orçamento Participativo busca manter o diálogo entre os mais diversos atores sociais. Além de buscar solucionar as carências da população, ela também serve para que se colham dados sobre certos fatos ou demandas. Para que as audiências publicas ocorram de maneira organizada e democrática, devem ser determinadas diretrizes que busquem disciplinar esse contato entre população e governo. Geralmente as audiências publicas ocorrem principalmente nas câmaras de vereadores municipais, onde os vereadores convocam a população para debater medidas e propostas de programas de melhorias e solução de problemas da cidade, de maneira que abarquem a cidade como um todo e não apenas determinada parcela da população. O Ministério Público pode de acordo com a Lei 8.625/93, inciso IV, propor audiências públicas. Como fiscal da lei e garantidor do cumprimentos destas, é de bastante relevância esse ativismo, suprindo desta forma a lacuna deixada pelo executivo e pelo legislativo. Segundo o autor ainda, dentro da legislação, ela pode ser encontrada no artigo 58, § 2°, inciso II da CF/88 onde as comissões do Congresso Nacional podem às propor. Lembrando que apenas orgãos públicos podem propor audiências publicas. 5.3 PLEBISCITO E REFERENDO.

Plebiscito trata-se da consulta prévia feita à população sobre determinada proposição. Tem origem na Roma Antiga, mais precisamente à partir dos Tribunais da Plebi, onde os plebeus exerciam seu direito político e mais que isso, de participação, onde eles decidem sobre questões de seu interesse. O plebiscito foi instrumento no Brasil pela primeira vez na CF/37. Na Carta Constitucional de 1946, este instituto só seria utilizado para quando houvesse a proposta de incorporação, subdivisão ou desmembramento de algum Estado. A primeira vez que o plebiscito foi utilizado em nível federal, foi em 1963 para decidir quanto ao sistema de governo, se presidencialista ou parlamentarista. EM 1967 com o curso da regime militar, todas as formas de participação social foram extintas. Na CF/88, o plebiscito está disposto em quatro artigos: 2°, 14°, 187° e 49°. Além disso, em 1998 foi editada a Lei 9.709/98 que visou regulamentar todas as formas de participação já presentes na CF.

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Já quanto ao referendo, este se trata de uma consulta onde a população aprova ou não determinado projeto de lei. Ele permite que a população atue como se do legislativo fosse. É de fato uma das formas mais claras do quão a democracia participativa e a representativa conseguem se aliar, sem que um interfira na autonomia da outra. Ele entrou na legislação brasileira apenas na CF/88 e assim como o plebiscito, também está regulado na Lei 9.709/98. O plebiscito e o referendo são aprovados ou rejeitados por quórum de maioria simples. Toda a regulamentação administrativa de ambos os institutos cabe a justiça eleitoral. CONCLUSÃO O presente estudo buscou apresentar de forma ampla a Teoria Democrática, em especial a Democracia Participativa e os seus principais mecanismos de concretização, como o Orçamento Participativo, as Audiências Publicas, o Plebiscito e o Referendo. E não só isso, trouxe a discussão sobre instrumentos de Participação social e seu papel como garantidores das politicas sociais. Percebe-se que além de todos os mecanismos garantirem e alguma forma, conquistas significativas no campo social, ele também possibilita uma conquista acima de tudo política, graças a relação direta criada entre o poder publico e a sociedade, permitindo que haja desta forma estabilidade politica por meio de uma relação de reciprocidade entre ambas as partes. Isto tudo sem a carcaça da hierarquia, onde o Estado está acima e a população logo abaixo, mas de maneira horizontal. A democracia vislumbra tornar também, ainda que não esteja expressa esta ideia, o cidadão como um ser dotado de senso crítico, o que faz dele um fiel fiscalizador do serviço publico prestado ao meio em que vive. Esse tom de critica que é permitido a ele e o papel de fiscal que lhe é concedido, tem o intuito de que ele analise o serviço que lhe é prestado não só de forma quantitativa mas sobretudo qualitativa. Observou-se que o mais eficiente dos três instrumentos é o Orçamento Participativo. Apesar de as audiências, do Plebiscito e do Referendo terem desempenhado papeias importantes ao longo da historia da democracia brasileira, pincipalmente pós-regime militar, ele é o que trouxe os melhores resultados e abarcou as maiores discussões a cerca das necessidades da sociedade. Ele permitiu uma melhor canalização de recursos para todas as politicas sociais básicas – saúde, educação e segurança – e permite uma economia de recursos de certa forma significativa, já que estes são bem direcionados. Em um país como o Brasil, onde a democracia sofreu inúmeros atropelos e interrupções que deixaram marcas e sequelas ao Brasil e onde esta é imatura principalmente devido a falta de maturidade politica de maioria da população, se faz necessário o incentivo principalmente por parte do poder publico de implementação de politicas participativas, onde a população se sinta protagonista e como é constitucionalmente garantido, que sua vontade se torne soberana na politica nacional não tão somente pelo voto, que é a maior característica de um Estado Democrático de Direito. REFERENCIAS ABU-EL-HAJ, Jawad. Robert Dahl e o dilema da igualdade na democracia moderna. 2008. AVRITZER, Leonardo. Modelos de Deliberação Democrática: uma análise do orçamento participativo no Brasil. Disponivel em: http://www.plataformademocratica.org/Publicacoes/12479.pdf. Acesso em: 17 jul. 2015. ARAÚJO, Cícero. Republica, participação e democracia. In: AVRITZER, Leonardo. Experiências nacionais de participação social. São Paulo: Cortez Editora, 2009.

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(IN)CONSTITUCIONALIDADE NA ADOÇÃO DO INSTITUTO DA CONTRATAÇÃO INTEGRADA NOS CONTRATOS DA INFRAERO Marta Rodrigues de Oliveira Graduanda em Direito pela Faculdade ASCES. Bolsista do Programa de Iniciação Científica ASCES – INICIA. Integrante do Grupo de Pesquisa “Cidadania e Segurança Pública na Sociedade do/de risco”. Estagiária do Tribunal Regional do Trabalho da 6ª Região. E-mail: [email protected] Roberta Cruz da Silva (orientadora) Bacharela e Mestre em Direito, pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Professora de Direito Administrativo e de Prática Constitucional-Administrativa da Faculdade ASCES; da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP), do Centro Universitário de João Pessoa (UNIPÊ) e das pós-graduações da Faculdade ASCES; da ESMATRA/PE e do Complexo de Ensino Renato Saraiva (CERS-Recife). Advogada

SUMÁRIO: Introdução; 1. Natureza Jurídica do Regime Diferenciado de Contratações; 2. Regimes de execução contratual e (in)constitucionalidade da contratação integrada; 3. Adoção da contratação integrada pela Infraero; Conclusão; Referências.

INTRODUÇÃO A partir do ano de 2011, em meio a muitas discussões e polêmicas, a Administração Pública passou a contar com mais uma modalidade licitatória: trata-se do Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC), criado para atender à necessidade de desburocratização e eficiência do serviço público, bem como às especificidades de grandes eventos sediados no Brasil, a exemplo da Copa do Mundo Fifa 2014 e Jogos Olímpicos e Paralímpicos de 2016. A criação desse regime atendia um objetivo claro: agilizar e viabilizar as obras necessárias aos citados eventos esportivos. Nesse sentido, preleciona Heinen (2015, p. 10): Então, como dito, a responsabilidade em sediar eventos de repercussão mundial fez com que se repensasse as formas de contratação públicas tradicionais, ao ponto de se concluir pela imprescritibilidade em se modificar o regime licitatório vigente, apresentando-se outro modelo, que foca em trazer outro panorama normativo às contratações ligadas aos mencionados eventos esportivos.

A peculiaridade é que este estatuto conta com um conjunto de regras bem específicas e diversas das já estabelecidas pela Lei Geral de Licitações e Contratos (Lei nº 8.666/1993), e acredita-se que muitas dessas inovações violam os princípios da moralidade, impessoalidade e publicidade, todos previstos na Constituição Federal de 1988 e de obediência obrigatória por parte da Administração Pública. Por tais motivos, o RDC foi objeto de ações de controle de constitucionalidade1. 1  Tão logo entrou em vigor, a Lei nº 12.462/2011 foi objeto de duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade. A primeira (ADI 4645), ajuizada pelos partidos políticos PSDB, DEM e PPS. A segunda (ADI 4655), proposta pelo procurador-geral da República. Até a data de finalização deste trabalho, ambas pendiam de julgamento perante o Supremo Tribunal Federal.

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O regime diferenciado de contratações, conforme preceitua o art. 1º, § 1º, da Lei nº 12.462/2011, objetiva ampliar a eficiência nas contratações públicas e a competitividade entre os licitantes; promover a troca de experiências e tecnologias e o melhor custo-benefício; incentivar a inovação tecnológica; assegurar tratamento isonômico entre os licitantes e selecionar a proposta mais vantajosa para o poder público. Inicialmente, o RDC destinava-se às licitações e contratos de eventos esportivos. Todavia, a Lei nº 12.462/2011 foi, por diversas vezes, objeto de alterações legislativas, e atualmente, seu campo de incidência é bem maior, de modo que, não mais se constitui um regime jurídico transitório e casuístico (HEINEN, 2015, p. 10). Diante da amplitude de seu objeto, cogita-se a possibilidade de que o RDC substitua a Lei Geral de Licitações e Contratos. Todavia, deve-se levar em consideração que a lei instituidora do regime diferenciado de contratações não foi idealizada para todo e qualquer tipo de licitação. Assim, Heinen (2015, p. 21) enfatiza que o texto original do RDC não se adapta a qualquer tipo de licitação, haja vista ter sido idealizado para aquisição de obras ou de serviços complexos, sendo de pouca adaptação à compra de objetos simples. Destarte, se, de fato, o regime diferenciado alcançar os resultados para o qual foi criado, a saber, mais eficiência nas contratações, melhores propostas, redução da improbidade, da morosidade e dos custos nos procedimentos licitatórios, ele se tornará um forte candidato para substituição da atual Lei Geral de Licitações, desde que, no entanto, se procedam com as alterações e complementações que se fizerem necessárias para tornar o RDC um estatuto mais abrangente. 1. NATUREZA JURÍDICA DO REGIME DIFERENCIADO DE CONTRATAÇÕES. Muito já se discutiu sobre a natureza jurídica do RDC. Para entender o porquê da discussão, é imprescindível uma análise sobre a repartição de competência legislativa na estrutura federativa brasileira, assim como a diferença entre lei federal e lei nacional. O art. 22 da Constituição Federal de 1988 congrega o rol de competências privativas da União, entre as quais, destaca-se o inciso XXVII, o qual atribui à União a competência para o estabelecimento de normas gerais sobre licitações e contratos. Em que pese a controvérsia, da leitura do referido inciso conclui-se que a competência privativa da União se restringe ao estabelecimento de normas gerais, cabendo aos Estados, independentemente de autorização por meio de Lei Complementar, a edição de normas específicas sobre licitações e contratos. Assim, em relação à matéria de licitações e contratos, a União só pode legislar de modo a vincular todos os entes federados no estabelecimento de normas de caráter geral. Daí decorre a importância de conceituar lei federal e lei nacional. Conforme assevera Agra (2012, p. 527), a lei nacional disciplina os interesses de todas as entidades federativas e, por isso, deve ter como requisitos a generalidade e a abrangência de todos os entes federativos. Desta forma, conclui o autor, se a lei apenas causar efeitos no Distrito Federal ou em apenas um estado, não deve ser considerada nacional. Já a lei federal se dirige exclusivamente aos órgãos e entidades que pertencem à União. Ainda na esteira de Agra (2012, p. 527), conclui-se que a lei nacional representa uma limitação à autonomia legislativa dos demais entes. Por outro lado, essa medida se justifica diante da necessidade de disciplinamento uniforme de matérias, que, devido a sua relevância, deve ser uniforme para todos os entes que compõem a Federação. Assim, devido as suas especificidades, a lei que disciplina o RDC não é considerada por alguns autores como norma de caráter geral. Como consequência, estaria ela maculada por vício de inconstitucionalidade, uma vez que, enquanto lei específica e federal, não poderia a mesma contrariar os dispositivos da Lei nº 8.666/1993 e apenas poderia ser dirigida à Administração Federal (CORRALO; CARDOSO, 2015, p. 19). Heinen (2015, p. 5), dissertando sobre o assunto, escreve:

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A Lei nº 12.461/11 não foi clara em estabelecer a natureza jurídica das regras do RDC. Não há dúvidas que foi estabelecida uma nova modalidade licitatória, na linha do que já dispunha a Lei nº 8.666/93 – e suas várias espécies de procedimentos licitatórios (concorrência, tomada de preços, convite, concurso, leilão e registro de preços) e a Lei nº 10.520/02 (que trata do rito de pregão). A questão é definir quais os artigos tratariam de normas gerais e quais deles seriam afetos somente ao ente federado União. Enfim, quais normas seriam de caráter nacional, e quais delas teriam a natureza de normas federais (grifos no original).

Neste sentido, conclui-se, embora não se negue que a Lei nº 12.462/2011 possui alguns dispositivos que apresentam um caráter mais específico, reitera-se que o referido diploma legislativo criou uma nova modalidade licitatória, o que, por óbvio, só o pode ser feito mediante o exercício da competência privativa de estabelecer normas gerais sobre licitações e contratos conferida privativamente à União. Cabe ao Supremo Tribunal Federal, então, a tarefa de distinguir quais dispositivos são gerais (aplicáveis, portanto, à União, estados, Distrito Federal e municípios) e quais são específicos (aplicáveis apenas à União). Na verdade, existe uma grande discussão doutrinária sobre o que vem a ser considerado ‘norma geral’ em tema de licitações e contratos. Aliás, a própria Lei nº 8.666/1993, contêm em seu bojo dispositivos que já foram considerados específicos pelo Supremo Tribunal Federal. Conforme ensina Oliveira (2015, p. 64) este Tribunal, em decisão cautelar proferida nos autos da ADI 927 MC/RS, concedeu interpretação conforme a Constituição ao art. 17, I, “b”, e II, “b”, da Lei nº 8.666/1993, para esclarecer que a vedação insculpida nos referidos dispositivos tem aplicação apenas no âmbito da União Federal. O mesmo entendimento foi aplicado, no caso, em relação ao art. 17, I, “c”, e § 1º da mesma lei. Nesta discussão, esclarecedoras são as palavras de Benjamin (2013, p. 298): Não se olvida que, no mais das vezes, é árdua a tarefa de distinguir o que é norma geral ou não em determinado diploma legislativo. A questão foi, inclusive, judicializada, quando o Supremo Tribunal Federal afastou o caráter geral de alguns dispositivos da Lei nº 8.666/93, em que pese seu art. 1º considerar como normas gerais todas as suas disposições. Nas palavras de Marçal Justen Filho: “a fórmula ‘normas gerais’, utilizada pela Constituição no tocante à licitação e contrato administrativo, não permite uma interpretação de natureza ‘aritmética’. Ou seja, não é possível formular uma solução precisa e exata destinada a identificar critérios abstratos e gerais para diferenciar normas gerais de não gerais”.

Conclui-se que, embora contenha dispositivos que futuramente possam ser declarados específicos, a lei que instituiu o RDC trata-se de verdadeira norma nacional, que vincula tanto a União quanto os Estados, o Distrito Federal e os Municípios. 2. REGIMES DE EXECUÇÃO CONTRATUAL E (IN)CONSTITUCIONALIDADE DA CONTRATAÇÃO INTEGRADA. Para a devida compreensão dos diversos regimes de execução previstos nas Leis 8.666/1993 e 12.462/2011, é preciso entender o que é regime de execução. Assim, Altounian e Cavalcante (2014, p. 75) conceituam que: Regime de execução é a maneira pela qual a execução do projeto será aferida, medida e paga. Seu conceito visa ao estabelecimento da distribuição de responsabilidades e riscos entre os contratantes em face do que vier a ser encontrado no decorrer do empreendimento. Em regra, a discussão inicial está

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na avaliação da opção pela qual os serviços realizados serão remunerados: por preço certo e total (empreitada global) ou pelas quantidades efetivamente executadas e aferidas (empreitada unitária).

O RDC contempla cinco modalidades de regime de execução: empreitada por preço unitário; empreitada por preço global; contratação por tarefa; empreitada integral e contratação integrada. Os quatros primeiros são regimes já previstos na Lei nº 8.666/1993 – Lei Geral de Licitações e Contratos. A contratação integrada, por sua vez, consiste em uma das maiores inovações do RDC, embora não se constitua novidade no ordenamento jurídico, pois se trata de forma de execução já prevista no regime simplificado de licitação da empresa pública Petróleo Brasileiro S.A. – Petrobrás, instituído pelo Decreto nº 2.745/1998. Em se tratando de obras e serviços de engenharia, a Lei nº 12.462/2011 estabeleceu uma preferência entre os regimes empreitada por preço global, empreitada integral e contratação integrada. Apenas se a Administração concluir pela inviabilidade dos referidos regimes de execução, poderá se utilizar da empreitada por preço unitário ou da contratação por tarefa, através de ato devidamente fundamentado. Heinen (2015, p. 53) assim define os diferentes regimes de execução: Na empreitada por preço global, contrata-se a obra mediante pagamento de preço certo e total. O pagamento pode ser feito ao final, quando do acabamento da obra ou por meio de pagamentos periódicos, na medida em que a ela se desenvolve, ou seja, no momento em que certas etapas são concluídas, de acordo com o cronograma físico-financeiro. A sua utilização é recomendada quando não se puder definir, com precisão, os quantitativos de serviço a serem empregados no objeto contratual. [...] A empreitada por preço unitário estabelece um regime de licitação no qual a execução da obra ou do serviço é medida por unidade, ou seja, os pagamentos são efetuados a partir do momento em que se concluem unidades do projeto total, de acordo com o cronograma físico-financeiro. [...] Já a empreitada integral impõe que o pagamento se dê somente quando a obra for entregue, e, principalmente, em condições de funcionar plenamente. A execução compreende todas as tarefas necessárias para a entrega do produto acabado e em pleno funcionamento, tudo isso a cargo da contratada. Esta deverá garantir, além disso, a adequada segurança e os requisitos técnicos do objeto licitado. Enfim, não basta entregar a obra, é preciso que ela funcione plenamente. A contratação por tarefa é estabelecida no momento em que se contratam serviços, normalmente de pequena monta, com a entrega ou não de materiais, mediante pagamento de preço certo (grifos no original).

Percebe-se claramente que os diferentes regimes não se confundem, embora se notem algumas semelhanças entre eles. Para Dal Pozzo (2014, p. 75), a contratação por tarefa geralmente é utilizada em contratações de mão de obras para pequenos trabalhos, com ou sem fornecimentos de materiais, sempre ajustada por preço certo. Contudo, como observa Carvalho Filho (2014, p. 184), a contratação por tarefa também se constitui contrato de empreitada, já que o licitante vencedor procede com a execução do objeto contratado por sua conta e risco. O que realmente diferencia esse regime de execução dos demais é o fato de que ele é apropriado para pequenas obras e serviços. Dissertando sobre o tema, Diniz (2013) esclarece que as empreitadas apresentam em comum o fato de que o licitante vencedor executa a obra ou serviço por preço determinado, por sua conta e risco. Diferem-se entre si, basicamente, a partir de dois aspectos fundamentais: forma de remuneração e encargos assumidos pelo contratado. Dal Pozzo (2014, p. 75) assevera que, na empreitada por preço global, o preço é acertado considerando o custo final da totalidade da obra ou do serviço, enquanto que, na empreitada por preço unitário, a

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contratação acontece mediante preço certo de unidades determinadas da obra, embora a escolha do licitante vencedor recaia sobre aquele que apresentar o menor preço global das unidades determinadas. Em relação aos encargos assumidos pelo vencedor do certame, sabe-se que, na empreitada por preço global, ele é muito maior. Neste particular, cabe considerar as observações de Justen Filho (2014, p. 162), quando aduz: Outra questão problemática envolve o risco assumido pelo particular. Algumas vezes, pretende-se que a empreitada global imporia ao particular o dever de realizar o objeto, de modo integral, arcando com todas as variações possíveis. Vale dizer, seriam atribuídos ao contratado os riscos por eventuais eventos (sic) supervenientes, que pudessem elevar custos ou importar ônus imprevistos inicialmente. Essa concepção é equivocada, traduz enorme risco para a Administração e infringe os princípios fundamentais da licitação.

Não se pode desconsiderar, no entanto, que, na empreitada global, o risco assumido pelo vencedor da licitação é muito maior se comparado com licitações em que o regime de execução é o da empreitada por preço unitário. É por isso que a assunção dos riscos é embutida no valor das propostas oferecidas pelos licitantes. Dal Pozzo (2014, p. 74) ainda destaca que a empreitada por preço unitário constitui a mais comum das formas de execução de contratos, porém, tem sofrido fortes críticas por parte do Tribunal de Contas da União, tendo em vista propiciar a ocorrência do “jogo de planilhas”, medida fraudulenta que permite o superfaturamento de obras públicas. Nesse contexto, torna-se oportuno trazer à luz os ensinamentos de Heinen (2015, p. 111): Primeiramente, o “jogo de planilha” ou “jogo de preços” consiste em um artifício utilizado pelos interessados, tomando por base projetos básicos deficitários (v.g. que não prevêem os custos do objeto licitado com perfeição), ou lastreados em informações privilegiadas. Eles conseguem saber antecipadamente quais os objetos que terão sua quantidade acrescida, diminuída ou suprimido (sic) ao longo da execução da obra a ser licitada, a partir daí, eles manipulam os custos unitários de suas propostas, aumentando-os para itens que serão adicionados, e diminuindo para itens que serão subtraídos. No entanto, durante a execução do contrato, percebe-se que o custo barateia substancialmente justamente nos insumos que o licitante ofertou valores elevados.

A empreitada integral, por sua vez, muito se assemelha a empreitada global – haja vista contratar-se um empreendimento em sua integralidade. Difere-se desta, pois aqui o contratado entregará a obra em perfeitas condições estruturais e operacionais para imediato funcionamento. Já a contratação integrada, regime de execução previsto no RDC e cerne deste trabalho, se assemelha à empreitada integral, com a diferença que, naquele, a Administração Pública contratante não elabora o projeto básico, tarefa que caberá ao licitante vencedor. Assim, Saadi (2014, p. 92) esclarece que: Conceitualmente, a contratação integrada diz respeito ao regime de execução de avenças nas quais estão compreendidas, sob um mesmo instrumento, a elaboração e o desenvolvimento dos projetos básico e executivo, a execução de obras e serviços de engenharia, a montagem, a realização de testes, a pré-operação e todas as demais operações necessárias e suficientes para entrega final do objeto.

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Sabe-se que o projeto básico é considerado um instrumento muito relevante no contexto do planejamento das licitações públicas, e, ao que parece, o Poder Público está abdicando do seu dever de planejar o procedimento licitatório e a execução contratual. É por esse motivo que a contratação integrada tem sido tão criticada. Altounian e Cavalcante (2014, p. 75) assim definem projeto básico: O projeto básico é o documento que define o objeto a ser licitado e que garante igualdade de competição entre os licitantes. É por meio dele que todos os interessados em participar do certame terão subsídios para tomar as suas decisões, envolvendo o preenchimento dos requisitos de habilitação exigidos e os elementos a serem considerados na formação do seu preço.

Devido à relevância que é atribuída ao projeto básico, Campiteli (2006) explica que a falha na elaboração desta peça pode ocasionar prejuízos para o Poder Público, já que possibilita a ocorrência do já explicitado jogo de planilha. Para o autor a economicidade na execução das obras públicas está umbilicalmente atrelada à precisão do projeto básico que serviu de apoio para o certame, haja vista que falhas de projeto ocasionam o “jogo de planilhas”, que torna uma proposta com menor preço global falsamente mais vantajosa. Em se tratando de contratações de obras, além do projeto básico, também é exigida a elaboração do projeto executivo. Enquanto o projeto básico caracteriza a obra ou serviço de engenharia, o projeto executivo detalha as definições do projeto básico. Assim, pode-se concluir que “[...] em apertada síntese, a diferença entre o projeto básico e o executivo está no nível de detalhamento” (ALTOUNIAN; CAVALCANTE (2014, p. 87). Isto é, o projeto executivo é o desdobramento do projeto básico, no que se refere à metodologia de execução. Como a entidade licitante não poderá iniciar o procedimento licitatório despida de um instrumento que permita a devida individualização e caracterização do objeto a ser licitado, a Lei nº 12.462/2011 exigiu a elaboração prévia de anteprojeto de engenharia caso se adote a contratação integrada. Dal Pozzo (2014, p. 83) ensina que: [...] o legislador infraconstitucional estabeleceu que o instrumento convocatório deverá conter anteprojeto de engenharia que contemple os documentos técnicos destinados a possibilitar a caracterização da obra ou serviço, incluindo a demonstração e a justificativa do programa, as condições de solidez, segurança, durabilidade de prazo de entrega, estética do projeto arquitetônico e os parâmetros de adequação ao interesse público, economia na utilização, cuidados ambientais e acessibilidade (grifos no original).

Diante da vagueza dos conceitos utilizados, questiona-se até que ponto o anteprojeto de engenharia se distingue do projeto básico (HEINEN, 2015, p. 63). Neste aspecto, não se pode esquecer que o objetivo do legislador, ao instituir a contratação integrada, foi no sentido de diminuir as exigências quanto à definição e as especificações da forma de execução do objeto, destarte, “[...] o grau de detalhamento e precisão desse anteprojeto não será equiparável ao do projeto básico, mesmo porque, se assim o fosse, a inovação legislativa não teria razão de ser” (RESENDE, 2011, p. 47-48). É bem verdade que, não deverá a Administração Pública, ao se valer da contratação integrada, deixar de oferecer elementos suficientes para individualizar e caracterizar o objeto da licitação no anteprojeto de engenharia, sob pena de comprometer a lisura do certame e a factibilidade das propostas apresentadas. É com essa preocupação que Heinen (2015, p. 43) adverte que a entidade licitante é desafiada a elaborar um anteprojeto de engenharia que defina com nitidez e precisão o objeto da contratação. Por isso, o mesmo autor adverte que esse regime de execução reclama uma maior capacitação dos recursos humanos estatais.

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Tendo em conta tais preocupações, foram ajuizadas ações de controle de constitucionalidade em face da Lei nº 12.462/2011, nas quais a contratação integrada foi apontada como inconstitucional. Segundo a peça exordial da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.645, a contratação integrada viola o art. 37, caput da CF, especificamente os princípios da moralidade e isonomia, bem como ofende o princípio constitucional da licitação (inciso XXI), que preconiza pelo julgamento objetivo (GARCIA, 2015). No mesmo sentido, a petição inicial da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.655 aponta que a não elaboração do projeto básico pela entidade licitante viola condições de disputa, e também os princípios da competitividade, da isonomia e da impessoalidade, porque impediria o julgamento objetivo da licitação, o que pode ocasionar graves desvios de verbas públicas em razão da deficiência e da insuficiência do citado anteprojeto de engenharia (GARCIA, 2015). No entanto, como ensina Reisdorfer (2011), a contratação integrada constitui um modelo de execução inovador, que pode resultar em ganhos de eficiência para a entidade licitante, dada à qualificação técnica inerente aos concorrentes do certame que, na maioria dos casos, falece à Administração Pública. Além do mais, a contratação integrada consubstancia-se numa possível solução para que haja comunicação efetiva entre o projeto idealizado e a obra concluída, e isto porque o construtor vai participar da idealização e concepção genérica da obra. Corroborando com este pensamento, Heinen (2015, p. 41) assevera que: A lógica da contratação integrada reside no fato de se intentar obter ganho de eficiência no momento em que se transfere para o contratado o risco do projeto, e as consequências financeiras decorrentes da imperfeição dele. Nas obras e serviços de engenharia, tal negócio jurídico mostra-se inovador em relação à lei geral. Aqui, o Estado está entregando ao particular uma tarefa que tradicionalmente era sua, qual seja, a confecção do projeto básico (grifos no original).

O autor também destaca que o planejamento da contratação é uma das fases mais burocráticas da licitação. Como muitas vezes a Administração não tem o domínio técnico exigido, obras complexas acabam não sendo concluídas. Assim, com a utilização da contratação integrada, o Poder Público passará este ônus ao particular. É unanimidade entre os doutrinadores que falta à Administração Pública capacidade técnica suficiente para elaborar um projeto básico com o mínimo de qualificação e detalhamento que a lei exige, principalmente em se tratando de obras complexas. Este é o pensamento compartilhado por Fernandes (2012, p. 245), ao afirmar que a contratação integrada foi idealizada em face da dificuldade enfrentada pela Administração Pública na elaboração de projetos básicos, eis que, muitas vezes, os servidores públicos não possuem conhecimentos técnicos suficientes para produzir tais peças com o nível de detalhamento exigido pela lei e os órgãos de controle, o que gera para a entidade licitante o dever de aceitar alterações dos preços inicialmente pactuados e acarreta superfaturamento nas obras públicas. O Advogado Geral da União, quando citado para defender a constitucionalidade da Lei nº 12.462/2011, argumentou ser inócuo o entendimento de que apenas com a existência do projeto básico se teria requisitos para uma contratação impessoal. Com efeito, a própria Lei nº 12.462/2011 em seu §2º do art. 9º, contempla um rol de documentos técnicos que devem compor o anteprojeto e que visam permitir o julgamento objetivo das propostas (GARCIA, 2015). O que se pretende defender é que a elaboração do projeto básico pela entidade licitante, por si só, não garante o sucesso da licitação e da execução da obra. Na verdade, a contratação integrada foi idealizada justamente porque a Administração Pública não tem logrado sucesso nas licitações nas quais ela mesma elabora o projeto básico.

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É por esse motivo que Jurksaitis (2014), ao refletir sobre, aponta os seguintes questionamentos: “De que adianta um projeto básico que é completamente modificado uma vez vencida a licitação? E pior, com custos para a Administração? Assim, vale a pena apostar em outras soluções para melhorar o sistema. Uma delas é a contratação integrada.” Boselli (2013), por sua vez, contribui para a temática enfatizando que, no plano do dever ser, a contratação integrada não constitui afronta aos princípios constitucionais pertinentes à temática de licitações e contratos, mesmo não deixando de considerar que é imperioso que se implemente uma fiscalização eficiente para impedir que a prática desvirtue os conceitos dessa inovação legislativa. Pelas razões expostas, conclui-se que a contratação integrada não implica afronta aos princípios da moralidade, isonomia, competitividade, impessoalidade e julgamento objetivo. Trata-se de opção para que a Administração Pública concretize o princípio constitucional da eficiência e economicidade na seara licitatória. No entanto, não se pode negar que, embora se trata de metodologia constitucional, a contratação integrada pode encontrar problemas de operabilidade. Isso porque sua utilização demanda da própria Administração Pública habilidades conceituais e técnicas nunca antes exigidas em matéria de licitações e contratos. 3. ADOÇÃO DA CONTRATAÇÃO INTEGRADA PELA INFRAERO. De início cumpre destacar que o recorte deste trabalho recaiu sobre os contratos da Infraero já que esta empresa pública, desde a publicação da Lei nº 12.462/2011 estava autorizada a se utilizar do RDC para as licitações e contratos necessários à realização de obras de infraestrutura e de contratação de serviços para os aeroportos das capitais dos Estados da Federação distantes até 350 km das cidades sedes dos mundiais. A referida empresa pública realizou 106 procedimentos licitatórios sob a égide do RDC2, dos quais 74 foram homologados, o que corresponde a um percentual próximo a casa dos 70%, conforme sistematizado na tabela a seguir: SITUAÇÃO ATUAL:

RDC Eletrônico

RDC Presencial

TOTAL

Homologada

39

35

74

Revogada

01

02

03

Deserta

00

01

01

Fracassada

15

08

23

Em andamento

05

00

05

TOTAL:

60

46

106

Tabela 1: Total de Licitações da Infraero sob a égide do RDC A licitação RDC Presencial 013/DALC/SBCT/2012 foi a primeira e única licitação da Infraero sob o regime da contratação integrada que chegou à fase de adjudicação do seu objeto. O referido certame tinha como objeto o planejamento, gerenciamento e a execução integral de todas as fases do empreendimento de reforma e ampliação do terminal de passageiros, do sistema viário de acesso e obras complementares do Aeroporto Internacional Afonso Pena, em São José dos Pinhais/PR. Tal procedimento administrativo foi objeto de fiscalização em auditoria realizada pela Secretaria de Fiscalização de Obras Aeroportuárias e de Edificação – SecobEdif e foram constatadas diversas regularidades graves, a saber: 1) adoção de regime de execução contratual inadequado; 2) estimativa do custo total de 2 

Editais, minutas contratuais e orçamentos disponíveis em: https://www.infraero.gov.br. Pesquisa realizada em 19/03/2015.

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investimento deficiente; 3) restrição à competitividade da licitação decorrente de critérios inadequados de habilitação e julgamento; 4) critério de julgamento inadequado em licitação regida pelo RDC, e 5) frustração ao caráter competitivo do certame por violação ao princípio da isonomia entre os licitantes. A primeira discussão que se travou por ocasião da auditoria foi em relação à pertinência da contratação integrada para o objeto licitado. A auditoria fez suscitar uma reflexão sobre os objetos passíveis de adoção da contratação integrada. Isso porque embora se leve em consideração que a Lei nº 12.462/2011 trate a contratação como regime de adoção preferencial, é certo que a mesma lei traça hipóteses condicionantes para sua utilização. Desta feita, no Acórdão nº 1.510/2013 do TCU, ficou assente que não se pode conferir caráter ordinário a um regime que apenas se amolda a situações específicas e excepcionais, assim, considerando que a contratação integrada afasta uma das diretrizes do RDC que é o parcelamento do objeto, a excepcionalidade na sua utilização deve ser assegurada. Além do mais, destacou-se que a utilização desse regime de execução deve significar vantagens em termos técnico-econômicos, em detrimento dos outros regimes também tidos como preferenciais. Altounian e Cavalcante (2014, p. 289) explicam que foi o entendimento consubstanciado pelo TCU no referido acórdão que levou a Presidente da República a adotar a MP nº 630/2013, convertida na Lei nº 12.980/2014, que, entre outras medidas, acresceu ao texto da Lei nº 12.462/2011 as hipóteses condicionantes da contratação integrada, que não constavam da redação original do RDC, a saber: inovação tecnológica ou técnica; possibilidade de execução com diferentes metodologias; ou possibilidade de execução com tecnologias de domínio restrito no mercado.  Analisando a presença das justificativas técnicas e econômicas para a utilização da contratação integrada, o TCU concluiu que estas últimas não estavam presentes no caso concreto, o que poderia ensejar a ocorrência de prejuízo para o Ente Público. Já do ponto de vista técnico, entretanto, justificada estava a utilização da contratação integrada considerando a complexidade das obras e serviços a serem executados e a manutenção da operacionalidade do aeroporto. Outra justificativa utilizada pela Infraero para utilização da contratação integrada na referida licitação foi a necessidade de atendimento dos prazos em virtude dos compromissos assumidos com o Governo Federal por ocasião dos eventos esportivos. Todavia, é consabido que a falta de planejamento das obras públicas pode conduzir a contratações sem que o Poder Público tenha um balizamento mínimo daquilo que deseja ver executado, o que é muito prejudicial. A esse respeito, Motta e Bicalho (2012, p. 145) alertam para o efeito negativo que os “prazos políticos” podem gerar nos custos das obras públicas. Segundo os autores, os chamados “regimes de urgência” implicam um custo extra de, em média, 8% para os cofres públicos. Assim, a Corte de Contas refutou o argumento da Infraero ao reafirmar que o prazo para entrega de um empreendimento não pode figurar como justificativa para a escolha da contratação integrada. Outra irregularidade apontada pelo próprio Ministro Relator do acórdão no procedimento licitatório em análise diz respeito à ausência de matriz de riscos3. Para o Ministro Valmir Campelo o preço oferecido pelos licitantes em qualquer regime de execução é proporcional aos riscos assumidos, assim, a distribuição de responsabilidades de cada parte contratante se faz necessária, principalmente nos casos de adoção da contratação integrada, com vistas a assegurar maior estabilidade e segurança jurídica. A partir dos vários questionamentos levantados, a Corte de Contas observou que as irregularidades apontadas poderiam ensejar a responsabilização dos agentes e até a declaração de nulidade do procedimento licitatório. Entretanto, considerando que o objeto da licitação foi enquadrado como de alta complexidade, considerando, ainda, o fato de que a contratação integrada se trata de inovação jurídico-legal inserida em um 3  “A ‘matriz de risco’ pode ser definida como o instrumento disposto no edital e no contrato, definidor de responsabilidade das partes, em termos de ônus financeiro, decorrentes de fatos supervenientes à assinatura do ajuste que tenham potencial impacto no adimplemento do objeto”. (ALTOUNIAN; CAVALCANTE, 2014, p. 264).

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contexto de interpretações controvertidas e carente de jurisprudência daquela Corte, optou-se por admitir-se, naquele caso concreto, a contratação integrada, todavia, a Infraero foi aconselhada para não utilizar a referida metodologia contratual em obras comuns. Assim, reitera-se que o próprio Tribunal de Contas da União reconheceu que o instituto da contratação integrada está inserido em um contexto de interpretações controvertidas, motivo que destaca o papel da própria Corte de Contas para bem situar os gestores públicos no caminho da legalidade e no dever de bem aplicar o dinheiro público e a necessidade de se discutir e aprofundar os debates já existentes sobre a temática em tela. CONCLUSÃO A lei que instituiu o RDC trouxe consigo uma esperança de atribuir eficiência, efetividade e agilidade aos processos de contratações públicas. Entre os institutos consagrados pela nova lei destaca-se a contratação integrada, regime de execução de obras que, em linhas gerais, transfere para o particular contratado a tarefa de elaborar os projetos básicos e executivo, executar a obra em sua totalidade, realizar os testes pertinentes e entregá-la ao poder público em plenas condições de funcionamento. Indo ao encontro do que tem sido defendido pelos estudiosos da temática, a contratação integrada tem sido utilizada com parcimônia pela seara pública. Isso, todavia, não denota que o instituto é ineficiente. Ao contrário, trata-se de técnica inovadora que, se utilizada corretamente, poderá gerar benefícios para o Poder Público. Contudo, cuida-se de metodologia de utilização restrita, que exige a elaboração de um anteprojeto de engenharia que especifique o objeto licitado e defina de forma clara as responsabilidades do contratante por eventos imprevisíveis, e, ainda, deve ser justificada do ponto de vista técnico e econômico. Tais exigências reforçam que a Lei nº 12.462/11, ao instituir a contratação integrada, privilegiou os princípios da moralidade, impessoalidade e julgamento objetivo e, nesse aspecto, sua constitucionalidade deve ser reconhecida. Portanto, conclui-se que a contratação integrada está atrelada à busca pela eficiência nos processos de contratações públicas, pois foi idealizada como resposta ao planejamento falho/incompleto, especialmente em contratações de obras complexas. REFERÊNCIAS AGRA, Walber de Moura. Curso de direito constitucional. 7 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012. ALTOUNIAN, Cláudio Sarian; CAVALCANTE, Rafael Jardim. RDC e contratação integrada na prática: 250 questões fundamentais. Belo Horizonte: Fórum, 2014. BENJAMIN, Zymler. Direito administrativo e controle. 3 ed. Belo Horizonte: Fórum: 2013. BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão nº 1.510/2013. Plenário. Relator: Ministro Valmir Campelo. Sessão de 19/06/2013. Disponível em: < http://www.tcu.gov.br/Consultas/Juris/Docs/judoc/Acord/20130624/ AC_1510_22_13_P.doc>Acesso em: 14/04/2015. BOSELLI, Felipe Cesar Lapa. O Regime Diferenciado de Contratações e uma análise da sua constitucionalidade sob seu aspecto principiológico. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, 2013. Disponível em: < https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/133955/TCC%20UFSC%2c%20Daniel%20Piccoli%20Garcia%2c%20Contrata%c3%a7%c3%a3o%20integrada%20RDC.pdf?sequence=1&isAllowed=y >. Acesso em: 14/12/2015.

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CAMPITELI, Marcus Vinicius. Medidas para evitar o superfaturamento decorrente dos “jogos de planilha” em obras públicas. Dissertação de Mestrado em Estruturas e Construção Civil (2006), E.DM – 009A/06, Departamento de Engenharia Civil e Ambiental, Universidade de Brasília, Brasília, DF. Disponível em: < http://portal2.tcu.gov.br/portal/ pls/portal/docs/2055012.PDF >. Acesso em: 13/03/2015. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 27 ed. São Paulo: atlas, 2014. CORRALO, Giovani; CARDOSO, Bruno Lacerda. A (in)constitucionalidade do regime diferenciado de contratações públicas. Disponível em: . Acesso em: 01/03/2015. DAL POZZO, Augusto Neves. Panorama geral dos regimes de execução previstos no Regime Diferenciado de Contratações: a contratação integrada e seus reflexos. In: CAMMAROSANO, Marcio; DAL POZZO, Augusto Neves; VALIM, Rafael (coord.). Regime diferenciado de contratações públicas – RDC (Lei nº 12.462/11; Decreto nº 7.581/11). Belo Horizonte: Fórum, 2014. DINIZ, Braulio Gomes Mendes. Os regimes de empreitada na Lei nº 8.666/93 e os critérios para sua adoção: parâmetros do TCU e da doutrina. Conteúdo Jurídico, Brasília-DF: 20 nov. 2013. Disponível em: . Acesso em: 12/03/2015. FERNANDES, Jorge Ulisses Jacoby. RDC: O Regime Diferenciado de Contratações públicas: Lei nº 12.462, de 5 de agosto de 2011. Belo Horizonte: Fórum, 2012. GARCIA, Daniel Piccole. Constitucionalidade e análise crítica da contratação integrada prevista pelo regime diferenciado de contratações públicas – RDC. Disponível em: < https://repositorio.ufsc. br/bitstream/handle/123456789/133955/TCC%20UFSC%2c%20Daniel%20Piccoli%20Garcia%2c%20Contrata%C3%A7%C3%A3o%20integrada%20RDC.pdf?sequence=1&isAllowed=y>. Acesso em: 08/12/2015. HEINEN, Juliano. Regime diferenciado de contratações: Lei nº 12.462/2011. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015. JURKSAITIS, Guilherme Jardim; ROSILHO, André Janjácomo. Existe Licitação para além da Lei 8.666/93? Disponível em: Acesso em: 15/07/2014. JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 16 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. MOTTA, Carlos Pinto Coelho; BICALHO, Alécia Paolucci Nogueira. RDC: contratações para as copas e jogos olímpicos: Lei nº 12.462/2011, Decreto nº 7.581/2011. Belo Horizonte: Fórum, 2012. OLIVEIRA, Rafael Carvalho Resende. Licitações e contratos administrativos: teoria e prática. 4 ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2015. REISDORFER, Guilherme F. Dias. A contratação integrada no regime diferenciado de contratação (Lei 12.462/2011). Informativo, Justen, Pereira, Oliveira e Talamini. Curitiba, nº 55, setembro de 2011. Disponível em: . Acesso em: 17/03/2015. RESENDE, Renato Monteiro de. O regime diferenciado de contratações públicas: comentários à Lei nº 12.462 de 2011. Núcleo de pesquisas e estudos do Senado – Agosto, 2011. Disponível em: . Acesso em: 23/09/2014.

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A EMERGÊNCIA DE DECLARAÇÕES SUBNACIONAIS DE DIREITOS NA ORDEM CONSTITUCIONAL AUSTRALIANA:

O PAPEL DO PACTO FEDERATIVO NA FORMATAÇÃO DO REGIME DE PROTEÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS E A ADOÇÃO DE UM CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE FRACO

Mauro La-Salette Costa Lima de Araújo Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (2011). Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (2016). Áreas de interesse: Direito Constitucional; Direito Comparado; Teoria Geral do Direito.

SUMÁRIO: Introdução; 1. A constituição australiana e o impasse federativo na construção de um consenso em torno da proteção dos diretos fundamentais; 2. As declarações de direitos editadas pelo estado de Vitória e pelo Território da Capital Australiana e o modelo de controle de constitucionalidade fraco; Conclusão; Referências.

INTRODUÇÃO A ordem constitucional australiana apresenta um panorama que poderia parecer estranho aos olhos de um jurista brasileiro: possui, em algumas de suas unidades federativas, uma proteção de direitos mais ampla do que aquela prevista na constituição federal. Conforme apontado por Bruce Stone, Mesmo várias décadas de militância falharam em produzir uma declaração nacional de direitos na Austrália, deixando aquele país, como é agora rotineiramente observado, na posição de única democracia madura que não conta com tal instrumento. (Stone, 2013, p.1)

Trata-se de um fenômeno peculiar cujos contornos gerais serão apresentados pelo presente trabalho. Mas o que estaria por detrás de tal quadro? Existiria alguma dificuldade em alcançar um consenso no que tange ao alcance e especificação dos direitos aptos a receber proteção? A presença de declarações de direitos regionais indicaria que ali existem pautas emancipatórias locais, tais como a afirmação de direitos linguísticos de minorias1? Este trabalho busca investigar tal fenômeno, lançando um olhar sobre as origens da constituição australiana e o arranjo federativo escolhido por aquele país. Será visto como a escolha dos termos de um dado pacto federativo pode influenciar o surgimento de um impasse no que concerne à ampliação do regime de proteção de direitos fundamentais. Adicionalmente, será visto como o imobilismo nacional sobre a matéria incentivou a adoção de iniciativas regionais. Ao final, são apresentadas conclusões e perspectivas de trabalhos futuros.

1  Um exemplo clássico de uma pauta emancipatória local foi a experiência de Quebec no Canadá, e sua tentativa de afirmar os direitos linguísticos dos francófonos através da Charte de la langue française promulgada em 1977, alguns anos antes promulgação da atual constituição canadense em 1982.

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1. A CONSTITUIÇÃO AUSTRALIANA E O IMPASSE FEDERATIVO NA CONSTRUÇÃO DE UM CONSENSO EM TORNO DA PROTEÇÃO DOS DIRETOS FUNDAMENTAIS A constituição australiana data do início do séc. XX e suas origens coincidem com o próprio processo de emancipação política da Austrália em relação à metrópole britânica. Assim como ocorreu nos EUA, a federação australiana foi formada a partir de colônias britânicas distintas. Mas ao contrário do que ocorreu por ocasião do processo de independência norte-americano, não houve ruptura traumática entre os colonos australianos e o Reino Unido. Ao revés, a emancipação da Austrália deu-se com aquiescência do Reino Unido o que, como será visto mais adiante, pode vir a explicar alguns traços do desenho constitucional adotado por aquele país. Um exame da constituição australiana demonstra que seus redatores optaram por uma carta relativamente lacônica no quesito de direitos fundamentais. Textualmente, estão previstos os seguintes direitos de forma expressa: justa compensação em face de desapropriação estatal (s. 51, xxxi)2; liberdade religiosa (s. 116); livre circulação de pessoas entre as unidades da federação (s. 92); julgamento pelo tribunal do júri no caso de processos criminais (s. 80); não discriminação em razão do estado de origem (s. 117)3. Conforme anota Cheryl Saunders (2010, p.120), até a própria redação utilizada por tais direitos é sintomática: os dispositivos tendem mais a expressar limites à atuação do governo do que propriamente direitos dos indivíduos. E, neste sentido, há ainda um agravante, os dispositivos citados representam um limite à atuação do governo federal, não lançando sua proteção contra a ação dos estados. Elaborar tais disposições constitucionais como limites ao poder estatal é decerto uma diferença retórica sutil, mas que revela a relativa despreocupação dos constituintes com a matéria. Um outro traço peculiar, que aponta na mesma direção, diz respeito à localização dos direitos: um exame rápido mostra que não se encontram previstos em título ou capítulo próprio, mas espalhados ao longo do texto constitucional. Qual seria a causa para tal economicidade e despreocupação no que tange à elaboração de um rol de direitos fundamentais? Algumas respostas são possíveis a partir do exame da gênese da constituição de 1900 e, em especial, do papel que o pacto federativo forjado pelos constituintes desempenhou na positivação dos direitos fundamentais. Aspectos práticos impulsionaram a formação da federação australiana: os diferentes representantes das colônias estavam mais preocupados em viabilizar um governo único capaz de fazer frente às ameaças expansionistas de alemães e franceses na região do que propriamente produzir um documento impregnado de aspirações emancipatórias. Desta forma, mais importante do que prever expressamente no texto constitucional os direitos titularizados pelos indivíduos era garantir os “direitos dos estados” frente ao governo central. Além disso, é necessário relembrar algo já referido anteriormente: o processo de emancipação política australiana ocorreu sem que houvesse uma ruptura total dos laços que que uniam os colonos à metrópole. A influência britânica fazia-se sentir em vários aspectos e, entre eles, há de se considerar o influxo da própria cultura constitucional inglesa, que à época tecia loas ao princípio da “soberania do parlamento”. Tal princípio, que alcançou sua formulação clássica a partir da obra de Dicey (1915), tinha por corolário a primazia do legislativo sobre outros atores institucionais. Sob a influência desta doutrina, seria de se esperar que a proteção dos direitos fundamentais ficasse a cargo do próprio legislativo. Os representantes eleitos, vinculados que estavam a ideia de um governo parlamentar responsável, seriam os melhores guardiões dos direitos. Daí ser desnecessário tanto sua positivação em sede constitucional quanto a previsão expressa do controle jurisdicional de constitucionalidade (French, 2010, pp.773-775). Se a ausência de um rol significativo de direitos na constituição australiana pode ser justificada pela forma como ocorreu a sua gênese, o que justificaria a manutenção de um cenário como este nos dias atuais? 2  As referências que se seguem, entre parênteses, dizem respeito às respectivas Seções da constituição australiana de 1900. 3  Além destes direitos, a doutrina australiana reconhece que alguns outros podem ser extraídos implicitamente dos princípios adotados pela constituição, notadamente no que diz respeito à consagração de uma democracia representativa como forma de governo e à previsão de um judiciário independente. Assim, extrai-se da constituição, por exemplo, o direito ao voto (mas não necessariamente o sufrágio universal) e o direito à liberdade de comunicação política, bem como o direito ao devido processo legal (Saunders, pp. 122-124).

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No que tange a proteção de direitos, a carta australiana praticamente não sofreu modificações nos seus mais de cem anos de vigência. Esta estabilidade do texto constitucional pode ser em parte explicada pelo próprio procedimento de emenda à constituição que exige a formação de um amplo consenso nacional sobre a alteração eventualmente proposta. Com efeito, a sessão 128 da constituição australiana, ao regular o processo de emenda, estabelece que qualquer alteração do texto constitucional deva ser: (1) aprovada pela maioria absoluta em ambas as casas legislativas e (2) submetida à consulta popular nacional, somente logrando aprovação se referendada pela maioria dos eleitores na maioria dos estados e territórios. Este último requisito é denominado pela doutrina australiana como “regra da dupla maioria”, pois exige que não somente a maioria dos eleitores, nacionalmente considerados, aprovem a proposta de mudança, como que tal proposta seja referendada por maiorias individualmente consideradas na maioria das unidades da federação4. O referido processo de emenda à constituição exige, portanto, a construção de um amplo consenso nacional sobre dada matéria para fins de sua inclusão no texto constitucional5 e, até o momento, não foi possível chegar a tal consenso no que diz respeito à ampliação do rol de direitos fundamentais previstos constitucionalmente. A última das tentativas ocorreu em 1988 (Saunders, p.129), quando os eleitores australianos rejeitaram, categoricamente, uma proposta que visava constitucionalizar alguns direitos fundamentais: não houve sequer a aprovação pela maioria nacional, havendo a proposta sido rejeitada por 69.21% dos eleitores (Bennett; Brennan, 2000, p.4). As tentativas de ampliação do regime de proteção de direitos através de diplomas legislativos ordinários também não lograram êxito até o presente momento. A ideia de utilizar uma lei federal para positivar um rol amplo de direitos fundamentais é vista com ressalva pelas unidades da federação e vem encontrando resistência ao longo dos anos no Senado (Galligan, Knopff; Uhr, 1990, p.53) daquele país, pois (1990, p.57), “embora em cada uma das oportunidades tenha havido diversas razões para o insucesso, (...) questões federais têm representado elementos importantes da controvérsia” (Galligan, Knopff; Uhr, 1990, p.57). Assim, para compreender tal resistência, é necessário discorrer brevemente sobre como a constituição australiana disciplinou a divisão de competências legislativas entre os estados e o governo federal. Assim como ocorre nos EUA, os estados membros da federação australiana possuem ampla competência legiferante, podendo legislar em áreas como direito penal, civil, processual penal e processual civil, por exemplo. Isto porque a competência legislativa do parlamento federal está prevista expressamente na seção 51 da constituição, havendo ficado a cargo dos estados uma ampla competência residual. Diante deste cenário, uma dificuldade inicial a ser superada é a ausência de uma previsão expressa, no rol trazido pela referida sessão 51, de permissão para legislar sobre matéria “direitos fundamentais”. No entanto, a High Court australiana, que é a instância máxima do judiciário daquele país, já reconheceu que a competência para editar leis que digam respeito a relações exteriores (s. 51, xxix)6 comporta uma interpretação bastante extensiva. Assim, seria viável que o legislativo federal editasse diploma que ampliasse o regime de proteção de direitos fundamentais na Austrália sob o argumento de que, desta forma, estaria meramente dando cumprimento aos tratados de direitos humanos com os quais já houvera se comprometido anteriormente. Mas o que explicaria a resistência, principalmente do Senado australiano, a tal estratégia de proteção de direitos? Uma resposta pode ser encontrada na seção 109 da constituição, que trata da hipótese de conflito entre leis estaduais e federais. O dispositivo prevê que “quando a lei de um Estado é inconsistente com uma lei do Governo Federal, a última deve prevalecer, ficando a primeira inválida na medida de sua inconsistência”7. Isto significa que, do ponto de vista hierárquico, as leis federais se sobrepõem aos diplomas estaduais. Qual o impacto tal disposição teria 4  Section 128: This Constitution shall not be altered except in the following manner: The proposed law for the alteration thereof must be passed by an absolute majority of each House of the Parliament, and not less than two nor more than six months after its passage through both Houses the proposed law shall be submitted in each State and Territory to the electors qualified to vote for the election of members of the House of Representatives. (...) And if in a majority of the States a majority of the electors voting approve the proposed law, and if a majority of all the electors voting also approve the proposed law, it shall be presented to the Governor-General for the Queen’s assent. 5  Segundo Chreryl Saunders (2010, p.129), durante os mais de 100 anos de vigência da constituição australiana, apenas 8 emendas ao texto constitucional foram editadas. 6  Section 51: The Parliament shall, subject to this Constitution, have power to make laws for the peace, order, and good government of the Commonwealth with respect to: (...) (xxix) external affairs; 7  Section 109: When a law of a State is inconsistent with a law of the Commonwealth, the latter shall prevail, and the former shall, to the extent of the inconsistency, be invalid.

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na eventualidade do governo federal editar uma “declaração de direitos”, fazendo uso de sua prerrogativa constitucional de legislar sobre relações exteriores (s. 51, xxix)? Tal cenário poderia vir a instaurar uma desconfortável assimetria federativa no ordenamento australiano: a legislação federal, por gozar de posição hierárquica superior em relação aos estados, funcionaria para estes como uma lei quase constitucional, vinculando-os do ponto de vista jurídico. Mas, por outro lado, o governo federal não estaria totalmente vinculado à legislação que expedisse já que, tendo em vista tratar-se de diploma ordinário, poderia facilmente criar exceções através de alterações legislativas posteriores (Stone, 2013, p.11). Esta perspectiva de desequilíbrio federativo é provavelmente responsável pelo naufrágio de tentativas de edição de uma lei federal sobre a matéria, notadamente no Senado australiano. Diante do fracasso na construção de um consenso nacional sobre a questão, algumas unidades federativas resolveram editar declarações de direitos próprias. A seguir, serão analisadas as iniciativas empreendidas Território da Capital Australiana e pelo estado de Vitória. 2. AS DECLARAÇÕES DE DIREITOS EDITADAS PELO ESTADO DE VITÓRIA E PELO TERRITÓRIO DA CAPITAL AUSTRALIANA E O MODELO DE CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE FRACO O modelo de proteção de direitos positivado pelo estado de Vitória e pelo Território da Capital Australiana teve por inspiração experiências constitucionais de outros ordenamentos. O paradigma adotado segue, em linhas gerais, os mesmos termos da sistemática neozelandesa e britânica de fiscalização de constitucionalidade: promulgação de um diploma legislativo de caráter ordinário onde há uma enumeração extensiva de direitos e previsão de mecanismos de fiscalização a cargo tanto das instâncias políticas quanto do judiciário, sem que, no entanto, possa este último declarar a inconstitucionalidade de atos legislativos. Esse modelo é uma variante específica de uma categoria que Mark Tushnet (2008) denomina controle de constitucionalidade fraco (weak-form of judicial review). Segundo Stephen Gardbaum (2013, pp.28-30) são quatro as características institucionais dos sistemas de controle de constitucionalidade fraco: (a) positivação dos direitos fundamentais, quer com status constitucional quer apenas como legislação ordinária; (b) fiscalização prévia da constitucionalidade das normas pelo poder legislativo; (c) fiscalização judicial da constitucionalidade, exercido posteriormente à promulgação mas sem caráter de definitividade; e, finalmente, (d) a possibilidade do legislativo sobrepor-se à interpretação judicial por algum mecanismo que não exija quórum especifico. A presença destes traços característicos seria responsável por diferenciar os sistemas de controle fraco tanto do paradigma de supremacia legislativa (a e c), quanto de um cenário de supremacia judicial (d). O Território da Capital Australiana foi a primeira unidade da federação adotar uma declaração de direitos, o Human Rights Act de 2004 (doravante HRA). Dois anos depois, o estado de Vitória fez o mesmo através da Charter of Human Rights and Resposibilities Act de 2006 (doravante CHRR). Nesta seção serão explicitados os contornos gerais do regime de proteção de direitos criados pelos dois diplomas. A disciplina normativa trazida pelos dois sistemas é bastante semelhante, razão pela qual a presente exposição terá por objeto as duas declarações, fazendo menção às especificidades de cada uma delas quando necessário. De uma maneira geral, ambas as declarações trazem como conteúdo um conjunto de direitos que coincide com aqueles previstos no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (Gardbaum, 2013, p.257). A especificidade aqui fica por conta do HRA, que faz menção expressa a um direito de caráter social, o direito à educação, em sua seção 28. As duas declarações, entretanto, têm a forma de diplomas legislativos ordinários, isto é, não gozam de precedência hierárquica sobre as demais leis editadas pelas unidades federadas. Isto significa que, na prática, seus dispositivos podem ser revogados pelas mesmas maiorias legislativas ordinárias responsáveis por sua edição. Não há, desta forma, uma vinculação formal do legislador quanto à observância dos direitos previstos nas duas declarações. Cada um dos diplomas representa uma espécie de “carta de intenções” legislativa, na qual são enumerados os direitos fundamentais a serem protegidos, mas que não traz qualquer obrigatoriedade quanto ao respeito às suas disposições. O caráter ordinário das declarações também limita a atuação do judiciário na espécie, pois diplomas posteriores que porventura possam vir a violar os direitos enumerados não poderão ter sua aplicação simplesmente afastada. Mas este quadro

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não faz com que as duas iniciativas representem apenas e tão somente uma mera enumeração de direitos: os dois diplomas possuem um conjunto de mecanismos destinados à promoção de uma cultura judicial e legislativa de proteção aos direitos fundamentais. Ambas as declarações disciplinam que o processo legislativo deve prever necessariamente alguns cuidados a fim de que seja garantido o respeito ao rol de direitos elencados. Em primeiro lugar, exige-se que, quando da introdução de um projeto de lei, seja apresentada uma declaração de compatibilidade pelo ator político a quem cabe a iniciativa legislativa. O objetivo deste requisito é dúplice: garantir que o detentor da iniciativa seja constrangido pela necessidade de justificação prévia e que eventuais antinomias com o regime de direitos fundamentais sejam dadas a conhecer no início do processo legislativo. Assim, a CHRR prevê, em sua seção 28, que um membro do parlamento que deseje introduzir um projeto de lei deve fornecer uma declaração na qual conste sua opinião sobre a compatibilidade do referido projeto com os direitos. O HRA, por sua vez (s.37), prevê que tal declaração deve ser fornecida pelo Procurador-Geral do Território (Attorney-General). Em ambos é exigida uma exposição de razões que fundamente a compatibilidade do projeto e, se for o caso, quais são os pontos de inconsistência a serem melhor escrutinados durante o curso da atividade parlamentar. Ainda na seara do processo legislativo, os dois diplomas preveem que eventuais inconsistências sejam reportadas pelas comissões parlamentares que venham a se debruçar sobre os projetos (s.30, CHRR; s.38, HRA). Mas a não observância das disposições acima durante o processo legislativo não acarreta qualquer vício formal para a lei eventualmente editada. É o que prevê expressamente tanto a seção 29 da CHRR e a seção 39 do HRA. Por fim, a CHRR traz uma disposição peculiar: sua seção 31 dispõe que o parlamento estadual poderá, se assim considerar necessário, editar leis que violem expressamente o regime de direitos fundamentais através de uma declaração expressa nesse sentido (override declaration). A veiculação da vontade parlamentar neste sentido deve ser direcionada ao dispositivo da lei que eventualmente viole os direitos fundamentais ou, se for o caso, ao diploma legislativo como um todo. Em qualquer uma das situações, a override declaration terá duração de cinco anos (sujeita à renovação), durante os quais nenhuma das disposições contidas na CHRR produzirão efeito sobre o(s) dispositivo(s) editado(s). Tanto a CHRR quanto o HRA disciplinam uma etapa judicial de fiscalização da compatibilidade das leis com os direitos nelas previstos. Como referido anteriormente, por se tratar de diplomas legislativos ordinários, não há a possibilidade do judiciário afastar a aplicação de diplomas eventualmente conflitantes com as duas declarações. O que é previsto, entretanto, é uma fiscalização mitigada, através de um dever de interpretar os diplomas legais em consonância com o regime de direitos. Assim, em sua seção 32, a CHRR disciplina que “até onde seja possível fazê-lo consistentemente com o seu propósito, todos os dispositivos legais devem ser interpretados de maneira compatível com os direitos humanos”. A seção 30 do HRA tem praticamente o mesmo teor. Ambas as disposições são um exemplo do que Mark Tushnet (2008, p.25) denomina mandado interpretativo, através do qual se instrui o poder judiciário a interpretar os demais diplomas legais de maneira consistente com os direitos fundamentais. Ou seja, diante de uma pluralidade de interpretações possíveis, o julgador deve preferir aquela que melhor se compatibiliza com os direitos fundamentais. Este mecanismo, semelhante à conhecida técnica da interpretação conforme, possui dois limites: o propósito legislativo e na literalidade do texto sob exame. Ou seja, quando aplicável, o mecanismo é dotado de um enorme potencial para que o judiciário impeça violações aos direitos fundamentais. Mas ainda assim existirão hipóteses nas quais a incompatibilidade legislativa não poderá ser solucionada desta forma por não haver, na espécie, múltiplas interpretações candidatas. Nestes casos, tanto o HRA quanto a CHRR põem a disposição do judiciário um outro mecanismo: a declaração de incompatibilidade (HRA) e a declaração de interpretação inconsistente (CHRR). Apesar da divergência de nomenclatura, o espírito das duas espécies de declaração é o mesmo: fornecer ao judiciário uma ferramenta através da qual possa sinalizar que encontrou uma antinomia intransponível pela via interpretativa. Entretanto, não há, na hipótese, qualquer efeito prático do ponto de vista da vigência do diploma sob exame ou para as partes que compõem o processo (CHRR, s.36(5); HRA, s32(3)). As duas declarações de direitos preveem ainda a possibilidade de intervenção do Procurador-Geral da unidade federada em qualquer feito no qual seja discutida a compatibilidade de um dado diploma legal com as respectivas declarações (CHRR, s.34; HRA s.35). Tal participação é justificada pelo fato do Procurador-Geral atuar como representante legal do governo em juízo, podendo vir a defender a compatibilidade da lei caso entenda necessário.

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Um exemplo prático desta etapa de controle judicial pode ser dado a partir de um precedente decidido pela Suprema Corte do Território da Capital Australiana em 20108. No caso caso concreto, Isa Islam, acusado de tentativa de homicídio, insurgiu-se contra a sua prisão cautelar, pleiteando que lhe fosse concedida fiança a fim de que pudesse responder às acusações em liberdade. A legislação territorial em vigor sobre concessão de fiança disciplinava que nos casos de acusação pela prática de homicídio, só poderia receber o benefício aquele que conseguisse demonstrar a existência de “circunstâncias especiais ou excepcionais” na espécie (seção 9C do Bail Act 1992)9. O réu alegou que o excesso de prazo de sua prisão cautelar (dez meses) poderia ser considerado uma circunstância excepcional a seu favor e, subsidiariamente, que a seção 9C do Bail Act deveria ser interpretada em conformidade com o disposto na seção 18(5) do HRA, que garantiria o seu direito de responder ao processo em liberdade10. A Suprema Corte Territorial, entretanto, considerou que, tendo em vista o propósito do legislador ao editar o Bail Act de 1992, não haveria uma “interpretação consistente” ao alcance da Corte, sendo todos os sentidos normativos possíveis do dispositivo incompatíveis com as disposições do HRA. Assim, afastou o pleito de fiança elaborado pelo réu e emitiu uma declaração de incompatibilidade atestando ser impossível conciliar o diploma legislativo atacado com o direito à liberdade previsto no Human Rights Act. Observe-se que, como já mencionado, de tal declaração judicial não foi possível extrair qualquer efeito prático, tanto no que tange ao réu (que continuou sob prisão cautelar) quanto em relação ao Bail Act (cujo seção 9C continuou a vigir). A terceira fase da sistemática prevista pela CHRR e pelo HRA é a reconsideração legislativa. O objetivo é permitir que o legislador possa corrigir eventuais violações de direitos detectadas pelo judiciário na fase anterior. Assim, por exemplo, a seção 37 da CHRR prevê que, após o recebimento de uma declaração de interpretação inconsistente, o ministro de governo responsável pelo diploma legal tido por incompatível deve preparar uma resposta à declaração judicial no prazo de seis meses. A resposta deve ser então encaminhada a cada uma das casas do parlamento bem como publicada na imprensa oficial do estado (CHRR, s.73). Da maneira semelhante, o HRA disciplina que cabe ao Procurador-Geral do Território encaminhar à Assembleia Legislativa, no prazo de seis dias úteis, qualquer declaração de incompatibilidade advinda do judiciário. Adicionalmente, fica a cargo mesmo Procurador-geral elaborar e apresentar, à mesma Assembleia, uma resposta no prazo de seis meses contados a partir do momento em que a casa legislativa teve ciência da declaração judicial (HRA, s.33). Estes dispositivos garantem que o poder legislativo da respectiva unidade da federação estará de posse dos subsídios necessários para, se quiser, sanar a incompatibilidade apontada pelo judiciário. Não existe, entretanto, qualquer obrigação de fazê-lo, trata-se de mero convite à correção da norma. Um exemplo de inação legislativa ocorreu justamente no caso da declaração de incompatibilidade da seção 9C do Bail Act analisada mais acima: apesar da resposta elaborada pelo Procurador-Geral recomendar mudanças legislativas tendentes a compatibilizar o regime legal da concessão de fiança com o HRA, o legislativo territorial não promoveu, até o presente momento, as alterações sugeridas. CONCLUSÃO No início do trabalho, indagou-se se o fenômeno australiano poderia ser justificado a partir de uma dificuldade na identificação dos direitos fundamentais, ou mesmo se existiriam pautas locais emancipatórias aptas a estimular a adoção de declarações regionais. A resposta, como foi visto, é negativa. Os direitos tutelados pelas declarações do estado de Vitória e do Território da Capital Australiana são direitos consagrados internacionalmente, típicos direitos de primeira geração, cuja redação nos respectivos instrumentos praticamente coincide com aquela apresentada no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos. Viu-se que os termos nos quais é celebrado um pacto federativo podem influenciar sobremaneira a sorte do regime de proteção de direitos. Embora tal lição possa parecer estranha em um contexto como o 8  In The Matter of an Application for bail by Isa Islam [2010] ACTSC 147, julgado em 19 de novembro de 2010. 9  Bail Act 1992, Section 9C(2): A court or authorised officer must not grant bail to the person unless satisfied that special or exceptional circumstances exist favouring the grant of bail. 10  HRA, Section 18(5): Anyone who is awaiting trial must not be detained in custody as a general rule, but his or her release may be subject to guarantees to appear for trial, at any other stage of the judicial proceeding, and, if appropriate, for execution of judgment.

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brasileiro, no qual os conflitos federativos sobre direitos são apenas latentes (para não dizer inexistentes), esta não é a realidade no direito comparado. A experiência australiana demonstra que os contornos da divisão de competências e a relação hierárquica entre o direito federal o direito estadual podem levar a um impasse na construção de uma agenda nacional sobre o tema. Não fossem tão rígidos os requisitos para modificação da constituição australiana, talvez um consenso sobre a questão já pudesse ter sido alcançado. Mas a inviabilidade prática da edição de uma emenda constitucional devolve a matéria para a arena política cotidiana, na qual o entrave federativo parece estar longe de ser solucionado. A adoção de declarações de direitos em nível estadual/territorial foi, desta forma, a solução possível no contexto australiano. Há quem diga, como Gardbaum, que um modelo de controle fraco é capaz de alcançar o equilíbrio normativo entre os paradigmas de supremacia judicial e supremacia legislativa. Não se trata do melhor dos mundos para os entusiastas de uma jurisdição constitucional atuante. Com efeito, confere-se ao judiciário um papel que, em certos momentos, poderá ficar adstrito a de mero coadjuvante, haja vista que ausência de uma pluralidade de sentidos normativos restringirá o seu campo de ação. Mas mesmo tais entusiastas não podem negar que “alguma proteção” é melhor do que “nenhuma proteção”. REFERÊNCIAS BENNETT, Scott; BRENNAN, Sean. Constitutional Referenda in Australia. Research Paper n. 2. Camberra: Information and Research Services (Department of the Parliamentary Library), 2000. Disponível em: < http://www.aph.gov.au/binaries/library/pubs/rp/1999-2000/2000rp02.pdf> Acesso em: 15/12/2015. DICEY, Albert Venn. Introduction to the study of the law of the constitution. London: Macmillan. 1915. FRENCH, Robert. Protecting Human Rights Without a Bill of Rights. In: The John Marshall Law Review. vol 43, pp.769-793, 2010. Disponível em: < http://repository.jmls.edu/lawreview/vol43/iss3/11/> Acesso em: 15/12/2015. GALLIGAN, Brian; KNOPFF, Rainer; UHR, John. Australian Federalism and the Debate Over a Bill of Rights. In: Publius:The Journal of Federalism, vol. 20, n.4, pp.53-67, 1990. Disponível em < http://www.jstor.org/ stable/3330292> Acesso em: 15/12/2015. GARDBAUM, Stephen. The new Commonwealth Model of Constitutionalism: Theory and Practice. Cambridge: Cambridge University Press. 2013. SAUNDERS, Cheryl. The Australian Constitution and Our Rights. In: SYKES, Helen (Ed). Future Justice. pp.117-135. Sydney: Future Leaders, 2010. Disponível em: < http://www.futureleaders.com.au/book_chapters/pdf/Future_Justice/Cheryl_Saunders.pdf> Acesso em: 15/12/2015. STONE, Bruce. Why Australia Has No National Bill of Rights? In: Australasian Political Studies Association Conference. 2013. Disponível em: < http://www.auspsa.org.au/sites/default/files/why_australia_has_no_national_bill_of_rights_bruce_stone.pdf> Acesso em: 15/12/2015. TUSHNET, Mark. Weak Courts, Strong Rights: Judicial Review and Social Welfare Rights in Comparative Constitutional Law. Princeton: Princeton University Press. 2008.

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LIBERDADE RELIGIOSA X TRÁFICO DE DROGAS: O CASO DE “RAS GERALDINHO”

Mateus Rafael de Sousa Nunes Graduado em Licenciatura Plena em História ela Universidade de Pernambuco (UPE), Bachareal em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Bacharelando em Direito e Mestrando em História pela UFPE.

A história do Brasil está intrinsecamente ligada à história da Cannabis. De acordo com Carlini (2006), a planta chega ao país nas caravelas da expansão marítima portuguesa, que eram, elas próprias, feitas do cânhamo. De acordo com o autor, a planta foi facilmente incorporada aos ritos indígenas e afro-brasileiros. Por agrega-se à cultura afro-brasileira, a planta fica conhecida como “Fumo D’angola”. Porém, a simples atribuição da proveniência angolana não é suficiente para determinar a sua origem, tendo em vista que as fontes oficiais das quais tal análise foi desenvolvida não são confiáveis. Mott (1986) argumenta que, nos primórdios do escravismo transatlântico, os escravos vinham completamente nus para o Brasil, não sendo possível trazer estas sementes em “bonecas de pano” e “tangas”, como acreditava a historiografia até então. Apesar dos fortes indícios de sua proveniência européia, esta não se dá, necessariamente, em detrimento de uma possível ascendência africana e/ou intercruzamentos entre espécies. A origem da Cannabis é imprecisa, mas o que é relevante na análise não é esta questão, e sim, a utilização da repressão das várias práticas e usos da planta como concentração de poder e ampliação da coerção por parte do Estado. Tal coerção incide, indubitavelmente, sob os estratos menos abastados, geralmente de ascendência negra. Configura-se, igualmente, como uma forma eficaz de coagir tais estratos da população à não participação de movimentos de lutas por direitos civis, políticos e sociais, do mesmo modo que a atribuição da origem da planta à África está intrinsecamente ligada à estigmatização dessa parcela da população brasileira e ao processo político de higienização social. Mesmo quando há o reconhecimento legal das religiões afro-brasileiras, este só é feitocom a ressalva de que os ritos eliminassem o uso ritualístico da Cannabis, sendo assim, substituída pelo tabaco - já seguindo uma lógica proibicionista estadunidense, como alega Aureliano (2004). Esta política introjetou tantas associações de nocividade à maconha, que a repressão ocorreu e continua ocorrendo independentemente da espécie de Cannabis considerada. O uso sagrado da Cannabis remete a tempos imemoriais. Dos usos do cânhamo (anagrama de maconha) como sacramento, o rastafarianismo é apenas uma das mais variadas expressões religiosas que reconhecem na planta de poder, a autenticidade da aplicabilidade do conceito de enteógeno ( que desperta o deus em quem a utiliza). Podemos citar várias outras expressões religiosas que possuem o mesmo entendimento como: correntes do Santo Daime, o candomblé, o xintoísmo, o budismo, o judaismo e o cristianismo, que reconhecem em seu livro sagrado a liberalidade do uso da planta e os mais variados ritos nativos americanos (que chamam a planta de dirijo), são alguns exemplos de reconhecimento na Cannabis em uma planta sagrada. Não por acaso a origem da palavra maconha remete a ma + konia (mãe+ sagrada). Os discursos vigentes no período de proibição das plantas, como o discurso de Freyre (2004), constroem a imagem da maconha como uma planta desmoralizante. No caso do autor, é ressaltado o aspecto da sexualidade, alegando que a planta incita comportamentos sexuais libidinosos, do mesmo modo que ausência de caráter provocadas por esta.

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“A terra mais macia do litoral e da “mata” do extremo Nordeste e do Recôncavo da Bahia parece ter influído sobre os seus próprios senhores- como sobre as plantas terríveis no tipo da maconha, importada da África – amaciando homens do Norte agrário inteiro e não apenas da cidade da Bahia naqueles baianos maneirosos que Joaquim Nabuco retratou n’Um estadista do império - os políticos mais flexuosos e plásticos da monarquia: às vezes excessivamente flexuosos e até falsos, homens sem palavra, a ponto de “baiano” ter ficado para o resto do Brasil equivalente de “francês”. E arredondando as mulheres naquelas iaiás dengosas que os Maciéis Monteiro e os Castro Alves cortejaram em versos tão sensuais e que foram umas criaturas diabólicas pelas graças do sexo, desde muito verde especializado para o amor.” (FREYRE, 2004. P. 52)”

Tais comportamentos libidinosos se dariam, para o autor, até mesmo no universo onírico. De acordo com este, os negros fumavam maconha para sonhar com mulheres nuas ou bonitas. O consumo da planta é também ligado constantemente ao ócio típico da colonização monocultora, onde a economia canavieira demandaria trabalho em apenas uma parte do ano. Freyre (2004) reconhece, contudo, o potencial econômico da planta, relatando que até os seus dias os nórdicos aportavam no Nordeste para comprar “liamba” por altos preços, do mesmo modo que, sua função social na estabilidade das tensões sociais típicas do que denominou de “civilização do açúcar”. O autor relata que a planta e o tabaco seriam entorpecentes de gozo e evasão, contudo, o tabaco seria utilizado pelos senhores brancos, ao passo que, a Cannabis seria utilizada pelos negros. Tais entorpecentes, juntamente com a cachaça, seriam adequados aos meses de ócio proporcionados pelo cultivo da cana e constituíam, na perspectiva do autor, fatores de relevância na estabilidade social. Por sua vez Cascudo (1954) atribui a planta à degradação ética e moral, ligando o uso desta aos ladrões, malandros que buscam coragem e leveza para roubar. O que há de mais contundente no discurso de do autor é, entretanto, a atribuição da planta aos negros e o que o autor considera como a completa ausência de cerimonial ritualístico da planta no país, desconsiderando os “trabalhos difíceis” realizados “secretamente” pelo “catimbó” (citados por ele próprio em seu verbete). “MACONHA - Diamba, Liamba, riamba, marijuana, rafi, fininho, baseado, morrão, cheio, fumo-brabo, gongo; malva, fêmea, maricas (Cannabis sativa), cânhamo, herbácea de origem asiática, vinda para o Brasil com os escravos negros africanos, segundo a maioria estudiosa. Ópio do pobre, fumam as fôlhas sêcas como cigarros”... “Estimulante, dando a impressão de euforia, deixa forte depressão, a lomba, que só desaparece com superalimentação. A planta tem seus segredos e técnicas até na colheita.”... “A maconha é estimulante, fumada pela malandragem para criar coragem e dar leveza ao corpo. Não há conhecimento de ter a maconha algum cerimonial secreto para ser inalada. Como sucede no México, onde a dizem marihuana, grifa, soñadora, oliukqui entre cantos do louvor. Nos catimbós usam, rara e sempre ocultamente, o óleo da liamba nos trabalhos difíceis. Nos xangôs e candomblés não há prova do seu uso. É mais uma predileção dos gatunos e vagabundos.” (CASCUDO, 1954 p. 368).

A ignorância (inata ou proposital) acerca da planta à época de sua criminalização pode ser observada não apenas na desconsideração do seu uso ritualístico, como supracitado, mas mostra-se latente também na completa falta de conhecimento sobre a forma de consumo desta, de seus efeitos nos usuários e de sua origem. O autor alega que são consumidas as ”fôlhas sêcas como cigarros” e que seu efeito é de euforia. Apesar de não ser de uso exclusivo da cultura negra no país e não ter sido trazida por estes indivíduos é possível perceber, em ambos os discursos, tanto o de Freyre (2004) quanto o de Cascudo (1954) como a atribuição da planta a origem negra, ao ócio, à ausência de ritos no Brasil conduz a uma retórica de planta desmoralizante, o que legitima sua proibição.

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É possível perceber que o discurso proibicionista é profundamente marcado projeto de moralização e disciplinarização do corpo tipicamente fascistas. De acordo com Dutra (2012) a década de 1930 no Brasil é profundamente marcada por uma política sistemática de aperfeiçoamento físico, empreendida por parte do Estado, que devido à inspiração fascista visa moralizar o corpo, a eugenia racial e a disciplina do trabalhador. De acordo ela, a polícia é militarizada em 1936 por Getúlio Vargas, apenas dois anos antes do Decreto-Lei de 1938, o que significa que a guerra às drogas implica numa polícia autoritária, centralizada e militarizada, pois, faz-se necessária uma ideologia de um inimigo interno, matável (pois desunirá o país) e sem os mesmos direitos de um “cidadão de bem”. O paradigma antitético caracteriza o período em questão não permitindo abordagens menos radicais ou liberais. Tal paradigma se apresenta, no que concerne ao uso de Cannabis, ao associar seu uso com práticas subversivas, promíscuas que denotam ócio, fraqueza e desperdício. Aqui, no caso em estudo, o uso dos pares antitéticos se reveste da função de identificação projetiva. Conjuram-se, no caso do anticomunismo a revolução, a morte, a escravidão, a doença, a indisciplina, a barbárie, a anarquia, a loucura, a injustiça; no caso da pátria, a traição, a agressão externa (comunismo de um lado; imperialismo, de outro) a ruína, a instabilidade, o atraso, a velhice, a incerteza, a fragmentação; no caso da moral, a devassidão, o egoísmo, a sensualidade, a orgia, o pecado, a corrupção, a imoralidade, o instinto, a mentira, a desobediência; no caso do trabalho, a improdutibilidade, o desleixo, a incompetência, o individualismo, a indolência, o ócio, o desperdício, a fraqueza e a promiscuidade (DUTRA, 2012. p. 29-30).

O discurso da moralidade é, sobretudo, um discurso de disciplinarização do corpo, mas também remete à corrupção de valores universais que devem ser defendidos pela autoridade. A liberdade e o domínio sobre o próprio corpo é tratada como libertinagem, que leva impreterivelmente à degradação sexual, moral e ética. A autora caracteriza a construção desse mundo novo por parte dessas três linhas políticas como intrínseca à negação dos desejos e do mundo que se quer deixar para trás. O cidadão moral é, portanto, aquele que porta os atributos da honestidade, do ascetismo, do recato, do desprendimento, do patriotismo, da normalidade sexual, do companheirismo, da verdade, da honra e da dignidade (DUTRA, 2012. p. 194).

O endeusamento do trabalho e a demonização do ócio se nos apresenta como uma dicotomia comungada por todas as linhas políticas. O trabalho sintetiza todos os valores da sociedade é o “padrão absoluto”. Nesse sentido, ligar a maconha ao ócio é torná-la antagônica ao progresso, à pátria, à civilização, à paz social, enfim, inútil à sociedade moderna tal qual os indivíduos que dela fazem uso. O domínio sobre o corpo institui, assim, uma moral e uma disciplina; estabelece um padrão maniqueísta e antitético que fortalece o estabelecimento de uma verdade que não suporta contradições. Esse processo fez com que em meados dos anos de 1930 várias das manifestações religiosas, tendo como maior exemplo o Candomblé, em busca de reconhecimento institucional e com o intuito de não serem vítimas da guerra “às drogas”, passaram paulatinamente a excluir o uso sagrado da maconha e até mesmo levando a tradição ao esquecimento. Tal processo é facilmente compreendido quando se coloca na “balança as sanções imputadas pela espada de Themis. Passémos então à análise do local onde estão sendo dadas as espadadas da deusa vendada. Na contramão da demanda de legitimidade institucional, o fundador da Primeira Igreja Niubingui Etíope Coptic de Sião do Brasil, Geraldo Antonio Baptista (53) conhecido como Rás Geraldinho Rastafári, comungava do uso sagrado da Cannabis sativa no exercício constitucionalmente amparado de sua liberdade de crença, na inviolabilidade de seu lar.

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O sacerdote foi preso e condenado a 14 anos, 2 meses e 20 dias de prisão. O poder judiciário da cidade de Americana alegou crime de tráfico de drogas com ampliação da pena por participação de menor e associação para o tráfico. Apesar de não constar qualquer tipo de mandato de busca e apreensão, a prisão pretensamente se deu em flagrante. O Juiz responsável pelo caso alegou que a grande quantidade de provas produzidas, 37 pés de maconha, implicariam automaticamente no tráfico de drogas, apesar da legislação brasileira não se utilizar de critérios objetivos para fazer a diferenciação usuário/traficante. A acusação de associação para o tráfico e participação de menor se deu em decorrência de um jovem de 18 anos e um adolescente estarem presentes na casa do réu. Não foi realizado qualquer tipo de análise das plantas em questão para determinar os índices de THC, mas várias das plantas apreendidas eram filhotes, ou seja, não gozavam da substância1. A defesa afirmou que o cultivo era para uso religioso, sendo consumida apenas em ocasiões de culto. A alegação é amparada pelo artigo 5º da Constituição Federal de 1988 no que tange ao amplo direito à liberdade religiosa. Apesar dos argumentos da defesa, o magistrado não aceitou o argumento como excludente de antijuridicidade e alegou que a liberdade de culto religioso só poderia ser invocada se o uso ritualístico não entrasse em conflito com o Direito Penal. O magistrado ainda associou o conflito ao o sacrifício de virgens por parte dos astecas, o que não seria permitido por parte da lei brasileira. A infeliz comparação do homicídio com o uso de sagrado e ritualístico de uma planta que remete a tradições milenares arbitrariamento tornadas ilícitas faz com que nos deparemos com o questionamento: Quem é a vítima do uso da maconha como um sacramento?2 Nesse sentido, há um claro conflito principiológico representado pelo caso de Ras Geraldinho. O artigo quinto da Constituição Federal de 1988 prevê liberdade religiosa, no entanto, tal liberdade no que concerne ao uso religioso da Cannabis sativa é solapado em nome do direito penal. Numa de suas análises à lei 11.343/06, Karam (2008) remete, como principais violações da lei à constituição, à falta de proporcionalidade, falta de isonomia, de individualização da pena, violação da culpabilidade pelo ato realizado e garantia da vedação de dupla punição pelo mesmo fato, violação da prerrogativa de inocência, do acesso ao duplo grau de jurisdição, além do fato de ter uma progressão de pena diferenciada por se tratar de um crime hediondo. As sistemáticas violações a princípios e normas consagradas nas declarações universais de direitos e nas Constituições democráticas, que, presentes na nova lei brasileira, reproduzem as proibicionistas convenções internacionais e as demais legislações internas criminalizadoras da produção, da distribuição e do consumo das drogas qualificadas de ilícitas, já demonstraram que os riscos e danos relacionados a tais substâncias não provêm delas mesmas. Os riscos e danos provêm sim do proibicionismo. Em matéria de drogas, o perigo não está na sua circulação, mas sim na proibição, que, expandindo o poder punitivo, superpovoando prisões e negando direitos fundamentais, acaba por aproximar democracias de Estados totalitários (Karam, 2008. p. 117).

1  O THC está presente apenas nas plantas adultas e fêmeas e seus índices variam de acordo com as plantas. Plantas macho, ou a Cannabis ruderalis, por exemplo, possui índices irrisórios de THC e são amplamente usadas na produção industrial. 2  É a falta de uma vítima no “crime” de uso de drogas é o que faz com que nos autos do processo conste como vítima “A sociedade”.

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Dentre as mais variadas restrições características dos Estados autoritários, as restrições à liberdade de culto e as imposições de um único modelo religioso que exclui todos os outros e lhes tira a legitimidade de existir dão o “espírito do autoritarismo”. A falta de liberdade religiosa em decorrência do autoritarismo fascistóide travestido de política pública de segurança, a guerra às “drogas” condenou o sacerdote da Primeira Igreja Niubingui Etíope Coptic de Sião do Brasil (Rastafári) à uma pena muito próxima da pena máxima por tráfico de drogas (15 anos), além de uma multa de 48,1 mil e da perda do imóvel onde a Igreja funcionava e foi invadida (invadiram sua casa sem qualquer tipo de mandato). A perda do único imóvel é amparada pela hedioneidade da prática ritualística tipificada como crime. Apesar dos dois habeas corpus impetrados no TJ e um no STJ a defesa não logrou sucesso. O caso em questão é emblemático na discussão dos limites do Direito Penal em seu conflito com os direitos fundamentais de liberdade religiosa. A lei de drogas é uma “lei em branco”, ou seja, a ANVISA é quem determina o que é considerado ilícito através de uma portaria. Tal órgão inclui e exclui plantas e substâncias ao seu bel prazer sem que seja apresentado qualquer resultado positivo na guerra às drogas, tampouco não há qualquer tipo de prestação de contas para a sociedade amparada em estudos que comprovem a necessidade de criminalizar alguma droga e sua cultura. Sendo assim, o processo de criminalização de determinadas substâncias psicoativas tornadas ilícitas pela “guerra às drogas”, perpetrada no início do século passado, parte de uma premissa meramente arbitrária e em clara contraposição aos direitos fundamentais e constitucionais do indivíduo. No caso em questão, além da violação do direito à liberdade de crença, é também violado o direito individual de autolesão, caso haja algum tipo de malefício e/ou abuso no uso dessas substâncias. No que concerne a esta lei penal em branco, Carvalho (2014) que a técnica dos preceitos em branco gera uma grave crise no sistema de legalidade constitucional, pois permitem que o executivo estabeleça o conteúdo formal do tipo penal. A lei penal em branco é caracterízada por preceitos incompletos que requerem preenchimento por terceiros dispositivos normalmente de cunho extrapenal (administrativo).”...”A parte integradora do tipo não segue, portanto, o rigoroso procedimento de criação de lei penal. Contudo produz os mesmos efeitos incriminadores (CARVALHO, 2014, p. 274,275).

Tanto Karam (2008) quanto Carvalho (2006) vêem na geopolítica de drogas uma retórica que legitime constantemente o estado de exceção criado pelo proibicionismo, traz luz ao paradoxo intrínseco ao proibicionismo de drogas, que suprime os direitos civis, sociais e políticos do cidadão até mesmo no regime democrático. Ensina Carvalho (2014) que na referida lei há apenas uma forma de diferenciar a conduta passível do cárcere, tráfico, da conduta passível de penas alternativas, consumo. Na perspectiva do autor a regra é a inversão do ônus da prova. Assim, do que se depreende da dogmática penal, a única forma de diferenciação entre as condutas seria a comprovação do objetivo para consumo pessoal (art.28). Em não ficando demonstrado este especial fim de agir, qualquer outra intenção independente da destinação comercial, direcionaria a subsunção da conduta ao art. 33, decorrência da generalidade, abstração e universalidade do dolo. Cria-se, em realidade, espécie de zona gris de alto empuxo criminalizador na qual situações plurais são cooptadas pela univocidade normativa. Em situação, inclusive, não variavelmente potencializa na jurisprudência tendência à inversão do ônus da prova, recaindo ao réu o dever de provar durante a cognição a especial finalidade de agir, eximindo a acusação do dever processual imposto pela Constituição, qual seja, confirmar, à exaustão, todas as hipóteses narrradas na denúncia e efetivamente apresentar as evidências que permitem concluir

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não ser a ação direcionada ao uso próprio ou compartihado (CARVALHO, 2014, p. 288-289).

Nesse sentido, o autor corrobora com a tese de inconstitucionalidade do art. 28 da referida lei, pois fere o princípio da lesividade, da autonomia, da inviolabilidade da vida privada e íntima, bem como, incidem de modo contundente no que concerne à moralização da prática secularizada do Direito. Aliados aos argumentos decorrentes do princípio da lesividade e da autonomia individual, os princípios da igualdade e da inviolabilidade da intimidade e da vida privada (art. 5º, X, CR) permitem a densificação da tese da inconstitucionalidade do art. 28 da lei de drogas. A ofensa ao princípio da igualdade estaria exposta no momento em que se estabelece distinção de tratamento penal (drogas ilícitas) e não penal (drogas lícitas) para usuários de dependência física ou psíquica. A variabilidade da natureza do ilícito tornaria, portanto, a opção criminalizadora essencialmente moral. Todavia é nos princípios de tutela da intimidade e da vida privada que os argumentos ganham maior relevância. Os direitos à intimidade e à vida privada instrumentalizam em nossa constituição o postulado da secularização que garante a radical separação entre direito e moral. Nesse aspecto, nenhuma norma penal criminalizadorea será legítima se intervier nas opções pessoais ou se impuser padrões de comportamento que reforçam concepções morais A secularização do direito e do processo penal, fruto da recepção constitucional dos valores do pluralism, da tolerância e do respeito à diversidade blinda o indivíduo de intervenções indevidas na esfera da interioridade. Assim, está garantido ao sujeito a possibilidade de plena reasolução sobre os seus atos (autonomia), desde que sua conduta exterior não afete (dano) ou coloque em risco factível (perigo concreto) bens jurídicos de terceiros. Apenas nestes casos (dano ou perigo concreto) haveria intervenção penal legítima (CARVALHO, 2014, p. 374-374).

Dada a presente discussão, a pena atribuída ao sacerdote Ras Geraldinho é de caráter hiperbólico e não só não se sustentam nas ciências jurídicas, como são de caráter moralizante destas. Esse entendimento solapa garantias constitucionais em nome da defesa jurídica de um bem abstrato que, além de não ser defendido, serve de subterfúgio para a cruzada moral que prejudica não apenas o consumidor de drogas arbitrariamente tornadas ilícitas, mas que traz consequências danosas para a sociedade como um todo. Em nome da segurança solapam a liberdade e sem liberdade o povo não pode se queixar de não ver tais promessas serem cumpridas. REFERÊNCIAS CARLINI, E. A. A história da maconha no Brasil. 2006. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/jbpsiq/ v55n4/a08v55n4.pdf Acessado em 12 de Setembro de 2014. CARVALHO, S. de. A política criminal de drogas no Brasil: Estudo criminológico e dogmático da lei 11.343/06. São Paulo: 2014. CARVALHO, S. de. Política de guerra às drogas na América Latina: entre o direito penal do inimigo e o estado de exceção permanente. Revista Crítica Jurídica. n°. 25. 2006. CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. Rio de Janeiro: Letras e Letras, 1954.

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DIREITO AO ESQUECIMENTO E LIBERDADE DE IMPRENSA. Nara Fonseca de Santa Cruz Oliveira Mestranda em Direito da Universidade Católica de Pernambuco. Especialista em Direito Público. Graduada em Direito pela AESO/PE. [email protected] Camila Freire Monteiro de Araújo Graduanda em Direito pela UFPE. E-mail: [email protected]

SUMÁRIO: Introdução; 1. Origem do direito ao esquecimento; 2. O conflito entre o direito ao esquecimento e o direito à liberdade de imprensa; Considerações finais; Referências

INTRODUÇÃO Este artigo procura analisar alguns aspectos relevantes relacionados ao denominado “direito ao esquecimento”, sobretudo no que se refere ao surgimento, não raro, de conflitos entre este direito e o, não menos importante, direito à liberdade de imprensa. É inegável o valor da imprensa para a sociedade e para a consolidação e manutenção da democracia. Sendo assim, a imprensa não pode sofrer qualquer tipo de censura, mas, em contrapartida, deve ter responsabilidade total com a veracidade das informações. De outro lado, não menos importantes, estão os direitos da personalidade. Dos direitos fundamentais à privacidade e à intimidade, deriva o direito ao esquecimento. Tal direito compreende o desejo da pessoa de não ser lembrado contra a sua própria vontade. Vale ressaltar que não se pretende com o direito ao esquecimento apagar fatos ou reescrever a história. Longe disso, o que se pleiteia é apenas regular fatos pretéritos que podem influenciar de forma danosa na vida do sujeito. Com a ajuda da internet, a informação se propaga de uma forma bem mais eficaz do que no passado, quando dispúnhamos apenas dos meios de comunicação tradicionais, como jornais e televisão. Além disso, os dados pessoais são captados e acumulados pelos provedores, o que pode ocasionar uma perda de controle sobre esses dados, por parte de seus donos. Dessa forma, a privacidade se tornou um problema nas sociedades modernas. As informações pessoais estão sendo comercializadas, mesmo quando são irrelevantes para a formação da opinião pública. Nesse contexto, são comuns os conflitos existentes entre o direito ao esquecimento, derivado dos direitos da personalidade, e o direito à liberdade de imprensa. Vale dizer, não existe hierarquia entre ambos os direitos. No presente artigo, analisaremos aspectos importantes dos referidos direitos conflitantes. Verificaremos, ainda, a melhor técnica para resolver o conflito em questão. 1. ORIGEM DO DIREITO AO ESQUECIMENTO. A internet, atualmente, é um meio muito eficaz para atingir um grande número de pessoas nos mais diversos locais do mundo, com pouco investimento. No entanto, para alcançar uma quantidade expressiva de usuários, faz-se necessária a captação, acumulação e utilização de dados pessoais, de várias formas, pelos provedores. Dessa forma, a privacidade se tornou um grave problema na sociedade de informação.

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As consequências desses problemas são inesgotáveis. Considerando que a idade média mundial em que as crianças entram nas redes sociais é de 12 anos (estudo realizado pela empresa Trend Micro, em outubro de 2011), a preocupação é ainda maior, tendo em vista que esses jovens, imaturos, muitas vezes divulgam e alimentam informações de caráter duvidoso, as quais podem repercutir de maneira negativa perante a sociedade, conforme ensina Erik Noleta Lima (2013, p. 273). A publicação de uma simples foto, por exemplo, pode causar danos futuros. O usuário de uma rede social pode perfeitamente compartilhar uma ou mais imagens e, em momento posterior, resolver apagá-las, todavia existe a possibilidade de tais imagens já terem sido catalogadas por sites de busca ou indexadores. Nesse caso, a internet vai lembrar aquilo que o usuário pretende esquecer. Portanto, a tecnologia, quando não utilizada com cautela, também pode ser considerada uma “vilã”. Os dados constantemente coletados podem ser usados também fora do controle dos seus donos, o que é perigoso. O direito ao esquecimento (“the right to be forgotten”) foi formulado, em fevereiro de 2007, por Viktor Mayer-Schönberger. (2009, p. 7 apud Lima, 2013, p. 273). A intenção era terminar com a ilusão de que o fato de deletar determinados dados pessoais da rede implicaria, necessariamente, em uma exclusão definitiva desses dados. Nesse momento, o direito ao esquecimento passou a ter repercussão. É mister esclarecer que o direito ao esquecimento não é absoluto, mas é através dele que o interessado pode discutir se os fatos passados, a seu respeito, podem ser apagados ou não. Não se trata do direito de apagar a história, mas apenas assegura a possibilidade de debater o uso que é dado aos fatos pretéritos. (Enunciado 531, aprovado na VI Jornada de Direito Civil). Diz-se que não é absoluto, pois existem outros direitos em jogo como, por exemplo, o direito à livre manifestação do pensamento. Vale a pena transcrever o teor do Enunciado 531 da VI Jornada de Direito Civil, promovida pelo CJF/STJ: ENUNCIADO 531 – A tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da informação inclui o direito ao esquecimento. Artigo: 11 do Código Civil Justificativa: Os danos provocados pelas novas tecnologias de informação vêm-se acumulando nos dias atuais. O direito ao esquecimento tem sua origem histórica no campo das condenações criminais. Surge como parcela importante do direito do ex-detento à ressocialização. Não atribui a ninguém o direito de apagar fatos ou reescrever a própria história, mas apenas assegura a possibilidade de discutir o uso que é dado aos fatos pretéritos, mais especificamente o modo e a finalidade com que são lembrados.

Tendo em vista a repercussão do direito em questão, a União Europeia passou a realizar estudos visando uma revisão na legislação relativa à proteção de dados. Em 2009, a Comissão Europeia organizou uma conferência para debater a proteção dos dados pessoais. Já no ano de 2012, foi proposta a codificação do referido direito, pelo Conselho e Parlamento europeus, em uma Diretiva (COM/2012/010) e um Regulamento. (Lima, 2013, p. 274). Nesse contexto, a União Europeia buscando conferir transparência ao mundo digital, apresentou projetos de regulamentação do direito ao esquecimento. A proposta de Regulamento da União Europeia prevê tal direito, expressamente, em seu artigo 17. Viviane Reding (2012, p.5 apud Lima, 2013 p. 274), vice-presidente da Comissão Europeia, apresentou duas argumentações principais aptas a ensejar o reconhecimento do direito em questão. A primeira argumentação é referente ao fato do indivíduo não ter mais interesse que seus dados sejam processados ou armazenados por um controlador de dados. O segundo argumento corresponde à inexistência de justa causa para o controlador manter os dados. O mencionado artigo 17 afirma que o titular dos dados tem o direito de obter a exclusão das informações e a cessação do uso posterior de seus dados, sobretudo quando o titular ainda era uma criança e, portanto, sem maturidade. A exclusão dos dados pode acontecer, por exemplo, quando os mesmos deixarem

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de ser necessários em relação à finalidade que motivou o seu tratamento ou quando o titular retirar o consentimento, nos termos do artigo 6º, nº. 1, alínea a, do próprio Regulamento. Já, no Brasil, o movimento em torno desse direito é bem mais tímido, embora já tenha contado com algumas manifestações. Tais manifestações são mais frequentes na área penal, quando alguém comete um crime e depois de cumprida a pena quer ver apagadas quaisquer consequências penais do seu ato.

2. O CONFLITO ENTRE O DIREITO AO ESQUECIMENTO E O DIREITO À LIBERDADE DE IMPRENSA. O reconhecimento a nível europeu do denominado direito ao esquecimento gerou uma série de debates sobre alguns aspectos. Abordaremos aqui a questão relativa aos meios de comunicação que contêm informações sobre pessoas. Quando é possível exercer o direito ao cancelamento/esquecimento de uma determinada informação pessoal que se encontra na rede? Inicialmente, é importante falar sobre a natureza do direito ao esquecimento, visando compreendê-lo melhor. Ele pode ser concebido em um duplo sentido, conforme os ensinamentos de Koops (2011, p. 231, apud Rojas, 2013, p. 2): direito de esquecer e direito a ser esquecido. Pode, ainda, ser analisado de duas formas: como um direito de caducidade de informação pessoal pelo transcurso do tempo ou no caso de ter cumprido com sua finalidade, e; como um direito de esquecer uma informação que possa parecer negativa para a pessoa -“novo começo” ou “ficha limpa”. (Koops 2011, apud Rojas, 2013, p. 2). De acordo com os ensinamentos de Rojas (2013, p. 3), o direito ao esquecimento deve ser entendido, em suma, como: “uma pretensão de esquecer ou ser esquecido certas informações de caráter pessoal, o que em sentido estrito se trataria de um direito subjetivo ao cancelamento, retificação ou oposição/rejeição de certa informação.”. Como já foi dito, não se trata de um direito absoluto. O exercício da liberdade de expressão, em sentido amplo, pode perfeitamente delimitar o direito ao esquecimento. Nesse contexto, é necessário fazer algumas ponderações importantes acerca do direito constitucional (Art. 5º, CF/88) à liberdade de expressão. E, vale ressaltar, liberdade de expressão em sentido amplo abarca a liberdade de informação, que compreende o direito de informar, se informar e ser informado. Conforme ensina José Afonso da Silva (2005, p. 246): A liberdade de informação compreende a procura, o acesso, o recebimento e a difusão de informações ou idéias, por qualquer meio, e sem dependência de censura, respondendo cada qual pelos abusos que cometer. O acesso de todos à informação é um direito individual consignado na Constituição, que também resguarda o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional (art. 5º, XIV).

Nesse contexto, é possível afirmar que a liberdade de expressão compreende uma série de garantias que visam promover e assegurar a ampla manifestação do pensamento e a divulgação da notícia, por qualquer meio (TV, jornais, internet, etc). Para George Marmelstein (2013, p. 121), é um instrumento muito importante para o fortalecimento da democracia: [...] é um instrumento essencial para a democracia, na medida em que permite que a vontade popular seja formada a partir do confronto de opiniões, em que todos os cidadãos, dos mais variados grupos sociais, devem poder participar, falando, ouvindo, escrevendo, desenhando, encenando, enfim, colaborando da melhor forma que entenderem.

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A liberdade de imprensa (ou liberdade de informação jornalística) é outro tipo de liberdade, também compreendida pelo conceito de liberdade de expressão no seu sentido amplo. Refere-se à liberdade conferida aos meios de comunicações para divulgar informações. Sobre o tema, as palavras de Karl Marx: A imprensa livre é o olhar onipotente do povo, a confiança personalizada do povo nele mesmo, o vínculo articulado que une o indivíduo ao Estado e ao mundo, a cultura incorporada que transforma lutas materiais em lutas intelectuais, e idealiza suas formas brutas. É a franca confissão do povo a si mesmo, e sabemos que o poder da confissão é o de redimir. A imprensa livre é o espelho intelectual no qual o povo se vê, e a visão de si mesmo é a primeira confissão da sabedoria. (apud Da Silva, 2005, p. 246).

A imprensa é, sem sobra de dúvidas, considerada um instrumento poderoso de formação da opinião, exercendo influência em todos os setores da sociedade, sendo fundamental para a manutenção da democracia. É tão importante ao ponto da Constituição Federal de 1988 ter reservado um capítulo inteiro (“Da Comunicação Social”) para tratar do tema. O artigo 220 da CF/88 estabelece o seguinte: “A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição”. Nesse contexto, é de fundamental importância que a imprensa respeite certos limites impostos, à exemplo da verdade e do interesse social. De acordo com os ensinamentos de Judicael Sudário de Pinho (2003, p. 128): A liberdade de informação refere-se essencialmente à informação verdadeira, assim ocorrendo porque a imprensa é formadora de opinião pública, com relevante função social, possibilitando o amplo desenvolvimento da liberdade de opção da sociedade para reforçar o regime democrático.

Dessa forma, quando se fala em liberdade de expressão, sobretudo no que se refere à liberdade de imprensa, só abrange a informação verdadeira. O professor Marcelo Novelino (2010, p. 423) aponta três limites ao exercício da liberdade de imprensa: veracidade (é preciso investigar a veracidade da informação e conceder o direito de retificação, se for o caso), relevância pública (protege-se a informação relevante para a formação da opinião pública) e forma adequada da transmissão (a informação deve ser transmitida sem conter insultos e sem se estender a aspectos que não interessam à formação da opinião pública). A intimidade da pessoa, por exemplo, deve ser preservada. O direito ao esquecimento decorre do direito à intimidade, privacidade e demais direitos da personalidade. Compreende o desejo da pessoa de não ser lembrado contra a sua própria vontade. Não se trata do direito de reescrever a história. Não busca apresentar uma história, pessoal ou coletiva, afastada da realidade. Não pretende, portanto, ser um elemento de modificação da informação. O direito ao esquecimento, na verdade, gera a pretensão de que certo comportamento, por exemplo, possa ser esquecido. (Rojas, 2013, p. 4). Atualmente, a privacidade vem sendo relativizada, assistimos a comercialização de informações íntimas, que em nada contribuem para a formação da opinião pública. Nesse sentido, a análise de Paulo José da Costa Júnior (2007, p. 16): Aceita-se hoje, com surpreendente passividade, que o nosso passado e o nosso presente, os aspectos personalíssimos de nossa vida, até mesmo sejam objeto de investigação e todas as informações arquivadas e livremente comercializadas. O conceito de vida privada como algo precioso, parece estar sofrendo uma deformação progressiva em muitas camadas da população. Realmente, na moderna sociedade de massas, a existência da intimidade, privatividade, contemplação e interiorização vem sendo posta em xeque, numa escala de assédio crescente, sem que reações proporcionais possam ser notadas.

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É nesse cenário que surgem as discussões referentes ao direito ao esquecimento. O sujeito tem o direito de não ser lembrado contra a sua vontade, sobretudo quando a informação desabona o sujeito e em nada é relevante para a formação da opinião pública. Como já foi dito, não é uma questão de apagar fatos, mas sim uma questão de regulá-los, freando a exploração excessiva e desnecessária da vida privada. O conflito entre o direito à liberdade de imprensa e o direito ao esquecimento não é fácil de resolver, pois de um lado temos o interesse legítimo de “revelar” e, do outro lado, temos o interesse também legítimo de “ocultar”. Conflitos dessa espécie são comuns no Direito Constitucional Contemporâneo e acontecem em razão da complexidade das sociedades modernas. (Barroso, 2012, p. 352-353). Barroso explica, ainda, que os direitos fundamentais são expressos sob a forma de princípios, estando sujeitos à concorrência com outros princípios. A aplicabilidade de um ou outro princípio será definida de acordo com as circunstancias jurídicas e fáticas. (Barroso, 2012, p. 352-353). Para Barroso (2012, p. 358), a técnica de subsunção não é constitucionalmente adequada para resolver o conflito, uma vez que não existe hierarquia entre as normas constitucionais (Princípio da Unidade da Constituição). Pelo mesmo motivo, Barroso (2012, p. 358) descarta também os critérios tradicionais de resolução de conflitos (cronológico, hierárquico e especialização). Sendo assim, é preciso analisar o caso concreto para decidir qual dos princípios conflitantes deve, naquele caso, prevalecer ou sofrerá menos constrição do que o outro. Nas palavras de Edilson Pereira de Farias (1996, p. 96): A “colisão de princípios”, ao revés de conflito de regras, tem lugar na dimensão da validez, acontece dentro do ordenamento jurídico [...], vale dizer: não se resolve a colisão entre dois princípios suprimindo um em favor do outro. A colisão será solucionada levando-se em conta o peso ou a importância relativa da cada princípio, a fim de se escolher qual deles, no caso concreto, prevalecerá ou sofrerá menos constrição do que o outro.

Portanto, presente o conflito entre direitos fundamentais, deve-se utilizar a técnica da ponderação. Tal técnica engloba três etapas. Na primeira etapa, o intérprete deve identificar as normas relevantes ao caso, momento em que deve visualizar eventuais conflitos entre elas; na segunda etapa, o intérprete deve analisar o caso concreto e os fatos, bem como a interação desses fatos com as normas; na terceira etapa, o intérprete vai se dedicar à decisão, ponderando as normas aplicáveis e avaliando a repercussão das circunstâncias do caso concreto, determinando, então, o grupo de normas preponderantes no caso. (Barroso, 2012, p. 359). Pelo o exposto, é possível concluir que a Constituição Federal protege o direito à liberdade de imprensa, bem como protege o direito ao esquecimento, que é derivado do direito à privacidade. Ambos os direitos são importantes para a proteção da dignidade da pessoa humana. Sendo assim, sempre que surgir o conflito entre os referidos direitos deve-se analisar o caso concreto, utilizando a técnica da ponderação, com o intuito de decidir qual direito deve preponderar. CONSIDERAÇÕES FINAIS A sociedade atual é marcada pela propagação rápida da informação, através da internet, a qual atinge milhões de pessoas de uma só vez. Nesse contexto, surgem os problemas com a privacidade, uma vez que não é raro o fato do usuário da internet perder o controle sobre seus dados pessoais. A rede não perdoa e lembra o que a pessoa deseja esquecer. Assistimos uma verdadeira invasão da vida privada, com a comercialização de informações de caráter pessoal, que em nada são relevantes para a formação da opinião pública. O direito à liberdade de imprensa é muito importante para a manutenção da democracia e não pode ser censurado. Todavia, a imprensa tem que ter compromisso com a veracidade das informações, pois o fato de não poder sofrer censura não se confunde com o fato de não ser responsabilizada pelas inverdades que veicular.

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Não menos relevante, é o direito ao esquecimento, derivado do direito à privacidade e à intimidade. Restou evidente no presente artigo que não se pretende, com o direito ao esquecimento, reescrever a história, mas sim regular fatos que possam influir de maneira danosa na vida de uma pessoa. Instaurado um eventual conflito entre o direito ao esquecimento e o direito à liberdade de imprensa, deve o intérprete analisar o caso concreto, aplicando a técnica da ponderação, decidindo qual deles deve preponderar naquele caso concreto. Ficou claro que não existe hierarquia ente os direitos conflitantes, sendo ambos os direitos protegidos pela CF e importantes para a concretização da dignidade da pessoa humana.

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A POLÍTICA DE PRIVACIDADE DO GOOGLE E SUAS INFRAÇÕES AO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR E AO DIREITO CONSTITUCIONAL À PRIVACIDADE: UMA PERSPECTIVA BRASILEIRA

Paloma Mendes Saldanha Mestranda em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). Especialista em Direito da Tecnologia da Informação pela Universidade Cândido Mendes (UCAM/RJ). Professora. Advogada. Membro da Comissão de Tecnologia da Informação da OAB/PE. Multiplicadora do Processo Judicial Eletrônico pelo Conselho Federal da OAB.

SUMÁRIO: Introdução. 1. A privacidade e a sociedade da informação: uma nova cultura na rede. 1.1. A interconexão de informação entre os sites e sistemas. 1.2. Rastreamento de dados e o anonimato. 2. A política de privacidade do Google: O que deveríamos saber? 3. Termo de uso e condições do Google e infrações à legislação brasileira. Conclusão. Referências.

INTRODUÇÃO É sabido que em tempo de virtualização das informações, questões como privacidade tem seu conceito cada vez mais relativizado. A coleta de dados, realizada “com” consentimento expresso do usuário da rede através da assinatura do termo de uso e condições, no meio virtual, está cada vez mais usual e necessária para que os cidadãos façam parte do novo conceito de sociedade ou socialização. Os dados pessoais dos internautas passaram a fazer parte do mundo virtual completando o armazenamento de dados dos servidores responsáveis pela autorização do acesso ao conteúdo existente em determinadas páginas da internet. A compra passou a ser on-line e a conversa passou a ser virtual. Numa sociedade onde o “existir” começa a significar estar sozinho e ao mesmo tempo estar entre a coletividade, a Web 2.0 não poderia ser diferente. Aguçou a curiosidade da sociedade gerando a troca de informações em perfis pessoais ou profissionais vulneráveis e submissos às regras impostas pelas redes sociais. Assim, o que de longe é algo extremamente benéfico para a sociedade, trazendo seu avanço tecnológico dentro uma nova cultura (a cibercultura), tem-se a ameaça aos direitos fundamentais do cidadão, especificamente a privacidade do indivíduo. Neste cenário, surge a grande polêmica sobre a política de privacidade adotada pela Google, uma das maiores empresas de serviços virtuais. Mesmo diante de toda facilidade, celeridade e praticidade para os usuários mais exigentes quanto a velocidade das páginas, muitos esquecem que se trata de uma invasão discricionária à privacidade e consequentemente ao seu direito de autodeterminação informativa. Logo, mesmo ciente de todas as possibilidades de utilização dos dados pessoais ali cadastrados e do monitoramento dos diálogos, a maioria dos usuários permite tal conduta com receio de perder o acesso aos diversos mecanismos oferecidos pelo Google, uma vez que as novas regras de privacidade não são opcionais, caracterizando, portanto, o termo de uso e condições como um contrato de adesão repleto de cláusulas abusivas.

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Diante deste cenário, pretende-se analisar o termo de uso e condições disponibilizado pelo Google no intuito de demonstrar as violações ocorridas na legislação brasileira, especificamente ao código de defesa do consumidor, mas, principalmente, a violação constitucional à privacidade. 1. A PRIVACIDADE E A SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO: UMA NOVA CULTURA NA REDE. A evolução da comunicação é um exemplo das grandes modificações que influenciam diretamente no comportamento humano e consequentemente em seu meio social. Da oralidade para a escrita, primeira “informatização da sociedade”, Sócrates dizia que a escrita levaria à negligência do cultivo da memória, e as pessoas saberiam de muitas coisas, mas não das relações essenciais a elas. Platão, por sua vez, dizia que o risco de interpretações equivocadas com a utilização da escrita seria muito maior, pois não haveria conhecimento do autor e do contexto sob o qual a escrita fora produzida1. De fato, esses anseios tornaram-se realidade. Hoje, o costumeiro é a consulta. E inexistindo atenção a leitura, pode-se interpretar erroneamente o que determinado autor quis transmitir. Em contrapartida, a escrita facilitou a comunicação em longa distância, possibilitando o registro de acontecimentos de modo duradouro. A partir da necessidade de obtenção de informações de forma mais célere, bem como a necessidade de alta capacidade de armazenamento de informações, surgiu a informática, consagrada com o advento da Internet. Conhecida como rede aberta que possibilita a comunicação a distância, a Internet se apresentou à humanidade como um veículo de comunicação baseado em respostas simultâneas (por exemplo, MSN – Messenger), bem como uma comunicação assíncrona que não exige a coincidência temporal (por exemplo, e-mail)2. Dentro desse novo contexto, a sociedade já não era mais a mesma. E suas informações já não estavam mais tão bem guardadas como antes. Benefícios como a praticidade/virtualização nas prestações de serviços, a diminuição nas tarifas de ligações telefônicas, a possibilidade de comunicação simultânea entre um grande número de pessoas de diversas localidades, e, a atualização constante quanto aos acontecimentos de todos os setores da sociedade (economia, política, saúde, esporte e laser) através dos search engines, esconderam o déficit ocasionado na privacidade do ser humano. Os dados pessoais dos internautas passaram a fazer parte do mundo virtual completando o armazenamento de dados dos servidores responsáveis pela autorização do acesso ao conteúdo existente em determinadas páginas da internet. Os hábitos de consumo do indivíduo passaram a ser informações armazenadas em memórias de computadores. A compra passou a ser on-line e a conversa passou a ser virtual. O que de longe é algo extremamente benéfico para a sociedade, trazendo seu avanço tecnológico dentro uma nova cultura (a cibercultura), tem-se a ameaça aos direitos fundamentais do cidadão, especificamente a privacidade do indivíduo. Mas o que se entende por privacidade? Seria ela a possibilidade de fazer o que quiser? O direito de ter seus segredos mais íntimos preservados? O direito de não ter sua vida privada, imagem ou preferência pessoais abertas ao público? Doutrinariamente o direito de ser “deixado só”, de acordo com Marcus Parede3, surgiu com a publicação de um artigo escrito em 1890 pelos advogados Samuel Waren e Louis Brandeis e intitulado de “The right to privacy” (O direito à privacidade). A denominação foi utilizada pela Corte da Geórgia após três anos de sua publicação. Sendo declarado em 1965, pela Suprema Corte Americana, que a intimidade estava implicitamente assegurada em sua Constituição. A Declaração Universal dos Direitos Humanos em seu artigo 12, inciso I, expõe que ninguém será objeto de arbitrariedade em sua vida privada, em sua honra e em sua reputação. Tratamento semelhante é exposto na Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, que declara que todo indivíduo possui direito à proteção da lei contra atitudes abusivas a sua reputação, honra e vida privada. 1  RAUCH, Wolf. Ética da informação – o problema sob a ótica da ciência da informação. in: KOLB, Anton; BAUER Ruchekn; ESTERBOUR, Reinhold Cibernética: responsabilidade em um mundo interligado pela rede digital. São Paulo: Loyola, 2001, pp. 58-59. 2  LISBOA, Roberto Senise. A inviolabilidade de Correspondência na Internet. in: LUCA, Newton de e FILHO, Adalberto Simão .Direito & Internet - Aspectos jurídicos Relevantes, São Paulo: EDIPRO, 2000, p.475. 3  PAREDES, Marcus. Violação da Privacidade na Internet. Revista de Direito Privado, São Paulo: Revistas dos Tribunais, v.3, n° 9, pp.189, jan /mar 2002.

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No direito interno, a Constituição Federal brasileira de 1988, em seu artigo 5º, inciso X, estabelece que são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurando, inclusive, o direito à indenização pelo dano material e moral decorrente da violação desses direitos. Diante da conceituação dada pelas legislações internas e externas ao Brasil, cabe salientar que a privacidade só será licitamente agredida quando um interesse público superior o exigir, demonstrando que em caso contrário poderá ocorrer danos gravíssimos para a comunidade em geral. Neste sentido, é válido destacar o comentário de Alexandre de Moraes4 quando diz que “os direitos à intimidade e à própria imagem formam a proteção constitucional à vida privada, salvaguardando um espaço íntimo intransponível por intromissões ilícitas externas” Por intimidade, então, compreende-se um interesse individual desenvolvido isoladamente que pode ser físico ou mental. Entretanto, independentemente de sua modalidade, deverá ser protegida de intromissões que venham gerar perturbações. De outro modo, por vida privada, têm-se todos os relacionamentos do indivíduo, inclusive os objetivos. Ou seja: relações comerciais, de trabalho, de estudo, dentre outros. A privacidade, por sua vez, é um direito subjetivo consistente na possibilidade do indivíduo proteger o que lhe é próprio, envolvendo circunstâncias as quais são compartilhadas de modo mais ou menos intenso com algumas pessoas. É a proteção exclusiva de convivência, o resguardo à dignidade humana. Há, também, quem entenda a privacidade em três esferas. Lisboa5, por exemplo, traduz a privacidade como esfera pública (dados tornados públicos pelo seu titular), esfera privada (dados não sensíveis à pessoa) e esfera íntima (convicções pessoais em geral que possui relativa relação com o direito à liberdade de expressão). Pelo Direito Civil brasileiro, o direito à privacidade é considerado como um direito da personalidade. Já a Constituição brasileira de 1988, o entende como um direito fundamental que quando observado dentro de uma concepção universal, estaria inserido no campo dos direitos humanos. É interessante observar que no contexto do “existir” começa a significar estar sozinho e ao mesmo tempo estar entre a coletividade. A Web 2.0 aguçou a curiosidade da sociedade, gerando a troca de informações em perfis pessoais ou profissionais completamente vulneráveis e submissos às regras impostas pelas redes sociais. Entretanto, para a nova geração, que já nasceu mergulhada na tecnologia digital, o conceito de privacidade parece destoar do que fora apontado acima. Isto porque, grande parte do processo de socialização passou a ser virtual. Como disse Ruy de Queiroz6, “a ideia de duas esferas distintas, o ‘público’ e o ‘privado’, é, sob vários aspectos, um conceito ultrapassado para o jovem de hoje”, visto que “a disponibilização online de conteúdo pessoal faz parte do processo de auto-expressão, de conexão com os pares, de socialização e crescimento da popularidade, e da própria ligação com amigos e membros de grupos de pares”. Dentro desse aspecto fica claro a forte presença da informação na sociedade e também o intenso controle que exerce sobre a mesma. De forma a ser considerado por muitos como uma dimensão em que todos ao mesmo tempo em que se encontram livres, possam sentir-se aprisionado. Como explana Paesani7: Com a inserção desses novos mecanismos tecnológicos, cada vez mais sofisticados de difusão de informações, há uma contribuição para um crescente estreitamento de círculo privado. Esses sistemas de vigilância, monitoramento e controle, podem ser ilustrados pela narrativa apresentada no filme Matrix, lançado em 1999 sob direção dos irmãos Wachowski, onde a sociedade é transportada para o espaço totalmente passível de controle.

De toda forma, mesmo supostamente existindo uma nova ótica para o conceito de privacidade, não se traduz como correta a submissão de toda a população a cláusulas abusivas, enganosas e não garantidoras de direitos constitucionalmente tutelados. 4  MORAES, Alexandre de. Constituição Brasileira e Legislação Constitucional. 5º ed, São Paulo: Atlas, 2005. pp.224. 5  LISBOA, Roberto Senise. A inviolabilidade de Correspondência na Internet; in: LUCA, Newton de, SIMÃO FILHO, Adalberto (coord): Direito & Internet - Aspectos jurídicos Relevantes, São Paulo: EDIPRO, 2000. pp.471 6  QUEIROZ, Ruy de. A evolução do conceito de privacidade. Disponível em: http://www.ibdi.org.br/site/artigos.php?id=230. Acesso em 25 jan 2016. 7  PAESANI, Liliane Minardi APUD SANTOS, Salomão, Habib. Sociedade de controle: a perda da privacidade a partir dos avanços tecnológicos. In CONGRESSO BRASILEIRO DE CIENCIA DA COMUNICAÇÃO, XXXII, 2009, Curitiba: INTERCOM- Sociedade Brasileira de Ciência da Computação. 2009. p. 9.

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1.1. A INTERCONEXÃO DE INFORMAÇÃO ENTRE OS SITES E SISTEMAS.

No papel, o direito está garantido. Mas na prática será que isso vale mesmo? Os usuários sabem o que é feito com seus dados de navegação? Quantos dos usuários inscritos para utilização dos serviços da Google leram os Termos de Privacidade do MSN, Orkut, Google, Facebook ou qualquer outro aplicativo, site, web 2.0 ou programa disponível na Internet? Intimidade e vida privada também existem na Internet! Sites ou serviços que não cumprem a determinação de preservar a privacidade e a intimidade estão infringindo princípios constitucionalmente estabelecidos. Mas, o que muitas pessoas reclamam – e sem razão – é que o site X está tendo acesso aos seus dados de navegação sem o seu consentimento. Porém, esta mesma pessoa não leu, sequer, a primeira linha do Termo de Privacidade e lá pode estar escrito que o site ou software utiliza cookies e nenhum outro tipo de explicação quanto ao que seriam cookies. De uma maneira bem fácil, cookies nada mais são que arquivos criados na máquina do usuário8. Esses arquivos servem para que os sites façam anotações de dados que futuramente serão utilizados para a criação de páginas customizadas. Por exemplo: você entra em um site e se cadastra com seu nome. O cookie já devidamente alojado em sua máquina fará com que na próxima vez que você entre nesse mesmo site, não precise mais digitar seu nome. O que existirá é a leitura da anotação feita pelo cookie criado. Assim, pode-se observar a existência de vantagens e desvantagens, pois a praticidade e facilidade repassada ao usuário são reais. Porém, há um comprometimento da privacidade quando existe a permissão de que outros programas leiam o conteúdo dos cookies criados em nossas máquinas. As informações coletadas em qualquer dos sites da Google (Youtube, Gmail, Google+ e Blogger), por exemplo, poderão ser compartilhadas por seus outros serviços. Tudo isso devido ao termo de uso que é assinado pelo usuário, bem como decorrente da criação/envio de cookies ou identificadores anônimos. Estes são tidos como “sequências aleatórias de caracteres utilizadas em plataformas, inclusive em alguns dispositivos móveis nos quais a tecnologia dos cookies não está disponível”9. Ou seja, a finalidade dos identificadores anônimos é a mesma, modificando apenas o intermediário. Sérgio Amadeu10 entendeu que o rastreamento dos sites acessados pelos usuários ocorre o tempo inteiro, especialmente por parte das grandes corporações. Inclusive, ressalta que o cruzamento de informações, conhecido como cruzamento do log (dado de conexão) com o número do IP, só deveria existir por via judicial, ou seja, o cruzamento de informações realizado pelos cookies e identificadores anônimos, em tese, só poderia ocorrer com autorização do Judiciário e quando houver suspeita de crime virtual. 1.2. RASTREAMENTO DE DADOS E O ANONIMATO.

Ao ingressar na internet um dos aspectos mais relevantes é à privacidade de quem percorre ciberespaço e deseja o anonimato. Entretanto, como supracitado, a interconexão de informações dos usuários tornou-se prática comum no espaço cibernético tornando-se praticamente impossível para um internauta passar despercebido em qualquer navegação. O cenário atual é totalmente incongruente com uma das principais características da internet, um espaço de liberdade total em que na rede o usuário poderia acessar websites de qualquer natureza sem se identificar e sem ter contra si qualquer argumento legal que lhe impeça o anonimato. 8  SOS Serviços Online de Segurança. O que são cookies e como eles podem me prejudicar. Disponível em: http://seguranca.uol. com.br/antivirus/dicas/curiosidades/o-que-sao-cookies-e-como-eles-podem-me-prejudicar.html#rmcl Acesso em 11 jan 16 9  Site Política e Privacidade do Google. Políticas e Princípios. Termos-chave. Disponível em: http://www.google.com/intl/pt-BR/ policies/privacy/key-terms/#toc-terms-identifier. Acessado em 08 abr 2013. 10  TIInside. Rastreamento de sites só deve ocorrer com ordem judicial, defendem especialistas. Disponível em: http://convergecom.com.br/tiinside/17/04/2012/rastreamento-de-sites-so-deve-ocorrer-com-ordem-judicial-defendem-especialistas/#.UWMp_ qJm1Bg. Acessado em 08 abr 2013.

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O anonimato aqui referido não se resume ao expresso no art. 5º, IV da CF/88 que veda o anonimato na expressão de pensamento, mas sim ao anonimato de trânsito que é expressamente autorizado pela Carta Magna em seu art. 5º, II, que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Ocorre que, infelizmente, a obrigação do fornecimento de diversas informações dos usuários tornou-se uma regra de funcionamento da rede, fazendo do ambiente virtual um celeiro de infrações aos direitos essenciais do homem e de sua dignidade. E, por mais conscientes que alguns internautas sejam, o receio da inutilização de determinados sites, contas, redes sociais acaba se sobrepondo ao interesse de proteger a sua privacidade. Chats, cookies e spam compreendem as modalidades mais comuns de violação da privacidade no campo cibernético, no que diz respeito ao armazenamento de dados sem o consentimento do titular; Compreendem o acúmulo de informação nominativa não veraz ou falsa; Compreendem a subsistência de dados caducos e a adulteração de dados sem conhecimento do usuário. Chat é conhecido popularmente por sala de bate-papo. O teor das conversas, realizadas neste ambiente virtual, não pode ser alvo de conhecimento de pessoas estranhas à conversa, uma vez que se fere a privacidade dos indivíduos participantes da mesma. Já os cookies, são arquivos gravados pelo servidor no disco rígido do usuário, que armazenam informações sobre os hábitos dos consumidores. Estes dados devem ser sempre atualizados para não haver a transferência de informações caducas do usuário, o qual deve ter acesso às mesmas para verificar se elas são verdadeiras. Por sua vez, o spam é o envio/ recebimento não autorizado de e-mails comerciais, cujo envio está cada vez mais intensificado. Principalmente com o auxílio de web sites comerciais que utilizam o cadastro de dados como ferramenta de marketing. É válido ressaltar a utilização de algumas ferramentas, como o Spy-cams (câmeras de espionagem), as quais alimentam vídeos exibidos na Internet; Produtos Plls em pacotes, ou seja, venda de perfis de informações sobre pessoas publicadas na Internet, onde a pessoa consegue identificar por mapas a localidade da residência, ou qualquer informação de um indivíduo; Pegadas de mouse, mecanismo usado para rastrear o comportamento do indivíduo on line. Todas estas ferramentas citadas são mais uma forma de violação da privacidade através da Internet, as quais podem ser prevenidas por meio da utilização de programas, como comopretty good privaci. Estes programas são de técnicas criptográficas que dificultam a identificação dos indivíduos e de seus dados ocasionando mais proteção e segurança às atividades eletrônicas. Contudo, estes programas possuem caráter temporário, devendo ser constantemente atualizados. Assim, independente da aceitação ou não do fornecimento de suas informações, o que a maioria dos usuários não imaginam é que os dados vinculados as páginas/sites do Google são alvos de negócios virtuais e passíveis de diversos mecanismos de rastreamentos de informações. 2. A POLÍTICA DE PRIVACIDADE DO GOOGLE: O QUE DEVERÍAMOS SABER? O avanço tecnológico, em especial a internet, como já dito, propicia uma grande diversidade de informações, facilitando o intercâmbio destas e gerando uma ilimitada capacidade de compartilhamento e produção de informações de qualquer gênero em uma velocidade quase impossível de se acompanhar. Neste sentido, os internautas necessitam atentar para o fato de que as informações inseridas na rede mundial de computadores, hoje, se tornaram completamente vulneráveis, não sendo mais possível se ter o controle do que poderá ou não ser visualizado por terceiros. Infelizmente o deslumbramento frente às possibilidades de serviços e softwares faz com que os usuários distribuam sem o mínimo de atenção um oceano de informações sobre si mesmo, que fica apenas a um clique de uma empresa atrás de clientes ou de criminosos atrás de vítimas. São informações disponibilizadas com ou sem a autorização do proprietário. São dados expostos sem qualquer tipo de segurança e sem qualquer obediência aos princípios de proteção aos dados pessoais. Ou seja, não há garantia quanto a segurança

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física e lógica do armazenamento dos dados em questão, bem como não existe obediência ao princípio da finalidade e da transparência, o que termina por afetar o princípio do livre acesso e o princípio da prevenção11. Art. 8º, PL 4060/2012 I - Princípio da finalidade: a não utilização dos dados pessoais objeto de tratamento para finalidades distintas ou incompatíveis com aquelas que fundamentaram a sua coleta e que tenham sido informadas ao titular; bem como a limitação deste tratamento às finalidades determinadas, explícitas e legítimas do responsável; II - Princípio da necessidade: a limitação da utilização de dados pessoais ao mínimo necessário, de forma a excluir o seu tratamento sempre que a finalidade que se procura atingir possa ser igualmente realizada com a utilização de dados anônimos ou com o recurso a meios que permitam a identificação do interessado somente em caso de necessidade; III - Princípio do livre acesso: a possibilidade de consulta gratuita, pelo titular, de seus dados pessoais, bem como de suas modalidades de tratamento; IV - Princípio da proporcionalidade: o tratamento de dados pessoais apenas nos casos em que houver relevância e pertinência em relação à finalidade para a qual foram coletados; V - Princípio da qualidade dos dados: a exatidão dos dados pessoais objeto de tratamento, com atualização realizada segundo a periodicidade necessária para o cumprimento da finalidade de seu tratamento; VI - Princípio da transparência: a informação ao titular sobre a realização do tratamento de seus dados pessoais, com indicação da sua finalidade, categorias de dados tratados, período de conservação destes e demais informações relevantes; VII - Princípio da segurança física e lógica: o uso, pelo responsável pelo tratamento de dados, de medidas técnicas e administrativas proporcionais ao atual estado da tecnologia, à natureza dos dados e às características específicas do tratamento, constantemente atualizadas e aptas a proteger os dados pessoais sob sua responsabilidade da destruição, perda, alteração e difusão, acidentais ou ilícitas, ou do acesso não autorizado; VIII - Princípio da boa-fé objetiva: o respeito à lealdade e à boa-fé objetiva no tratamento de dados pessoais; e IX - Princípio da responsabilidade: a reparação, nos termos da lei, dos danos causados aos titulares dos dados pessoais, sejam estes patrimoniais ou morais, individuais ou coletivos. X – Princípio da prevenção: o dever do responsável de, para além das disposições específicas desta Lei, adotar, sempre que possível, medidas capazes de prevenir a ocorrência de danos em virtude do tratamento de dados pessoais.

Neste cenário, surge, nos dias atuais, a grande polêmica sobre a nova política de privacidade adotada pela Google, uma das maiores empresas de serviços virtuais. Em síntese, tudo o que o usuário fizer na internet será enviado ao Google no intuito de facilitar a veiculação de publicidade personalizada. Ou seja, ao realizar uma busca sobre determinado assunto no buscador da Google, por exemplo, o tema será automaticamente enviado para o servidor Google que se encarregará de iniciar um “bombardeio” de publicidade de produtos e serviços compatíveis com sua pesquisa inicial. Ressalta-se que a veiculação dessa publicidade personalizada se dará nos demais canais/serviços da empresa, como pode-se observar do trecho extraído da política de privacidade do Google12: 11  DONEDA, Danilo. O direito fundamental à proteção de dados pessoais. In: Direito Privado e Internet. Coordenação de Guilherme Magalhães Martins. São Paulo: Atlas, 2014. P. 71-72. 12  Política de Privacidade do Google. Disponível em https://static.googleusercontent.com/media/www.google.com/pt-BR//intl/ pt-BR/policies/privacy/google_privacy_policy_pt-BR.pdf Acesso em 25 de jan de 2016.

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Informações que o usuário nos transmite. Por exemplo, muitos de nossos serviços exigem que o usuário se inscreva em uma Conta do Google. Quando o usuário abre essa conta, pedimos informações pessoais, como nome, endereço de email, número de telefone ou cartão de crédito para armazenar com a conta. Se o usuário quiser aproveitar ao máximo os recursos de compartilhamento que oferecemos, podemos também pedir a ele que crie um Perfil do Google visível publicamente, que pode incluir nome e foto. Informações que coletamos a partir do uso que o usuário faz dos nossos serviços. Coletamos informações sobre os serviços que o usuário utiliza e como os usa, por exemplo, quando assiste a um vídeo no YouTube, visita um website que usa nossos serviços de publicidade ou quando vê e interage com nossos anúncios e nosso conteúdo. Essas informações incluem: Informações do dispositivo Coletamos informações específicas de dispositivos (por exemplo, modelo de hardware, versão do sistema operacional, identificadores exclusivos de produtos e informações de rede móvel, inclusive número de telefone). A Google pode associar identificadores de dispositivo ou número de telefone à Conta do Google do usuário. Informações de registro Quando o usuário utiliza nossos serviços ou vê conteúdo fornecido pela Google, nós coletamos e armazenamos automaticamente algumas informações em registros do servidor. Isso inclui: detalhes de como o usuário utilizou nosso serviço, como suas consultas de pesquisa. Informações de registro de telefonia, como o número de seu telefone, número de quem chama, números de encaminhamentos, horário e data de chamadas, duração das chamadas, informações de identificador de SMS e tipos de chamadas. Endereço de protocolo de Internet (IP) informações de evento de dispositivo como problemas, atividade de sistema, configurações de hardware, tipo de navegador, idioma do navegador, data e horário de sua solicitação e URL de referência. cookies que podem identificar exclusivamente seu navegador ou sua Conta do Google. Informações do local Quando o usuário utiliza os serviços da Google, podemos coletar e processar informações sobre a localização real dele. Além disso, usamos várias tecnologias para determinar a localização, como endereço IP, GPS e outros sensores que podem, por exemplo, fornecer à Google informações sobre dispositivos, pontos de acesso WiFi e torres de celular próximos. Números de aplicativo exclusivos Determinados serviços incluem um número de aplicativo exclusivo. Este número e as informações sobre sua instalação (por exemplo, o tipo de sistema operacional e o número da versão do aplicativo) devem ser enviados à Google quando o usuário instalar ou desinstalar esse serviço ou quando esse serviço entrar em contato periodicamente com nossos servidores, como para atualizações automáticas. Armazenamento local Podemos coletar e armazenar informações (inclusive informações pessoais) localmente em seu dispositivousando mecanismos como armazenamento no navegador da web (inclusive HTML 5) e caches de dados de aplicativo.

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Cookies e tecnologias semelhantes Nós, juntamente com nossos parceiros, usamos várias tecnologias para coletar e armazenar informações quando o usuário visita um serviço da Google. Tais informações podem incluir o uso de cookies ou tecnologias semelhantes para identificação do navegador ou dispositivo do usuário. Também usamos essas tecnologias para coletar e armazenar informações quando o usuário interage com serviços que oferecemos a nossos parceiros, como serviços de publicidade ou recursos da Google que possam aparecer em outros sites. Nosso produto Google Analytics ajuda empresas e proprietários de sites a analisar o tráfego nos respectivos websites e apps. Quando as informações do Google Analytics são usadas com nossos serviços de publicidade, como os que usam o cookie DoubleClick, elas são vinculadas a informações sobre visitas a diversos sites, pelo cliente do Google Analytics ou pela Google, por meio da tecnologia da Google.

Mesmo diante de toda essa facilidade, celeridade e praticidade para os usuários mais exigentes quanto a velocidade das páginas, muitos esquecem que se trata de uma invasão discricionária de privacidade. Ou seja, mesmo ciente de todas as possibilidades de utilização dos dados pessoais ali cadastrados e das conversas monitoradas, a maioria dos usuários permite tal conduta com receio de perder o acesso aos diversos mecanismos oferecidos pelo Google, uma vez que as novas regras de privacidade não são opcionais. A grande preocupação está no aumento do controle da Google quanto às informações postadas e cadastradas. Pois, apesar da empresa ter garantido que não haverá venda dos dados pessoais cadastrados13, estes podem ser trabalhados pela Google para oferecer outro serviço ou uma publicidade, como dito acima. Embora, se entenda como um modelo de privacidade transparente, no linguajar popular “jogar limpo” com o usuário (existindo, inclusive, um painel de controle para o acesso a todas as informações)14, a nova política de privacidade do Google não pode ser vista como um avanço, mas sim como uma forma de invasão à privacidade. Na realidade, diante de uma ótica crítica e razoável o que se observa é apenas um meio de se esquivar das responsabilidades e dos prováveis processos judiciais oriundos desse tipo de invasão. A motivação aqui é não mais se permitir como argumento as políticas omissas de privacidade. Dessa forma, não é coerente e nem aceitável se pensar que ao concordar com o armazenamento de dados para fins de recebimento de resultados personalizados nas pesquisas, o usuário não preferiria utilizar a rede sem que todos os seus passos fossem monitorados e ainda repassados para terceiros. A política de privacidade em questão, como demonstrado acima através dos seus trechos, informa que o Google coletará informações para fornecer serviços melhores a todos os seus usuários e, que poderá, ainda, coletar informações específicas do dispositivo como, por exemplo, o modelo de hardware, versão do sistema operacional, identificadores exclusivos de produtos e informações de rede móvel, inclusive número de telefone do usuário. Em relação a este último, informa o buscador que também poderá identificar informações de registro de telefonia, como o número de seu telefone, número de quem chama, números de encaminhamentos, horário e data de chamadas, duração das chamadas, informações de identificador de SMS e tipos de chamadas15. Um exemplo fático de que a política de privacidade adotada pelo Google transgrede em todos os aspectos o direito à privacidade, é a adesão conjunta a Aliança de Anunciantes Digitais (Digital Advertising

13  Portal R7 notícias. Polêmica, nova política de privacidade do Google entra em vigor. Disponível em: http://noticias.r7.com/ tecnologia-e-ciencia/noticias/polemica-nova-politica-de-privacidade-da-google-entra-em-vigor-20120301.html?question=0. Acesso em 01 de março de 2012. 14  Painel de Controle do Google. Disponível em: https://accounts.google.com/ServiceLoginAuth?continue=https%3A%2F%2Fwww.google.com%2Fdashboard%2Fb%2F0%2F%3Fhl%3Dpt-BR&followup=https%3A%2F%2Fwww.google.com%2Fdashboard%2Fb%2F0%2F%3Fhl%3Dpt-BR&service=datasummary&hl=pt-BR 15  SANTOS, Fabíola Meira de Almeida. O Google que tudo vê e tudo sabe. Disponível em: http://www.jornaldasmissoes.com.br/ noticias/geral/id/875/artigo-o-google-que-tudo-ve-e-tudo-sabe.html. Acessado em 10 de março de 2012.

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Alliance)16. Ou seja, o usuário poderá decidir se quer ou não ter seu conteúdo rastreado pelo Google e a partir de então utilizar uma função no navegador (acrescida por consequência da aliança) que permite ao usuário bloquear o rastreamento das suas preferências de navegação. A aliança visa minimizar a utilização dos “monitores de hábitos” que objetivam a formação do perfil de um cliente potencial, que são utilizados, em regra, para a realização de propostas de cartões de crédito, seguros e vagas de emprego. Entretanto, é importante destacar que esta medida ainda não é suficiente, uma vez que as informações que são coletadas do usuário podem ainda ser utilizadas para pesquisa de mercado e desenvolvimento de produtos. É justamente diante deste cenário que a sociedade da informação deve se questionar cada vez mais sobre o que é feito com os seus dados de navegação, bem como deve ser crescente o interesse em ler os vastos termos de privacidade antes de aceitar um serviço oferecido por um determinado navegador. Pois um dos grandes problemas de invasão a privacidade é que os próprios usuários não são cautelosos com as suas informações pessoais e não se dão conta da livre interconexão de informações que ocorre no âmbito cibernético, uma vez que a maioria, se não todos, os fornecedores de serviços ou softwares não avisam sobre a possibilidade de interconexão das informações dos seus usuários. 3. TERMO DE USO DO GOOGLE E INFRAÇÕES À LEGISLAÇÃO BRASILEIRA. Passa-se, portanto, para a análise do termo de privacidade do Google sob a ótica do código de defesa do consumidor, bem como sob o ponto de vista da violação ao direito constitucional à privacidade. Newton De Lucca17 aponta o surgimento de “uma nova espécie de consumidor (...) – a do consumidor internauta – e, com ela, a necessidade de proteção normativa, já tão evidente no plano da economia tradicional”. A modificação no conceito do “ser consumidor” atual, utiliza o meio ambiente eletrônico não só para a efetivação do pacto contratual de bens ou serviços, mas, principalmente, para a coleta de informações desses mesmos itens. Assim, o avanço da relação consumerista para o âmbito virtual, como tudo na sociedade, não trouxe só benefícios para o consumidor. Para caracterização do fornecedor, tem-se no artigo 3º do Código de Defesa do Consumidor, que tal posto é assumido por toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira que desenvolvem atividades de comercialização de produtos, prestação de serviços, dentre outros. De acordo com o § 2º do mesmo artigo e diploma legal, “serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração”. Ou seja, nos termos do diploma em questão, para ser considerado serviço, este precisaria ser remunerado. E o que entender sobre os serviços prestados pelo Google que são, em sua maioria, gratuitos? A prestação é realmente gratuita? Conforme decisão da Ministra Nanchy: O fato de o serviço prestado pelo provedor de serviço de Internet ser gratuito não desvirtua a relação de consumo, pois o termo “mediante remuneração”, contido no art. 3º, § 2º, do CDC, deve ser interpretado de forma ampla, de modo a incluir o ganho indireto do fornecedor. (REsp 1316921 / RJ – STJ

2012) No caso do Google, é clara a existência do chamado cross marketing, ou seja, ganho indireto consistente numa ação promocional entre produtos ou serviços em que um deles, embora não rentável em si, proporciona ganhos decorrentes da venda de outro. Dessa forma, a relação jurídica existente entre os internautas e o Google pode abarcar os entendimentos e regras trazidas pelo Código de Defesa do Consumidor. Dessa forma, há de se entender que inexiste prestação de serviço gratuita por parte do Google, vez que as informações colhidas/entregues de forma espontâneas ao servidor são vistas como forma de pagamento pelo serviço utilizado. 16  TIInsideOnLine. Google deixará de rastrear usuários em navegadores. Disponível em: http://convergecom.com.br/tiinside/23/02/2012/google-deixara-de-rastrear-usuarios-em-navegadores/ Acesso em 20 jan 2016. 17  DE LUCCA, Newton. Direito e internet: aspectos jurídicos relevantes. São Paulo: Quartier Latin, v.2, 2008, p. 27.

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O Google enquanto pessoa jurídica estrangeira de direito privado que desenvolve atividades de comercialização de produtos e prestação de serviços, independentemente de ser no meio virtual, possui todos os requisitos de um fornecedor descrito pela legislação brasileira, não sendo, portanto, excluído dos deveres positivados. Entretanto, no Termo de uso, verifica-se em alguns trechos a explícita afirmação de isenção de responsabilidade pelo conteúdo ali postado. Por exemplo: NOSSAS GARANTIAS E ISENÇÕES Exceto quando expressamente previsto nestes termos ou em termos adicionais, nem o Google, nem seus fornecedores ou distribuidores oferecem quaisquer garantias sobre os serviços. Por exemplo, não nos responsabilizamos pelos conteúdos nos serviços, por funcionalidades específicas do serviço, ou pela confiabilidade, disponibilidade ou capacidade de atender suas necessidades fornecemos os serviços “na forma em que estão”. Certas jurisdições preveem determinadas garantias, como a garantia de comerciabilidade implícita, adequação a uma finalidade específica e não violação. Na medida permitida por lei, excluímos todas as garantias.

Outro ponto conflitante com a legislação brasileira é quando o mesmo termo de uso simplesmente afirma ser de sua propriedade todo o conteúdo ali “derramado”. Assim, ao realizar qualquer upload nos serviços do Google, automaticamente você está concedendo os direitos sobre aquele material, mesmo que deixe de utilizar os serviços do site específico. Quando você faz upload ou de algum modo envia conteúdo a nossos Serviços, você concede ao Google (e àqueles com quem trabalhamos) uma licença mundial para usar, hospedar, armazenar, reproduzir, modificar, criar obras derivadas (como aquelas resultantes de traduções, adaptações ou outras alterações que fazemos para que seu conteúdo funcione melhor com nossos Serviços), comunicar, publicar, executar e exibir publicamente e distribuir tal conteúdo. Os direitos que você concede nesta licença são para os fins restritos de operação, promoção e melhoria de nossos Serviços e de desenvolver novos Serviços. Essa licença perdura mesmo que você deixe de usar nossos Serviços (por exemplo, uma listagem de empresa que você adicionou ao Google Maps). Alguns Serviços podem oferecer-lhe modos de acessar e remover conteúdos que foram fornecidos para aquele Serviço. Além disso, em alguns de nossos Serviços, existem termos ou configurações que restringem o escopo de nosso uso do conteúdo enviado nesses Serviços. Certifique-se de que você tem os direitos necessários para nos conceder a licença de qualquer conteúdo que você enviar a nossos Serviços.

A partir dos últimos dois trechos dos termos de uso e condições do Google fica claro que a empresa se coloca disponível para se tornar “proprietária” de todas as informações postadas, incluídas e sugeridas por seus usuários. Mas, se coloca numa postura totalmente omissa quanto a responsabilidade pela manutenção, armazenamento e segurança das mesmas informações que se apoderou. Resta clara a presença do princípio da vulnerabilidade atrelado ao usuário/consumidor que se vê submetido a um contrato de adesão formulado por uma empresa Multinacional que vincula a efetiva utilização dos seus serviços/produtos a assinatura de um termo de uso e condições constante de cláusulas não trazem equilíbrio a relação contratual estabelecida. Nesse contexto, a reparação pelos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação de serviços ou a existência de informações inadequadas ou insuficientes sobre a fruição e riscos daquele serviço, também recai o Google em nossa responsabilidade civil, sendo-lhe imputado o dever de indenizar. Isto porque, conforme o parágrafo 3º do artigo 14 do CDC, o fornecedor de serviços só será isento da sua responsabilidade quando provar a inexistência do defeito após a prestação do serviço, ou então a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiros.

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Assim, analisando as cláusulas já mencionadas, verifica-se a ocorrência, do que se chama no Direito do Consumidor brasileiro, de Cláusulas Abusivas. Ou seja, “cláusulas que tornem a prestação por uma das partes excessivamente onerosas, vexatória ou opressivas, para o consumidor, relembrando que o CDC traz princípios protetivos para resguardar a fragilidade deste diante do negócio”18. As cláusulas abusivas se apresentam com maior frequência nos contratos de adesão. E para confirmar que o formato do contrato disponibilizado pelo Google é um contrato de adesão, basta observar o item 2 do termo de uso e condições do Google Chrome: 2. Aceitação dos Termos 2.1 Para usar os Serviços, o usuário deverá primeiro concordar com os Termos. Não é permitido o uso dos Serviços por parte do usuário se ele não aceitar os Termos. 2.2 O usuário pode aceitar os Termos: (A) clicando para aceitar ou concordar, no caso de essa opção ser disponibilizada pelo Google na interface do usuário do Serviço; ou (B) usando efetivamente os Serviços. Nesse caso, o usuário compreende e aceita que o Google considerará seu uso dos Serviços uma aceitação dos Termos a partir desse momento.

A abusividade das cláusulas postas pelo Google, como já dito e exemplificado, leva a violações da privacidade e intimidade do usuário. Ou seja, a partir da captura e repasse dos dados pessoais, por exemplo, tem-se a designação de gostos e valores de um determinado usuário. O que leva a existência das propagandas repetitivas e constantes caracterizadas pela personalização do conteúdo gerado e recebido. Como já dizia Eric Schmidt19, diretor Geral do Google, “a tecnologia vai ser tão boa que as pessoas terão muita dificuldade em assistir ou consumir qualquer coisa que não tenha sido minimamente adaptada para elas”. Entretanto, a personalização do conteúdo virtual influencia no poder de escolha do indivíduo, causando, inclusive, um direcionamento de comportamento do usuário. Tal fato viola o direito a Autodeterminação Informativa, reconhecido em 1983 pelo Tribunal Constitucional Federal Alemão20 ao declarar a inconstitucionalidade parcial da Lei de Senso de População da Alemanha. Para Ana Rosa Gonzales Morua21, a Autodeterminação Informativa é o: (...) “derecho de todas as personas a controlar el flujo de informaciones que él le conciernem, - tanto em la recolección como el posterior tratamiento y uso de los datos personales – mediante uma série de derechos subjetivos como el consentimento, el derecho de acesso, retificacíon, etc”

Na Espanha, o direito à Autodeterminação Informativa é considerado um direito fundamental, segundo Vicente López–Ibor Mayor y Carmen Plaza22: El derecho a la autodeterminación informativa se configura, pues, como un derecho fundamental de la persona, que entendemos consagrado constitucionalmente en nuestro texto fundamental en el artículo 18.4 cuando se 18  RIBEIRO, Raphael. Cláusulas abusivas e publicidade online em face do direito do consumidor: uma análise do Google Inc. Disponível em: http://intertemas.unitoledo.br/revista/index.php/ETIC/article/viewFile/4352/4109 Acesso em 20 jan 2016. 19  SCHMIDT, Eric APUD PARISER, Eli. Tradução: Diego Alfaro. O filtro invisível. O que a internet está escondendo de você. Rio de Janeiro: Zahar, 2012. P. 47. 20  PEREIRA, Marcelo Cardoso. O sistem de proteção de dados pessoais frente ao uso da informática e o papel o direito da autodeterminação informativa. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2266/o-sistema-de-protecao-de-dados-pessoais-frente-ao-uso-da-informatica-e-o-papel-do-direito-de-autodeterminacao-informativa Acesso em 25 jan 2016 21  MORUA, Ana Rosa Gonzales: “Comentario a la S.T.C. 254/1993, de 20 de Julio. Algunas Reflexiones en torno al artigo 18.4 de la Constitución y la Protección de Datos Personales”, in Informática y Derecho nºs 6 y 7, Aranzadi, Mérida, 1994. P. 243-244. 22  LÓPEZ–IBOR MAYOR, Vicente e PLAZA, Carmen. El Defensor del Pueblo: Derecho, tecnologías de la Información y Libertades in Informática y Derecho nºs 6 y 7, Aranzadi, Mérida, 1994. P. 277

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establece ‘la necesidad de limitar el uso de la informática para garantizar el honor y la intimidad personal y familiar de los ciudadanos’.

É importante lembrar e dizer que a portaria federal n.º 5/2002/SDE/MJ complementou o elenco de cláusulas abusivas constantes do artigo 51 do CDC, ao colocar em seu artigo 1 que: Considera abusiva, nos contratos de fornecimento de produtos e serviços, a cláusula que: I – autorize o envio do nome do consumidor, e/ou seus garantes, a bancos de dados e cadastros de consumidores, sem comprovada notificação prévia; II – imponha ao consumidor, nos contratos de adesão, a obrigação de manifestar-se contra a transferência, onerosa ou não, para terceiros, dos dados cadastrais confiados ao fornecedor; III – autorize o fornecedor a investigar a vida privada do consumidor.

Assim, está evidenciada a relação consumerista entre o usuário de internet e o Google, quando da utilização dos serviços da empresa em questão, mesmo que não exista contraprestação pecuniária. Caracterizada também está a abusividade de todas as cláusulas do termo de uso e condições do Google aqui expostas, uma vez que o usuário dificilmente terá conhecimento técnico suficiente para lidar com a complexidade das interconexões e desobediências técnicas e teóricas aos princípios de proteção aos dados pessoais. No contexto da quebra de princípio estabelecido na Constituição Espanhola, bem como princípios postos na legislação brasileira, verifica-se a transgressão não só ao código de defesa do consumidor enquanto busca pela reparação de danos materialmente ocorridos. É importante estabelecer que as mesmas desobediências traduzem uma transgressão a princípios e direitos constitucionalmente tutelados no Brasil. A Constituição Federal brasileira, em seu artigo 5º, X diz que “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”. A privacidade ainda se vê resguardada no direito brasileiro através do Marco Civil da Internet em seu artigo 8º, caput. Trazendo ainda um parágrafo único contendo especificações consumeristas e de indenização no tocante a violação do direito devidamente garantido pelo Estado e que deve ser mantido por aqueles que aqui querem prestar serviço. Art. 8o Lei 12.965/2014 - A garantia do direito à privacidade e à liberdade de expressão nas comunicações é condição para o pleno exercício do direito de acesso à internet. Parágrafo único. São nulas de pleno direito as cláusulas contratuais que violem o disposto no caput, tais como aquelas que: I - impliquem ofensa à inviolabilidade e ao sigilo das comunicações privadas, pela internet; ou II - em contrato de adesão, não ofereçam como alternativa ao contratante a adoção do foro brasileiro para solução de controvérsias decorrentes de serviços prestados no Brasil.

É importante ressaltar que o direito do consumidor e o direito à privacidade por serem direitos constitucionalmente amparados, caso sofram qualquer tipo de violação no âmbito virtual por parte de empresas estrangeiras, estarão infringindo ou agredindo a soberania nacional do Brasil. Logo, cabe relembrar o artigo 17 da Lei de Introdução as Normas do Direito Brasileiro que diz que “as leis, atos e sentenças de outro país, bem como quaisquer declarações de vontade, não terão eficácia no Brasil, quando ofenderem a soberania nacional, a ordem pública e os bons costumes”. O termo de uso e condições do Google não passa de uma declaração abusiva e unilateral sem eficácia jurídica no Brasil.

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CONCLUSÃO Levando em consideração as transformações sociais frente às mutações tecnológicas que influenciam toda a população, fazendo nascer o que conhecemos hoje por cibercultura, o direito à privacidade e o direito do consumidor não teriam como sair incólumes. A freneticidade da convivência virtual traduz uma nova forma de pensar, fazer, contratar e ser. E é a partir dessa nova forma de vida que se criam as novas regras. A internet por muito tempo fora considerada espaço “sem lei”, ou seja, todas as regras postas pelos ordenamentos jurídicos do planeta deveriam ser desconsideradas, pois, o domínio das “terras virtuais” não pertenciam ao Estado. Hoje, tal entendimento se perpetua para alguns indivíduos e empresas. Estas, por vezes, decidem trabalhar de maneira livre, utilizando-se unicamente das regras jurídicas existentes em seu País de fundação ou estabelecimento. Entretanto, esquecem que desde sempre existem outros ordenamentos que devem ser respeitados caso a intenção seja de, por exemplo, prestar serviço dentro do território vizinho. Poder-se-ia, então, dizer que os direitos ou as regras continuam as mesmas. O que mudou ou o que foi acrescentado fora uma nova localidade para a prática de todos os atos/negócios jurídicos. Não saímos do meio físico, mas aderimos ao meio virtual. Essa é a cibercultura. A existência de filtros, conexões, compartilhamentos, etc. ressalta a necessidade de precaução quanto a disponibilização dos dados no meio virtual. A cautela para a assinatura do termo de uso e condições deve se assimilar a assinatura de um contrato físico. Assim, uma vez o sistema alimentado caberia ao proprietário do site a responsabilidade pela manutenção, armazenamento e sigilo dos dados pessoais ali postados. O rastreamento, bem como a utilização daqueles dados para outros fins que não os especificados no termo de uso e condições, infringe de imediato o princípio da finalidade que está devidamente posto no Brasil (E não só no Brasil!) como um dos princípios de proteção aos dados pessoais. O controle de informações também é algo considerado transgressor de direitos, vez que retira do indivíduo o seu livre arbítrio de escolhas imotivadas, gerando unicamente um conteúdo personalizado que segundo o Google traduz unicamente o início da facilitação e praticidade para os usuários e aquilo que eles querem ter acesso. Entretanto, a personalização, como demonstrado durante todo o texto, não traz só o acesso rápido e prático ao conteúdo desejado, mas também anula todos os outros conteúdos e restringe o alcance das informações, vez que pode chegar a retirar um indivíduo de uma sociedade plural, levando-o para um círculo fechado no qual as ideias e ações se restringem àquela personalização. É a agressão ao direito da autodeterminação informativa. O desconhecimento, por parte dos usuários, das quebras das regras jurídicas realizadas pelo Google termina por não alertar para o fato do compartilhamento de informações para alimentar bancos de dados de terceiros. O que acontece é o desconhecimento sobre a natureza jurídica da relação estabelecida entre o usuário e o Google. Como ficou determinado no presente estudo, mesmo não existindo uma contraprestação pecuniária ao serviço prestado pelo Google aos usuários de internet, a relação descrita se compreende como relação consumerista. E, portanto, deve obedecer aos ditames do Código de Defesa do Consumidor. A contraprestação dada pelos usuários pode ser entendida como pagamento indireto. Ou seja, o usuário paga o serviço de acesso e utilização do Gmail, por exemplo, com todos os dados que são alocados dentro do site em comento. Mesmo que o Google continue a dizer que não tem qualquer responsabilidade pelo conteúdo ou pelos dados ali colhidos, configurada está a relação consumerista e principalmente a vulnerabilidade do consumidor, vez que diante da rede mundial de computadores, para ter acesso ao serviço ele apenas alimenta o banco de dados sem qualquer conhecimento técnico ou teórico de como essa alimentação é feita e como os dados serão tratados. Por fim, a abusividade das cláusulas existentes no termo de uso e condições do Google traduz o desrespeito a soberania nacional.

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DIREITOS POLÍTICOS E ESTRANGEIROS Rafael Lima Rangel Vasconcelos Graduando em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. [email protected]

SUMÁRIO: Introdução; 1. Discutindo a cidadania: brasileiro x estrangeiro; 1.1. Brasileiro nato; 1.2. Brasileiro naturalizado; 1.3. Estrangeiro; 2. Direitos políticos; 2.1. Direito ao sufrágio; 2.2. Elegibilidade; 2.3. Plebiscito e referendo; 2.4. Iniciativa popular de lei; 2.5. Direitos políticos passivos; 3. Estrangeiros poderiam exercer direitos políticos?; Conclusão; Referências.

INTRODUÇÃO A concessão de direitos políticos aos estrangeiros, tem sido objeto de alguns debates no cenário político contemporâneo, principalmente através de Projetos de Emenda Constitucionais; associando essa concessão a questões de requisitos necessários para obtê-los. Esse contexto de concessões oferece a oportunidade para questionamentos sobre qual a justificativa para certos direitos serem concedidos e outros não. Além disso, deve-se questionar qual a importância para os estrangeiros da aquisição de direitos políticos. A resposta a esse primeiro questionamento é dada através do debate realizado por uma análise constitucionalista, para se chegar ao conhecimento do porque que os direitos políticos devem ser garantidos aos estrangeiros que residem de forma permanente no Brasil. Alguns constitucionalistas, por exemplo, defendem que os estrangeiros não devem adquirir os direitos políticos. Por outro lado, os debates são calorosos e já tomaram proporção mundial. Há, portanto, quem acredite que os estrangeiros devam ter garantidos os direitos políticos. O segundo questionamento é sobre qual a importância desses direitos políticos para imigrantes, deve ser realizada por uma análise sociológica-constitucionalista, para que se compreendao que os estrangeiros podem realizar com direitos políticos e o que visam garantir com os mesmos. Com a mudança dessas concepções, também muda a forma como a República Federativa do Brasil passará a tratar os imigrantes de todo o mundo, acarretando, com isso, uma quebra de fronteiras para o mundo, uma vez que a sociedade passará a ser caracterizada pela pluralidade, pois ainda se tem muito a concepção de nação ligada à nacionalidade dos indivíduos1. (REIS, 2006, p. 157). O objetivo deste artigo é oferecer uma apresentação crítica deste complexo debate sobre a concessão dos direitos políticos aos estrangeiros residentes no Brasil. Para tanto, se procederá da seguinte maneira: no primeiro ponto, serão oferecidas as definições de nacionais, sejam eles natos ou naturalizados, e estrangeiros. Em seguida, iremos fazer uma análise do conceito e dos direitos políticos previstos na Constituição Federal de 1988. Já no terceiro ponto, dedicar-se-á uma análise sobre a possível concessão dos direitos políticos aos estrangeiros, apresentando os motivos pelos quais esses devem adquirir os direitos políticos e quais são os direitos políticos que esses possam vir a adquiri-los, a fim de manter a discussão sobre essa possível concessão dos direitos políticos aos estrangeiros.

1  REIS, Rossana Rocha. Soberania, direitos humanos e migrações internacionais. Revista Brasileira de Ciências Sociais. Vol. 19, n° 55, junho 2006. p. 157.

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1. DISCUTINDO A CIDADANIA: BRASILEIRO X ESTRANGEIRO. As políticas de nacionalidade e imigração estão diretamente ligadas. Antes de tudo, deve se definir quem é o nacional, para se chegar à noção de quem é o estrangeiro. (FRAZÃO, 2000, p. 3). A nacionalidade diz respeito a um vínculo pessoal e político entre o indivíduo e o Estado. Através desse vínculo, o indivíduo se integra em determinada comunidade política. Esse vínculo é o que distingue o nacional do estrangeiro, pois esse não possui o vínculo. O próprio Estado, por sua natureza, faz a distinção entre esses, no que concerne aos seus respectivos direitos, pois o Estado não concede aos estrangeiros os mesmos direitos que concedem aos brasileiros, e não concede aos brasileiros naturalizados, todos os direitos que são concedidos aos brasileiros natos. 1.1 BRASILEIRO NATO.

Brasileiro nato é aquele que adquire a nacionalidade brasileira através do fator nascimento2. Corresponde a aquele que nasce na República Federativa do Brasil. É também denominada de nacionalidade brasileira primária, pois ela decorre do fator nascimento. Ela decorre, portanto, de um fato natural, seja pelo critério jus soli, jus sanguini ou misto. Segundo a Constituição Federal de 1988, também será considerado brasileiro nato aquele que nascer em território estrangeiro, de pai brasileiro ou mãe brasileira, desde que qualquer deles esteja a serviço da República Federativa do Brasil e aquele que nascer no território estrangeiro, de pai brasileiro ou mãe brasileira, desde que sejam registrados em repartição brasileira competente ou venham a residir na República Federativa do Brasil e optem, em qualquer tempo, depois de atingida a maioridade, pela nacionalidade brasileira. Ou seja, nem somente aquele que nascer no território brasileiro será brasileiro nato, mas o que nascer em território estrangeiro também, desde que preencha os requisitos citados acima. 1.2 BRASILEIRO NATURALIZADO.

O brasileiro naturalizado é aquele que adquire a nacionalidade brasileira secundária. Ela resulta de um ato voluntário, e não do fator nascimento. (FRAZÃO, 2000, p.4). Ou seja, é imprescindível a vontade do indivíduo de adquirir a nacionalidade brasileira. A República Federativa do Brasil disponibiliza esse único meio derivado para aquele estrangeiro, detentor de outra nacionalidade, e, para o apátrida, que desejar adquirir a nacionalidade brasileira, mas, qualquer desses, deve preencher os requisitos necessários para que possa adquirir a nacionalidade brasileira3. Esses não possuem as mesmas condições jurídicas, ou seja, não têm os mesmos direitos ou os mesmos deveres de que o brasileiro nato. O brasileiro nato possui o direito de exercer cargos aos quais os brasileiros naturalizados não têm competência para exercê-los, por serem cargos que dizem respeito à soberania e aos interesses políticos do país4. 1.3 ESTRANGEIRO.

São considerados estrangeiros, à contrário sensu, todos aqueles que não estão compreendidos nas condições de reconhecimento de nacionalidade pela Constituição Brasileira de 1988. (LOBO, 1968, p. 12). É aquele que tenha nascido fora do território nacional que não tenha adquirido a nacionalidade brasileira, 2  3  4 

Idem, p. 156. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988. Ibdem.

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por qualquer forma prevista na Constituição. A Constituição brasileira considera os estrangeiros como residentes e não residentes no Brasil. Para a análise só irá interessar os estrangeiros residentes no país, visto que, iremos analisar a sua condição em relação aos direitos políticos. Na Constituição Federal de 1988, existe um princípio que afirma que os estrangeiros, residentes no país, gozam dos mesmos direitos e também tem os mesmos deveres de que os brasileiros, porém se fazem presentes algumas ressalvas quanto a esse dispositivo. Essas ressalvas estão previstas num estatuto especial, referente à lei 6.815/80, ao qual estão condicionados os estrangeiros. 2. DIREITOS POLÍTICOS Direitos políticos são o direito de participar no exercício do poder político, como membro do corpo investido de autoridade política, ou como eleitor dos membros de tal corpo. (MARSHALL, 1998, p. 94) É o direito à participação na formação ou do exercício da autoridade nacional, esteja ele na posição de eleitor ou de quem está exercendo um mandato político. Os direitos políticos se dividem em direitos políticos ativos e direitos políticos passivos. Os direitos políticos ativos são: o direito de sufrágio, que se refere ao direito de votar (alistabilidade) e ser votado (elegibilidade); plebiscito; referendo; e a iniciativa popular de lei. Já os direitos políticos passivos são: a inelegibilidade, e as normas de perda e suspensão os direitos políticos. Os direitos políticos ativos dizem respeito à forma de participação do indivíduo na democracia representativa, que é o regime de governo previsto na Constituição Federal de 1988. A seguir, serão demonstrados exemplos de direitos políticos previstos no ordenamento constitucional brasileiro. 2. 1 DIREITO AO SUFRÁGIO.

O direito ao sufrágio é o direito que se externa através do voto para escolher pessoas que irão representar o Estado nas funções estatais, mediante o sistema representativo do regime democrático. (SOUZA, 2015, p. 4) Esse voto se caracteriza por ser obrigatório somente para os indivíduos que possuem entre 18 e 70 anos de idade, personalíssimo, ou seja, só pode ser exercido pelo próprio indivíduo que detém esse direito, pessoalmente; liberdade, pois o indivíduo poderá votar no candidato que acreditar que exercerá o mandato da melhor maneira possível; sigilosidade, onde o voto deverá ser exercido de forma secreta. O voto será exercido pessoalmente e de forma direta. É garantida a periodicidade, ou seja, o candidato não poderá, caso seja eleito, permanecer no poder por mais de que o tempo que foi determinado pela Constituição Federal de 1988, caso não seja reeleito, observado o limite de reeleições consecutivas. 2.2 ELEGIBILIDADE.

A elegibilidade diz respeito ao Direito Político de ser votado (NETO, 2006, p. 5). É a capacidade eleitoral passiva que diz respeito à possibilidade que o cidadão tem de concorrer a determinado mandato político, por meio de uma eleição popular, desde que preencha os requisitos necessários, exigidos pela Constituição brasileira, para a candidatura5. Esses requisitos são a idade mínima para preencher o cargo, a capacidade eleitoral ativa, a nacionalidade brasileira ou condição de português equiparado, o pleno gozo dos direitos políticos, o alistamento eleitoral, o domicílio eleitoral na circunscrição e a filiação partidária, sem a qual o indivíduo não poderá se candidatar. 5  BRASIL. Constituição Federal. Art. 14. [...] §3º - São condições de elegibilidade, na forma da lei: I - a nacionalidade brasileira; II - o pleno exercício dos direitos políticos; III - o alistamento eleitoral; IV - o domicílio eleitoral na circunscrição; V - a filiação partidária; VI - a idade mínima de: a) trinta e cinco anos para Presidente e Vice-Presidente da República e Senador; b) trinta anos para Governador e Vice Governador de Estado e do Distrito Federal; c) vinte e um anos para Deputado Federal, Deputado Estadual ou Distrital, Prefeito, Vice-Prefeito e juiz de paz; d) dezoito anos para Vereador.

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2.3 PLEBISCITO E REFERENDO.

São consultas ao povo para decidir sobre matéria de importância para a nação em relação a assuntos de natureza constitucional, legislativa ou administrativa. O referendo permite aos cidadãos confirmarem ou não ato legislativo ou administrativo; o plebiscito, por sua vez, é a convocação com anterioridade para que o povo aprove ou denegue o ato legislativo ou administrativo (RIBEIRO, 2007, p. 8). 2.4 INICIATIVA POPULAR DE LEI.

A iniciativa popular diz respeito ao direito assegurado a um conjunto de cidadãos de iniciar o processo legislativo, o qual se desenvolve num órgão estatal, que é o Parlamento. (BENEVIDES, 1998, p. 33). Está prevista no art. 61, § 2°, da CF/88. Ela só poderá ser exercida pela apresentação à Câmara dos Deputados de um projeto de lei subscrito por, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco Estados, com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles; ou seja, cada Estado participante, deve ter, no mínimo, 0,3% do eleitorado nacional na apresentação do projeto de lei. 2.5 DIREITOS POLÍTICOS PASSIVOS.

Os direitos políticos negativos são as previsões constitucionais que restringem a participação do cidadão nos órgãos governamentais. A restrição pode se dar pela inelegibilidade e/ou perda e a suspensão dos direitos políticos. (MORAES, 2014, p. 248). 3. ESTRANGEIROS PODERIAM EXERCER DIREITOS POLÍTICOS? A ligação entre Estado e nação implica na formação de um laço entre nacionalidade e cidadania. (REIS, 2006, p. 155). A cidadania é concedida em função da nacionalidade. Ou seja, somente aquele que for brasileiro nato ou naturalizado terá acesso à cidadania. Atualmente, a cidadania está diretamente ligada aos direitos políticos, de forma que, para adquirir os direitos políticos, o indivíduo precisa ser cidadão brasileiro (nato/naturalizado). O ideal revolucionário da cidadania, o qual absorve a ideia de nacionalidade, serviu de inspiração para a criação de legislações de nacionalidade de vários países, de forma que criou a concepção da ligação da soberania e da cidadania à nacionalidade. É comum as doutrinas defenderem que os estrangeiros, no Brasil, não têm direitos políticos e nem devem passar a ter, por diversos motivos, dentre eles, que os direitos políticos são os direitos que diferenciam os cidadãos dos demais (estrangeiros legais e ilegais), pois, os direitos políticos, são considerados, de certa forma, um privilégio por serem cidadãos. O exercício desses está diretamente ligado à cidadania, na qual se perpetua a soberania. Desde o período pós-guerra, vêm ocorrendo profundas alterações no mundo, que está sofrendo grandes alterações nos modelos de sociedade e nação. Há um século, os países da Europa começaram a recrutar, em grande número, trabalhadores estrangeiros para que conseguissem atender a demanda de seus mercados industriais. Esperava-se que esse fluxo de migração fosse temporário, porém ele perdura até os dias de hoje, e passou a ser visto em diversos países do mundo. Com isso, formam-se novos modelos de sociedade, e se faz importante o reconhecimento da existência de uma comunidade de direitos e deveres mais abrangente, à qual pertenceriam todos aqueles que não são reconhecidos como cidadãos.

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Atualmente, com o aumento dos fenômenos migratórios em todos os países ocidentais, deve ser feita uma reconsideração a alguns temas do constitucionalismo moderno, entre os quais o conceito de cidadania. Esse sofreu, nos últimos tempos, grandes influências, passando a ter um significado amplo. O conceito de cidadania passou a ser compreendido como cidadania em sentido substancial, considerando o conjunto de direitos e deveres da pessoa, e não do cidadão. (ROSSI; DAL MONTE, 2014, p.271). Com isso surge o que se denomina de cidadania pós-nacional. Sobre o fenômeno das imigrações: Uma série de estudos recentes aponta para uma modificação nas relações entre nacionalidade/cidadania e soberania/imigração. O fortalecimento de um regime internacional de direitos humanos, segundo essas novas pesquisas, tem obrigado os Estados a redefinirem suas fronteiras, tanto a interna, como a externa, em função da universalidade dos direitos individuais. Esse processo possuiria duas características: de um lado, os Estados estariam vendo sua soberania enfraquecida frente ao indivíduo, de outro, os laços que ligam os direitos de cidadania à nacionalidade estariam se tornando mais fracos. O Estado, portanto, não poderia definir quem poderia ou não entrar em seu território, e isso seria atribuído ao indivíduo em nome da dignidade inerente da pessoa humana. (REIS, 2006, p. 157).

Com os processos de globalização e a desregulamentação dos mercados financeiros, resultada pelo processo de globalização, bem como a difusão da comunicação mundial (através dos meios telemáticos), busca-se meios mais avançados na relação do cidadão com o Estado, muito embora interfira no conceito de soberania, a partir do momento em que se sujeita a um sistema de valores. Como fruto desses processos, a distinção entre “cidadãos” e “estrangeiros” tende a relativizar-se, uma vez que as regras dos ordenamentos estatais acabam perdendo sua força, logo não têm o mesmo controle de que no passado. (ROSSI; DAL MONTE, 2014, p. 272). Os estrangeiros possuem os mesmos deveres que os demais cidadãos, no Brasil. São cada vez mais importantes na sociedade. Mas não usufruem dos mesmos direitos que os demais cidadãos residentes no Brasil. Há uma desproporção, uma vez que, em um país democrático uma parte da população cada vez mais crescente não possa gozar dos direitos políticos, que são direitos extremamente importantes, pois dizem respeito à participação da vida pública de onde se vive. É de fundamental importância a inclusão do estrangeiro no sistema, levando em conta as particularidades de cada um desses. Para analisar o caso dos estrangeiros no Brasil com relação à aquisição dos direitos políticos, esse artigo se baseia, também, numa doutrina italiana, que se mostra muito semelhante à condição brasileira, com relação aos estrangeiros, e tem a mesma perspectiva. Lá, há muito tempo, as migrações são constantes, então, pode-se dizer que é um dos lugares que têm a maior experiência nesse fenômeno. Para Emanuele Rossi, os estrangeiros devem ter equiparação com os cidadãos, por meio da dignidade humana: Assumindo-se como verdadeiro que, no enredo constitucional das liberdades, a “dignidade humana” deve ser considerada como valor que qualifica todas as liberdades constitucionais (indicando-lhes o propósito e o ponto de desembarque), a sua tutela deve ser estendida, então, aos sujeitos que, privados do vínculo jurídico de cidadania, colocam-se, de qualquer modo, em posição de igualdade em relação aos próprios cidadãos (ROSSI; DAL MONTE, 2015, p. 273).

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Segundo ele, deve-se conferir aos estrangeiros a posição constitucional em nosso ordenamento considerando-se a prevalência de pessoa em relação ao do cidadão. (ROSSI; DAL MONTE, 2014, p. 275). Com relação aos estrangeiros regularmente residentes no território nacional da Itália, Francesca Biondi afirma que a avaliação do princípio da não discriminação do estrangeiro da fruição das prestações de natureza social tem contribuído para aproximar a condição do estrangeiro regularmente residente no território àquela do cidadão. (ROSSI; DAL MONTE, 2014, p. 283). Com isso, já existem doutrinadores e políticos que defendam a concessão dos direitos políticos ao estrangeiro. Se trata de um assunto de debates muito calorosos, chegando a ser, inclusive, assunto de algumas PECs. No Brasil, foram realizados os seguintes projetos de emenda constitucional visando o reconhecimento de direitos políticos aos estrangeiros: 1. A PEC 401/2005, do Senador Orlando Fantazzini; 2. A PEC 14/2007, do Senador Álvaro Dias; 3. A PEC 88/2007, do Senador Sérgio Zambriani; 4. A PEC 119/2011, do Deputado Roberto Freire. A PEC 401/2005 visava garantir o direito ao sufrágio (compreendido o direito de alistar-se como eleitor) para os estrangeiros que residem no Brasil há mais de cinco anos e que estão legalmente regularizados6. A PEC 14/2007 foi proposta tendo por finalidade a participação dos estrangeiros nas eleições municipais, somente essa exceção, em relação ao §2° do art. 14, CF, e a concorrência para o cargo de vereador, sem que fosse necessária a nacionalidade brasileira7. A PEC 88/2007 tinha por finalidade a participação, nas eleições, do estrangeiro residente há mais de cinco anos, no Brasil, e que tivesse mais de dezesseis anos de idade. Essa proposta de emenda é semelhante à PEC 401/2005, só diferindo o requisito mínimo de idade para alistar-se como eleitor8. A PEC 119/2011 visa garantir o direito facultativo ao estrangeiro de alistar-se como eleitor, desde que resida no País há mais de cinco anos, e de se candidatar às eleições municipais, desde que resida no País há, no mínimo, dez anos9. Atualmente, as PECS (Projetos de Emenda à Constituição) n° 14/2007, n° 88/2007 e n° 119/2011 ainda se encontram em tramitação, portanto, por enquanto, em nada mudou o cenário brasileiro em relação aos direitos políticos dos estrangeiros. É perceptível que, o Brasil e diversos países,dentre eles os europeus, visam à garantia dos direitos políticos ao estrangeiro, pois é uma tendência da globalização cada vez mais necessária. Os direitos políticos não foram concedidos, até o presente momento, porque os países ainda estão ligados à concepção da soberania, no que diz respeito aos seus cidadãos. Os direitos políticos, para eles, se tratam de uma forma de perpetuação da soberania. Mas é preciso realizar uma adaptação dessa concepção, pois a diversidade está cada vez mais presente nas populações. Por ser uma tendência da globalização, estrangeiros procuram a melhoria de vida em outros países, não somente no sentido de visar excelentes condições financeiras, mas, em alguns casos, para garantirem a sua segurança, a inviolabilidade a seus direitos fundamentais, etc. E, portanto, já que re6  BRASIL. PEC 401 de 31 de maio 2005. Altera a redação do § 2° do art. 14 da Constituição Federal. 7  BRASIL. PEC 14 de 06 março de 2007. Dá nova redação aos §§ 1º, 2º e 3º do art. 14 da Constituição Federal, para facultar a participação do estrangeiro domiciliado no Brasil em eleições municipais. 8  BRASIL. PEC 88 de 04 de outubro de 2007. Dá nova redação ao § 2º do art. 14 da Constituição Federal, de modo a permitir o alistamento eleitoral de estrangeiros residentes no Brasil. 9  BRASIL. PEC 119 de 06 de dezembro de 2011. Altera ao art. 14 da Constituição Federal, para facultar a participação de estrangeiro domiciliado no Brasil nas eleições municipais.

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sidem no País, estão diretamente ligados a um município, do qual é necessário participarem da vida política, visando à melhoria de suas condições, como estrangeiro, e de suas condições como um indivíduo igual aos demais que residem naquele município. É fundamental que seja assegurado ao estrangeiro, o direito ao voto no âmbito municipal, o direito ao referendo e à iniciativa popular (visto que, se houver qualquer irregularidade, deve ser o pedido arquivado, nos casos dos pedidos que são dotados de inconstitucionalidade ou que entram em contradição com a soberania da nação brasileira), e o direito de se eleger para vereador do município no qual reside, com a finalidade de promover a melhoria desse e visando a expansão e a garantia de seus direitos enquanto estrangeiro. O direito que não pode ser concedido aos estrangeiros é o de participação na votação de chefes do Poder Executivo (Prefeito, Governador e Presidente da República), pois esses cargos dizem respeito às estratégias de regiões e, principalmente, do país, ao qual não se pode ter qualquer tipo de defesa de interesses advindos de outras nacionalidades. O voto no Poder Legislativo é suficiente para que eles possam recorrer à melhoria de suas condições. Os parlamentares salientam que é importante recordar que o Brasil é um país formado por uma diversidade de imigrantes de diversos continentes, sendo essa uma nação multicultural, e que sempre acolheu os estrangeiros. A constituição cidadã repele qualquer tipo de preconceito e discriminação, inclusive no que diz respeito à nacionalidade, então é importante que se dê um fim a essa discriminação negativa, concedendo alguns direitos políticos fundamentais à pessoa humana. Diversos países já manifestaram iniciativas apreciáveis no que diz respeito ao reconhecimento de direitos políticos ao estrangeiro, inclusive países que têm as mais diferentes tendências políticas. E, por consequência, o nosso Estado de Direito Democrático não pode permanecer em contradição com esses, principalmente porque é um país em que há uma grande diversidade quanto à sua formação populacional. Mas, o fundamento principal é de que as correntes migratórias se fazem cada vez mais presentes, portanto é necessário dar direito a esses, direito ao voto, que é inerente à pessoa humana, por se tratar de busca de sua melhoria e o direito de buscar a garantia de seus direitos. Alguns países já adotaram a concessão dos direitos políticos aos estrangeiros, são eles: Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Equador, Paraguai, Peru, Uruguai, Venezuela, até mesmo o continente europeu. A Argentina não concede de maneira total o direito ao sufrágio aos estrangeiros. Só concede de maneira total os direitos civis dos cidadãos.10 Mas foi a partir da lei 25.871, no seu art. 11, que permitiu o direito ao sufrágio aos estrangeiros, com exceção das eleições a nível nacional, onde se elege o presidente, o vice-presidente e os legisladores. Por sua vez, a Bolívia concedeu o direito ao voto nas eleições municipais aos estrangeiros, segundo o inciso II, do artigo 27, da Constituição da Bolívia11. Já no Chile, é prevista em sua Constituição, no seu artigo 14, a concessão do direito político de sufrágio, nos casos e na forma que a lei determinar, aos estrangeiros residentes no Chile por mais de cinco anos e que preencham os requisitos estabelecidos no incido primeiro do artigo 13 da Constituição12. Em relação ao mesmo assunto, podemos observar na Colômbia que os direitos políticos são reservados aos nacionais. Porém, a lei pode conceder a estrangeiros que vivem na Colômbia o direito de votar em eleições e consultas populares municipais ou distritais. Também podemos observar no Equador que, de acordo com o artigo 63 da Constituição equatoriana, os estrangeiros podem ter direito ao voto, se residirem no mínimo 05 anos no país13. O Equador não restringiu qualquer tipo de eleição, ou seja, permitiu o voto para todas as eleições, seja local, regional ou nacional. 10  11  12  13 

ARGENTINA. Constitución. Constitución de La Nacion Argentina: promulgada em 22 de agosto de 1994. BOLÍVIA. Constitución. Constitución Politica del Estado: promulgada em 27 de novembro de 2007. CHILE. Constitución. Constitución Política de La República de Chile: promulgada em 11 de setembro de 1980. ECUADOR. Constitución. Constitución Del Ecuador: promulgado em 28 de setembro de 2008.

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O Paraguai concede aos estrangeiros os mesmos direitos dos cidadãos, somente no que diz respeito às eleições municipais, porém essa concessão se dá somente aos estrangeiros que possuem residência definitiva no país14. Em relação ao Peru, a Constituição não se posiciona sobre o tema. Porém, a Lei de Eleições Municipais, de n° 26.864, em seu artigo 7°, assegura o direito ao voto aos estrangeiros maiores de 18 anos e residentes no país por mais de 02 anos contínuos antes da eleição, mas não concede esse direito para os municípios da fronteira. Ao estrangeiro é garantido o direito de votar e ser votado nas eleições municipais para prefeito e vereadores das províncias e dos distritos. Já no Uruguai, segundo o artigo 78 da Constituição uruguaia, é permitido que qualquer estrangeiro, de bom comportamento, que possui uma família dentro da República, que tenha algum capital ou bens no país, ou que professa alguma ciência, da arte ou da indústria, e que seja residente habitual há pelo menos quinze anos, possa votar, sem que seja necessária a obtenção da cidadania legal15. Na Venezuela, o artigo 64 da Constituição venezuelana afirma que os estrangeiros possuem direito ao voto nas eleições municipais e estaduais, desde que sejam maiores de 18 anos e residam há, no mínimo, 10 anos no país, observados os limites da lei16. É importante destacar que, na Europa, de acordo com o Tratado de Maastricht, a União Européia oferece direitos políticos ao estrangeiro europeu em qualquer dos Estados participantes da organização. Além do direito ao voto, a União Europeia concedeu o direito de ser eleito a qualquer cidadão residente de um dos Estados-membros com moradia fixa, nas eleições autárquicas e nas eleições para o parlamento europeu do Estado em que residir. Para isso, deverá cumprir os requisitos exigidos a uma candidatura. CONCLUSÃO Nesse artigo, duas questões fundamentam a importância da concessão dos direitos políticos aos estrangeiros: a primeira delas é a de que a migração é um fenômeno cada vez mais presente no mundo, logo, há, cada vez mais, a presença dos estrangeiros em diversas sociedades; já a segunda questão é que a partir dos direitos políticos é que os estrangeiros podem lutar pela garantia de seus direitos enquanto pessoas, e não cidadãos. Portanto, a concessão dos direitos políticos aos estrangeiros se mostra cada vez mais necessária e se trata de uma tendência que deverá ocorrer nos próximos anos. O Brasil é um país em que ocorreram diversos fenômenos migratórios, ao longo de sua história, sendo, portanto, de fundamental importância a concessão dos direitos políticos aos estrangeiros. A concessão de direitos políticos aos estrangeiros se trata de uma tendência, no que diz respeito aos países. Esperava-se que as migrações ocorressem de forma temporária, todavia, nos dias atuais, ocorre em número maior e com uma maior facilidade. Principalmente porque os países estão em constante relação, por conta dos mercados, na contemporaneidade, que se dão em proporção mundial. Na Europa, esse fenômeno ocorre com mais frequência, por isso é que já se deu a concessão dos direitos políticos aos cidadãos europeus, e com relação à concessão aos cidadãos não europeus, alguns países não chegaram a conceder, porém os debates são calorosos e ocorrem com bastante frequência. Na América do Sul, a maioria dos países já concederam os direitos políticos aos estrangeiros. Como foi demonstrada, a Argentina, a Bolívia, o Chile, a Colômbia, o Equador, o Paraguai, o Peru, o Uruguai e a Venezuela já realizaram a concessão dos direitos políticos aos estrangeiros, em suas particularidades e em seus diferentes requisitos. Uns entenderam que a concessão deveria ser realizada em âmbito municipal, já o Equador concedeu em âmbito nacional. 14  15  16 

PARAGUAY. Constitución. Constitución de La Republica del Paraguay: promulgada em 20 de junho de 1992. URUGUAY. Constitución. Constitución de La Republica del Uruguay: promulgada em 1967. VENEZUELA. Constitución. Constitución de La Republica de Venezuela: promulgada em 15 de dezembro de 1999.

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No Brasil, esse fenômeno se trata de uma forte tendência para os próximos anos. Visto que, a concessão desses já ocorreu em grande parte da América do Sul, e, principalmente, porque o Brasil é um país formado por diversos povos, de diferentes culturas. E, já houvequatro projetos de Emenda Constitucional nesse sentido, visando à concessão dos direitos políticos aos estrangeiros. Considerando-se que as sociedades, receptoras de imigrantes, são caracterizadas cada vez mais pela pluralidade, é evidente que a concepção de nação também se diversificará. A luta para que isso possa vir a acontecer acontece na sociedade, logo possui diversos entendimentos divergentes. A pluralidade de entendimentos sobre essa questão reflete diretamente na elaboração das legislações referentes à concessão dos direitos políticos aos estrangeiros. Por isso é que os países têm entendimento diverso sobre essa questão. Porém, independentemente disso, a concessão dos direitos políticos se faz necessária para que os estrangeiros possam lutar pela garantia de seus direitos na sociedade em que vivem. REFERÊNCIAS ARGENTINA. Constitución. Constitución de La Nacion Argentina: promulgada em 22 de agosto de 1994. BENEVIDES, Maria Victoria de Mesquita. A cidadania ativa. São Paulo: ática, 1998. BERNARD, Phillipe. L’ immigration. Bruxelas: Le Monde Éditions, 1993. BOLIVIA. Constitución. Constitución Politica del Estado: promulgada em 24 de novembro de 2007. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988.  Disponível em: Acesso em: 29.01.16. BRASIL. PEC 401 de 31 de maio 2005. Altera a redação do § 2° do art. 14 da Constituição Federal. BRASIL. PEC 14 de 06 março de 2007. Dá nova redação aos §§ 1º, 2º e 3º do art. 14 da Constituição Federal, para facultar a participação do estrangeiro domiciliado no Brasil em eleições municipais. BRASIL. PEC 88 de 04 de outubro de 2007. Dá nova redação ao § 2º do art. 14 da Constituição Federal, de modo a permitir o alistamento eleitoral de estrangeiros residentes no Brasil. BRASIL. PEC 119 de 06 de dezembro de 2011. Altera ao art. 14 da Constituição Federal, para facultar a participação de estrangeiro domiciliado no Brasil nas eleições municipais. CHILE. Constitución. Constitución Política de La República de Chile: promulgada em 11 de setembro de 1980. COLOMBIA. Constitución. Constitución Política de la República De Colombia: promulgada em 1991. DA SILVA, Isabela Fernanda; DE SOUZA, Marcelo Agamenon Goes. Aspecto histórico dos direitos políticos no Brasil com o desenvolvimento da cidadania e democracia. In: ETIC - encontro de iniciação científica - ISSN 21-76-8498, v. 10, n° 10. Presidente Prudente: UNITOLEDO, 2014. Disponível em: Acesso em: 26 jan 2016. ECUADOR. Constitución. Constitución Del Ecuador: promulgado em 28 de setembro de 2008.

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FRAZÃO, Ana Carolina. Uma breve análise sobre o direito à nacionalidade. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 5, n. 46, 1 out. 2000. Disponível em: . Acesso em: 22 jan. 2016. LOBO, Ovidio da Gama. Direitos e deveres dos estrangeiros no Brasil. Maranhão: Passaporte, 1868. MARSHALL, T. H. “Citizenship, classand status”. In: SHAFIR, Gershon (org.). The citizenship debates. Minneapolis: University of Minnesota, 1998. MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 30ª Ed. São Paulo: Atlas, 2014. NETO, Conrado Wargas. A inelegibilidade e os tribunais e conselhos de contas. Brasília: UnB, 2006. PARAGUAY. Constitución. Constitución de la Republica del Paraguay: promulgada em 20 de junho de 1992. PERÚ. Constitución. Constitución Política Del Perú: promulgada em 29 de dezembro de 1993. Reaty of Maastricht on European Union. Disponível em: . Acesso em: 29.01.16. REIS, Rossana Rocha. Soberania, direitos humanos e migrações internacionais. Revista Brasileira de Ciências Sociais. Vol. 19, n° 55, junho 2006. RIBEIRO, Hélcio. A iniciativa popular como instrumento da democracia participativa. São Paulo: Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2007. ROSSI, Emanulle; DAL MONTE, Francesca Biondi. Cidadania e estrangeiros. In: ARAÚJO, Marcelo Labanca Corrêa de; ROMBOLI, Roberto (Orgs.). Justiça constitucional e tutela jurisdicional dos direitos fundamentais. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2015. URUGUAY. Constitución. Constitución De La Republica del Uruguay: promulgada em 1967. VENEZUELA. Constitución. Constitución de La Republica de Venezuela: promulgada em 15 de dezembro de 1999.

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A FAMÍLIA BASEADA NO POLIAMOR EM CONSONÂNCIA COM O PRINCÍPIO DA LIBERDADE Silvana Vieira da Silva Graduada em Direito pelo Centro Universitário do Vale do Ipojuca – UNIFAVIP. Especialista em Advocacia Trabalhista pela Universidade Anhanguera – UNIDERP.

SUMÁRIO: 1. Família constitucionalizada; 2. A simultaneidade na seara da conjugalidade; 2.1. Poliamor: uma relação de família; 2.2. Família eudemonista; 3. O princípio da liberdade e a família poliamorista; Conclusão; Referências.

1. FAMÍLIA CONSTITUCIONALIZADA Embora outras Constituições brasileiras tenham dispositivos acerca da família, apenas na Constituição Federal de 1988 foi que ela ganhou proteção do Estado, tendo em vista que os dispositivos anteriores que tratavam da citada entidade eram de cunho preconceituoso e excluíam as famílias que não estivessem no modelo conservador que a lei impunha: um núcleo familiar só era considerado legítimo se fosse formado através do casamento, sendo esse vínculo matrimonial indissolúvel. Não eram considerados filhos legítimos os que nascessem fora da relação matrimonial, bem como os filhos adotivos perdiam os direitos após a morte de seus adotantes. Vista dessa maneira, a conjuntura familiar era influenciada visivelmente pela Igreja, já que o Direito Canônico também influenciou o Código Civil de 1916 e qualquer modelo de família que não seguisse essas regras era jogado à margem da sociedade e não dispunha de nenhuma proteção do Estado (GAGLIANO & FILHO, 2013). Até então a família era matrimonializada, patriarcal, hierarquizada, heteroparental e biológica. As leis civis vigentes eram influenciadas pelo Código Napoleônico, imperando assim o liberalismo patrimonialista. Esse Código era tido como o Código do homem privado, de modo que o sujeito deveria desempenhar papéis estabelecidos pelo Estado, e, assim, os direitos pessoais acabavam se confundindo com os direitos patrimoniais e todos os institutos eram observados do mesmo modo, inclusive a família. Esse modelo de codificação prezava pelo individualismo e liberalismo jurídico, ao passo que a sociedade foi se transformando esse modelo não mais se adequava a ela. Surgiram cada vez mais leis específicas e estatutos especiais que regulavam as relações sociais e econômicas, revogando ou complementando o Código Civil, fazendo com que o Direito Privado fosse cada vez mais descentralizado e o Estado intervisse nas relações sociais e familiares. A família foi ganhando gradativamente proteção do Estado (FERRARINI, 2012). A quebra de paradigmas que a Constituição Federal de 1.988 trouxe ao Direito Brasileiro é inegável, na seara familiar os ganhos foram imensos. Desde que a atual Constituição entrou em vigência, o Estado passou a considerar a família como base da sociedade, garantindo-lhe tutela jurisdicional, característica peculiar do Estado Social que intervém na seara privada não como forma de impor obrigações aos cidadãos, mas como forma de ação protetiva. Agora a família ganha novos contornos e não fica submetida a apenas um modelo, como antes era imposto pela legislação. O artigo 226 exemplifica três modelos de família, que são o casamento civil ou religioso com efeitos civis, a união estável e a família monoparental. Se antes a família que não viesse do enlace matrimonial era marginalizada, agora ganha espaço jurídico, sendo considerada como legítima e detentora de

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direitos, ganhando autonomia para desfazer a qualquer tempo o vínculo conjugal. A mulher ganhou espaço e respeito, sendo considerada como sujeito ativo na relação familiar, não sendo mais obrigada à submissão masculina e merecendo proteção estatal e reconhecimento igualitário perante a sociedade. A valorização do ser humano passa a ser o centro da proteção jurídica. É de fundamental importância a leitura dos direitos da família a partir dos princípios constitucionais, de modo que seja concedido proteção individual a cada membro que a compõe, devendo o núcleo familiar existir em função dos seus componentes (MALUF, 2010). Assim observa Gama (2003, p. 520): A efetividade das normas constitucionais implica a defesa das instituições sociais que cumprem o seu papel maior. A dignidade da pessoa humana, colocada no ápice do ordenamento jurídico, encontra na família o solo apropriado para o seu enraizamento e desenvolvimento, daí a ordem constitucional dirigida ao Estado no sentido de dar especial e efetiva proteção à família, independentemente da sua espécie. Propõe-se, por intermédio da repersonalização das entidades familiares, preservar e desenvolver o que é mais relevante entre os familiares: o afeto, a solidariedade, a união, o respeito, a confiança, o amor, o projeto de vida comum, permitindo o pleno desenvolvimento pessoal e social de cada partícipe, com base em ideais pluralistas, solidaristas, democráticos e humanistas.

A família, até a Constituição da 1988, era representada por um texto legal no qual prevalecia o liberalismo, individualismo e o patrimonialismo. Com a repersonalização do Direito de Família através da Constituição Federal, essa entidade é representada legalmente por um texto que defende a afetividade, solidariedade e cooperação, visando assim o desenvolvimento pessoal dos membros de cada grupo familiar. A família pautada na afetividade e bem estar de seus componentes ganhou o nome de eudemonista, quebrando as regras da família codificada, que pouco se importava com as reais necessidades do seio familiar. Essa família característica da Carta Magna não se enquadra em um modelo tipificado pelo Estado, podendo ganhar a formatação que melhor aprouver a cada grupo, não se enquadrando em apenas um modelo, ela passa a ser plural, diversificada (FERRARINI, 2012). A partir da constitucionalização do Direito Civil, descortinou-se um novo modelo de Direito de Família, que tenta acompanhar em passos largos as quebras de paradigmas da própria sociedade. Como é impossível legislar antes que novas situações apareçam, é de fundamental importância analisar tais fatos a partir de uma ótica constitucionalizada, uma vez que na Carta magna encontramos princípios basilares para uma efetiva aplicação das normas jurídicas.

2. A SIMULTANEIDADE NA SEARA DA CONJUGALIDADE. Embora o Brasil seja um país laico, sofreu forte influência do catolicismo e do Direito Canônico em seu ordenamento jurídico, principalmente na parte do Direito de Família, de modo que a maior parte da sociedade sempre encarou a monogamia como o modelo ideal para ordenar as relações familiares em nosso país. Tal concepção sempre refletiu na legislação que trata da família, sendo assim os modelos familiares que fogem a esta regra terminam por encontrar problemas quanto à proteção estatal. Tal problemática explica-se em breve estudo histórico da família no Ocidente, onde as relações familiares eram baseadas no modelo monogâmico. O Brasil oficialmente adotou este modelo fundado nos moldes patriarcais, modelo em que preza pelo autoritarismo masculino, onde todos em sua casa são submissos ao homem, inclusive a esposa que é considerada inferior ao seu parceiro e deve obediência ao mesmo. Com essa submissão feminina, a mulher era obrigada a aguentar todas as atitudes de seu esposo, inclusive o fato

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dele ter várias amantes. Mesmo sendo algo que sempre foi notório em nossa sociedade, o Judiciário sempre ignorou e o Legislador nunca tratou expressamente essas relações como família. Embora o legislador nunca tenha declarado em nosso ordenamento que as relações conjugais simultâneas sejam uma espécie de família, não quer dizer que elas não sejam reconhecidas judicialmente. À priori, analisando no texto da lei, estas relações estão expressamente taxadas em nosso atual Código Civil: “As relações não eventuais entre o homem e a mulher, impedidos de casar, constituem concubinato.” (CC 1727). A partir desse artigo percebe-se que essas relações são reconhecidas pelo Estado. Porém, por ser o Brasil ainda muito conservador, não são moralmente aprovadas, sendo, então, marginalizadas e, dessa maneira, tratadas na sua grande maioria da mesma forma, sem que sejam analisadas em suas particularidades. Neste sentido descreve Ferrarini (2012, p. 89): “No imaginário social ainda prepondera a ideia de que as relações paralelas ao casamento se caracterizam pelo triângulo amoroso formado pelo mito, no qual a esposa é santificada, o marido é vitimizado e, “a outra”, por conseguinte, satanizada”. Embora a sociedade tente vendar os olhos para não admitir que esse tipo de relação exista, não impede que esta situação de fato se configure. Não é de hoje que esse modelo de família está inserido na sociedade. A inércia do Direito em regular este tipo de relação, ou apenas condená-lo, foi responsável por graves injustiças ao longo da história. Até a vigência do Código Civil de 1916, por exemplo, o filho gerado fora dos vínculos matrimoniais reconhecidos pelo Direito não tinha direito ao sobrenome paterno e tampouco nenhum direito presente ou futuro sobre o patrimônio de seu genitor. Com esta visão, a punição para a violação de um modelo familiar que não era defendido pela sociedade e pelo ordenamento recaia tão somente para a mulher que não era casada com o pai de seus filhos, a chamada concubina, e para a prole oriunda dessa relação, deixando completamente impune o violador da regra, qual seja o chefe da família. A evolução dos princípios norteadores do nosso ordenamento, principalmente na seara da família, permitiu a derrocada desta regra e garantiu ao filho de relações extraconjugais os mesmos direitos que o filho oriundo do casamento. No entanto, as injustiças, no que tange ao direito das mulheres que partilharam sua vida com um companheiro que possui outra relação, permanece inalterado. Mais uma vez, enfatizamos que fechar as portas da tutela jurisdicional às situações de fato não altera a sua existência no plano real. O resultado disto é a criação de situações de insegurança jurídica e a perpetuação dos resquícios do modelo patrimonialista e machista da sociedade que o Direito ainda mantém em determinados posicionamentos. No tocante a isto, o infiel permanece impune e a mulher arca sozinha com as consequências da violação de uma obrigação alheia a ela. Visto que as obrigações advindas do casamento são pessoais, o dever de mantê-las é de quem contraiu o matrimônio. Enquanto a legislação não supera esta questão, a jurisprudência tem se antecipado a ela a partir dos princípios norteadores do direito, dando arcabouço jurídico ao que a lei ainda não prevê. Diante da possibilidade de relações simultâneas, existe o poliamor. Corrente defendida – e a qual nos filiamos – na obra dos Doutrinadores Gagliano & Filho (2013). O poliamor admite a possibilidade de uma composição conjugal com vários núcleos, em que todos os seus membros sejam conhecedores de tal fato e o aceitem, diferentemente das demais correntes em que na família simultânea existe pelo menos um dos partícipes sendo enganado ou não concorde com essa realidade, porém a aceita por questões culturais e sociológicas impostas pela nossa sociedade. O dever de fidelidade é flexível quando há mútua aceitação.

2.1 POLIAMOR: UMA RELAÇÃO DE FAMÍLIA.

O poliamor é um movimento que surgiu nos Estados Unidos na década de oitenta, quebrando os paradigmas que o amor romântico revestido da monogamia impõe a sociedade. A felicidade para este tipo de relacionamento não consiste na união de apenas duas pessoas, porém não existe traição, uma vez que

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todas as partes envolvidas são cientes e aceitam esse tipo de relação. Assim, o poliamorismo não se prende a dogmas religiosos, tampouco a convicções impostas pela sociedade, mas procura satisfazer as necessidades pessoais de todos os envolvidos. Os adeptos desse movimento acreditam que é possível amar mais de uma pessoa ao mesmo tempo e que não é obrigatório que se encontre em apenas um parceiro todos os requisitos que venham a preencher as necessidades de um relacionamento amoroso, pois cada ser humano traz consigo limitações, ao passo que não existe uma pessoa perfeita que contenha todas as qualidades que a outra nela procura. É válido ressaltar que o poliamor não faz apologia a relações promíscuas, já que tem que existir um comprometimento real entre as partes, transparência e honestidade na relação (MEIRELES). A psicóloga e consultora Meireles define o poliamor como: Amar mais de uma pessoa ao mesmo tempo, essa é a proposta poliamorista, relação que se baseia na total liberdade afetiva, sexual e maquiagem social. Amor sem limites, amor com pleno arbítrio entre os pares, ofertando ao indivíduo todo direito de viver afetivamente e sexualmente múltiplas relações.

Na esfera jurídica, o poliamor não é citado no Código Civil, tampouco na Constituição Federal, o que não vem a constituir crime ou algo imoral a prática de tal relação. Na própria Carta Magna não é estabelecido um modelo de família. Não existindo um conceito formal sobre tal entidade, não há como condenar qualquer tipo de relação que venha constituir família, claro que sendo respeitados os requisitos necessários para isso, sendo uma relação pública, contínua, duradoura e com objetivo de constituir família. 2.2 FAMÍLIA EUDEMONISTA.

A família atual tem aspectos totalmente diferentes da família da antiguidade, ela evolui, e tal evolução trouxe benefícios para todos que fazem parte dela. De cara nova, esta entidade não tem mais seus membros como meros coadjuvantes, cada um dos que a compõe podem ser protagonistas de suas próprias histórias. Ainda citando Ferrarini (2012, p. 78): Ao invés de meros expectadores ou representantes de papéis sociais, as pessoas começaram a se entender como indivíduos, e não como peças de uma engrenagem familiar. Apropriaram-se de seus desejos e fizeram a sua própria história. Formaram a sua própria família, com seu jeito e seus valores.

Percebe-se assim, que o eudemonismo traz uma nova roupagem a família, e esta torna-se um meio para a felicidade dos membros que a compõem. Neste sentido Ruzyk (2005, p. 24) conceitua tal termo: O eudemonismo é doutrina que enfatiza o sentido da busca, pelo sujeito, de sua felicidade. A absorção do princípio eudemonista pelo ordenamento altera o sentido da proteção jurídica da família, deslocando-o da instituição para o sujeito.

A família eudemonista vem a ser a ponte para os casais que vivem o poliamorismo, uma vez que visa proteger a dignidade da pessoa humana e os laços de afetividade. Com um olhar diferente, lançado sobre os vários institutos que a família pode ser, o olhar eudemonista vê além das convenções sociais, e interesses patrimoniais, este olhar tem por escopo observar às necessidades individuais de cada um, assim, as diferenças religiosas, socioculturais podem ser respeitadas de forma ampla.

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De modo que, com um olhar afetuoso, pode-se entender as necessidades que cada um traz consigo, sem um julgamento antecipado, pois, como já foi dito, a família é reflexo da sociedade, e a sociedade muda em passos gigantescos, ao passo que, os casais que vivem o poliamor. Não são uma realidade de agora, existindo a muito tempo, porém estão a margem da sociedade, e não encontrando um espaço, tendem a seguir como se fossem criminosas, onde todos os envolvidos acabam sofrendo sanções por tal opção. Enquanto, que esses casais, e seus frutos (filhos), não querem nada mais que ter o seu lugar ao sol, eles querem ser reconhecidos como forma de família, nem certa, nem errada, mas é a forma deles, e em tal peculiaridade querem encontrar a realização pessoal. A família eudemonista, vem, portanto, trazer um conceito de famílias que não são fundamentadas em convenções sociais, e sim, na realização pessoal de cada um que compõe esta entidade, sendo assim, um núcleo que vise garantir os direitos individuais que cada um possui. 3. O PRINCÍPIO DA LIBERDADE E A FAMÍLIA POLIAMORISTA Diante da grande celeuma que gira em torno do significado de liberdade, não iremos tratar neste artigo das questões filosóficas que cercam o tema, no entanto achamos importante iniciarmos o presente tópico com um conceito sobre o assunto em questão, e comungamos da ideia de Bobbio (1996, p.96) do que seja liberdade: “A situação em que um sujeito de direito tem a possibilidade de orientar sua vontade em direção a um objetivo, de tomar decisões, sem ver-se determinado pela vontade dos outros”. O princípio da liberdade que foi consagrado através da Carta Magna, trouxe mudanças e progressos significativos para o nosso ordenamento jurídico, refletindo em toda a coletividade. Sendo tal princípio uma das colunas de sustentação do Estado Democrático Brasileiro, influenciou diretamente na vida da sociedade e no seio de suas famílias. Antes da Carta Magna era impossível aos que compunham uma família escolher a sua formatação diferente dos moldes tradicionais, sem que tal instituição não fosse marginalizada, já que era previsto pelo Estado uma única forma de celebrar família, sendo esta advinda do casamento, patriarcal e patrimonialista, não podendo a família adequar-se aos seus membros. Lôbo (2011, p. 69) conceitua este princípio como: O princípio da liberdade diz respeito ao livre poder de escolha ou autonomia de constituição, realização e extinção de entidade familiar, sem imposição ou restrições externas de parentes, da sociedade ou do legislador; à livre aquisição e administração do patrimônio familiar; ao livre planejamento familiar; à livre definição dos modelos educacionais, dos valores culturais e religiosos; à livre formação dos filhos, desde que respeitadas suas dignidades como pessoas humanas; à liberdade de agir, assentada no respeito à integridade física, mental e moral.

Com o advento da Constituição Federal de 1.988, o princípio da liberdade ganha espaço, tornando-se um dos componentes essenciais para o bom andamento do Direito de Família, de modo que cabe apenas aos membros da família escolherem a formatação do modelo no qual querem conviver, sendo estes os únicos responsáveis por seu arquétipo. É o que pode ser observado no § 7º da Constituição Federal: Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.

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Se outrora era o Estado quem delimitava o modelo de família a ser seguido, após a promulgação da Constituição, cabe ao Estado apenas proteger as entidades familiares e seus membros, devendo este assegurar o bem-estar de todos. Este princípio apanha a família como um todo, tanto aos seus membros, de modo particular, quanto na esfera da entidade. De modo que cabe aos que compõem o núcleo familiar decidir o que melhor se aplica a tal arranjo. Portanto, a autonomia privada torna-se fundamental para as novas estruturas familiares que possibilita a Carta Magna de 1988, através dessa autonomia, a família contemporânea é encarada de modo diverso da família tradicional, importando assim, a felicidade de todos que a compõe. E como já foi visto, essa nova família é denominada eudemonista. O princípio da liberdade é que traz possibilidades de novos arranjos familiares, sem esta autonomia dada a família através do citado princípio seria impossível que as pessoas pudessem escolher quem amar, como conduzir sua vida afetiva, quais os enlaces necessários para a felicidade familiar. Assim leciona Lôbo (2011, p. 70): O princípio da liberdade diz respeito não apenas à criação, manutenção ou extinção dos arranjos familiares, mas à sua permanente constituição e reinvenção. Tendo a família se desligado de suas funções tradicionais, não faz sentido que ao Estado interesse regular deveres que restringem profundamente a liberdade, a intimidade e a vida privada das pessoas, quando não repercutem no interesse geral.

Ainda sobre a não intervenção do Estado sobre os modelos familiares, nos instrui Sarmento (2005, p. 169): Não cabe ao Estado, a qualquer seita religiosa ou instituição comunitária, à coletividade ou mesmo à Constituição estabelecer os fins que cada pessoa humana deve perseguir, os valores e crenças que deve professar, o modo como deve orientar sua vida, os caminhos que deve trilhar. Compete a cada homem ou mulher determinar os rumos de sua existência, de acordo com suas preferências subjetivas e mundividências, respeitando as escolhas feitas por seus semelhantes. Essa é uma ideia central ao Humanismo e ao Direito Moderno.

Percebe-se então, que o Estado não deve interferir no modelo escolhido pela família. Sendo assim, a família constituída a partir do poliamor deverá ser reconhecida como legitima perante a sociedade e ao Ordenamento Jurídico Pátrio, não cabendo ao Estado estigmatizar o modelo adotado, uma vez que a sua intervenção sobre a família deverá ser a mínima possível e tal interferência deve-se dar exclusivamente com o propósito de proteger os interesses dessa entidade e não de lhes impor regras de convivência familiar. Assim nos mostra Pereira (2006, p. 157): O Estado abandonou a sua figura de protetor-repressor, para assumir postura de Estado protetor-provedor-assistencialista, cuja tônica não é de uma total ingerência, mas, em algumas vezes, até mesmo de substituição à eventual lacuna deixada pela própria família como, por exemplo, no que concerne à educação e saúde dos filhos (cf. art. 227 da Constituição Federal). A intervenção do estado deve apenas e tão somente ter o condão de tutelar a família e dar-lhes garantias, inclusive de ampla manifestação de vontade e de que seus membros vivam em condições propícias à manutenção do núcleo afetivo. Essa tendência vem-se acentuando cada vez mais e tem como marco histórico a Declaração Universal dos Direitos do Homem, votada pela ONU em 10 de dezembro de 1948, quando estabeleceu em seu art. 16:3 A família

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é o núcleo natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção da sociedade e do Estado.

A aplicação do princípio da liberdade é de extrema importância na família contemporânea, podendo ser baseada ou não no poliamorismo. Uma vez que cabe ao Estado proteger a família e não lhes impor regras de formatação, é necessário para o bem da entidade familiar – independente de qual seja sua espécie – o mínimo de intervenção estatal possível, apenas para garantir-lhes direitos. Se tal intervenção for para cercear direitos de composição familiarista, corre-se o risco de reduzir a família a mera instituição servidora do Estado e não dar notoriedade ao verdadeiro significado que ela exige, o de ser formadora de cidadãos para a sociedade, cidadãos estes que tem o direito de conduzir suas vidas pessoais da melhor forma que lhes aprouver. CONSIDERAÇÕES FINAIS A necessidade de encontrar soluções jurídicas à luz dos princípios constitucionais para as querelas envolvendo o direito de família no que tange às famílias poliamoristas no âmbito do judiciário, motivou o presente trabalho. A evolução do pensamento da sociedade nas últimas décadas, com a recorrente quebra de paradigmas sociais, criou as condições para que as relações familiares que se encontram fora da proteção jurídica pudessem provocar o Judiciário para apreciação das suas contendas e reivindicar os seus direitos constitucionalmente garantidos. A omissão do legislador infraconstitucional em salvaguardar sob o manto da proteção jurídica os indivíduos que não se inserem no modelo tradicional de família acabou por transferir a responsabilidade de dar respostas às contendas oriundas desta lacuna legislativa para o poder judiciário. Isto ocorre porque em respeito ao princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, que determina que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito, e que nos termos do artigo 126 do CPC, o juiz não poderá se eximir de despachar ou sentenciar alegando lacuna ou obscuridade da lei, cria-se um cenário no qual os magistrados tem a obrigação de dar respostas aos casos concretos que chegam ao Judiciário em número cada vez mais crescente, fazendo com que hoje a discussão sobre o tema seja feita muito mais dentro dos tribunais do que no Congresso Nacional. A Constituição Federal de 1988 é considerada uma das mais avançadas do mundo no que tange à salvaguarda de direitos sociais e individuais, tornando o Estado garantidor de direitos aos cidadãos. Neste contexto os princípios têm papel fundamental na garantia dos direitos constitucionalmente elencados, servindo de guia, de norte, de ponto de orientação da conduta e intervenção do Estado por meio de seus poderes constituídos para com os indivíduos sob sua proteção. Dentre os princípios, os da Dignidade da Pessoa Humana, da Igualdade e da Liberdade, possuem vital relevância para o trato do tema apresentado neste trabalho, visto que o respeito a eles deságua na obrigação constitucional do Estado de proteger individualmente cada cidadão. Com isso, é preciso analisar as famílias e o Direito de Família de forma constitucionalizada, para que sejam observadas as peculiaridades que cada grupo familiar traz consigo, bem como as mudanças que essa entidade vem sofrendo ao longo de sua existência, em que pese, mudanças cada vez mais constantes. Faz-se mister superar os preconceitos e a visão conservadora que envolve a família, visto que o modelo tradicional, qual seja, o definido em lei, atualmente não supre as necessidades de todos os modelos existentes em nossa sociedade. A sociedade moderna, menos presa aos padrões pré-estabelecidos e baseada em uma busca mais subjetiva da felicidade em suas relações afetivas, tem encontrado expressão no seio dos núcleos familiares designados como eudemonistas, que tem por base o afeto na construção das relações familiares. O poliamor é baseado no eudemonismo, essencialmente nos laços de afetividade. Esse modelo de família vem ganhando proporções cada vez maiores em nossa sociedade, e não é o fato dela não ser reconhecida legalmente que deixará de existir. É mister então, que o Estado brasileiro seja protecionista e não intervencionista, já que cabe a cada família escolher o modelo que melhor lhe aprouver, devendo ser a família uma instituição social, para a realização pessoal de cada um de seus membros, e não uma instituição jurídica a dispor do Estado.

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Por todo o exposto, concluímos que a família baseada no poliamor é digna de respeito e direitos como todas as outras, não cabendo julgamentos de certo ou errado, nem analisar a entidade em questão, com visões dogmáticas. Devendo ser observados os princípios constitucionais para uma melhor aplicação da norma nos casos concretos. REFERÊNCIAS ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. NBR 10520: informação e documentação: citações em documentos: apresentação. Rio de Janeiro, 2002. ASSOCIAÇÃO BRASILERIA DE NORMAS TÉCNICAS. NBR 10719: Apresentação de relatórios técnico-científicos. Rio de Janeiro, 1989. 17 f. _______. NBR 6023: informações e documentação: referências: elaboração. Rio de Janeiro, 2002. _______. NBR 6024: numeração progressiva das seções de um documento: procedimentos. Rio de Janeiro, 1989. BARBOSA. Rui. Oração aos Moços. Rio de Janeiro: Casa Rui Barbosa, 1999. Disponível em: . Acesso em: 20 de nov. 2013>. BRASIL. Código Civil. Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível em: . Acessado em: 19 nov. 2013. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. De 05 de outubro de 1988. Disponível em: . Acesso em: 31 out. 2013. BRASIL. Súmula 380 do Supremo Tribunal Federal. Disponível em:. Acesso em: 31 mai. 2013. BOBBIO, Norberto. Igualdade e Liberdade. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996. COULANGES, Fustel de. A Cidade Antiga. São Paulo: Martin Claret, 2009. DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. São Paulo: Escala, 2002. FARIAS, Cristiano Chaves de, ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil, Famílias. Bahia: JusPodivm, 2012. FERRARINI, Letícia. Família Simultâneas e Seus Efeitos Jurídicos: Pedaços da Realidade em Busca da Dignidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. GAGLIANO, Pablo Stolze. FILHO, Rodolfo Pamplona. Novo Curso de Direito Civil: Direito de Família, as Famílias em Perspectiva Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2013.

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A CRIMINALIZAÇÃO DO DIREITO À LIBERDADE DE CÁTEDRA NO BRASIL: ANÁLISE DO PROJETO DE LEI Nº 1.411/2015 À LUZ DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988.

Synara Veras de Araújo Mestre em Direito e Especialista em Direitos Humanos pela Universidade Católica de Pernambuco-UNICAP, Especialista em Advocacia Geral pela UNICID, Professora de Direito da Faculdade de Ciências Humanas do Sertão Central de Pernambuco-FACHUSC

SUMÁRIO: 1 Notas iniciais; 2. A formação pedagógica do professor de Direito e o ambiente educacional jurídico; 3. A liberdade de cátedra e o Projeto de Lei nº 1.411/2015; Considerações finais; Referências.

1. NOTAS INICIAIS Este trabalho fará uma reflexão sobre a criminalização do direito à liberdade de Cátedra no Brasil partindo num primeiro momento da formação pedagógica do professor de Direito, para depois analisar o Projeto de Lei nº 1.411/2015 do legislador Rogério Marinho do PSDB/RN à luz da Constituição Federal de 1988. Sobre a metodologia empregada, em princípio trata-se de uma abordagem subjetiva do mundo social jurídico ao realizar uma análise qualitativa dos dados por revisar algumas referências textuais sobre a questão. Apresenta também uma abordagem de cunho etnográfico devido observação-participante da pesquisadora. Analisar o Projeto de Lei nº 1.411/2015 do legislador Rogério Marinho do PSDB/RN é importante, primeiro por ser um tema pouco publicado, apesar de fundamental para o meio acadêmico. E segundo, porque é relevante refletir sobre a liberdade de cátedra no Brasil, pois como afirma Márcia Tiburi (2015, p. 123): “o coronelismo intelectual segue forte na filosofia e nas ciências humanas, na verdade dos especialistas, tanto quanto na dos ignorantes que se deparam apenas por titulação ou falta dela”. Sendo assim, professores e leigos acabam sem consciência do próprio processo de autocrítica e autocriação, resultado da repetição de idéias alheias como aqueles parafraseiam algum filósofo clássico apenas pelo amor ao fundamentalismo exegético. 2. A FORMAÇÃO PEDAGÓGICA DO PROFESSOR DE DIREITO E O AMBIENTE EDUCACIONAL JURÍDICO. Como ultrapassar o papel limitado do professor “comentarista” de códigos? O que fazer diante de um ensino do Direito positivado transmitido aos alunos de forma dogmática, acrítica e desvinculada da realidade histórico-social? Mesmo reconhecendo que a dogmática jurídica é indispensável para o ensino do Direito, não cabe mais a “arrogância” da racionalidade normativa “penso, logo existo”, é preciso abrir caminho para o “sinto, logo convivo”1, pois a formação jurídica não deve se resumir ao estudo sistemático de códigos e leis, afinal o direito se comunica com outros fenômenos presentes nas relações sociais.

1  Manifestação de Pablo Lucas Verdú em O sentimento constitucional citado por Carmela Grüne que afirma “a operatividade do sentimento constitucional serão mais efetivas quando o Estado de Direito aparecer como Estado de cultura (Grune, 2012, p.82).

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Ezilda (MELO, 2015) refletindo sobre os campos transdisciplinares de compreensão do Direito, destacando a Arte como recurso estético e hermenêutico de interpretações jurídicas, observa que a interpretação jurídica e a interpretação artística não são distintas: Os campos transdisciplinares de compreensão do Direito alargam a compreensão educacional mais ampla na formação de juristas que não devem ficar presos na caverna platônica do conhecimento para aprovação em provas da OAB ou em exames concursais para cargos rentáveis. Muito mais do que essa motivação, estudar Direito tem uma importância na construção de uma sociedade que confie que, por trás de cada processo, quem for julgar é um homem dotado de corpo e alma, que terá em suas mãos as dores e os infortúnios de quem almeja uma decisão urgente e não perdida nas teias eletrônicas de processos infindáveis. A interpretação jurídica e a interpretação artística não são distintas.

“Às vezes, para se entender um assunto complexo, precisa-se dar a volta nos sentidos, utilizar a criatividade e as percepções, para que se vivencie cotidianamente a cultura jurídica deliberativa”, como entende GRUNE (2012), essa é uma realidade que está emergindo no ensino jurídico como possibilidade educativa, pois relacionar técnicas de outras áreas como cinema, música, pintura, teatro, literatura, ciências cognitivas, psicanálise e micropolítica, é uma possibilidade capaz de potencializar o Direito, principalmente em seu aspecto social. O reconhecimento jurídico do samba, como sustenta GRUNE (2012), visto como parte integrante da identidade democrática brasileira ratifica um caminho, infelizmente ainda contrario as formas tradicionais de ensino, mas, sobretudo urgente e necessário, por promover debates acerca de um novo repertório para as práticas educativas no âmbito jurídico. Há práticas educativas em Direito que se relacionam a acontecimentos relevantes do ponto de vista social, como por exemplo, o movimento dos Direitos Urbanos, movimento composto por pessoas que se organizaram com o propósito de produzir, conforme suas habilidades, trabalhos integrados em prol de um modelo de cidade mais democrático e humano. Dentre os trabalhos produzidos pelo movimento Ocupe Estelita, há vídeos denominados Cinema de Urgência (OCUPE ESTELITA, 2015) que podem muito bem serem exibidos em sala de aula para esclarecer e aprofundar debates acerca dos direitos humanos, já que muitas vezes os estudantes de Direito conhecem apenas uma versão dos fatos que assimilaram via mídia majoritária comercial. Programas como o da TVU/UFPE Opinião Pernambuco proporcionam diálogos entre academia e sociedade, como foi em 20/12/2014 com os ativistas envolvidos na Brigada Audiovisual Ocupe Estelita. A “Brigada” foi constituída por cineastas pernambucanos contemporâneos como Luís Henrique Leal, Marcelo Pedroso, Pedro Severien e Ernesto de Carvalho, que promoveram uma produção audiovisual sem fins lucrativos, com o propósito de conscientizar a sociedade sobre ingerência do capital imobiliário na política urbana. Esse tipo de produção audiovisual, ao se difundir pela internet, festivais de cinema eventos científicos e culturais, criou novas imagens contestatórias sobre os espaços em disputa na cidade do Recife, sendo fundamental estudar este tipo de cinema (BARBOSA; QUEIROZ, 2015, p. 16): Neste sentido, compreendemos que é factível estudar este tipo de cinema no âmbito das ciências humanas enquanto artefato artístico, pois este permite a compreensão nas relações do homem quando representante de uma cultura, sociedade, natureza. A relação ciência-arte percorra por caminhos próximos quando se busca entender ou exprimir sentidos, símbolos e metamorfoses nas relações entre o homem e os espaços.

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Refletindo sobre a formação pedagógica do professor de Direito e o ambiente educacional jurídico no qual está inserido, a formação profissional dos mestrandos e dos doutorandos tem ido além do “professar”? Existe um contexto adequado para o surgimento de educadores jurídicos? Vejamos o que acontece (ALMEIDA, 2015): De fato, não existem hoje no Brasil cursos capazes de formar adequadamente o professor das ciências jurídicas. Até mesmo muito do que se escreve sobre o assunto é direcionado à formação do professor das séries iniciais (do ensino fundamental e médio). À formação do professor do curso superior são reservadas poucas horas de ensino da metodologia e didática no âmbito dos cursos de mestrado e doutorado; em geral não mais que quatro ou cinco créditos num universo em torno de trinta e cinco ou quarenta, a depender do programa. Assim, os cursos de mestrado e doutorado, a que devem possuir pelo menos 1/3 do corpo docente da universidade, segundo exigência do art. 52, II da LDB, têm conduzido muito mais à formação científica, específica daquela área de conhecimento, do que à capacitação do profissional para atuar em sala de aula.

O país que tem mais cursos jurídicos no mundo será o mais justo? Ou seria o contrário? No Brasil os conflitos são tantos, a violência é constante, tanto que a crença no Direito como solução para todos os males sociais não surpreende. Num contexto maior, levando em consideração o campo jurídico brasileiro e os profissionais do corpo docente, o que se tem é uma disputa por poder, um conflito entre os profissionais-docentes e docentes profissionais (CARVALHO, 2012, p. 53): No caso do campo jurídico brasileiro, a expansão do ensino jurídico, especialmente a partir dos anos 1960 e 70, e a expansão da pós-graduação, a partir de meados dos anos 1970, foram, como já foi dito, os motores de um gradual processo de diferenciação de um campo acadêmico ou, mais especificamente, docente, no interior do campo jurídico, como um espaço de domínio dos agentes investidos de titulação acadêmica formal e dedicação quase que exclusiva à docência (os docentes profissionais), em oposição aos práticos do direito (os profissionais-docentes) – profissionais em sentido estrito, que dominavam (e ainda domina no estado atual o campo jurídico) a docência no ensino jurídico, em um contexto no qual os capitais profissionais adquiridos na prática forense são mais valorizados do que o título acadêmico forma de pós-graduação.

O tumulto gerado no campo jurídico brasileiro tem ocorrido em primeiro lugar pela demanda de docentes titulados surgida com a expansão acelerada do ensino jurídico e na ausência de vagas suficientes para formar mestres de doutores. Em segundo lugar, no fato que os agentes que antes atuavam no ensino jurídico com base na experiência profissional, agora atravessam um momento de transição que tem como primazia o conhecimento acadêmico adquirido pelos docentes nos programas de pós-graduação (CARVALHO, 2012, p. 55): (...) os títulos acadêmicos e a experiência docente acabam se convertendo em recursos de poder simbólico, mobilizados para fins diversos de sua finalidade institucional declarada, ou seja, a produção de docentes e pesquisadores; ao invés disso, a posse desses recursos acaba sendo convertida em capitais simbólicos nas estratégias de ascensão nas carreiras jurídicas “práticas” e de destacamento dos agentes da elite em um campo pressionado pela massificação do ensino jurídico e das profissões jurídicas.

No ambiente do ensino jurídico as aulas ainda permanecem centradas no professor, raras são as práticas alinhadas aos saberes pedagógicos progressistas, muitas inspiradas nas palavras de Paulo Freire em Pedagogia da Autonomia: “ensinar não é transferir conhecimento, mas criar possibilidades para a sua produ-

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ção e construção” (FREIRE, 1996, p. 22-23). Os sujeitos, mesmo diferentes, não devem ser tratados como se um fosse objeto do outro, “não há docência sem discência”, pois “quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender”. Somos o país de maior número de cursos de Direito no mundo, mas isso não nos fez ainda os mais justos, o que nos leva à crítica e a recusa ao “ensino bancário” (FREIRE, 1996, p. 25), que é aquele onde o educando a ele submetido está fadado a fenecer por causa da “transferência”, onde o conhecimento é posto dentro do “autoritarismo e erro epistemológico do bancarismo”. Este ensino apartado do gosto pela curiosidade e “rebeldia” do educando, que não estimula sua capacidade de arriscar-se, leva a constatação dos efeitos negativos do “falso ensinar”, daí os professores tentam se convencer que ensinam (sem muito sucesso) e os alunos que aprendem. “Leis e mulheres foram feitas para serem violadas” frase dita em sala de aula por um professor de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), Fábio Azambuja, é um exemplo do quanto é necessário valorizar os saberes necessários ao educador, dentre os elencados por Paulo Freire, um bem pertinente ao caso: “ensinar exige a corporificação das palavras pelo exemplo”, os professores de Direito em grande parte ainda ignora que “pensar certo é agir certo” (FREIRE, 1996, p. 34) e seja em sala de aula, nos corredores ou entre colegas, reproduzem preconceitos e discriminações com as conhecidas “piadas politicamente incorretas”, o que poderiam ser classificadas como “incoerentes e desrespeitadoras dos direitos humanos”. O professor citado no parágrafo anterior foi denunciado por alunas de Direito e ex-alunas a vice-reitora do curso, pois esta não seria a primeira vez que ele teria “incitado a violência contra a mulher” e que em outros momentos o professor proferiu comentários de teor machista, como “moedas na mão, calcinha no chão” (PRAGMATISMO POLÍTICO, 2015). Foi aberta uma sindicância na Instituição, enquanto isso, o aluno que compartilhou a frase do professor tem sido ameaçado por outros alunos próximos, segundo ele, “estou sendo hostilizado por quem é amigo do professor, as pessoas levaram isso para o lado pessoal”, afirmando ainda que não citou o autor da frase quando postou na rede social e que publicou apenas as palavras ditas pelo professor. “Se o direito fosse fácil, seria periguete”, o conhecido bordão de Lênio Streck (ao menos no meio jurídico) repercute negativamente, ainda mais quando dito por quem é uma das grandes referências quando assunto é ensino jurídico no Brasil. Recentemente o professor respondeu as críticas (STRECK, 2015): Recebi algumas reclamações de parte do público jurídico-feminino, no sentido de eu ter comparado o “direito facilitado ou simplificado ou coisa-que-valha” a uma “mulher fácil”, o que teria sido altamente ofensivo para as mulheres, uma vez que eu teria imposto (sic) um julgamento sobre a sexualidade que não cabia na reflexão, o que faria com que artifício argumentativo da crítica perdesse sua validade integralmente.

“Ensinar exige risco, aceitação do novo e rejeição a qualquer forma de discriminação” (FREIRE, 1996, p. 35), o novo não pode ser negado, o que foi feito pelo professor Lênio ao reconhecer a crítica, pois o seu bordão não se alia ao “pensar certo, fazer certo”, como podemos observar na conceituação de Paulo Freire, sobre o “saber necessário à prática educativa” e não “professada” de Paulo Freire (1996, p. 38): A grande tarefa do sujeito que pensa certo não é transferir, depositar, oferecer, doar ao outro, tomado como paciente de seu pensar, a inteligibilidade das coisas, dos fatos, dos conceitos. A tarefa coerente do educador que pensar certo é, exercendo como ser humano à irrecusável prática de inteligir, desafiar o educando com quem se comunica e a quem comunica, produzir sua compreensão do que vê sendo comunicado. Não há inteligibilidade que não seja comunicação e intercomunicação e que não se funde na dialogicidade. O pensar certo por isso é dialógico e não polêmico.

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O momento é fundamental para reflexão crítica sobre a prática pedagógica no ensino do Direito. No caso, quando um professor de Direito utiliza um termo que reproduz o machismo cotidiano é um problema, pois guarda relação com o machismo e a sociedade patriarcal. A utilização do termo “periguetismo” nesse contexto é discriminatória e representa o machismo presente na academia jurídica, pois é evidente que a palavra é carregada de sentido e que utilizá-la para homens e mulheres não é a mesma coisa. “Está errada a educação que não reconhece na justa raiva, na raiva que protesta contra as injustiças, contra a deslealdade, contra o desamor, contra a exploração e a violência” (FREIRE, 1996, p. 40), conhecimento fundamental para quem propõe educar, ainda mais em Direito. Por isso os quadros de formação dos educadores em direito deveriam priorizar o empenho de formação permanente, reinventando-se e não incorporando a atividade docente como um “bico”, como “advogados que também dão aula”, pois “há que se ter investimento na formação profissional do docente, tanto sobre os conteúdos específicos do direito quanto sobre os demais saberes que o permitam pensar e ensinar o direito de maneira crítica” (CARVALHO, 2012, p. 99). O ensino “verticalizado” marca a realidade acadêmica no Brasil, encontra-se precipuamente voltado para a formação de quadros técnicos e de uma elite burocrática, por isso o ensino do direito está mergulhado numa crise que o coloca apático diante da realidade social, da necessidade de construir saídas às demandas reais da população. E para superar essa grave crise algumas tentativas são oferecidas, como expõe Adelina de Oliveira Novaes (CARVALHO, 2012, p. 113): Qualquer tentativa de romper com o modelo tradicional de ensino jurídico, com vistas à superação dessa crise passa, necessariamente, por duas reflexões básicas. A primeira refere-se à redefinição do papel de todos os envolvidos no processo de ensino-aprendizagem. A segunda passa pelo desafio (que se coloca a esses atores com papéis redefinidos) de problematizar os conteúdos dogmáticos diante da tomada de consciência sobre a existência de um senso comum próprio a uma determinada realidade social.

É necessário então destruir a barreira do processo ensino-aprendizagem fundado no método vertical de ensino tradicional, deve-se buscar recomposição e composição de novos espaços de integração social, reconectando o direito com a sociedade, transformando o ensino do Direito ao permitir que ele se comunique com outras disciplinas, o que é denominado por Morin (2007) como a “religação de saberes necessários à educação do futuro”. “Para o ensino do Direito alcançar seus objetivos conservadores, Eça de Queiróz tinha e tem razão, a ‘decoreba’ da ‘sebenta’ ainda é a melhor forma de ensinar”, como lembra Dani Rudnicki (CARVALHO, 2012, p. 120), afinal quem nunca se deparou com um professor de Direito (não educador obviamente) que se enquadra em uma das seguintes situações: Não se deve discutir se o aborto é ou não crime, mas aplicar a lei penal; não se deve discutir se a herança é ou não uma forma justa de adquirir patrimônio, mas sim saber quem herda quanto; não se deve discutir o que é uma família ou como acontece a adoção, mas aplicar os textos legais que se coadunam às formas tradicionais.

Para Dani Rudnick, não basta refletir sobre o dito “fracasso dos modelos de ensino”, mas é necessário pensar sobre a sociedade brasileira e a organização do campo jurídico no país, como por exemplo, as Faculdades de Direito que se dividem entre “os cursos para a elite, cursos para classe média e cursos 199,90” (CARVALHO, 2012, p. 122-123). Dentre os primeiros, o curso de Direito da Fundação Getúlio Vargas, para a elite, já demonstra a diferença com relação ao horário que é integral durante os seis primeiros semestres, além da mensalidade de mais de dois salários mínimos. A classe C, a maior parte dos egressos no país, luta no máximo por uma melhor remuneração, um concurso para ser Oficial de Justiça, uma vaga na Polícia ou trabalhar como técnico ou analista em um Tribunal.

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Percebe-se que mesmo ingressando no ensino superior, ao estudante não haverá possibilidades de acesso a todas as carreiras, talvez nem naquela “modestamente” almejada (medidos pelos baixos números de aprovação na prova da OAB) nos cargos superiores da advocacia empresarial, que exigem conhecimentos em economia, administração, línguas estrangeiras e até mesmo de cinema, literatura, dentre outros. E qual seria a função do professor de Direito neste contexto? Permanecer como mais uma engrenagem do sistema, preocupando-se apenas com o carro do ano, a viagem para Europa, lecionar conforme o programa da disciplina? Será limitar-se a viver a vida com medo de demissão ou redução de carga horária? Ou ao contrário, a sua função será se tornar um “jurista marginal” (Warat), aquele que vive em contato com o Direito, mas que consegue ir além dos esforços comuns? Para Elizete Lazone Alves, “o professor de Direito deve ser o protagonista e articulador de sua própria história de transformação e valorização, a mudança de pensamento e postura é o primeiro passo”. Ela afirma que dentre as capacidades e habilidades necessárias ao professor de Direito, é fundamental o conhecimento técnico específico, a análise crítica, o conhecimento didático-pedagógico e a alteridade. A tecnicidade deve ser aliada a formação humanística (CARVALHO, 2012, p.195-196): A história mostra que o “humano” inerente ao ser foi desprestigiado por uma cultura do “ter” e isso foi levado para dentro das Universidades refletindo na formação profissional exageradamente tecnicista. O resgate de uma cultura mais humanista demonstra que a perda ocasionada por esse período de miopia educacional, efetivamente, refletiu no papel do jurista na sociedade.

Muitas reformas curriculares foram realizadas ditando as regras de inclusão ou exclusão da formação humanística nos cursos jurídicos brasileiros. Hoje a Resolução CNE/CES Nº 9, de 29 de setembro de 2004, que institui as diretrizes para os cursos de graduação em Direito, enfatiza que os cursos devem assegurar o seguinte: (...) sólida formação geral, humanística e axiológica, capacidade de análise, domínio de conceitos e da terminologia jurídica, adequada argumentação, interpretação e valorização dos fenômenos jurídicos e sociais, aliada a uma postura reflexiva e de visão crítica que fomente a capacidade e a aptidão para a aprendizagem autônoma e dinâmica, indispensável ao exercício da Ciência do Direito, da prestação da justiça e do desenvolvimento da cidadania.

A Declaração Mundial sobre Educação Superior no Século XXI (UNESCO, 1998) estabelece que devem ser preservados os valores humanísticos na educação superior com o objetivo de “educar e formar pessoas altamente qualificadas, cidadãs e cidadãos responsáveis” (art. 1º), consolidando assim os direitos humanos, o desenvolvimento sustentável, a democracia e a paz em contexto de justiça, promovendo conhecimentos por meio da pesquisa nas ciências sociais e humanas, a atividade criativa nas artes. Mas em geral os professores de direito permanecem transmitindo os conteúdos como aprenderam por não terem aprendido a ensinar, a educar (lembrando Paulo Freire). A postura comum dos docentes é assumir a condição de detentor absoluto do conhecimento, o que muitas vezes o deixa fechado às indagações e curiosidades dos alunos, desconsiderando que o professor não é “um profissional do direito”, mas “um profissional da educação”. A dificuldade está na falta de formação pedagógica do professor de Direito, afinal basta fazer o exercício de procurar nas livrarias obras sobre a formação de professores de Direito para se constatar a desvalorização do tema. Adriana de Lacerda Rocha, em pesquisa qualitativa de cunho etnográfico, ao usar a técnica da observação-participante indireta (com registro ou coleta de dados realizados em diário de campo), afirma na obra Representações do Professor de Direito (CARVALHO, 2012, p. 178) que: De modo geral, o professor mantém-se centrado em sua própria figura, o que gera desinteresse para tentar a auto e hétero compreensão, reforçando, as-

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BREVE ANÁLISE SOBRE O NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINO AMERICANO Renata Santa Cruz Coelho Mestranda em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Bolsista da Capes. Especialista em Direito do Trabalho pela Universidade Federal de Pernambuco. Graduada em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. renatasantacruzcoelho@ hotmail.com Caroline Alves Montenegro Advogada. Mestra em Direitos Humanos pela Universidade Católica de Pernambuco – Brasil - na linha de pesquisa Jurisdição e Direitos Humanos. Especialista em Direito Processo Civil e Ciências Criminais pela UNIPÊ. Especialização em jurisdição constitucional pela Universidade de Pisa/Itália. [email protected]

SUMÁRIO: Introdução; 1. Do Neoconstitucionalismo ao Novo Constitucionalismo Latino Americano; 2. O novo constitucionalismo latino-americano e as exigências das minorias; Considerações finais; Referências.

INTRODUÇÃO O novo constitucionalismo latino-americano propõe a fundação de um novo Estado, o Estado plurinacional, em que conceitos como pluralismo, legitimidade e participação popular assumem um novo significado para possibilitar a inclusão de todas as classes sociais no Estado. Estamos diante de Constituições que, por um lado, são originais e próprias de cada país, na medida em que tentam solucionar os problemas de cada uma das sociedades onde foram implantadas. Mas, por outro lado, estamos diante de denominadores comuns óbvios, principalmente no campo da participação, da economia e de uma vigência efetiva dos direitos para todos. A constituição não deve ser tão somente uma matriz geradora de processos políticos, mas uma resultante de correlações de forças e de lutas sociais em um dado momento histórico do desenvolvimento da sociedade. Enquanto pacto político que expressa a pluralidade, ela materializa uma forma de poder que se legitima pela convivência e coexistência de concepções divergentes, diversas e participativas. Assim, toda sociedade política tem sua própria constituição, corporalizando suas tradições, costumes e práticas que ordenam a tramitação do poder. Ora, não é possível reduzir-se toda e qualquer constituição ao mero formalismo normativo ou ao reflexo hierárquico de um ordenamento jurídico estatal. (Wolkmer, 1989, p. 13-14). Para Rubén Martínez Dalmau (2008), o novo constitucionalismo latino-americano é um constitucionalismo “sin padres”, onde ninguém, salvo o povo, pode se sentir progenitor da constituição, pela genuína dinâmica participativa e legitimadora que acompanha os processos constituintes. E deve ser uma Constituição que não tenha medo de regular as principais funções do Estado: a melhor distribuição da riqueza, a busca por igualdade de oportunidades, a integração das classes marginalizadas. O autor ressalta que uma Constituição que esteja à altura do novo constitucionalismo deveria, em primeiro lugar, se basear na participação do povo, que é o que lhe dá legitimidade. Isso significa que a ela-

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boração da proposta de Constituição deve ser redigida por uma Assembleia Constituinte eleita, e para isso deve ser principalmente participativa na hora de receber propostas e incorporá-las no texto constitucional. (Dalmau, 2008). Em resumo, uma Constituição que busque o “sumak kamaña” como diz a Constituição boliviana: o “viver bem” da população. As Constituições outorgam um poder claro à sociedade civil organizada, por exemplo na eleição de determinadas autoridades, sobre as quais já não é o presidente da República quem decide, ou a luta contra a corrupção. O que se faz é recompor a distribuição do poder público, fortalecendo a organização popular, ainda que isso implique uns mandatos mais longos para outros cargos. A construção política do Estado e de seus aparatos jurídicos, antes um privilégio do setor social abastado e imposto ao povo, no atual momento inverte o percurso e brota do seio popular. A constituição deixa de nascer no âmbito exclusivista das minorias hegemônicas para atender ao chamado de outra forma de poder, multifacetado, diversificado e plural. Assim, cabe destaque ao protagonismo popular, durante e depois do processo constituinte, conformado na mobilização social para formação do poder constituinte permanente, diferentemente do constitucionalismo tradicional em que o poder constituído se afasta da participação do povo. Resta destacar na Constituição Boliviana, quanto à amplitude, artigos extensos para fazer a demarcação do profundo alcance jurídico e mesmo político que a positivação constitucional proporciona. Torna-se frequente, no texto constitucional boliviano, a expressão “nações” e “povos indígenas originários campesinos” com tratamento do direito indígena, como por exemplo: garantia de propriedade exclusiva da terra, recursos hídricos e florestais pelas comunidades indígenas; equivalência entre a justiça indígena e a justiça comum; cotas para parlamentares oriundos de povos indígenas. Essas questões positivam os valores propostos pelo novo constitucionalismo: pluralidade, inclusão, participação efetiva e maior legitimidade da Constituição e da ordem jurídica. Ademais, o fator da complexidade, tanto de técnica quanto de linguagem, encontra-se justificada na busca de articular diferentes instituições, desde a abordagem da questão plurinacional, como o tribunal plurinacional boliviano e também as eleições para órgãos do governo como os juízes (Consejo de la Magistratura Bolívia), até mesmo a cosmovisão ameríndia da pachamama (mãe terra), sumac kawsay (vida plena) e sumac kamaña (bem viver). Vale destacar a retirada do latim como língua jurídica e, na linguagem popular, o destronar do “juridiquês” para maior acessibilidade. Exemplo disso é a troca de termos como “habeas corpus e habeas data” por “acción de libertad e acción de protección de privacidad”, palavras simples e de acesso popular, fortalecendo a democracia e o verdadeiro Estado Plurinacional, que compreende a possibilidade de um Estado plural, constituído por uma diversidade de culturas, etnias e comunidades e que se ajuste à realidade social, buscando resolver as desigualdades. Neste contexto, são lançados novos olhares sobre os temas acima mencionados, com o intuito, não de esgotar a temática, mas de proporcionar debates acerca de um direito diferenciado e de uma proposta constitucionalista inovadora, com traços peculiares latino-americanos. 1. DO NEOCONSTITUCIONALISMO AO NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINO AMERICANO. O neoconstitucionalismo deve ser compreendido por meio da identificação do marco histórico, teórico e filosófico. Como marco histórico identifica-se os movimentos constitucionais da Europa pós 2ª Guerra Mundial, assim como reconhece-se como marcos significativos as constituições, alemã de 1949 e italiana de 1947, e a criação dos tribunais constitucionais nesses países, nos anos de 1951 e 1956, respectivamente. Aponta-se ainda, a importância dos processos de redemocratização da Espanha e Portugal para a construção e fortalecimento do neoconstitucionalismo. (Barroso, 2007). As três características fundamentais para a caracterização do neoconstitucionalismo são: a) o reconhecimento de força normativa à Constituição; b) a expansão da jurisdição constitucional; c) o desenvolvimento de uma nova dogmática da interpretação constitucional. (Barroso, 2007).

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O termo neoconstitucionalismo tem variadas conceituações e a despeito de afirmar a existência de diversos significados, Ávila (2009) ressalta que: “As características principais desse movimento podem ser apontadas na existência de: número maior de princípios nos textos legais; uso preferencial do método de ponderação, no lugar da simples subsunção; justiça particular (individual, levando em consideração as peculiaridades do caso concreto); fortalecimento do Poder Judiciário; e aplicação da Constituição em todas as situações, em detrimento da lei”. (Ávila, 2009, p. 2).

Assim, o neoconstitucionalismo é um movimento jurídico-político filosófico que modifica a concepção e interpretação do Direito, ao introduzir conteúdos axiológicos e ao atribuir força normativa à Constituição, reposicionando-a como principal elemento na ordem jurídica. Seria, portanto, uma ruptura com o constitucionalismo liberal de previsão meramente formal de direitos. É tentativa de garantia material de direitos fundamentais para todos.1 Entretanto, este movimento não se iniciou ao mesmo tempo em todo mundo. Decorreu de um longo processo histórico de conquista e consolidação dos direitos fundamentais e também da institucionalização do Estado Democrático de Direito em cada um dos países. Assim, tem-se que apenas em 1976 pode florescer em Portugal, em 1978, na Espanha e apenas em 1988, no Brasil, com a constituição cidadã. O que se buscou com o neoconstitucionalismo foi a aproximação do direito com a ética, eis que durante certo período histórico e jusfilosófico, ambos andaram dissociados. Para isso foram introduzidos conceitos como razoabilidade, senso comum, interesse público, dignidade, justiça, liberdade, proporcionalidade e uma série de princípios, que são cláusulas gerais as quais permitem a aferição da legitimação do conteúdo da norma no caso concreto. Evolui-se para uma nova forma de relacionamento entre o direito e a moral. (Cambi, 2007). Para Streck (2009), o neoconstitucionalismo é paradigmático e ruptural. Não há sentido em tratá-lo como continuidade, uma vez que seu “motivo de luta” é “outro”. É apontado como um movimento que promove uma ruptura do paradigma do Estado “liberal-individualista e formal-burguês”. Para o autor, o neoconstitucionalismo é: (...). Uma técnica ou engenharia do poder que procura dar resposta a movimentos históricos de natureza diversa daqueles que originaram o constitucionalismo liberal, por assim dizer (ou primeiro constitucionalismo) (Streck, 2009, p. 8).

O novo constitucionalismo latino-americano surgiu das reivindicações sociais históricas. Este movimento neoconstitucional culminou na promulgação das constituições do Equador (2008) e da Bolívia (2009). O autor Rúben Martínez Dalmau (2008) destaca a dificuldade de explicar as razões pelas quais esse movimento tenha ocorrido na América Latina, principalmente pelo fato de que as experiências constituintes realizadas por esse movimento são poucas, ainda que significativas. Contudo, tal fato não impede a análise das principais características do novo constitucionalismo. Cumpre destacar, pois, que no novo constitucionalismo, o poder constituinte originário volta a ser exercido como nos primórdios, com a efetiva manifestação da vontade popular, compreendido em toda a sua pluralidade de composição, e não como exercido nas últimas transições políticas na América Latina, em que a participação popular era relegada a uma fraca e imprecisa representação.

1  Com a derrota dos regimes totalitários nazi-fascistas, verificou-se a necessidade de criarem catálogos de direitos e garantias fundamentais para a defesa do cidadão frente aos abusos que poderiam vir a ser cometidos pelo Estado ou por quaisquer detentores do poder em quaisquer de suas manifestações (político, econômico, intelectual etc) bem como mecanismos efetivos de controle da Constituição (jurisdição constitucional).

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O novo constitucionalismo levou à implantação do Estado plurinacional na Bolívia e Equador. Boaventura de Souza Santos (2011) vai além, ensinando que o conceito de plurinacionalidade, do qual derivam a interculturalidade e pós-colonialidade, está presente em vários países, como Canadá, Suíça e Bélgica. Destaca-se, pois, a existência de dois conceitos de nação: o primeiro, liberal, em que há identificação entre nação e Estado, unificando-se os conceitos, uma nação, um Estado; o segundo conceito, desenvolvido pelos índios, está ligado à autodeterminação.2 Após a breve identificação dos elementos e características do neoconstitucionalismo, passaremos à análise do novo constitucionalismo latino-americano, identificando suas principais características. 2. O NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO E AS EXIGÊNCIAS DAS MINORIAS. Dalmau (2008) afirma que “o novo constitucionalismo latino-americano é uma evolução do “antigo” constitucionalismo latino-americano e que surgiu para atender à necessidade de alteração jurídico-política vivida pela América Latina atualmente”. O autor lembra ainda que: La evolución constitucional responde al problema de la necesidad. Los grandes cambios constitucionales se relacionan directamente con las necesidades de la sociedad, con sus circunstancias culturales, y con el grado de percepción que estas sociedades posean sobre las posibilidades del cambio de sus condiciones de vida que, en general, en América Latina no cumplen con las expectativas esperadas en los tiempos que transcurren. Algunas sociedades latinoamericanas, al calor de procesos sociales de reivindicación y protesta que han tenido lugar en tiempos recientes, han sentido con fuerza esa necesidad que se ha traducido en lo que podría conocerse como una nueva independencia, doscientos años después de la política. Independencia que esta vez no alcanza sólo a las élites de cada país, sino que sus sujetos son, principalmente, los pueblos. Dalmau (2008. p. 23).

O novo constitucionalismo latino-americano promove as exigências das minorias ao dar uma ressignificação de conceitos como legitimidade e participação popular, direitos fundamentais da população, de modo a incorporar as reivindicações das parcelas historicamente excluídas do processo decisório, notadamente a população indígena. A título exemplificativo veja-se o artigo 8º da Constituição Boliviana de 2009, em que se consagra como princípio ético-moral o “Sumak kamaña” ou o “Sumak kawsay”, “viver bem” em quéchua, língua nativa dos índios. Vejamos o artigo na íntegra: Art. 8º El Estado asume y promueve como principios ético-morales de la sociedad plural: ama qhilla, ama llulla, ama suwa (no seas flojo, no seas mentiroso ni seas ladrón), suma kamaña (vivir bien), ñandereko (vida armoniosa), teko kavi (vida buena), ivimaraei (tierra sin mal) y qhapaj ñan (camino o vida noble) (Constituição da Bolívia, 2009).

O conceito de plurinacionalidade obriga à refundação do Estado moderno, pois o Estado plurinacional deve congregar diferentes conceitos de nação dentro do mesmo Estado. No mesmo sentido, Alves (2012) ressalta que:

2  Surge um novo constitucionalismo pautado no resgate dos povos que se tornaram invisíveis à cultura eurocêntrica hegemônica e na ressignificação da democracia a partir do respeito à diversidade. Representa uma tentativa de ruptura com o paradigma moderno dominante com uma preocupação com os diferentes grupos sociais e seus interesses. Não se trata mais de uniformizar as diferenças, e sim absorvê-las pelo Estado. É uma construção do Estado de baixo para cima, em que as diversidades culturais passam a ser respeitadas e ter a possibilidade de participar de um diálogo democrático.

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O Estado plurinacional condensa as principais propostas do novo constitucionalismo, sendo uma resposta à ideia uniformizadora instituída pelo Estado nacional, em que o Estado e a Constituição são a representação de uma única nação, um único direito, sem diversidade de interesses, cultura e sem levar em conta a pluralidade existente na composição do povo (Alves, 2012, p. 142).

O novo constitucionalismo latino-americano é fruto de reivindicações sociais de parcelas historicamente excluídas do processo decisório nesses países, notadamente a população indígena, e observa-se na Constituição da Bolívia (2009), que há tratamento do direito indígena em 80 dos 411 artigos. Ressaltemos os seguintes direitos: cotas para parlamentares que sejam oriundos dos povos indígenas; garantia de propriedade exclusiva da terra, recursos hídricos e florestais pelas comunidades indígenas; equivalência entre a justiça indígena e a justiça comum. Todas essas alterações positivam os valores propostos pelo novo constitucionalismo: pluralidade, inclusão, participação efetiva e maior legitimidade da Constituição e da ordem jurídica. É oportuna a lição do professor José Luiz Quadros de Magalhães (2008) ao afirmar que: “(...) A grande revolução do Estado Plurinacional é o fato que este Estado constitucional, democrático participativo e dialógico pode finalmente romper com as bases teóricas e sociais do Estado nacional constitucional e democrático representativo (pouco democrático e nada representativo dos grupos não uniformizados), uniformizador de valores e logo radicalmente excludente”. (Magalhães, 2008, p. 208).

O Estado plurinacional reconhece, pois, a democracia participativa como base da democracia representativa e garante a existência de formas de constituição dos diversos grupos sociais existentes. Em sua natureza, a formulação teórica do Pluralismo designa a existência de mais de uma realidade, de múltiplas formas de ação prática e da diversidade de campos sociais ou culturais com particularidade própria, ou seja, envolve o conjunto de fenômenos autônomos e elementos heterogêneos que não se reduzem entre si. O paradigma para a implantação do Estado plurinacional é justamente o novo constitucionalismo latino-americano surgido nos países historicamente dominados, sem tradição constitucional e com uma grande parte da população sem direito a representantes efetivos. É uma resposta plural, uma tentativa de efetivar respeito e garantia de pluralidade, participação popular e democracia. Sendo assim, as constituições de países como Colômbia, Bolívia e Equador já incorporaram o pluralismo jurídico e o direito de aplicação da justiça indígena paralela à juridicidade estatal, reconhecendo a manifestação periférica de outro modelo de justiça e de legalidade, diferente daquele implantado e aplicado pelo Estado Moderno.3 Deste modo, é preciso reconhecer que o pluralismo jurídico é um dos fundamentos que podem contribuir para que a interculturalidade seja na prática observada. Esse pluralismo deve ser reconhecido enquanto conceito dinâmico que reconhece o valor da diversidade e da emancipação. Em sua natureza, a formulação teórica do pluralismo designa a existência de mais de uma realidade, de múltiplas formas de ação prática e da diversidade de campos sociais ou culturais com particularidade própria, ou seja, envolve o conjunto de fenômenos autônomos e elementos heterogêneos que não se reduzem entre si, buscando o reconhecimento das exigências das minorias.

3  As Constituições outorgam um poder claro à sociedade civil organizada, por exemplo na eleição de determinadas autoridades, sobre as quais já não é o presidente da República quem decide, ou a luta contra a corrupção. O que se faz é recompor a distribuição do poder público, fortalecendo a organização popular, ainda que isso implique uns mandatos mais longos para outros cargos. A construção política do Estado e de seus aparatos jurídicos, antes um privilégio do setor social abastado e imposto ao povo, no atual momento inverte o percurso e brota do seio popular. A constituição deixa de nascer no âmbito exclusivista das minorias hegemônicas para atender ao chamado de outra forma de poder, multifacetado, diversificado e plural.

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O Estado do novo constitucionalismo latino-americano é plurinacional, reconhece a pluralidade social e jurídica, respeitando e garantindo os direitos de todas as camadas da sociedade. Portanto, a proposta é uma nova independência e a criação de um Estado plural, participativo e efetivamente democrático. CONSIDERAÇÕES FINAIS Inicialmente, o constitucionalismo, em sua visão liberal, tinha como objetivo central e único, a proteção do cidadão e garantia dos direitos essenciais. Ocorre que houve uma mudança de paradigma e o ideal democrático teve de associar-se ao constitucionalismo. Assim, mesmo com a existência de normas com a previsão de direitos sociais e limitação do poder estatal, nada impediu que os mesmos fossem violados.  Deste modo, foi proposta a introdução de fundamentos valorativos no texto constitucional. Nascia então o neoconstitucionalismo, com o objetivo de impregnar a ordem jurídica de conteúdos axiológicos, princípios e ideais de justiça.4 O novo constitucionalismo latino-americano surge como um movimento social, jurídico-político voltado à ressignificação do exercício do poder constituinte, da legitimidade, da participação popular e do próprio conceito de Estado. Como já foi dito, o Estado do novo constitucionalismo latino-americano é o Estado plurinacional, que reconhece a pluralidade social e jurídica, respeitando e assegurando os direitos de todas as camadas sociais.5 A democracia implica em mudança, transformação, mas estas mudanças não são construídas por maiorias, mas, sempre, por todos. A constituição não precisa mais ter um papel de reação a mudanças não autorizadas. Não há necessidade de mecanismos contramajoritários, uma vez que não há mais a vitória da maioria como fator de decisão. Dessa forma, os direitos fundamentais devem ser compreendidos como consensos construídos e reconstruídos permanentemente. No novo constitucionalismo latino-americano observa-se o avanço quanto à concepção de direitos, de sujeitos e de institucionalidades diferenciadas. O princípio do “sumak kawsay” ou “buen vivir”, fundado nas concepções dos povos originários aponta um direcionamento oposto aos conhecimentos lançados pelo pensamento moderno. Dar titularidade à natureza, “pachamama”, encarando-a como sujeito de direito, capaz de atuar dentro de uma esfera jurídica, quebra as lições tidas pelo racionalismo moderno de dissociação entre sujeito e objeto, ou seja, entre ser humano e natureza, especialmente o olhar antropocêntrico que paira sobre a epistemologia hegemônica ocidental. O reconhecimento de sujeitos coletivos também marca esse movimento constitucionalista, reclamando ao Estado modificações estruturais capazes de compreender novos instrumentos de garantia destes direitos, não apenas como um somatório de individualidades, mas como coletividades complexas e pluriculturais. A lógica do Estado Moderno perde sua validade diante de realidades sociais diversas. Surge a necessidade de se relativizar o conceito de nação e o conceito de Estado, buscando a inclusão de povos e subjetividades políticas que sempre foram negadas pela lógica legalista e formalista. O novo constitucionalismo se pauta no resgate dos povos que se tornaram invisíveis à cultura hegemônica e na ressignificação da democracia a partir do respeito à diversidade. O direito é visto como instrumento de emancipação e transformação.

4  Apresenta-se com uma proposta de uma nova independência e a criação de um Estado participativo e efetivamente democrático, como mecanismo de se ver garantido o parágrafo único, do artigo 4º, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. 5  Não se quer afirmar aqui, que o neoconstitucionalismo acabou ou foi superado. O que aqui se desenvolve é que em alguns países latino-americanos, onde se originou o novo constitucionalismo, é a criação ou reconhecimento pela ordem jurídica de direitos existentes no seio social, de formas mais efetivas de participação popular e da construção de um Estado que reconheça a pluralidade e peculiaridade de seu povo.

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Pretendeu-se, portanto, neste artigo buscar discussões que ampliassem a visão sobre o novo constitucionalismo latino-americano que é fruto de reivindicações sociais históricas, como agente transformador do Estado e da relação entre o Estado e seus povos. REFERÊNCIAS ALVES, Marina Vitório. Neoconstitucionalismo e novo constitucionalismo latino-americano: características e distinções. Rev. SJRJ, Rio de Janeiro, v. 19, n. 34, p. 133-145, ago. 2012. Disponível em: http://www4.jfrj.jus. br/seer/index.php/revista_sjrj/article/viewFile/363/289. Acesso em 18 de outubro de 2015. ÁVILA, Humberto. Neoconstitucionalismo: entre a ciência do direito e o direito da ciência. Revista Eletrônica sobre Reforma do Estado (RERE), n. 17. Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, jan.-mar. 2009. Disponível em: http://www.direitodoestado.com.br/rede.asp. Acesso em: 18 de outubro de 2015. BARROSO, Luiz Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito: o triunfo tardio do direito constitucional no brasil. Revista Eletrônica sobre Reforma do Estado (RERE), Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, n. 9, mar.-maio 2007. Disponível em: < http://www.direito-doestado.com.br/redae.asp> Acesso em: 20 setembro de 2015. BOLÍVIA. Constitución Política del Estado. La Paz: Congreso Nacional, 2009. Disponível em: . Acesso em: 14 de setemnbro de 2015. CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e neoprocessualismo. Panóptica, Vitória, ano 1, n. 6, fev. 2007, p. 1-44. Disponível em: . Acesso em: 20 de setembro de 2015. DALMAU, Rúben Martínez. El nuevo constitucionalismo latinoamericano y el proyecto de constituición del ecuador. Alter Justicia, n. 1. Guayaquil, oct. 2008, p. 17-27. Disponível em: . Acesso em: 16nov.2013. 1992.

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CONFLITOS INDÍGENAS E O SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS (SIDH)

Valdênia Brito Monteiro Mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Pernambuco - UFPE, doutoranda pela Universidade de Buenos Aires (UBA), professora e coordenadora do Curso de Especialização em Direitos Humanos da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP) e professora da Universidade Salgado de Oliveira (UNIVERSO). Bárbara Raquel da Silva Fonseca Graduanda do Curso de Direito da Universidade Católica de Pernambuco-UNICAP.

SUMÁRIO: 1. Aspectos históricos do Genocídio Indígena no Brasil; 2. A Constituição de 1988 e o Direito Internacional no Tocante aos Povos Indígenas; 3. Ativismo Jurídico; 4. Importância do Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH) nos Conflitos Indígenas; Conclusão; Referências.

1. ASPECTOS HISTÓRICOS DO GENOCÍDIO INDÍGENA NO BRASIL. Ao longo de cinco séculos, os povos indígenas, no continente americano, têm resistido à violência e à opressão na luta pelo direito aos seus territórios tradicionais, em atenção ao direito à vida digna. A consolidação social do território foi marcada pelo extermínio e a barbárie do colonizador europeu. Estima-se, quando da invasão portuguesa no Brasil, que havia 6 milhões de habitantes. Atualmente, a população é aproximadamente de 800 mil, um contingente que representa cerca de 0,4% da população brasileira, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2010). Na América Latina, a região abriga 10% do número de indígenas do mundo, calcula-se que a população deste grupo oscila entre 8 a 12%, o que equivale entre 30 e 50 milhões de pessoas. A perda da territorialidade dos povos indígenas no continente representa um extenso processo histórico de desapropriação. O direito ao território, compreende o espaço que se caracteriza pelo uso, gozo e manejo dos recursos naturais e também o controle dos processos de ordem política, econômica, social e cultural, com o fim de assegurar a reprodução e continuidade material e cultural do grupo. Durante a conquista pelos portugueses, as terras indígenas foram usurpadas violentamente pelos conquistadores, extintas muitas etnias, destruídas culturas e submetidas à escravidão de milhares de pessoas. Os povos indígenas perderam muito de suas propriedades para latifundiários, sendo impossibilitados de viverem nas suas terras tradicionais de subsistência. As causas das tensões, fruto dos processos de resgate de seus territórios, foram aprofundando as desigualdades sociais. Havia, por parte dos portugueses, o interesse de normatizar as questões relacionadas entre índios e não índios e de explorar a mão de obra barata. Em 1822, com a proclamação da independência do Brasil, houve a necessidade de uma política indigenista, mas pouca coisa mudou. A primeira Constituição de 1824, nem sequer menciona a existência dos índios no território brasileiro. Em 1845, a única norma indigenista geral do governo imperial era o Regulamento das Missões, representando mais um documento administrativo que um plano político. Esse regulamento, buscou oferecer às populações indígenas, uma certa proteção às suas terras e riquezas. A Lei de

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Terras de 1850, apresentou uma nova compreensão da propriedade da terra, acessível apenas pela compra e pela aquisição do título de propriedade e não mais pela posse. Os indígenas foram expropriados de suas terras, as quais foram ocupadas paulatinamente por colonos e pelas frentes pioneiras extrativas e agropastoris. Os antigos direitos, raramente beneficiavam aos índios. A Constituição de 1891 da Republicana, também ignorou o índio não lhe reconhecendo qualquer direito. Nos primeiros anos do século XX, o Estado brasileiro deu continuidade às percepções preconceituosas e massacres. Em 1906, através da Lei nº 1606, o Ministério da Agricultura ficou responsável pela política indigenista, o que representou uma verdadeira política de integração do índio à sociedade e à destruição de sua própria cultura. A Constituição de 1934 reconheceu o direito desses povos sobre seus territórios, asseverando, em seu art. 129, que seria “respeitada posse de terras de silvícolas que nelas se achem permanentemente localizados, sendo-lhes, no entanto, vedado aliená-las”. As Constituições de 1937, 1946 e 1967 não inovaram o ordenamento jurídico em matéria indigenista e nem fizeram qualquer menção ao direito à cultura, à dignidade dos povos indígenas, entre outros direitos. No âmbito infraconstitucional, em 1973, no governo Médicis é elaborado o Estatuto do Índio, sob o modelo assimilacionista, as quais compreendiam o índio como categoria social transitória a ser incorporada à comunidade nacional. Só a partir da Constituição de 1988 que se abandona as perspectivas assimilacionistas, Mas, os povos originários sobreviventes, resistiram e resistem até hoje a um projeto de assimilação forçada, fragmentação, exploração e ao genocídio. Zaffaroni (2006, p. 4), ao prefaciar o livro de Juan Manoel Salgado sobre a Convenção 169 sobre Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes da Organização Internacional do Trabalho (OIT), expressa: Los sobrevivientes del genocidio nunca fueron reparados, su propiedad originaria nunca fue devuelta. Pero el genocidio es imprescriptible, y esto no puede entenderse sólo limitado a la materia penal, sino también a la civil (…) Y lo cierto es que si bien los muertos están muertos, son muchos sus descendientes que hasta hoy sufren las consecuencias del genocidio cometido hace siglos, sin que hayan sido objeto de reparación alguna.1

O mantimento da violência e do medo na construção histórica brasileira, sempre foi pautado pela submissão de grupos e pelo alto grau de seletividade. O medo, sempre foi um instrumento de conservação da violência estrutural na formação social excludente. Todos esses cinco séculos foram marcados pela tensão na formação social autoritária, que sempre buscou resolver os conflitos através de mecanismos coercitivos do Estado; de um projeto de assimilação cultural e da supressão da diversidade cultural dos povos originários. Chauí (2009) ao realizar uma crítica sobre a nossa sociedade autoritária -na qual não se instala a dimensão pública e coletiva da lei -, apresenta como são percebidas as classes populares, como classes perigosas que não são caso de política e sim de polícia. Sobre os indígenas expressa: os índios, em fase final de extermínio, são considerados irresponsáveis (incapazes de cidadania), preguiçosos ( mal adaptáveis ao mercado de trabalho capitalista), perigosos, devendo ser exterminados, ou então, “civilizados” (entregues à sanha do mercado de compra e venda da mão-de-obra, mas sem garantias trabalhistas porque são “irresponsáveis”). Os massacres, a violência e a negação dos direitos indígenas presentes no Estado brasileiro, quer no século XX quer no XXI, apresentam, na prática, um quadro sistemático de desrespeito para com os aborígenes, culminando na destruição física e cultural desses povos. De acordo com o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), organismo vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), os conflitos pela terra, desde os anos 70, representam um verdadeiro extermínio praticado por fazendeiros contra os Guarani Kaiowá. De acordo com o relatório sobre a violência a qual 1  Os sobreviventes do genocídio nunca foram reparados, sua propriedade originária nunca foi devolvida. Porém, o genocídio é imprescritível e este não pode ser compreendido só na área penal, mas também a civil (...)E o certo é que se bem os mortos estão mortos, mas muitos seus descendentes até hoje sofrem as consequências do genocídio cometido há séculos, sem que tenham sido objeto de reparação alguma. Tradução livre.

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atinge os povos indígenas, somente entre 2003 e 2011 foram assassinados 503 índios, dos quais 273 são do povo Guarani Kaiowá. Não se pode olvidar que a violência não é uma disfunção do sistema, e sim, representa uma política declarada de administração dos conflitos ante a violência sistêmica praticada pelos donos da terra, historicamente importante na construção da elite brasileira. Apesar do descaso com estes povos, os mesmos não têm deixado silenciar frente ás violações de direitos.

2. A CONSTITUIÇÃO DE 1988 E O DIREITO INTERNACIONAL NO TOCANTE AOS POVOS INDÍGENAS. A Constituição de 1988, no seu Capítulo VIII, reconhece como permanentes os direitos originais inerentes aos povos indígenas por sua condição de primeiros e contínuos ocupantes históricos de suas terras, substituindo o paradigma da assimilação natural” antes vigente. Trouxe o fim do sistema tutelar e o reconhecimento dos grupos indígenas como parcelas da população dotadas de culturas e organizações próprias. No seu Capítulo VIII, “DOS ÍNDIOS”, dispõe a Constituição de 1988: Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

Percebe-se uma clara recusa da aplicação do termo “povos indígenas”, substituído no texto da Constituição pelas terminologias “populações indígenas” (Art. 22, XIV e 129, V), “grupos indígenas” (Art. 231, §5º), “culturas indígenas” (Art. 215, §1º), “comunidades indígenas” (Art. 210, §2º), ‘etnias’ (Art. 242 §1º). No conjunto de dispositivos do texto constitucional, é visível um modelo jurídico-institucional do indigenismo brasileiro. Apesar de momentos distintos do indigenismo internacional, os conteúdos dos documentos influenciaram a delimitação do texto brasileiro, destacando a Convenção sobre o Instituto Indigenista Interamericano(1949), promulgada por meio do Decreto nº 36.098/54; a Convenção nº 107 sobre populações indígenas e tribais, da Organização Internacional do Trabalho, promulgada através do Decreto nº 58.824/66; a Convenção nº 169 sobre povos tribais, da Organização Internacional do Trabalho, promulgada pelo Decreto nº 5.501/2004 e a Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas de 2007, aprovada pela Assembleia da Organização das nações Unidas (ONU), promulgada pelo Decreto n° 6177/2007. O marco das Declarações e Convenções representam um emergente direito internacional dos povos indígenas. Destaca-se a pressão dos movimentos indígenas, a quase totalidade dos países latino-americanos, nas novas Constituições para o reconhecimento do caráter pluriétnico e multicultural dos Estados. Em alguns casos, concedendo direitos específicos aos indígenas ou afrodescendentes. No caso da Convenção 169, é o instrumento que trata especificamente dos direitos dos povos indígenas e tribais no mundo, reconhece o direito de autonomia e controle de suas próprias instituições, formas de vida e desenvolvimento econômico, propriedade da terra e de recursos naturais, tratamento penal e assédio sexual, entre outros temas. A Convenção resulta de uma orientação à Convenção 107, que deve ser interpretada com base nos princípios dos direitos humanos internacionais, os quais reconhece os direitos coletivos dos povos indígenas e a necessidade que tais direitos sejam garantidos. A Convenção 169 é um grande instrumento de interpretação do compromisso estabelecido no artigo 231, § 3º, que obriga o Congresso Nacional a ouvir as comunidades indígenas afetadas nos processos de autorização para aproveitamento dos recursos hídricos e minerais em suas terras. A Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas, reconhece os povos indígenas como nações preexistentes aos Estados nacionais e outorgando legitimidade para exigir de cada governo a efetivação dos seus direitos. É um assunto que se tem transformado em pauta a política sobre questões de territórios, identi-

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dade, reconhecimento da diversidade. Ao mesmo tempo reconhece uma nova categoria de sujeitos de direito, considerados agora coletivamente. No caso do Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA), a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (ratificada pelo Brasil em 1992) e a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, são os principais instrumentos vigentes, embora nenhum desses instrumentos faça menção específica aos povos indígenas e seus direitos. Tratam dos direitos humanos de maneira geral, o que serve à proteção dos povos indígenas e seu direito à terra. Como observa Sieder (2002), a importância dos tratados apresentam três pontos importantes : (a) o desenvolvimento do Direito Internacional, caracterizando os direitos indígenas como parte específica dos Direitos Humanos; (b) a emergência de movimentos indígenas que atuam, nacional e internacionalmente, cada vez mais como grupos de interesse dentro da sociedade civil e nos espaços públicos democráticos, pressionando por uma nova leva de direitos coletivos; e (c) os processos recentes de reformas constitucionais em vários países, reconhecendo - pelo menos em princípio - o caráter multiétnico de suas sociedades. Apesar da Constituição Federal garantir aos povos indígenas a posse das terras tradicionalmente ocupadas por eles, os conflitos indígenas têm aumentado. A demarcação tem sido lenta e há grande resistência dos setores econômicos dominantes, além da violência declarada, ferindo o Direito Constitucional das comunidades indígenas a ter suas terras tradicionais. As causas geradoras dos grandes conflitos têm a ver com o modelo de desenvolvimento econômico do país, que trata a terra como uma das fontes de poder econômico, torna a demarcação das terras indígenas alvo constante de ataques por determinados setores da sociedade. A terra já ocupada pelos índios é almejada pelo interesse de latifundiários, extrativistas, mineradores ou mesmo por grandes empreendimentos como construções de hidroelétricas, como no caso de Belo Monte, empreendimento que faz parte do Complexo Hidrelétrico do Rio Xingu, que atingirá cerca de 10 (dez) povos indígenas, como os Juruna de Paguiçamba, Assurini do Xingu, os Araweté, os Parakanã, os kuruia, os Kayapó, entre outros. Sem falar nas terras reivindicadas pelos povos indígenas e que não estão em sua posse. Os povos indígenas, assolados pelo empreendimento do Complexo Hidrelétrico, já tinham suas terras reconhecidas pelo Estado brasileiro, a ordem de remoção desses povos de seus respectivos territórios configura, tanto no plano nacional quanto no internacional, clara violação de direitos humanos. 3. ATIVISMO JURÍDICO As Organizações Não Governamentais (ONG’s), são os atores importantes do ativismo jurídico na luta contra as violações de direitos humanos. De acordo com Santos (2007), o ativismo jurídico transnacional pode ser compreendido com um tipo de militância que tem como foco ações legais engajadas, impetradas por organizações da sociedade civil perante as cortes internacionais ou instituições quase judiciais contra seus Estados membros (litigância). Esses organismos são responsáveis pela quase totalidade das petições enviadas à Comissão Interamericana de Direitos Humanos(CIDH), o que as torna instrumento de ação e pressão dos movimentos sociais, que ao se organizar e se estruturar em redes de proteção, dão a sustentabilidade às ações de defesa dos direitos das minorias, contra a pobreza e a exclusão, ou seja, com atuação centrada na litigância transnacional, para além do direito interno, como estratégia de responsabilização dos Estados Membros do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, quando aqueles cometem violações dos direitos. Santos (2007), sobre a importância do ativismo jurídico das ONGs, expõe que elas não simplesmente tentam remediar abusos individuais, mas também de (re)politizar ou(re)legalizar a política de direitos humanos, ao provocar as cortes internacionais ou sistemas quase judiciais desses direitos humanos e levá-los a agirem diante das arenas jurídicas e políticas nacionais e locais.

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Apesar das diferenças entre as esferas domésticas e internacional, esses entes formam verdadeiras cadeias de proteção de direitos humanos com alcance para além das fronteiras onde seus agentes exercem seu trabalho. O ativismo transnacional funciona aqui como verdadeiro termômetro de verificação da eficácia e, principalmente, a efetividade das medidas adotadas no ambiente doméstico para aplicação das normas ius cogens de direitos humanos, acordadas no Direito Internacional dos Direitos Humanos, traduzidas no Brasil na Convenção Americana Sobre Direitos Humanos, Pacto de San José da Costa Rica, e na competência da Comissão e da Corte Interamericana de Direitos Humanos reconhecida pelo Estado brasileiro, enfatizando assim a dimensão transnacional das alianças formadas por esses órgãos e ONGs, como já dito antes, atores principais nas ações e movimentos em defesa dos direitos humanos. Tanto no caso Belo Monte, como do Povo indígena Xucuru, do Povo Yanomami foram as ONGs grandes responsáveis pelas denúncias junto à CIDH na defesa dos direitos desses povos. O ativismo transnacional desses organismos culmina em ações que funcionam como verdadeiros paradigmas a serem seguidos para proteção dos direitos dos povos indígenas e de todas as minorias vulneráveis a reiteradas violações de direitos humanos cometidas pelo Estado brasileiro. Vale ressaltar, porém, que embora as denúncias sejam a partir de um caso individualizado, em princípio se está litigando na busca de um interesse particular, mas a intenção das ONGs ao peticionarem junto à CIDH é que as soluções que são dadas caso a caso, tenham como objetivo primordial criar precedentes que tragam impacto na política públicas e na legislação interna. A estratégia é que o caso concreto transforme-se em fortalecimento e empoderamento dos sujeitos de direitos, na busca por uma verdadeira mudança social. O ativismo jurídico transnacional não visa beneficiar, exclusivamente, a vítima ou mesmo remediar a agressão sofrida, para além disso, tem o escopo de implantar o reconhecimento dos direitos humanos como um direito inerente a todos os outros, bem como implantar novas políticas para o efetivo exercício desses direitos, envolvendo jurisdição situada além das nossas fronteiras. Nesse entorno, a SIDH é muito mais instrumento de promoção de mudança social e garantia de direitos. O ativismo jurídico tem papel fundamental no sentido problematizar sobre a importância da compatibilidade das leis nacionais e das convenções. Como expressa Piovesan (2012) de encorajar avanços no plano de proteção e de prevenir retrocessos no regime de proteção de direitos. 4. IMPORTÂNCIA DO SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS (SIDH) NOS CONFLITOS INDÍGENAS. O SIDH2 tem tido um papel importante na proteção dos direitos humanos, na região. Quanto à proteção indígena ao direito da terra, percebe-se a reafirmação pela Corte Interamericana de Direitos Humanos e de sua jurisprudência, consequentemente abrangente a todos os países que ratificaram Convenção Americana de Direitos Humanos. Estados como Nicarágua, Belize e Paraguai adequaram suas legislações sobre direitos indígenas e influenciaram as Cortes nacionais a adotarem um posicionamento respeitando territórios ocupados por povos culturalmente distintos. O Sistema Interamericano de Direitos Humanos tem sido um importante ferramenta de tutela desses direitos na América Latina, apesar de sua modesta força política para se sobrepor aos interesses soberanos dos Estados que a compõem. A resolução de conflitos, pela via jurisdicional doméstica, nem sempre se apresenta satisfatória para os povos indígenas, outros mecanismos têm sido utilizados, a exemplo, o (SIDH). Este se caracteriza como 2  O Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos é composto pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, ambas pertencentes a Organização dos Estados Americanos. O Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos é composto, basicamente, pelos seguintes instrumentos normativos: Carta da OEA, 1948; Declaração Interamericana dos Direitos e Deveres do Homem, 1948; Declaração de San Tiago, 1959; Protocolo de Buenos Aires, 1967; Pacto de San José da Costa Rica, 1969; Regulamento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos; e Protocolo de San Salvador, 1988; Protocolo de Cartagena das Índias, 1985; e Protocolo de Washington, 1992.

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um sistema de subsidiariedade de jurisdições entre a jurisdição nacional e a jurisdição regional de direitos humanos, como alternativa viável para proteção de direitos. Vem sendo demandados por agentes nacionais ou ativistas na defesa de interesses de grupos, com a finalidade de implementar mudanças no âmbito doméstico que, individualmente, não teria condições de lutar. Como diz Bernades (2011), o SIDH funciona como esfera pública transnacional para assuntos que não encontram espaço na agenda política nacional e que possam ser tematizados nesses espaços transnacionais. Argumenta o autor (2011), que o SIDH tem dois papéis importantes: um de cunho político e outro de cunho jurídico. O primeiro, proporciona as bases institucionais para a construção de uma esfera pública3 transnacional que pode contribuir para a ampliação da democracia. O segundo, de âmbito jurídico, que representa um desafio para o Brasil, que é a efetividade das decisões dos seus órgãos pelos Estados. No Brasil, há resistência da comunidade jurídica nacional de incorporar o Direito Internacional dos Direitos Humanos na sua rotina. Referimo-nos aqui tanto à implementação das decisões contra o Brasil emitidas por órgãos internacionais quanto, e principalmente, ao chamado “controle de convencionalidade”4. No caso da concessão de Medidas Cautelares (MC) 382/105, em consonância com o estabelecido no artigo 25 do Regulamento da Comissão, em favor dos membros das Comunidades Indígenas da Bacia do Rio Xingu, Pará, Brasil6, por violações de direitos humanos por parte do Brasil na construção da usina hidrelétrica de Belo Monte, em Altamira, no Pará alegando que a vida e integridade pessoal dos beneficiários estariam em risco pelo impacto da construção da usina, só foi possível a MC devido ao esgotamento e à ineficácia das medidas solicitadas ao Brasil com o objetivo de impedir a construção da Usina Hidrelétrica. Assim, tornou-se necessário recorrer à Comissão Interamericana de Direitos Humanos com o intuito de impedir a concretização das possíveis violações de direitos humanos. A SIDH avaliou a MC 382/10 com base na informação enviada pelo Estado e pelos peticionários, solicitou ao Estado: 1.Adoção de medidas para proteger a vida, a saúde e integridade pessoal dos membros das comunidades indígenas em situação de isolamento voluntário da bacia do Xingu, e da integridade cultural de mencionadas comunidades, que incluam ações efetivas de implementação e execução das medidas jurídico-formais já existentes; 2. Adoção do desenho e implementação efetivo dos planos e programas especificamente requeridos pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI) no Parecer Técnico 21/09, recém enunciados; 3. Garantia de rápida finalização dos processos de regularização das terras ancestrais dos povos indígenas na bacia do Xingu que estão pendentes; 4. Adoção de medidas efetivas para a proteção de mencionados territórios ancestrais ante apropriação ilegítima e ocupação por não- indígenas, e frente a exploração ou o deterioramento de seus recursos naturais. A denúncia contra Belo Monte tem sido objeto de definição de diretrizes para obras em todo o continente, como a construção de estradas na Bolívia, os conflitos entre mineradoras e comunidades no interior da Colômbia e disputas entre populações Maias e empresas que realizam obras no setor de energia elétrica na Guatemala. O que se percebe é que o debate provocado, a partir da utilização do Sistema Internacional de Direitos Humanos, traz à tona uma série de discussões como, articulação entre

3  Bernades (2011) expressa que a esfera pública como loci não-estatais de deliberação, onde são possíveis a formação coletiva da vontade, a justificação de decisões previamente acertadas, e o forjamento de novas identidades. Essa vontade política discursivamente formada pode influenciar os processos formais de tomada de decisão do Estado, contribuindo para políticas públicas mais benéficas a grupos sociais mais vulneráveis. 4  A expressão controle de convencionalidade surgiu em um voto do concorrente do juiz Sergio Garcia Ramirez no caso Miriam Mack Cheng versus Guatemala, decidido em 2003. 5  A Medida Cautelar foi solicitada pelo Movimento Xingu Vivo para Sempre (MXVPS), Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB). Prelazia do Xingu, Conselho Indigenista Missionário (CIMI), Sociedade Paraense de Direitos Humanos (SDDH) e Justiça Global à SIDH. 6  Bacia do Rio Xingu, Pará, Brasil: Arara da Volta Grande do Xingu; Juruna de Paquiçamba; Juruna do “Kilómetro 17”; Xikrin de Trincheira Bacajá; Asurini de Koatinemo; Kararaô e Kayapó da terra indígena Kararaô; Parakanã de Apyterewa; Araweté do Igarapé Ipixuna; Arara da terra indígena Arara; Arara de Cachoeira Seca.

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o direito interno e o direito internacional, controle de convencionalidade, o papel do sujeito de direitos na consolidação da democracia, entre outras. O caso Belo Monte, segundo o Secretário Icaza (2013) da SIDH, representa uma nova agenda de direitos humanos para a América Latina no que diz respeito às tensões envolvendo obras de infraestrutura, comunidades locais e a defesa do ambiente. Trata-se de um debate sobre o modelo de desenvolvimento. Em toda a América Latina, os megaprojetos de petróleo, de mineração, as construções de estradas estão gerando muitas tensões. Mas, o efeito Belo Monte aumentou o número de denúncias contra o país. Em 2012, o Brasil sofreu 96 denúncias e chegou a ser o terceiro com mais demandas. O México é o primeiro da lista, seguido de Colômbia, Chile, Peru e Argentina. Nesses países, aumentaram as denúncias. Não é o problema do caso em si, mas o que representa em termos de agenda de desenvolvimento. Os Estados, as comunidades indígenas e os projetos de desenvolvimento, todos têm que ver como vão tratar desse tema. No que diz respeito à jurisprudência da Corte sobre indígena, esta tem realizado uma interpretação evolutiva da Convenção Americana sobre Direitos Humanos que tem servido de parâmetro para vários países da região: reconhecimento de direitos territoriais em Nicarágua, Paraguai e Suriname; indígenas privadas de liberdade em Honduras; massacres e execuções sumárias de indígenas na Guatemala e Colômbia entre outros. No caso brasileiro o grande desafio é construir uma cultura em que os juízes e Cortes brasileiras levem em consideração os Tratados de Direitos Humanos e a Jurisprudência das Cortes internacionais de Direitos Humanos. Segundo Piovesan (2012, p.87), é escassa a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal que implementa a jurisprudência da Corte Interamericana, destacando-se, até novembro de 2009, apenas e tão somente dois casos: a) um relativo ao direito do estrangeiro detido de ser informado sobre a assistência consultar como parte do devido processo legal criminal, com base na Opinião Consultiva da Corte Interamericana n. 16 de 199937; e b) outro caso relativo ao fim da exigência de diploma para a profissão de jornalista, com fundamento no direito à informação e na liberdade de expressão, à luz da Opinião Consultiva da Corte Interamericana n. 5 de 1985. Como bem expressa Piovesan (2012), o Sistema Regional Interamericano simboliza a consolidação de um “constitucionalismo regional”, que objetiva salvaguardar direitos humanos fundamentais no plano interamericano. A Convenção Americana, como um verdadeiro “código interamericano de direitos humanos”. Por fim, no caso específico dos conflitos indígenas, o ativismo jurídico na esfera internacional torna propícia a construção de uma agenda de direitos humanos sobre desenvolvimento, autodeterminação, reconhecimento indígena e meio ambiente, controle de convencionalidade e principalmente, o aprofundamento sobre em qual projeto de sociedade acreditamos. CONCLUSÃO O reconhecimento, na Constituição de 1988, dos direitos originários inerentes aos povos indígenas não tem sido suficiente para evitar graves violações, até porque a proteção dos direitos não se dá pelo simples reconhecimento formal. Os conflitos realizados por setores econômicos dominantes, morosidade governamental na condução de procedimentos administrativos de demarcação de terras indígenas, a omissão do poder público e a política de desenvolvimento do governo têm contribuído para ações de violência. Apesar de todos os conflitos, os povos originários não têm silenciado. Pelo contrário, vêm resistindo e travando uma intensa luta na busca da implementação do Direito Constitucional das comunidades indígenas a ter suas terras tradicionais. O ativismo jurídico transnacional realizado por atores ligados a Organizações Não Governamentais ONGs tem tido relevante papel na luta por igualdade de direitos de grupos vulneráveis e por problematizar a importância de compatibilidade das leis nacionais e internacionais de direitos humanos.

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O ativismo jurídico na esfera internacional torna propícia a construção de uma agenda de direitos humanos sobre desenvolvimento, autodeterminação, reconhecimento indígena e meio ambiente, controle de convencionalidade e principalmente, o aprofundamento sobre em qual projeto de sociedade acreditamos. No caso do Sistema Interamericano de Direitos Humanos-SIDH, vale salientar a sua importância como ferramenta de garantia de direitos humanos, apesar de sua modesta força política. A denúncia de Belo Monte é exemplo da modesta reversão das graves violações direitos humanos, em nível interno. No entanto, o caso tem sido objeto de definição de diretrizes para obras em todo o continente, a exemplo da construção de estradas na Bolívia e dos conflitos entre mineradoras e comunidades no interior da Colômbia. A luta pela efetivação dos direitos humanos tem dimensões transnacionais. O Sistema Interamericano vem cumprido um relevante papel no sentido de fortalecer protagonismos a favor das vítimas, chamar atenção para as violações de direitos humanos e reforçar as lutas sociais, na busca da construção da cultura de direitos humanos e consolidação do Estado Democrático de Direito. REFERÊNCIAS ICAZA, Emilio. Belo Monte pode gerar jurisprudência na OEA: depoimento [28 de outubro de 2013]. Amazonia. Concedida a Coluna Valor. . Acesso em: 22 de outubro de 2015. BERNADES, Marcia Nina. Sistema Interamericano de Direitos Humanos como esfera pública transnacional: Aspectos jurídicos e políticos da implementação de decisões internacionais.. Acesso em: 22 de outubro de 2015.

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quo. Por isso, é difícil acreditar em fundamentos ideológicos ou nos ideais proclamados que prometem a cura, pacificação ou solução social – cabendo ao pós-ideológico encarar a realidade de forma pragmática. Diante da fundamentação teórica supramencionada, o conceito de pós-ideologia pode ser configurado em: superação ideológica baseada no reconhecimento do cinismo político das fundamentações e promessas supostamente ideológicas. Uma nova perspectiva pragmática ao enfrentamento dos obstáculos reais considerando todas as condições de resolução do problema. Portanto, pode-se associar o modelo cooperativo com a pós-ideologia? É possível na medida em que o modelo cooperativo surge em um momento neopositivista, ou seja, superação dos paradigmas racionalistas do século XIX, contrapondo-se a qualquer tipo de geometrização social e um contato maior com a realidade. O modelo cooperativo não significa dar mais atribuições ao magistrado para fins de discricionariedade. O modelo clama por maior diálogo entre as partes, destarte o juiz não se torna o protagonista, muito menos o interventor. O magistrado serve na contribuição da instrumentalidade do processo. Ou seja, efetivar a tutela jurisdicional no escopo do cumprimento do direito material. O momento dogmático atual se inclina na tendência pós-ideológica quando se concentra no problema da efetivação – não se apoiando em qualquer promessa jus ideológica; especificamente na temática processual em busca de resultados práticos: “o processo não é um jogo, em que o mais capaz sai vencedor, mas um instrumento de justiça, com o qual se pretende encontrar o verdadeiro titular de um direito”.(BEDAQUE, 1997, p. 74)

REFERÊNCIAS

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BOBBIO, Norberto. A Teoria da norma jurídica. São Paulo: EDIPRO, 2001.

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A GARANTIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS COMO PRESSUPOSTO PARA O COMBATE DO TRÁFICO DE SERES HUMANOS Vanessa Alexsandra de Melo Pedroso Doutora em Direito Penal pela Universidad Complutense de Madrid. Diplomada em Estudos Avançados (DEA) pela mesma Universidade e especialista em Relações Internacionais na era da Globalização pela Universidade Católica de Pernambuco (Brasil). Professora da Universidade Católica de Pernambuco e líder do grupo de pesquisa “Direitos Fundamentais: Instrumentos de concretização”. Integra, em nível de pósdoutoramento, programa de pesquisa em ciências sociais, crianças e adolescentes na América Latina da rede CLACSO (Centro Latino Americano de Ciências Sociais) / CINDE (Centro Internacional de Educação e Desenvolvimento Humano. Centro cooperador da UNESCO). Luize Ivila Santos da Rocha Graduanda em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco Larissa Gabrielle Silva de Andrade Graduanda em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco

SUMÁRIO: Introdução; 1. Definições importantes e Aspectos gerais do Tráfico Humano para fins de Exploração Sexual; 2. Migração Clandestina ou Tráfico de Migrantes; 3. A inaplicabilidade dos direitos fundamentais e seus efeitos para as condições de existência do tráfico Humano; Conclusão; Referências.

INTRODUÇÃO Sabe-se que a Organização das Nações Unidas ao publicar a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão almejava a proteção dos direitos voltados a garantia da dignidade da pessoa humana. Direitos que, por sua vez, são ameaçados pelas organizações criminosas que efetuam cada vez mais a prática de crimes bárbaros contra os seres humanos, como é exemplo, o crime de Tráfico de pessoas. O referido tema surge como um amplo assunto a ser discutido, uma vez que além de ferir inúmeros direitos fundamentais, engloba temas como a migração, a exploração de terceira pessoa, o cárcere e, ainda, a linha tênue existente entre o proveito e o exercício da prostituição.  1. DEFINIÇÕES IMPORTANTES E ASPECTOS GERAIS DO TRÁFICO HUMANO PARA FINS DE EXPLORAÇÃO SEXUAL. Inicialmente, faz-se necessário realizar alguns comentários sobre o fenômeno da Migração e sobre os crimes de Tráfico de Pessoas e Tráfico de Migrantes ou como também é chamado de Migração clandestina. Neste sentido, é mister lembrar que o homem sempre migrou, seja por motivos ideológicos, políticos, religiosos, geográficos. Enfim, ele sempre migrou em busca do novo. Na atualidade, vivencia-se uma migração fundamentada no poder econômico, haja vista a separação das economias em centrais e periféricas gerando, por sua vez, um cenário mundial caótico.

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Ora, resulta obvio que com o mundo dividido em ricos e pobres, bem como fundamentado em ideias garantistas de capital e mercadoria sugira o deslocamento daqueles em condição de vulnerabilidade àqueles Estados desenvolvidos e, por isso, com melhores condições de trabalho. Neste sentido, veja-se as palavras de Kurz A migração não é nada novo na história da modernização, mas, sim, há um erro na avaliação ao dizer que as pessoas migram livremente em busca de melhores condições. É um processo coativo. Os pobres são livres para vender sua mão de obra, porém fazem isto porque não têm condições para controlar sua existência. A transformação da sociedade capitalista numa situação mundial produziu na sociedade de exclusão. O ser humano participa de um sistema no qual vende abstratamente sua mão de obra e integra uma engrenagem (montada) para produzir acumulação infinita de capital... (KURZ Apud: MARINUCCI; MILESI, 2011, p. 14).

Importante dizer que o fenômeno demográfico da migração consiste no deslocamento de pessoas pelo espaço geográfico, sejam eles permanentes ou temporários. Os movimentos migratórios podem se diferenciar segundo vários aspectos, dentre eles, o tempo de duração e o espaço de deslocamento. Já no que se refere a migração para a prática do crime de tráfico humano, cumpre destacar que esta – a migração - pode ser legal ou ilegal, ou seja, na primeira hipótese referente a migração legal o sujeito, vítima do tráfico humano atravessa a fronteira de sua cidade, estado, região e até país por vontade própria - muitas vezes ludibriado por propostas de emprego ou de ganhos que não se cumprem - e, somente, quando de sua chegada ao destino final é submetido a toda e qualquer sorte. Já na segunda hipótese, o indivíduo traficado está submetido a condição de travessia em ilegalidade, pois que não desejou atravessar, foi submetido em razão da força ou da coação a tal travessia para posterior exploração no destino final. 2. MIGRAÇÃO CLANDESTINA OU TRÁFICO DE MIGRANTES. Ultrapassado esse primeiro momento, faz-se necessário compreender alguns conceitos como é exemplo a ideia da Migração Clandestina ou, como também é chamada, Trafico de Migrantes. Tal conceito resulta importante porque é comum confundir o referido fenômeno com o Tráfico de Seres Humanos. Neste sentido, as autoras consideram interessante traçar um paralelo entre o tráfico humano e a migração clandestina, pois que naquele – ou seja, no tráfico de seres humanos o indivíduo é enganado, forcado, coagido de alguma forma a submeter-se a tal situação de ilegalidade, já na migração clandestina o indivíduo sabe, busca e muitas vezes até paga para que terceiro lhe atravesse pela fronteira dos Estados. (É, por exemplo, o caso da fronteira Mexico e EUA). É em outras palavras afirmar que enquanto no tráfico de pessoas o consentimento da vítima é obtido por coação, força, violência de maneira geral, na migração clandestina a vítima sabe da ação criminosa e permite que ela ocorra. No entanto, faz-se necessário lembrar que pessoas em condição de migração clandestina possam converter-se em vítimas da violação de direitos humanos. Porém, note-se que tais circunstâncias são consequencias e não causas da migração clandestina. (VILLALBA, 2003, p. 25). É importante destacar que de acordo com o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime organizado Transnacional, relativo ao combate ao Tráfico de Migrantes por Via Terrestre, Marítima e Aérea a definição de tráfico de migrantes seria: à promoção, com o objetivo de obter, direta ou indiretamente, um benefício financeiro ou outro benefício material, da entrada ilegal de uma pessoa num Estado Parte do qual essa pessoa não seja nacional ou residente permanente.

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Já a definição de tráfico de pessoas é estabelecida internacionalmente no artigo 3º, “a”, do Protocolo Adicional à convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças , da Organização das Naçoes Unidas, de 15 de novembro de 2000, (mais conhecido como Protocolo de Palermo), que dispõe: a) A expressão “tráfico de pessoas” significa o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração. A exploração incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos. “

Essa norma é considerada um modelo que serve como base para a confecções das normas incriminadoras na legislação interna dos países. No Brasil temos a Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas que acolhe a definição do Protocolo Adicional, conforme artigo 2º do Decreto Presidencial 5.948, de 26 de outubro de 2006: Art. 2º Para os efeitos desta Política, adota-se a expressão “tráfico de pessoas” conforme o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em especial Mulheres e Crianças, que a define como o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração. A exploração incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos. (...) § 4º A intermediação, promoção ou facilitação do recrutamento, do transporte, da transferência, do alojamento ou do acolhimento de pessoas para fins de exploração também configura tráfico de pessoas. (...) § 7º O consentimento dado pela vítima é irrelevante para a configuração do tráfico de pessoas.”.

Essa Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas é voltada para três eixos prevenção, repressão, atendimento e proteção às vítimas. Posteriormente à essa política, foi promulgado o I Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas - Decreto 6.347, de 8 de janeiro de 2008, com validade entre os anos de 2008 e 2010. Atualmente está em vigor o II Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, aprovado pela Portaria Interministerial 634, de 25 de fevereiro de 2013, do Ministério da Justiça, Secretaria de Direitos Humanos e Secretaria de Política para as Mulheres, com objetivos aprovados pelo Decreto 7.901, com vigência de 2013 a 2016. Nessa perspectiva, analisando as definições de tráfico humano pode-se perceber que o tráfico de pessoas possui três elementos principais: ação, meio e fim, quais sejam, a primeira delas refere-se a ação, onde

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se observa o recrutamento, transporte, transferência, alojamento e acolhimento. Em seguida, o meio que, por sua vez, está fundamentado no uso da ameaça, força ou outras formas de coação, rapto, fraude, engano, abuso de autoridade, abuso de uma situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração). Por fim, a finalidade que de maneira genérica se considera a ideia de exploração e de maneira específica, a exploração sexual, do trabalho e do corpo enquanto comercio de órgãos. É importante destacar que para a configuração desse crime é preciso à combinação de, pelo menos, um dos itens de cada elemento que foi mencionado anteriormente. Outro ponto de fundamental importância é que não é necessária que a exploração se consume para a caracterização do tráfico humano, basta a intenção de explorar o traficado. Entre as finalidades do tráfico humano a exploração sexual é sem dúvida a que mais ocorre na América Latina e no mundo. A prova dessa tendência, pode ser demostrada no relatório de abordagem mundial feito pela UNODC em 2014 que constatou que a exploração sexual era a finalidade do tráfico humano mais ocorrente na América Latina, cerca de 54%. É importante destacar os dados de outras localidades que comprovam que a exploração preponderante no mundo é a sexual, Europa 66%, África e Oriente Médio 53%, Ásia Leste, Sul da Ásia e Pacífico 26%. Outra fonte que confirma a grande ocorrência do Tráfico para fins de exploração sexual é o Relatório Nacional sobre Tráfico de Pessoas, que verificou o período de 2005 a 2011, e constatou que a maior incidência do tráfico internacional de brasileiros é para fins de exploração sexual. Tendo em vista tudo que foi dito até agora, é possível afirmar que o combate ao tráfico de pessoas fundamentado no objetivo primordial de impedir que as pessoas - vítimas desse crime - sejam equiparadas a seres irracionais e a coisas garantindo, assim, o instituto do Direitos Humanos e os direitos fundamentais faz-se mais do que urgente. 2. A INAPLICABILIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E SEUS EFEITOS PARA AS CONDIÇÕES DE EXISTÊNCIA DO TRÁFICO HUMANO. É fato que os direitos fundamentais e humanos devem ser positivados pelo Estado. No entanto, cumpre destacar que mesmo positivados sua persecução encontra barreiras diversas de social, político e econômico que terminam por gerar a inaplicabilidade do direito constitucional, promovendo, por consequência, uma prática abusiva de crimes contra a humanidade. Se não é assim, note-se que o tráfico humano, tema do trabalho em comento, é um dos exemplos mais clássicos de crime contra a humanidade e, pelo menos no Brasil, segundo a Secretaria Nacional de Justiça, só em 2014 o referido crime registrou 355 casos, quase cem casos a mais que no ano anterior. Estima-se que mais da metade dos indivíduos traficados tenham servido aos fins de exploração sexual. Ora, depois do todo exposto, sabe-se que o tráfico de seres humanos submete o individuo a uma condição díspar a de ser humano, através do cárcere, coação, tortura psicológica, livre exploração do corpo (seja para venda de órgãos ou para a prostituição), dentre outras práticas absurdas, o tráfico humano fere o direito a vida, liberdade, saúde, segurança, dignidade sexual e principalmente o principio constitucional da dignidade da pessoa humana, principio supremo da carta maior e que rege todos os direitos fundamentais. Como um crime que fere direitos inerentes à condição humana e que ocorre em todo o mundo, atingindo as mais variadas nações, o Tráfico Humano deve ser analisado pela ótica constitucional e ser enfrentado com práticas nas quais estejam todas as nações interligadas afim de combate-lo. Neste sentido, a conduta do Estado para o combate a esta problemática, deve ir muito além das já conhecidas sansões, pois que estas apenas atuam em um momento posterior, ou seja, de repressão propriamente dita. Faz-se necessário atuar de maneira preventiva no intuito de evitar que o mesmo sequer aconteça. Assim, cumpre, então, perguntar: como estabelecer medidas preventivas de combate ao tráfico? Ora, sabe-se que referida prática, quase sempre está fundamentada na falta de informação das vítimas e de suas

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famílias. Por isso, a mobilização social no sentido de criação de políticas públicas capazes de promover conhecimento através da informação planejada e estratégica faz-se mais que urgente nos diferentes Estados, principalmente, naqueles considerados periféricos. E quando se fala em informação planejada e estratégica pensa-se em processos de informação que vão desde a educação para a migração consciente até a compreensão de como se realiza o tráfico humano, pois o cidadão que deseje migrar por motivos econômicos pode perseguir seu anseio, mas informado do processo migratório legal e dos meios como se realizam o tráfico humano, evitando ou, pelo menos, dificultando, assim, a prática do referido fenômeno. Desta forma o Estado responde – através do Direito constitucional – para a garantia efetiva da dignidade da pessoa humana e dos demais direitos fundamentais dos seus cidadãos, pois ao mesmo tempo em que promove o acesso à educação e a informação, atuando de modo preventivo, gera a desestruturação ou, ainda, desarticulação das redes de promoção e ajuda ao tráfico humano. Atualmente, no cenário mundial a Convenção de Palermo, já citada neste trabalho, é considerada atualmente o instituto mais abrangente no combate à criminalidade organizada, uma vez que, prevê medidas técnicas especializadas de investigação, controle e combate à criminalidade organizada. Referido Protocolo incentiva, desta maneira, a cooperação e a assistência entre os Estados, visando desarticular o crime organizado, pois sugere que os Estados membros devam criar mecanismos de denúncia e serviços de assistência às vitimas, para que estas sejam tratadas de fato como vítima de abusos graves. No Brasil o Decreto nº 5.948 de 2006 criou a Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (PNETP), que define o compromisso de combate, no âmbito nacional, por meio da participação do Estado e da sociedade civil. CONCLUSÃO Os direitos humanos e fundamentais, como enfatizado em todo o curso do trabalho, tratam-se de direitos essenciais à vida humana, é apenas através da garantia deles que pode-se reverter de fato a situação dos países com altos índices de tráfico humano.  A mobilidade social na ajuda às investigações, ao combate e a divulgação de informações que possam ajudar na prevenção do tráfico, é também um importante suporte do Estado para evitar essas práticas brutais.  É através do vínculo entre Estado e cidadãos, na garantia da aplicação constitucional e de práticas alternativas de combate, que deve-se buscar a recuperação das vítimas e a erradicação do tráfico humano.  REFERÊNCIAS BICALHO, Pedro Paulo Gastalho de. Os Direitos Humanos, a Exploração Sexual e o Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Cadernos Temáticos sobre o Tráfico de Pessoas. V1. Brasília- DF, 2015. BRASIL. Decreto nº 5015, que promulga o Protocolo Adicional à convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças, publicado no Diário Oficial da União, de 15-03-04. BRASIL. Ministério da Justiça. Relatório Nacional sobre o Tráfico de Pessoas: consolidação dos dados de 2005 a 2011. Brasília: Secretaria Nacional de Justiça, 2013. BRASIL. Ministério da Justiça.Tráfico de Pessoas em pauta: guia para jornalistas com referências e informações sobre o enfrentamento ao tráfico de pessoas. . Brasília: Secretaria Nacional de Justiça; Repórter Brasil:UNODC, 2014.

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BRASIL. Ministério Público Federal. Procuradoria Geral da República. Memorando n. 226, de 4 de novembro de 2014, da secretária Jurídica e de Documentação, encaminha Nota Técnica nº53-DIEST (Divisão de Informação Estatística) contendo informações estatísticas criminais sobre o tráfico de pessoas. BRASIL. Tráfico de pessoas para fins de exploração sexual.Brasília : OIT, 2006. Disponível em: http:// www.oitbrasil.org.br/sites/default/files/topic/tip/pub/trafico_de_pessoas_384.pdf. Acesso em: 10-12-2015 BRITO FILHO, José Claudio Monteiro de. Tráfico de Pessoas: Os Bens Jurídicos Protegidos. Cadernos Temáticos sobre o Tráfico de Pessoas. V1. Brasília- DF, 2015. BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro, 1992. CASTILHO, Ela Wiecko V. De. Exploração Sexual no Tráfico de Pessoas (in)definição. Cadernos Temáticos sobre o Tráfico de Pessoas. V1. Brasília- DF, 2015. CAVALCANTE FILHO, João Trindade. Teoria Geral dos direitos Fundamentais. Disponível em: Acesso em: 03/12/2015. CORREIO DO ESTADO. Tráfico de Pessoas é Terceiro Crime Mais Lucrativo do Mundo. Disponível em: http:// www.correiodoestado.com.br/brasilmundo/trafico-de-pessoas-e-terceiro-crime-mais-lucrativo-do-mundo/251750/. Acesso em: 24/01/2016. DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. São Paulo, 2007. KUMAGAI, Cibele, MARTA, Taís Nader. Principio da Dignidade da Pessoa Humana. Âmbito jurídico. Disponível em: Acesso em: 03/12/2015. KURZ, Roberts. Apud: MARINUCCI, Roberto; MILESI, Rosita. Migrações Internacionais Contemporâneas. CSEM/IMDH, 2011 Disponivel em: http://www.ufjf.br/pur/files/2011/04/MIGRA%C3%87%C3%83O-NO-MUNDO. pdf Acesso em: 26-11-2015 LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 17ªed.São Paulo: Saraiva, 2013. PORTAL BRASIL. ONU Reconhece Ações do Governo Brasileiro Para Combater o Tráfico de Pessoas. Disponível em: < http://www.brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2015/07/onu-reconhece-acoes-do-governo-brasileiro-para-combater-trafico-de-pessoas > Acesso em: 09/01/2016 SECRETARIA NACIONAL DE JUSTIÇA. Pesquisas em Tráfico de Pessoas, parte 3: Tráfico internacional de Pessoas e tráfico de migrantes entre deportados (as) e não admitidos (as) que regressam ao Brasil via o aeroporto internacional de Guarulhos. Brasília: Secretaria Nacional de Justiça, OIT , 2007.

TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2015.

VILLALBA, Francisco Javier de León. Tráfico de personas e inmigración ilegal. Tirant lo blach. Valencia, 2003.

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CRIMINALIZAÇÃO DA PELE E DA CONDIÇÃO SOCIAL NA GUERRA ÀS DROGAS Victor de Goes Cavalcanti Pena Graduando em Direito – Universidade Católica de Pernambuco. Email: victor_goess@ hotmail.com Danyelle do Nascimento Rolim Medeiros Lopes Graduando em Direito – Universidade Católica de Pernambuco. Email: [email protected]

SUMÁRIO: Introdução; Desenvolvimento; Conclusão; Referências.

INTRODUÇÃO A guerra às drogas é travada ferozmente no atual cenário brasileiro, esta é justificada por argumentos contraditórios, como a “questão da saúde pública” e pelo argumento da proteção dos cidadãos contra o grande “mal” do país, as drogas ilícitas. Hoje, esta política proibicionista, propagadora da guerra às drogas, é o campo mais fértil para a ampliação crescente do poder punitivo, que representa perigo aos direitos fundamentais (KARAM, 2002). Diferentemente do que a grande mídia passa os traficantes não possuem as características dos grandes mafiosos italianos, e não exercem aquele papel por uma questão de escolha. É a falta desta que os leva a esse “estilo” de vida. O mercado da droga ilícita é compartilhado em sua maioria, por pessoas negras e moradores das periferias. Marca de uma historia opressora e escravista, a pele continua a sofrer por erros do passado. A vida nas favelas não é fácil, não se possui muitas oportunidades, desde a infância, e muitas vezes a única forma encontrada pelos jovens, que se veem sem condições, é o trafico de drogas ilícitas. A prisão dos pequenos traficantes é o que movimenta o cárcere brasileiro, no caso atual, paralisa. Os presos são aqueles que avisam quando os policiais estão vindo, que apenas entregam o pacote com a droga, que levam mensagens, que se movimentam dentro da favela e observam. São pegos sem armas e levados para o cárcere, lugar que se tornará uma escola para aqueles que adentram (ZACCONE, 2007). O presente trabalho pretende demonstrar que a guerra às drogas, se valendo do pressuposto de proteção à saúde pública, serve na realidade para criminalizar um determinado grupo na sociedade e que mesmo com toda a repressão e violência praticada por aparelhos estatais, o consumo de drogas não tem diminuído. Para realização de tal objetivo faz-se necessária a revisão bibliográfica sobre o tema para melhor fundamentação e critica acerca da temática abordada. DESENVOLVIMENTO Inicialmente, faz-se mister entender que a guerra as drogas pode ser entendida como uma política amplamente difundida no mundo, inaugurada por assim dizer nos Estados Unidos e que teve enorme eco na América Latina e em especial, no Brasil.

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O marco dessa política se deu com o presidente americano Richard Nixon, na década de 70, anunciando que uma das grandes batalhas dos Estados Unidos seria contra o uso de drogas. Utilizando-se que uso de substâncias ilícitas corrompia o indivíduo e ainda afetava a produtividade, tão valorada em um sistema neoliberal. Percebe-se que a política proibicionista – o qual demoniza a droga e prega a imagem do traficante como o grande inimigo da sociedade, que põe em risco “as pessoas de bem” – trata na verdade de uma necessidade pós-moderna de criar novos inimigos e fantasmas, de promover uma nova caça às bruxas. Assim, de certo modo, busca atender a uma parcela da população que constantemente demanda maior repressão e intervenção do sistema penal nas mais diversas áreas da vida social, acreditando que desta maneira alcançará a almejada segurança e haverá, de fato, controle da criminalidade. (BOITEUX, 2006) O movimento proibicionista ganha enorme força e respaldo de movimentos como o de lei e ordem: ideologia de defesa social que clama por medidas mais enérgicas e punitivas de um Direito Penal. Este que deveria ser visto como ultima ratio, se tornou o primeiro modo de resolver os problemas da sociedade, baseado no argumento de que a proteção da saúde pública é alcançada a partir da punição do máximo de pessoas que usam e traficam as drogas ilícitas. Premissa, esta, bastante criticada tendo em vista que a autolesão, ação não tipificada pelo Código Penal Brasileiro, é a única consequência para os usuários, sem prejudicar a saúde pública. A não diminuição do uso e da venda de entorpecentes gera a ineficiência da proposta do proibicionismo, visto que tais ações pouco se alteraram depois do implemento de tal política. O argumento da proteção à saúde pública acaba por se tornar falho, assim como a política, pois não há qualquer tipo de preocupação real com a saúde do usuário, com uma possível política de redução de danos, com a oferta de trabalho para aqueles que foram pegos pelo tráfico sejam absorvidas no mercado de trabalho, tampouco preocupação com as possíveis motivações que levaram estas pessoas a praticarem tal conduta. Nota-se na realidade, a superlotação de cadeias pela apreensão de muitas pessoas com pequenas quantidades de drogas. Houve um verdadeiro encarceramento em massa. Também é assaz perceptível que a partir do momento que os entorpecentes passam para a ilegalidade, é impossível o controle sobre as drogas e sua qualidade, bem como se houver algum tipo de adulteração na produção acarretando, por conseguinte, um maior risco para a saúde do usuário que desconhecerá a procedência do que está consumindo. A situação exposta mostra mais uma vez, como a saúde publica não está de fato sendo o centro da preocupação do modelo proibicionista. Outro dado que comprova como essa política repressora, que crê no Direito Penal onipresente e extremamente punitivista é falha, é que com a criminalização da venda, por exemplo, o usuário terá de entrar no mundo da ilegalidade para conseguir a droga, o que gera na prática uma verdadeira indústria do crime, todo um sistema que é extremamente lucrativo e pautado na ilegalidade promotor de uma cadeia de corrupção. No atual cenário brasileiro, o tráfico de entorpecentes caracteriza um “estado de guerra”. Esta é travada entre as forças de segurança e os famigerados traficantes, que são em sua maioria pessoas de pele negra, pobres e moradores de periferia, ou seja, os marginalizados socialmente. Estes acabam por se tornar bodes expiatórios de uma rede maior do que as pequenas ações que fazem quando pegos. (BOITEUX, 2006) No Brasil o maior número de prisões é por tráfico de drogas, entretanto, os presos não são os “grandes empreiteiros da droga”, e sim aqueles pequenos traficantes, que possuem as funções menores, como entregar a droga ao comprador, avisar quando os policiais estão entrando na favela ou passar mensagens. Afere-se que as ações policiais geralmente não alcançam o núcleo do tráfico, mas os bodes expiatórios, que alimentam a demanda pública por punições para o fim da guerra contra as drogas. Mesmo com o grande número de prisões que ocorrem decorrente do ato, o número de drogas circulando nas cidades só cresce assim como o de usuários.

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Nessas prisões dos pequenos traficantes vemos a prevalência de uma cor de pele, esta seria a negra. A descriminalização da pele surgiu com a vinda dos escravos negros, transportados em péssimas condições de vida pelos navios negreiros, para o Brasil. O interesse econômico era o único objetivo almejado pelos colonizadores, que pouco se importavam com o choque cultural do povo que fora retirado a força do seu o país de origem e que se viam obrigados a trabalhar em proveito daqueles que os haviam colonizado. Assim, a mão de obra escrava era simplesmente uma peça lucrativa no mercado que deveria ser dominada a todo custo, já que o poder sobre a carne prevalecia. Mesmo depois de lutas e sacrifícios, aqueles que antes eram escravos não conseguiram ascender de vida, tornando-se meros trabalhadores braçais, visto que a marginalização da cor ficará impregnada socialmente. Essa marginalização seguiu o social brasileiro até os dias mais recentes, quando as favelas foram se expandindo e seus moradores, em sua maioria, negros e com trabalhos pequenos foram tomando postos sociais mais notáveis e por muitas vezes dentro das casas da classe média, como empregadas domésticas e motoristas. Mas nem sempre há oportunidade para essas pessoas, que já marginalizadas pelo lugar onde moram, e pela cor da pele, sofrem com a falta de aberturas sociais para seu crescimento, e acabam por serem taxadas como perigosas, por apenas residir em um local que possui índices de criminalidade. (ZACCONE, 2004) Não adotaremos uma política de vitimização, mas procuraremos olhar para a realidade brasileira, de maneira que possamos ver como essas pessoas acabam seguindo para o tráfico. Com a falta de oportunidades presente, aqueles que não podem ou não querem seguir uma carreira de estudos, para ter a chance de possuir um diploma, acabam por procurar empregos dentro da própria favela para sustento próprio e ajuda domestica, já que o emprego de apenas uma pessoa da casa não pode sustentar integralmente a todos. Esses empregos passam de entregador, a caixa de mercado ou padaria, de faxineiro, a motoboy, até que desaguam no tráfico. Muitos escolhem seguir esse caminho, por achar mais fácil e que terão a chance de fazer fortuna com esse ato. Outros são levados a entrar na rede do tráfico por necessidade, e uma vez dentro desta fica difícil de sair. Essas pessoas que vão formar a leva dos pequenos traficantes e que vão receber toda a carga de punição esperada pela sociedade, que em sua maioria são negros, continuam a protagonizar uma história de dor e sofrimento de sua cor, que acaba sendo vista como perigosa. É introduzida dentro do senso comum a ideia de que todo morador da favela é um traficante em potencial, ou que estes são perigosos e representam um risco ao patrimônio, que é a grande preocupação da sociedade brasileira atual. A pergunta feita seria: será mesmo que esses moradores de periferias, marginalizados por sua condição social, em sua grande parte, negros e com subempregos oferecidos como “grande chance” seriam o perigo do social? Seriam eles os grandes disseminadores do mal que é a droga ilícita? O tráfico de entorpecentes é, sem dúvidas, um perigo social, devido à vasta gama de práticas ilícitas que dele decorrem. Entretanto, não devemos centralizar a culpa naqueles indivíduos, que possuem pequenos papeis no tráfico, por possuírem o estereótipo do traficante brasileiro. Estes acabam por ser o lado mais frágil, uma vez que idealizam o tráfico como uma boa oportunidade para “fazer dinheiro” e não podem ser o grande alvo social por toda uma parcela da sociedade que decide se utilizar dessas drogas ilícitas que são condenadas e nem sempre são tão perigosas quanto as lícitas vendidas em farmácias, que podem gerar mais vício e perigo para o corpo quanto às outras. (ZACCONE, 2004) Os indivíduos procuram constantemente os culpados, e demandam punições que serão equiparadas as dos crimes hediondos. Então fazem o pensamento do sistema punitivo se voltar para o lugar que se tornou o local de venda de drogas, as favelas. Esses ambientes se tornam estados de exceções, ou seja, dentro daquele espaço o ordenamento não se faz presente, e atitudes como o assassinato podem acontecer sem problemas, pois é isso que é demandado pelo social que não se encontra ali. As ações policiais nas favelas só confirmam cada vez mais essa situação de exceção em que se encontram, com as batidas policiais e embates com traficantes, vemos que foi estabelecida uma situação de caos, de pura guerra, e aqueles moradores da localidade são esquecidos e quando atingidos são vistos apenas como meros efeitos colaterais.

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Criou-se uma visão social de que o traficante é o monstro da sociedade, ele possui cor, possui rosto(s) e possui uma “casa” (as favelas). Logo a função das forças policiais é eliminar essa ameaça constante a saúde pública que nos cerca. O que não é observado é como a situação atual tornou-se seletiva. Como anuir com o alto número de prisões vendo que não há uma mudança na criminalidade do país? A sociedade demanda de uma classe social, que tem a cor negra como majoritária, respostas por atitudes que são consideradas pequenas perante a rede do tráfico. Com esse estereótipo criado sobre a imagem dos traficantes o sistema visa suas punições nessas pessoas, que como já dito, exercem muitas vezes, papeis menores no tráfico. Sentimos a necessidade de expressar a incongruência que estas punições possuem, pois, como podemos estabelecer punições, respaldadas em lei, e ver que na grande parte dos presos pelo tráfico as condições sociais e a cor da pele são as mesmas? Não há uma buscar por um sistema mais igual, tudo que se procura é saciar a demanda social por punições, o que acaba inflando o cárcere e este não exerce a sua função principal, que seria a reintegração social. A seletividade nas prisões acaba por gerar uma homogeneidade nos presídios, ou seja, com o maior número de presos sendo de pele negra e pobres, os presídios se tornam um local o qual irá haver a predominância da cor e da condição social. Já marginalizados fora daquele território punitivo, os indivíduos que são presos acabam por perder chances que ainda poderiam vir, já que agora vão possuir o tabu de ser um ex-presidiário. Como já dito, o atual sistema prisional por sua superlotação e má organização acaba por perder a sua principal característica que seria a ressocialização do indivíduo na sociedade, o que termina por intensificar o processo de exclusão para com aqueles já marginalizados socialmente. Esses “excluídos” tomaram o rótulo de disfuncionais, jogados em subempregos ainda piores, com um salário muito pequeno para sustentar a família e a si mesmo, correndo o risco diariamente de passar necessidades, quando já não passam. Assim, mesmo depois de terem passado por prisões por conta do tráfico, vão recorrer a este novamente para poder prover para si e sua família, com isso aumentam os números de reincidentes nos presídios brasileiros. CONCLUSÃO Em vista do exposto no artigo, observamos que a política proibicionista em relação as drogas, não é o meio mais efetivo de combate ao tráfico que ocorre no Brasil. Tal política apenas busca métodos de gerir um problema maior que buscas e apreensões dentro das favelas brasileiras, assim acarreta em um alto índice de encarceramento e uma não diminuição da criminalidade. O proibicionismo brasileiro, em desacordo com a proposta inicial, acaba por selecionar os membros da sociedade que iria punir, pois nem todos aqueles que exercem funções na rede do tráfico podem ser alcançados. Para saciar a demanda social, o poder policial recai sobre aqueles mais marginalizados pela condição social, e que em sua maioria possuem a pele negra. Estes sofrem por representarem disfunções sociais e acabam por tornarem-se bodes expiatórios, ou seja, serão usados como sacrifício para satisfazer a demanda por segurança de parcela da população que possui poder suficiente para exigir. Essa seletividade põe em risco todo o sistema punitivo, já que não haverá punições justas se tudo que é visado é o encarceramento. Não podemos adotar uma medida extrema de punições, pois iremos prevalecer nas condições atuais do sistema carcerário, ou seja, superlotado e falho. Além de todas essas prisões não resolverem, não há uma preocupação com investigações sobre a rede completa do tráfico, prende-se os pequenos traficantes, que logo são substituídos, e os “chefes” continuam com seu sistema de distribuição, que muitas vezes envolve policiais. A guerra ao tráfico, mais precisamente ao traficante, de forma seletiva continuará a existir se não houver uma mudança nas políticas de combate. Não deve haver uma preocupação apenas com o pequeno traficante que é preso e logo substituído, e, na maioria dos casos, volta aos delitos quando solto, mas deve-se preocupar com a rede do tráfico, quem a controla, quem pode mandar e desmandar, esses que devem ser investigados para que o combate ao tráfico funcione corretamente. O mais efetivo para o estado seria a adoção de políticas de controle de drogas pela sua legalização, se o estado legalizasse as drogas mais recorrentes no tráfico, poderia controlar o montante vendido dos produtos e diminuir os índices de criminalidade no Brasil,

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já que as drogas seriam assunto estatal, mas essa conclusão ainda se encontra distante no país, devido às visões preconceituosas e amedrontadas quanto às drogas. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BOITEUX, Luciana. CONTROLE PENAL SOBRE AS DROGAS ILÍCITAS: O IMPACTO DO PROIBICIONISMO NO SISTEMA PENAL E NA SOCIEDADE. Tese de doutorado, Universidade de São Paulo, 2006 (Capítulos 3 e 4)   CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil: Estudo criminológico e dogmático da lei 11.343/06. São Paulo Saraiva, 2013 (PARTE I - pgs. 53-162)   KARAM, Maria Lucia. Revisitando a sociologia das drogas. ANDRADE, Vera Regina P. de. Verso e reverso do controle penal: (des) aprisionando a sociedade da cultura punitiva. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2002.    RAMOS, Silva; MUSUMECI, Leonarda. Elemento suspeito: abordagem policial e discriminação na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2005 ZACONNE, Orlando. Sistema penal e seletividade punitiva no tráfico de drogas ilícitas. Rio de Janeiro: Revan, Discursos sediciosos, ano 9, número 14, 1º e 2º semestres de 2004, p. 181-195

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A REGULAMENTAÇÃO BRASILEIRA DAS MIGRAÇÕES E O CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE Victor Scarpa de Albuquerque Maranhão Graduando do curso de Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Thiago Oliveira Moreira Graduando do curso de Direito pela Universidade Católica de Pernambuco.

SUMÁRIO: Introdução; 1. A discussão normativa acerca do fenômeno migratório; 2. A compatibilidade do direito interno ao direito internacional; Conclusão; Referências.

INTRODUÇÃO O mundo na atualidade vive sob os efeitos de um processo de globalização, do qual inúmeros efeitos advêm, seja de forma positiva ou negativa. Dentre estes, presencia-se nos dias de hoje uma intensificação do fenômeno migratório. É evidente que ao longo dos anos, concomitantemente ao desenvolvimento desta conjuntura delineada de uma sociedade de riscos compartilhados, aumentou-se a exclusão social e surgimento de grupos vulneráveis, como o são os migrantes, gerando efeitos de desrespeito aos Direitos Humanos e princípios internacionais instituídos, como o da livre-circulação, colocando em embate as legislações internas de caráter restritivo em detrimento dos tratados e convenções internacionais acerca do tema. Com o cenário deixado por essas mudanças globais se constata verdadeiro momento de crise e complexidade para o direito interno estatal, que não se mostra capaz de regular e efetivar o controle das relações sociais de forma benéfica à todas as partes somente por meio de soluções locais, não acompanhando o caminhar da humanidade. Trata-se e um quadro de ocorrência mundial, devendo os Estados de forma conjugada dispor sobre o tema. Assim, o Direito Internacional é o único meio capaz de combater esses problemas através da correta e efetiva aplicação e compatibilização das normas internas com as tratativas internacionais concernentes ao tema, observando o vetor incondicional dos direitos humanos, seguindo os parâmetros normativos dos tratados, convenções e decisões compostos no âmbito do Sistema de Proteção dos Direitos Humanos. Dessa forma, para tratar do tema e pensar acerca de mecanismos viáveis de solução, ao se tratar do papel de proteção do Direito Internacional e seus instrumentos apresentados, vê-se como principal entrave à consecução do objetivo, o Direito Interno brasileiro concernente ao tema das migrações. Com efeito, será delineado o arcabouço jurídico nacional ao redor do arcaico Estatuto do Estrangeiro, Lei nº 6.815/80, que demonstra a forma como o Brasil encara o fenômeno na atualidade, ou seja, de forma retrógrada, seletiva, e com prejuízo aos direitos internacionalmente concebidos. Trata-se, então, de abordar o fenômeno migratório em atenção à regulamentação brasileira sobre o tema e sua compatibilidade com o arcabouço jurídico instituído pelo Direito Internacional.

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Diante do que se expôs, indaga-se: O ordenamento jurídico interno brasileiro que trata do assunto das migrações é compatível com os tratados e convenções internacionais ratificadas pelo país e com as decisões no âmbito do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, dando efetividade aos direitos humanos dos migrantes? Assim, será demonstrada a condição de incompatibilidade do ordenamento brasileiro hodierno concernente às migrações, e a necessidade de sua adaptação ao Direito Internacional, apresentando verdadeiro dever de convencionalidade das futuras e presentes disposições. Dessa forma, vê-se como objetivo demonstrar a situação dos direitos humanos dos migrantes em um contexto de mundo globalizado, dispondo sobre a possibilidade do tratamento do tema de forma iluminada pela doutrina dos direitos humanos, compatibilizando o direito interno brasileiro ao internacional. Abordar-se-á a discussão normativa do fenômeno migratório através da regulamentação na ordem internacional e interna brasileira; tratando ainda das perspectivas futuras quanto a legislação interna em vias de desenvolvimento de uma nova Lei de Migrações, em substituição ao anacrônico Estatuto do Estrangeiro, possuindo esta nova regulamentação um dever de convencionalidade no tocante aos tratados e convenções internacionais da área, conforme será visto por meio da doutrina esposada. 1. A DISCUSSÃO NORMATIVA ACERCA DO FENÔMENO MIGRATÓRIO. Deve-se agora analisar o aparato legal que permeia o tratamento da questão migratória, partindo desde noções históricas do regramento deste fenômeno. A Constituição Federal, como se sabe, está norteada por princípios e valores fundamentados no respeito à dignidade humana, à cidadania e à prevalência dos direitos humanos nas relações internacionais. Já estas afirmações constitucionais, somadas aos dizeres dos tratados internacionais que também privilegiam os direitos humanos, seriam suficientes para se considerar inválida, em muitos aspectos, a vigente lei de Estrangeiros – Lei 6815/80. Ao longo do desenvolvimento legislativo brasileiro, as diretrizes da sua política variaram em momentos históricos diferentes. Verificou-se que as grandes mudanças da regulação das migrações no país foram causadas, sobretudo, por fatores políticos e econômicos e que em nenhum momento houve predominância para os direitos humanos. Para início das disposições normativas, parte-se do pressuposto maior em abrangência do Direito Internacional, que deve iluminar a ordem jurídica interna. No que toca à proteção internacional dos direitos dos povos migrantes, não obstante reconheça-se claramente as restrições impostas pela legislação nacional, são vários os instrumentos internacionais de que o Brasil é parte que lidam da matéria, recomendando tratamento em igualdade da proteção dos indivíduos. Com efeito, a OIT se ocupou de questões migratórias, estabelecendo duas Convenções Internacionais, a nº 19 e a nº 97, anteriores à Declaração Universal de Direitos Humanos (DUDH), nas quais o Brasil é parte ratificante. Já em 1975 retomou ao tema, com a Convenção 143, que têm como objetivo ainda ressaltar a diminuição da “relatividade” da situação do trabalhador migrante no país de destino, onde geralmente lhe são negados direitos sob o argumento de ordem pública, proteção dos interesses de nacionais ou segurança nacional, como no Estatuto do Estrangeiro1. Já no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU) diretamente, para a proteção e promoção dos direitos humanos dos migrantes, só em 1990 foi aprovada a Convenção Internacional sobre a proteção dos Direitos de todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros das suas Famílias na Assembleia Geral. Tal diploma internacional determina que os migrantes tenham seus direitos respeitados, independentemente 1  BERNER, Vanessa Oliveira Batista. Migrações internacionais no contexto da proteção dos direitos humanos. In: RAMINA, Larissa; FRIEDRICH, Tatyana Scheila (Org.). Coleção Direito Internacional Multifacetado: Aspectos econômicos, políticos e sociais. 7 v. Curitiba: Juruá, 2015.

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da sua situação, seja ele legal ou ilegal (art. 7), e que tenham acesso à Justiça para resolução de problemas como o de retirada compulsória (art., 22, 4), protegendo ainda inúmeros outros direitos de ordem política, econômica, social e cultural. A Declaração Universal de 1948 informa que “o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo (...) e que os estados-membros se comprometem a promover em cooperação com as Nações Unidas, o respeito universal aos direitos humanos e liberdades fundamentais”. Já o Pacto de São José refere que os direitos de uma pessoa não decorrem de sua nacionalidade ou não àquele país, mas do só fato de sua condição humana, razão porque se tem uma proteção internacional, de natureza convencional complementar da que oferece o direito interno constitucional dos estados americanos. No que tange ao âmbito nacional, cabe trazer à discussão alguns aspectos históricos que perfazem o percurso brasileiro de formação da regulamentação do fenômeno migratório no país, delineando também as conjunturas que moldaram tal normatização. No Brasil o marco inicial do tratamento legal da imigração pode ser tido com a promulgação do Decreto de 25 de Novembro de 18082, regulamentando a concessão de sesmarias aos estrangeiros residentes, objetivando a atração de povos europeus3. Já com a Lei nº 601 de 18 de Setembro de 1850 4, a chamada Lei de Terras, definiu-se a forma de acesso à terra pública através da compra, articulando o direcionamento dos migrantes ao povoamento territorial, por meio da concessão de lotes voltados à exploração agrícola 5, configurando já nessa época, através de medidas restritivas, um caráter eminentemente seletivo de migrantes destinados a locais estratégicos. Com a chegada da República com a Constituição de 18916 foram criadas formas de aquisição da nacionalidade brasileira, atribuindo aos brasileiros naturalizados os direitos de cidadão nato, dentre os quais a alistabilidade e elegibilidade eleitorais, diminuindo o caráter restritivo de tratamento ao migrante documentado e regularizado. Tem-se ainda que a legislação da época tinha o objetivo de classificação dos migrantes, dividindo-os em grupos aptos ou não ao trabalho na plantação de café bem como à colonização do espaço. O período entre as duas grandes guerras, configura um momento no qual as legislações de todo o Globo caracterizam-se por aspectos restritivos, o que foi acompanhado por uma queda brusca do comércio internacional e fechamento de fronteiras. Eram políticas migratórias caracterizadas por barreiras à imigração de estrangeiros que considerados indesejáveis e pela utilização da prática da expulsão através de atos normativos. Nesse período, acompanhando a depressão da década de 1930, instaurava-se no Brasil uma ordem peculiar de governo, era a ascenção de Getúlio Vargas ao poder. Neste contexto, o que mais se destaca e importa a esta pesquisa abordar é a chamada Lei de Cotas.

2  BRASIL. Decreto de 25 de Novembro de 1808. Disponível em: . Acesso em: 02/11/2015. 3  SEYFERTH, Giralda. Imigração e Nacionalismo: O discurso da exclusão e a política imigratória no Brasil. In Migrações Internacionais: Contribuições para Políticas. CNPD. Brasília: 2001, p.138. 4  BRASIL. A Lei de Terras, 1850. Disponível em . Acesso em: 23/10/2015. 5  SEYFERTH, Giralda. Imigração e Nacionalismo: O discurso da exclusão e a política imigratória no Brasil. In Migrações Internacionais: Contribuições para Políticas. CNPD. Brasília: 2001, p.138. 6  BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 24 de Fevereiro de 1891. Disponível em: . Acesso em 25 out. 2015.

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Durante a entrada do Estado-Novo, em 1937, o governo intervinha impositivamente, por meio de propostas de inserção nacional dos estrangeiros baseadas em seus projetos nacionalistas, com aspectos claramente seletivos e restricionistas7. Durante o período de Guerra-Fria foi desenvolvida a teoria da Doutrina da Segurança Nacional. Nesta toada, o Governo da Ditadura Militar brasileira institucionalizou a ideia da Segurança Nacional no que se refere ao fenômeno migratório no Brasil, quando em 1980 foi editada a Lei 6.815 de 19 de agosto de 1980, sob a promessa de que o governo iria alterá-la nos meses seguintes, já que havia sido parcamente discutida8. Entrava em vigor o Estatuto do Estrangeiro, ainda vigente até os dias de hoje, da mesma forma em que foi publicado, e eivado de todas as críticas e anacronismos. Esta Lei, regulamentada pelo Decreto nº 86.715/81, versa de forma direta sobre os direitos e deveres dos migrantes em solo brasileiro, não se restringindo a disposições pontuais acerca da matéria. De início, já se deixa clara a preponderância do interesse e vontades do poder nacional (mesmo que não se dê a real valoração destes conceitos) em detrimento dos seres humanos imigrantes, quando no art. 1º se diz que “em tempo de paz, qualquer estrangeiro poderá, satisfeitas as condições desta Lei, entrar e permanecer no Brasil e dele sair, resguardados os interesses nacionais”. Condiciona-se a existência e eficácia dos direitos conferidos à segurança nacional e aos objetivos sociais, econômicos e políticos do Brasil, em detrimento dos direitos humanos e das disposições protetivas em âmbito internacional. Demonstrando mais uma vez o caráter excludente e seletivo da regulamentação das migrações de que se falou também no capítulo I desta pesquisa, o art. 16º, parágrafo único do Estatuto enuncia que com a imigração se objetiva fornecer a diversos setores econômicos um aporte de mão de obra especializada, visando o aumento de produtividade, bem como assimilação de tecnologias e captação de recursos financeiros para os determinados setores. Assim, notadamente o Estatuto do Estrangeiro dificulta o processo de migração legal para o território brasileiro. Quanto à entrada de mão-de-obra não especializada se vê a possibilidade tão-somente se superada a barreira burocrática a se transpor, tornando o objetivo de trabalhadores não especializados de alta improbabilidade9. Além dos aspectos ressaltados, também chama a atenção a restrição à liberdade de locomoção imposta pela Lei 6.815/80, como afronta ao princípio da livre locomoção, não sendo compatível com o que estabelece o art.5º, XV do texto constitucional, assim como os princípios e atos internacionais. Nesse sentido, tem-se que a Declaração Universal dos Direitos Humanos, assegura a liberdade de movimento e residência “dentro das fronteiras de cada Estado” (artigo 13, parágrafo I). Sob o manto da proteção ao trabalhador nacional, o Estatuto do Estrangeiro estabelece ainda uma série de restrições aos direitos laborais dos migrantes. Contudo, a despeito do que a normativa interna dispõe, o migrante goza de direitos trabalhistas tanto quanto um nacional, entendimento reiterado na Opinião Consultiva 18/03 da Corte Interamericana de Direitos Humanos, em resposta à requisição do Governo mexicano em maio de 2002, deixando claro que o trabalhador migrante em situação regular ou irregular, a partir do momento que se encontra nos polos de

7  KOIFMAN, Fábio. O Imigrante Ideal: O Ministério da Justiça e a entrada de estrangeiros no Brasil (1941-1945) Civilização Brasileira. Rio de Janeiro: 2012.p. 30. 8  CARVALHO RAMOS, André de. Direitos dos estrangeiros no Brasil: a imigração, direito de ingresso e os direitos dos estrangeiros em situação irregular. In: Igualdade, diferença e direitos humanos. Lumen Juris. Rio de Janeiro: 2008. P.729. 9  BARALDI, Camila. Cidadania, migrações e integração regional – notas sobre o Brasil, o Mercosul e a União Europeia. 3º Encontro Nacional da ABRI – Governança Global e Novos Atores n. 1 v. 1 (2011) ISSN 2236-7381. Disponível em: . Acesso em: 09, out. 2015.

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uma relação de trabalho, passa a ser detentor de direitos trabalhistas de per si, tendo em vista o princípio da igualdade e não discriminação como pedras de toque do direito internacional dos direitos humanos10. O Estatuto peca novamente ao negar aos “estrangeiros” os direitos políticos, pois através da participação política, se exerce direitos inerentes ao regime democrático, caracterizando tal inserção como um “fator importante de coesão social”11. Neste cenário, salienta-se que o Brasil é o único da América do Sul que não confere o direito ao voto aos migrantes dentro do país em nenhum nível da administração pública12. Além disso, este diploma legal proíbe ao estrangeiro exercer atividade de natureza política; organizar, criar ou manter sociedade ou quaisquer entidades de caráter político, ainda que tenham por fim apenas a propaganda ou a difusão, exclusivamente entre compatriotas, de ideias, programas ou normas de ação de partidos políticos do país de origem; organizar desfiles, passeatas, comícios e reuniões de qualquer natureza, ou deles participar (art. 107); ser representante de sindicato ou associação profissional, ou de entidade fiscalizadora do exercício de profissão regulamentada (art. 106); possuir, manter ou operar, mesmo como amador, aparelho de radiodifusão, de radiotelegrafia e similar; ou ainda prestar assistência religiosa a estabelecimentos de internação coletiva (art. 106). Ademais, da análise de seus dispositivos também se verifica que é permitido ao Ministro da Justiça, sempre que considerar conveniente aos interesses nacionais, impedir a realização, por estrangeiros, de conferências, congressos e exibições artísticas ou folclóricas (art. 110); expulsar o estrangeiro que, de qualquer forma, atentar contra a segurança nacional, a ordem política ou social, a tranqüilidade ou moralidade pública e a economia popular, ou cujo procedimento o torne nocivo à conveniência e aos interesses nacionais; entregar-se à vadiagem ou à mendicância; ou desrespeitar proibição especialmente prevista em lei para estrangeiro (art. 65). Resta claro, então que o Estatuto do Estrangeiro é permeado por dispositivos anacrônicos no que toca aos direitos humanos. Está-se frente a um instrumento legal apartado da Constituição de 198813 e dos tratados internacionais e decisões, o que representa a negação de toda a evolução internacional na matéria, e demonstra a necessidade de se percorrer o caminho de um verdadeiro Controle de Convencionalidade deste diploma, o que se fará em capítulo específico14. Nesse contexto, defende-se a expansão da titularidade de direitos aos migrantes, adequando-se a legislação ordinária não só à Carta Maior, mas também ao que foi pactuado e decidido em âmbito internacional, visto que está claro o conflito entre a Constituição Federal, Tratados Internacionais e a vigente lei disciplinadora da situação dos migrantes no Brasil, sendo necessária uma disposição tratando da migração como fato social, consentâneo aos direitos humanos, enxergando o migrante não como um estrangeiro, mas como um cidadão detentor de direitos e deveres para com a formação étnica, cultural e econômica nacional 15. Diante das críticas ao Estatuto, foi no sentido de mudar o paradigma legislativo nacional, adequando-o à lógica dos Direitos Humanos que o Ministério da Justiça propôs a adoção da nova Lei de migrações destinada a romper com a lógica instituída na ditadura, fato que não está se verificando por inteiro. A proposta, assim como o paradigma atual, ainda privilegia os interesses nacionais (estatal) em detrimento dos direitos humanos dos migrantes, subvertendo o dever de convencionalidade que se confere à nova

10  ANDENA, Emerson Alves. Transformações da Legislação Imigratória Brasileira: Os (des)caminhos rumo aos direitos humanos. 2013. 160 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013. 11  BRASIL. Informe sobre a legislação migratória e a realidade dos imigrantes. Centro de Direitos Humanos e Cidadania do Imigrante (CDHIC). São Paulo: 2011. p.27. 12  BRASIL. Informe sobre a legislação migratória e a realidade dos imigrantes. Centro de Direitos Humanos e Cidadania do Imigrante (CDHIC). São Paulo: 2011. p.65. 13  FARENA, Marilza N. F. C. Algumas notas sobre direitos humanos e migrantes. JURA GENTIUM Rivista di filosofia del diritto internazionale e della politica globale: 2008. Disponível em: . Acesso em: 10/10/2015. 14  ANDENA, Emerson Alves. Transformações da Legislação Imigratória Brasileira: Os (des)caminhos rumo aos direitos humanos. 2013. 160 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013. 15  MILESI, Rosita. Por uma nova Lei de Migração: a Perspectiva dos Direitos Humanos. Disponível em: . Acesso em: 08/10/2015.

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lei das migrações, o que continua criando um grande número de migrantes em situação irregular e sujeitos a condições precárias de vida, e causando violação a direitos16. Com efeito, resta ainda atender aos direitos políticos dos migrantes. A inclusão social dos migrantes só será efetiva quando a cidadania brasileira for acessível a todos que aqui vivem e trabalham, podendo influenciar pela escolha dos líderes e representantes de seus interesses. Deve-se ainda desfazer a confusão entre as situações que configuram o refúgio e a migração, e que transforma ajuda humanitária em política de migração, pontual. Presenciou-se recentemente momentos de crises, geradas por fluxos de migrantes internacionais, como os haitianos, por exemplo, que, pela falta de legislação ou políticas adequadas, viram-se diante de violações aos direitos humanos e desgaste para os governos envolvidos, evidenciando às dificuldades que deveriam ser enfrentadas na análise da questão migratória17.   A mudança de paradigma em direção à uma nova Lei de migrações passa a considerar oficialmente o fenômeno como tema de direitos humanos, encorajando a regularização da migração irregular, deixando ao indivíduo nesta condição como menos vulnerável, com maiores possibilidades de inclusão social. Enquanto a Lei nº 6.815 tratava de estrangeiros, a Nova lei deve trazer a conceituação do migrante de uma forma geral. Desta forma, cabe tratar em seguida acerca da compatibilidade do ordenamento vigente com o arcabouço internacional dos Direitos Humanos dos Migrantes exposto anteriormente, enunciando ainda a necessidade legal convencional que os futuros dispositivos possuem. 3. A COMPATIBILIDADE DO DIREITO INTERNO AO DIREITO INTERNACIONAL. A análise de qualquer ato normativo ou disposição legislativa sob a luz dos direitos humanos requer, sobretudo, a investigação acerca da observância à base constitucional, bem como dos instrumentos internacionais aos quais o Estado brasileiro pactuou. Com efeito, ao se falar de adequação de leis infraconstitucionais aos ditames dos direitos humanos, entende-se, por tradição arraigada ao pensamento jurídico brasileiro, estar se falando do controle de constitucionalidade. Salienta-se, porém, que ao se defender que os tratados de direitos humanos no Brasil são tidos materialmente como constitucionais, mesmo que não aprovados no quórum especial mencionado, a compatibilidade das leis com esses tratados também deve ser feita ao se considerar a validade de normas no ordenamento jurídico brasileiro, atividade esta que deve ser exercida por meio do Controle de Convencionalidade18. Portanto, faz-se imprescindível, no contexto aqui tratado de efetivação dos direitos dos migrantes frente à ineficácia das normas internas arcaicas que tratam do tema, que se efetive o limite vertical material consistente no controle de convencionalidade dessas leis diante dos tratados internacionais e decisões de Cortes internacionais, que afirmará a incompatibilidade do direito interno, significando que a norma doméstica deve se adequar a ordem jurídica internacional, ou seja, não violando os preceitos de Direito Internacional que obrigam o país ao cumprimento destes instrumentos. O uso do Controle de Convencionalidade se insere no sentido de “adaptar ou conformar os atos ou leis internas aos compromissos internacionais assumidos pelo Estado, que criam para estes deveres no plano internacional com reflexos práticos no plano de seu direito interno”19. 16  BERNER, Vanessa Oliveira Batista. Migrações internacionais no contexto da proteção dos direitos humanos. In: RAMINA, Larissa; FRIEDRICH, Tatyana Scheila (Org.). Coleção Direito Internacional Multifacetado: Aspectos econômicos, políticos e sociais. 7 v. Curitiba: Juruá, 2015. 17  BERNER, Vanessa Oliveira Batista. Migrações internacionais no contexto da proteção dos direitos humanos. In: RAMINA, Larissa; FRIEDRICH, Tatyana Scheila (Org.). Coleção Direito Internacional Multifacetado: Aspectos econômicos, políticos e sociais. 7 v. Curitiba: Juruá, 2015. 18  MOURA, Luiza Diamantino. Tratados internacionais de direitos humanos e o controle de convencionalidade no direito brasileiro. Espaço Jurídico, Chapecó, v. 15, n. 1, p.75-102, Jan-Jun, 2014. Semestral. 19  MAZZUOLI, V. de O. Teoria geral do controle de convencionalidade no direito brasileiro. Revista dos Tribunais, ano 98, v. 889, p. 105-147, nov. 2009.

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Como exemplo dessa condição anacrônica de desrespeito se tem o Estatuto do Estrangeiro, apartado da irradiação do tratamento internacional, contrariando a condição de vetor constitucional que os dizeres afeitos ao princípio da dignidade da pessoa humana exercem. O Estatuto possui diversos artigos que não deveriam mais ser aplicados após a promulgação da Constituição Federal de 1988, pois são incompatíveis com ela. Por exemplo, as restrições ao acesso à educação e ao desenvolvimento do trabalho. De início, entende-se como inconvencional de forma clara a seletividade da migração instituída a partir do art. 16 do Estatuto, quando do tratamento da concessão do visto permanente, estabelecendo requisitos rechaçados no âmbito dos tratados mencionados, que pregam a igualdade entre os migrantes, seja de condições ou de direitos. Vê-se da leitura de tal norma que se estabelece uma extensa lista de condições burocráticas para que o migrate esteja em observância completa às exigências, em privilégio do que se defende no art. 2º do Estatuto, “à segurança nacional, à organização institucional, aos interesses políticos, socioeconômicos e culturais do Brasil, bem assim à defesa do trabalhador nacional”, entre outros pontos preocupantes. Então, o desafio principal reside em substituir a abordagem dada pelo Estatuto do Estrangeiro para um debate margeado pelas normas internacionais e decisões que promovem a proteção das migrações no âmbito do Sistema Interamericano, fundamentado na proteção e na dignidade humana do migrante. Afirma-se então, que a nova lei das migrações possui verdadeiro dever de convencionalidade para que possa instaurar novo momento na regulamentação das questões migratórias. Diante disso, é certo que a questão migratória merece espaço relevante no debate jurídico e jurisprudencial nacional, principalmente, sendo necessária a adequação da regulamentação e políticas de migração nacionais às diretrizes internacionais. Tal movimento pode ser desenvolvido pelo funcionamento do Controle de Convencionalidade e consequente declaração de inconvencionalidade de dispositivos do Estatuto do Estrangeiro, com a consequente promulgação de uma nova Lei das Migrações, instituindo uma nova política migratória no Brasil, devendo o país ainda ratificar os dispositivos internacionais existentes e ainda não ratificados na matéria, como é o caso da Convenção da ONU de 1990 e a Convenção 143 da OIT20, ou até mesmo como se viu no caso exposto com o afastamento do Estatuto no que ele não for cabível, principalmente através da utilização das iluminações dos Direitos Humanos dos Migrantes. CONCLUSÃO Os movimentos migratórios configuram um dos fenômenos mais antigos do mundo, podendo se afirmar que a história do homem é ditada a partir de sua mobilidade ao longo dos tempos. Observou-se nessa pesquisa que, ainda que muitos países tenham solidificado suas economias baseados no trabalho imigrante, hoje, o mundo não mais vê estes fluxos humanos como propulsores econômicos, e sim como verdadeiras ameaças e problemas. Viu-se durante a discussão aqui procedida que o fenômeno das migrações internacionais aponta para a necessidade de se repensar o mundo não com base na competitividade econômica e o fechamento das fronteiras, mas, sim, na cidadania universal, na solidariedade e nas ações humanitárias, visando promover e proteger os direitos desse grupo vulnerável, associando-os também ao benefício dos Estados. Entendeu-se, portanto, que é preciso se proceder em função da inclusão e aceitação do migrante ao território e seio da comunidade em suas atividades econômicas, políticas, sociais e culturais. Conforme visto, os movimentos migratórios precedem, inclusive, a atual conjuntura globalizada mundial, diante do que se discutiu até que ponto as migrações de hoje são ou não influenciadas ou fundamentadas pela globalização. Perante tal confrontação, afirmou-se que existem razões para se acreditar que os

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fluxos migratórios tomaram tal dimensão na contemporaneidade à consequência do desenvolvimento global do sistema mundial que se opera de modo seletivo, relativo e excludente. Tem-se um paradoxo marcante desta sociedade que é o fato de o mundo se globalizar e se abrir para a livre circulação do capital, mercadorias e fatores de produção (incluindo mão de obra, mas a desejada), e se fechar para aqueles indivíduos para os quais o ato de migrar foi imposto por condições sociais, políticas, econômicas ou de outra natureza, transformando os indesejados em irregulares ou marginalizados de direitos, em prejuízos a esses grupos de pessoas, que se tornam vulneráveis às mudanças consubstanciadas. Portanto, viu-se que a temática dos Direitos Humanos no cenário globalizado é permeada por concepções contraditórias e violações constantes. Há uma verdadeira vedação a fluxos não desejáveis de pessoas na pobreza, em busca de novas condições, e uma abertura àqueles que podem diretamente contribuir para a economia da nação receptora, como se observou claramente na orientação do Estatuto do Estrangeiro brasileiro. Além disso, confirmou-se que, se visto com base nos direitos humanos bem como na preponderância da ideia de família universal e cidadão cosmopolita, pode-se aportar importantes contribuições para os países de chegada, de ordens econômica, cultural, laboral, etc. Finda a discussão sócio-jurídica deste fato social, analisou-se o aparato legal internacional e nacional que permeiam o tratamento da questão migratória, partindo desde noções históricas do regramento deste fenômeno no Brasil, e suas influências, até a regulamentação atual. Verificou-se então, que fatores políticos e econômicos são de grande relevância para as mudanças da regulação das migrações no Brasil ao longo dos anos e em nenhum momento foram privilegiados os direitos humanos. Somente na atualidade, com uma proposta de alteração da política migratória nacional, pode-se pela primeira vez instaurar um marco regulatório no qual os direitos humanos dos migrantes poderão ser respeitados, ou pelo menos regulamentados, caso aprovada as propostas em trâmite no Congresso Nacional. Porém, diante das mudanças e formatos que as discussões congressistas tomaram, efetuando alterações aos projetos de lei, entendeu-se que se estará em muitos aspectos mantendo anacronismos e erros do vigente Estatuto do Estrangeiro, devendo-se avaliar melhor as proposições da Política Nacional elaborada no âmbito do CNIg. Para o tratamento das disposições normativas internacionais destacaram-se como paradigma, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, em seguida da qual se sucedem outros instrumentos internacionais como o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos; o Pacto de São José da Costa Rica (1992), a Declaração Universal de Viena (1993), Convenções da Organização Internacional do Trabalho e a Convenção para a Proteção dos Direitos de todos os Trabalhadores Migrantes e seus Familiares (1990). Restando ao término dessa discussão a ideia de que para o ordenamento jurídico brasileiro se afinar às disposições internacionais resta o grande passo de compatibilização da norma interna à internacional, devendo ainda o país ratificar os documentos ainda não ratificados como a Convenção de ONU de 1990 e a Convenção 143 da OIT, paradigmas de excelência no tratamento da causa, por abarcarem principalmente a questão dos migrantes irregulares, negligenciados nas demais. Findo o tratamento específico da legislação internacional e pátria concernente ao fenômeno migratório, e observadas as peculiaridades existentes no relacionamento entre elas, chegou-se ao momento de investigar a compatibilidade destas de modo técnico, a partir da análise pautada pelo Controle de Convencionalidade. Nesse sentido, afirmou-se que ao se analisar a compatibilidade vertical das normas no ordenamento jurídico, não há mais a presença única da Constituição Federal como paradigma de adequação por meio do Controle de Constitucionalidade. Deve-se efetuar a compatibilização normativa com os Tratados Internacionais e decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos como novo parâmetro do chamado Controle de Convencionalidade das normas estatais. Confirmou-se então a existência de uma dupla compatibilidade

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vertical das normas do direito interno, qual seja: tanto com a Constituição, como com os tratados internacionais. Findo o tratamento geral e conceitual do Controle de Convencionalidade, discutiu-se o assunto enfatizando e afirmando uma necessidade de mudança paradigmática da legislação brasileira concernente ao tema das migrações, atentando de forma mais delimitada para a inconvencionalidade de disposições do Estatuto do Estrangeiro, posto que apartado da iluminação procedida pelo ordenamento voltado aos direitos humanos instituído no cenário internacional pelos tratados e decisões debatidos. Portanto, viu-se que o desafio principal reside em substituir a abordagem dada pelo Estatuto do Estrangeiro para um debate margeado pelas normas internacionais e decisões que promovem a proteção das migrações no âmbito do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, fundamentado na proteção e na dignidade humana do migrante. Afirmou-se por fim, que a nova lei das migrações possui verdadeiro dever de convencionalidade para que possa instaurar uma nova situação no tratamento do assunto. Confirmou-se então as hipóteses levantadas para a problemática inicial, pois demonstrou-se a existência de uma globalização seletiva e excludente, que atua por meio dos interesses do Estado brasileiro representado por meio de sua legislação específica sobre as migrações, que não se mostra adequada ao que se estabeleceu internacionalmente, devendo tais normas superiores serem tomadas como parâmetro do Controle de Convencionalidade, por meio do qual se confirma a inconvencionalidade de algumas normas do Estatuto do Estrangeiro, bem como prega o dever de convencionalidade da legislação que virá sobre o tema, clamando por uma necessidade de adequação ao momento vivido. REFERÊNCIAS ANDENA, Emerson Alves. Transformações da Legislação Imigratória Brasileira: Os (des)caminhos rumo aos direitos humanos. 2013. 160 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013. BARALDI, Camila. Cidadania, migrações e integração regional – notas sobre o Brasil, o Mercosul e a União Europeia. 3º Encontro Nacional da ABRI – Governança Global e Novos Atores n. 1 v. 1 (2011) ISSN 2236-7381. Disponível em: . Acesso em: 09, out. 2015. BERNER, Vanessa Oliveira Batista. Migrações internacionais no contexto da proteção dos direitos humanos. In: RAMINA, Larissa; FRIEDRICH, Tatyana Scheila (Org.). Coleção Direito Internacional Multifacetado: Aspectos econômicos, políticos e sociais. 7 v. Curitiba: Juruá, 2015. BRASIL. Decreto de 25 de Novembro de 1808. Disponível em: . Acesso em: 02/11/2015. _________. A Lei de Terras, 1850. Disponível em . Acesso em: 23/10/2015. _________. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 24 de Fevereiro de 1891. Disponível em: . Acesso em 25 out. 2015. _________. Informe sobre a legislação migratória e a realidade dos imigrantes. Centro de Direitos Humanos e Cidadania do Imigrante (CDHIC). São Paulo: 2011. CARVALHO RAMOS, André de. Direitos dos estrangeiros no Brasil: a imigração, direito de ingresso e os direitos dos estrangeiros em situação irregular. In: Igualdade, diferença e direitos humanos. Lumen Juris. Rio de Janeiro: 2008.

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FARENA, Marilza N. F. C. Algumas notas sobre direitos humanos e migrantes. JURA GENTIUM Rivista di filosofia del diritto internazionale e della politica globale: 2008. Disponível em: . Acesso em: 10/10/2015. KOIFMAN, Fábio. O Imigrante Ideal: O Ministério da Justiça e a entrada de estrangeiros no Brasil (19411945) Civilização Brasileira. Rio de Janeiro: 2012. MAZZUOLI, V. de O. Teoria geral do controle de convencionalidade no direito brasileiro. Revista dos Tribunais, ano 98, v. 889, p. 105-147, nov. 2009. MILESI, Rosita. Por uma nova Lei de Migração: a Perspectiva dos Direitos Humanos. Disponível em: . Acesso em: 08/10/2015. MOURA, Luiza Diamantino. Tratados internacionais de direitos humanos e o controle de convencionalidade no direito brasileiro. Espaço Jurídico, Chapecó, v. 15, n. 1, p.75-102, Jan-Jun, 2014. Semestral. SEYFERTH, Giralda. Imigração e Nacionalismo: O discurso da exclusão e a política imigratória no Brasil. In Migrações Internacionais: Contribuições para Políticas. CNPD. Brasília: 2001, p.138. SÜSSEKIND, Arnaldo Lopes. Direito internacional do trabalho. 3. ed. São Paulo: Ed. LTr, 2000, p. 363.

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PRISÕES PREVENTIVAS E PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA: UM DEBATE POSSÍVEL?

Wictor Hugo Alves da Silva Acadêmico do 7ª período do curso de Direito do Centro Universitário Mauricio de Nassau – UNINASSAU – Recife PE – E-mail: [email protected]

SUMÁRIO: Introdução; 1. Presunção de inocência; 2. Considerações sobre processo penal; 3. O uso equivocado da prisão preventiva; 3.1. A exceção que virou regra no Brasil; 3.1.1. Aplicação das Preventivas em Pernambuco; 3.2. A problemática temporal das preventivas; Conclusões; Referências.

INTRODUÇÃO A prisão preventiva é o principio da presunção de inocência são dois institutos que parecem ser tão antagônicos, porém como eles se relacionam no nosso sistema processual penal? Antes de tudo, o presente trabalho não te por pretensão esgotar toda discussão acerca do tema, mas sim levantar a discussão sobre algo grave que acontece no nosso sistema criminal. Um olhar atento ao nosso sistema carcerário revela dados alarmantes, o numero elevado de presos preventivos no sistema carcerário de Pernambuco. Isso nos leva a questionamento, se no código processo penal de 1940, que foi recepcionado pela nossa constituição, a regra é a liberdade do individuo até que se tenha uma sentença penal condenatória transitada em julgado, por que um número tão elevado de presos provisórios? O sistema processual criminal brasileiro traz o instituto da prisão preventiva como uma medida excepcional, e elenca quatro motivos taxativos para sua decretação: para garantir a instrução criminal, garantir a aplicação da lei penal, garantia da ordem econômica e garantia da ordem pública. Este último é o que merece a nossa atenção por ser um termo muito amplo, entrengando ao magistrado poderes demasiados para privar a liberdade do indivíduo, não se podem esquecer que no processo penal o operador do direito que lida com esta liberdade deve preservar esta ao máximo. Como se pretendente demonstrar, por vezes a prisão preventiva vem “mascarando” o que na verdade se trata de uma antecipação de pena, o que terminantemente proibido no sistema criminal brasileiro, isto ficará nítido quando forem analisados quais argumentos os magistrados vêm utilizando para decretar ou manter estas prisões. O objetivo desse artigo e problematizar a relação tensa que existe entre os dois institutos, e observar como os operadores do direito vêm de posicionando perante esta tensão, em específico o Tribunal de Justiça de Pernambuco. Para alcançar esse objetivo propomos uma revisão literária para observar o que a doutrina brasileira vem pesando sobre o tema e como esta vem se posicionando. Além disso, de forma complementar propõe-se uma analise quantitativa de dados, analisando as decisões proferidas pelo Tribunal de Justiça de Pernambuco nos anos de 2011 e 2012. E importante relatar que os dados a serem utilizados fazem parte de uma pesquisa maior do CNJ que se encontra em andamento.

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1. PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA O estado evocou para si a tarefa de dirimir os conflitos, aplicando a lei ao caso concreto, pois e o único que tem o poder de impor suas decisões, então por consequência evocou também para si o Direito de Punir, tirando do particular o direito a “vingança privada”. É dever do estado proteger o conjunto social e segurança da coletividade é também deve do estado resguardar as garantias fundamentais que são inerentes individuo. O instituto da presunção de inocência no ordenamento jurídico brasileiro vem disposto da constituição federal, como uma garantia fundamental. Esse instituto é observado na sua forma mais rudimentar no direito romano, porém durante a idade média, pode-se dizer que ele foi deixado lado, como diz Aury Lopes na idade media o que regia era uma presunção de culpabilidade. Em 1789 a Declaração dos Diretos do Homem e do Cidadão trouxe o instituto da presunção de inocência. Sobe as idéias iluministas e da revolução francesa que trouxeram um olhar diferente sobre o homem, trazendo a garantia de sua liberdade perante um estado absolutista e autoritário. Mais adiante o Pacto de São José da Costa Rica, que também traz o mesmo instituto, e deste pacto o Brasil e signatário. A presunção de inocência é uma característica do estado democrático de direito, no Brasil, a presunção de inocência vêm na constituição federal. Nossa Carta Magna de 1988 e fruto de um momento onde o país saía de um período de regimes totalitários, e tentando se consolidar com uma democracia. Esse instituto está expresso no rol das clausulas pétreas, ou seja, não pode sofre alterações com tendência a aboli-lo. Art. 5.  Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes.(EC nº 45/2004) LVII- ninguém será culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.

Esse instituto vem de forma muito clara na constituição, pode-se dizer que mais que um princípio, é uma garantia, a doutrina diferencia muito bem o que seria princípio e garantia, porém não se faz necessária fazer tal distinção, pois não é objetivo desse trabalho e isso não acarretará maiores prejuízos para compreensão deste trabalho. Essa garantia deve ser entendida como um dever de tratamento do estado perante o individuo. Como explica Aury Lopes (2014, p.218) A presunção de inocência deve(ria) ser um princípio de maior relevância, principalmente no tratamento processual que o juiz deve dar ao acusado. Isso obriga o juiz não só a manter uma posição “negativa” (não considerando culpado), mas sim uma postura positiva (tratando-o efetivamente como inocente.

Por ser uma garantia fundamental deve ser respeitado mesmo que isso signifique a que um possível culpado fique em liberdade. Dito isto fica claro que esse instituto vem para limitar o poder punitivo do estado, evitando possíveis arbitrariedades. Ante essa exposição do princípio pode-se extrair uma conclusão lógica, no Estado Democrático Brasileiro a regra liberdade do indivíduo. Aqui começa a nossa problemática, essa regra não é absoluta, pois nosso código de processo penal nos traz a figura das prisões cautelares, que limitam a liberdade do individuo antes do antes do transito em julgado de sentença penal condenatória, que contraia aparentemente a idéia da presunção de inocência.

2. CONSIDERAÇÕES SOBRE PROCESSO PENAL.

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Antes de discorrer sobre as prisões provisórias, em específico a prisão preventiva, e importante fazer algumas breves considerações sobre o processo penal. O processo penal vem como um viabilizador do direito penal, desta forma como limitador da Jus Puniendi que o estado e o titular, Aury Lopes Jr. (2014, p.41) se filia a uma postura onde o processo penal deve ser visto como um instrumento de efetivação garantias constitucionais. Desta forma deve percorrer em sua normalidade para que se atinjam suas finalidades. O processo penal funciona como um verdadeiro sismógrafo da constituição de um Estado. Nesse sentido complementa Aury Lopes Jr. (2014, p.42) que uma constituição autoritária vai corresponder a um processo penal autoritário, utilitarista (eficiência antigarantista). Ele vai alem dizendo que no caso se uma constituição garantista como a nossa, deve corresponder a um processo democrático. Dito isto e preciso fazer uma pequena observação, o nosso código de processo penal é da década de 40, onde o Brasil vivia um regime autoritário, porém foi recepcionado por nossa constituição que é da década de 80, onde o país saia de um regime autoritário e voltada a um regime democrático. Apesar de sofre varias alterações ao longo dos anos e algumas significativas, como as dos anos de 2008 e 2011, infelizmente o espírito do nosso código continua o mesmo, inquisitivo. O processo penal é meio para realização do Direito penal e este deve correr dentro da normalidade esperada para que a finalidade seja alcançada. Uma das finalidades do Direito Processo Penal e a realização do Direito penal que promove a pacificação social através da pena, quando for necessário. O processo deve se pautar essencialmente pelo princípio do devido processo legal, preservando assim, os direitos e garantias fundamentais do indivíduo, como a presunção de inocência até o transito em julgado da sentença, dentre outros direitos. Para que o processo penal conclua sua finalidade e para que seu curso percorra na normalidade, em obediência ao principio da razoável duração do processo, exitem as figuras das prisões cautelares que são: 1) prisão em flagrante, que está disposto do art. 302 do CPP; 2) Prisão preventiva, que está disposto no art. 311 do CPP; 3) Prisão temporária, disposto na lei n. 7.960/89. 3. O USO EQIVOCADO DA PRISÃO PREVENTIVA. O presente trabalho tem por objetivo fazer uma analise dessa medida cautelar em especifico, a prisão preventiva. Como já mencionado, as prisões chamadas cautelares, tem por objetivo que o processo transcorra na sua normalidade e cumpra sua função. Entretanto a decretação da prisão preventiva, como das outras cautelares, deve obedecer a determinados princípios, “são os princípios que permitiram a coexistência de uma prisão sem sentença condenatória transitada em julgado com garantia de presunção de inocência” (LOPES JR., 2014, p. 809). Um princípio que merece toda nossa atenção e o da excepcionalidade, que está disposto no art. 282, §6 do CPP “ A prisão preventiva será determinada quando não for cabível a sua substituição por outra medida cautelar (art. 319)”. “O dispositivo é importante e consagra a prisão preventiva como último instrumento a ser utilizado, enfatizando a necessidade de análise sobre a adequação e suficiência das demais medidas” (LOPES JR., 2014, p. 809). Tal pensamento só vem reafirmar aquilo que a própria constituição federal vem traz como garantia fundamental, a presunção de inocência, onde teoricamente a liberdade é a regra do indivíduo. Porém ao se confrontar com a realidade processual penal no Brasil, fica claro que tal princípio vem sendo deixado de lado. Basta observar o alto número de presos provisórios no Brasil. Segundo um dos últimos levantamentos do CNJ, em 2014, a população carcerária do Brasil e de 711.463 presos, desses presos 41% são provisórios, em alguns estados como Pernambuco esse percentual chega a 50%. Esses dados só comprovam a realidade, que as prisões cautelares tem deixado, há muito tempo, de ser exceção para virar regra no sistema processual penal, servindo como meio de defesa social.

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O que por vezes ocorre é que por causa do clamor social o magistrado decide manter ou decretar uma preventiva, como forma de acalmar o meio social, pois se tem a falsa idéia no meio social, que se o individuo esta preso este esta “respondendo pelos seus atos”. Para o homem comum que não faz parte do mundo jurídico, não importa se é uma prisão provisória, prisão em flagrante, preventiva ou decorrente de sentença condenatória, o que importa e que individuo está segregado. Como explica CRUZ ( 2011, p. 15); Esses detalhes técnico-jurídicos não apenas são incompreensíveis à população, como também lhe são irrelevantes. O que vale para o homem do povo é a visão do autor de um crime sendo privado de sua liberdade logo em seguida ao fato, o que, de algum modo já lhe soa como punição.

Esse discurso se incorporado pelo judiciário acaba legitimando uma lógica do sofrimento, onde prisão e sinônimo de punição. Onde a punição só é eficaz quando o indivíduo sente na pele a responsabilização pelos seus atos, ou seja, quando há privação de liberdade. Mas e preciso fazer um alerta, “Quem lida com a liberdade humana jamais pode trata-lá como um assunto cotidiano” (CRUZ, 2011, p. 17). A prisão preventiva é um instrumento eminentemente processual e não acautelador, pacificador social ou de defesa social, como vem sendo utilizado no discurso dos magistrados, essas são das funções da pena que compete ao direito material (Direito penal). As cautelares sevem ao processo penal, para que este cumpra sua função corretamente. O diploma legal, no art. 312, na parte final, já traz requisitos básicos para que a prisão preventiva possa ser decretada, o primeiro e a existência de um fato punível e a existência indícios de autoria. “Unido a esse fato, é necessário verificar a situação de perigo criada pelo acusado”. (VASCONCELOS, 2010, p. 141). Como por exemplo, que o réu intimide testemunhas, altere as provas, risco de fuga, etc., comprometendo assim que o processo siga na sua normalidade. Para decretação da prisão preventiva não é exigido um juízo de certeza, e sim apenas um juízo de probabilidade. Mas então o que seria o juízo de probabilidade? Segundo Fernanda Bestetti Vasconcelos: O juízo de probabilidade diz respeito a situação na qual é verificado o predomínio de razões positivas para que seja decretada a prisão cautelar do acusado. Além disso, não podem existir causas da exclusão da ilicitude (como legitima defesa, por exemplo). (VASCONCELOS, 2010, p. 143). Porém apenas a presença dos requisitos não é suficiente para se decretar a uma preventiva. O nosso código de processo penal traz apenas quatro motivos que autorizam a decretação ou manutenção da prisão preventiva, são eles: Garantia da instrução criminal, garantia da aplicação da lei penal, garantia da ordem econômica e garantia da ordem pública. Na garantia da instrução criminal se aplica aos casos onde o acusado, tenta atrapalhar o processo, intimidando testemunhas, alterando provas, etc., ou seja, se utiliza de meios para atrapalhar a o processo para que este se perdure, para que talvez seja beneficiado com a prescrição. A garantia da aplicação da lei penal, o medo reside no fato de existirem evidências concretas, de que se permanecer em liberdade o acusado pode fugir a qualquer momento. Na garantia da ordem econômica, que foi uma alteração recente no nosso código, se aplica com mais facilidade nas apurações de crimes financeiros, o receio reside onde, se o acusado permanecer em liberdade este vai continuar a praticar crimes, dificultar as investigações etc. Na garantia da ordem pública, aqui reside o tema central deste trabalho, pois diferente dos outros motivos esses é um termo muito vago, afinal o que “Garantia da Ordem Pública”? Para isso não a resposta no nosso código de processo penal, e doutrina também não chegou a um consenso, tão pouco a jurisprudência. Esse termo vago e essa incerteza no mundo jurídico no tocante a este motivo entregam muito poder aos magistrados, para decidir sobre a liberdade de um individuo, que algo tão precioso. Não tem por objetivo esse trabalho, fazer uma analise na situação carcerária do país, tão pouco do Estado de Pernambuco, mas é preciso fazer essa observação, é notório que o sistema carcerário do Estado de Pernambuco se encontra em situação deplorável e foi recentemente classificado como um dos piores do país.

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É para esse sistema que o preso preventivo é levado. Ilusão demais acreditar que nesse sistema exista à separação entre os preventivos e condenados. É preciso lembra que a prisão “despersonaliza e dessocializa o indivíduo, que se isola do mundo externo, passando a conviver em outro grupo social, formado por pessoas portadoras de rancor e ódio, de angustia, de melancolia e tantos outros sentimentos presentes em que se vê privando de sua liberdade” (CRUZ, 2011, p. 17) - estamos levando para esse ambiente um indivíduo que seu futuro está cercado de incertezas, que não sabe por quanto tempo ira permanecer preso, tendo como fundamento um termo vago como a garantia da ordem pública. 3.1 A EXCEÇÃO QUE VIROU REGRA NO BRASIL.

Atualmente no Brasil vem crescendo muito o número de prisões preventivas, “sendo utilizadas como medidas de proteção e defesa social, sendo colocado em segundo plano o juízo de necessidade da medida e considerando o de conveniência” (VASCONECELOS, 2010, p. 141). Para reforçar esse discurso e necessário trazer dados quantitativos. Durante o 2º Encontro Nacional do Judiciário em 2009, organizado pelo CNJ, foram apresentados alarmantes sobre a situação do sistema carcerário brasileiro, onde 42,7% dos presos no sistema carcerário eram de presos provisórios. Utilizando um recorte, nos estados, foi possível ver que em Pernambuco chegava a 56,7 % o número dos presos provisórios. Em 2010 durante o 3º Encontro Nacional do Judiciário em 2010 os dados foram atualizados, e foram divulgadas novas informações sobre os presos preventivos no Brasil. Os dados eram 44% dos presos eram provisórios, enquanto em Pernambuco esse número chegava a 59%, um número alarmante. Em 2014 o CNJ divulgou um estudo intitulado: Novo Diagnóstico de Pessoas presas no Brasil, onde trazia dados mais recentes, porém ainda preocupantes, onde 41% dos presos no Brasil eram provisórios. Em Pernambuco chegou a 50%, em comparação com os anos anteriores esse e menor, porém continua alto. Gráfico 1 - Comparativo de presos provisórios no Brasil nos anos 2009, 2010 e 2014.

Fonte: Conselho Nacional de justiça, Encontros Nacioais do Judícario.

Os dados nacionais acima citados, só reforçam o argumento que no judiciário brasileiro considera a prisão cautelar como regra e não como exceção, para dar força a esse discurso se utiliza de argumentos vagos, porém com forte repercussão social, como defesa social, que repetindo não é função das cautelares, que servem unicamente ao processo. A defesa social e uma das funções da pena. Então e necessário fazer um questionamento, como esse discurso acautelador e de defesa social próprio da pena que os magistrados usam para decretar ou matem a prisão preventiva não estariam eles antecipando á pena, o que é proibido no nosso sistema? Segundo dados divulgados pelo CNJ em Pernambuco os dados são mais alarmantes, pois o número de presos provisórios já chegou a alarmantes 59% como mostra o gráfico abaixo.

Gráfico 2 - Percentual de presos provisórios em Pernambuco nos decorrer dos anos 2009, 2010

e 2014.

Fonte: Conselho Nacional de justiça.

Os números são mais que alarmantes, será necessário lembrar que esses presos ainda respondem processos, é por isso pode ser absolvido, receber pena diversa da prisão, ocorrer à prescrição, etc. Quem está

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preso cautelarmente sofre por demasiado com a incerteza de seu futuro, por não saber até que momento ficará preso, se essa prisão vai durar dias, messes ou anos. É se ele, o individuo, for absolvido, ou se condenado receber pena que não enseje prisão? O tempo que ele permaneceu preso num ambiente completamente inóspito, não será devolvido, por isso que a liberdade deve ser a regra no nosso sistema, como diz Ferrajoli, a presunção de inocência deve ser respeitada mesmo que para isso se pague o preso de inocência de um possível culpado. Em 2015 o Ministério divulgou os seguintes dados, utilizando dados Do INFOPEN:

Gráfico 3 – Percentual de presos no Brasil.

Fonte: Ministério da Justiça – INFOPEN – Junho/2014.

Ainda segundo o levantamento nacional de informações penitenciárias - INFOPEN - junho de 2014, ficou constatado que em Pernambuco 59% dos presos não possuem condenação. Deste percentual 62% estão presos por mais de 90 dias. São dados que mais uma vez assuntam. Estes dados nos levam a mais um questionamento, qual e o real motivo que os magistrados estão utilizando para se tenta essa política de prisão? 3.1.1 APLICAÇÃO DAS PREVENTIVAS EM PERNAMBUCO.

Em levantamento de dados, realizado para uma pesquisa mais ampla sobre prisões preventivas em Pernambuco, a qual busca analisar o impacto da Lei 12.403/11 no padrão de encarceramento provisório no estado, foi verificado que os magistrados ao decretar ou manter prisão preventiva em sede de recurso ou Habeas Corpus, vinham repetidamente se utilizando do motivo Garantia da Ordem Pública, e nem sempre os casos eram assemelhado. Pelo motivo da pesquisa se em encontrar em progresso, tem se apenas dados parciais, mas com tais dados é possível já chegar a algumas conclusões. Foram do total de 306 acórdãos, desde universo foi feito o recorte de 46 acórdãos. Gráfico 4 - Crime * Resultado Crosstabulation Count

vida

Resultado Prisão Prisão Prisão mantida revogada decretada Crimes contra a 17 2 1 Estelionato Roubo e/ou ex-

2 6

0 0

0 0

2 6

Tráfico de drogas Porte/posse de arma de fogo (lei 10826) Concurso de crimes Outros Total

4 1

0 2

0 0

4 3

7

1

0

8

2 39

1 6

0 1

3

torção

Fonte: banco de dados próprio elaborado com informações do banco de dados da pesquisa “Descarcerização e Sistema Penal: a construção de políticas públicas de racionalização do poder punitivo” Nota: Foram usados dados parciais, que é fruto de uma pesquisa mais ampla sobre prisões preventivas em Pernambuco, a qual busca analisar o impacto da Lei 12.403/11 no padrão de encarceramento provisório no estado.

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Conforme se observa na tabela acima, em 39 dos 46 casos analisados, houve a manutenção da prisão preventiva. Por vezes ao manter as decisões ou decretar as prisões os magistrados se utilizam de uma lógica perversa, que ao manter o indivíduo preso o meio social está seguro, pois este segregado não voltara a delinqüir. Porém em analise dos referidos acórdãos fica facilmente constatado que essa lógica da prisão baseada na periculosidade do indivíduo além de não ser a função da preventiva, não faz sentido, pois muitos indivíduos sequer possuem antecedentes criminais, como fica claro no quadro abaixo. Gráfico 5 - Primariedade e antecedentes

Primário (a) Primário (a) e portador (a) de bons antecedentes Primário (a) e portador (a) de maus antecedentes Portador(a) de maus antecedentes e sem informações sobre primariedade Não informado Total

quency

Fre5 20

Percent

Va l i d 10,9 43,5

Cumulative Percent 10,9 54,3

7

15,2

69,6

1

2,2

71,7

13 46

28,3 100,0

100,0

Fonte: banco de dados próprio elaborado com informações do banco de dados da pesquisa “Descarcerização e Sistema Penal: a construção de políticas públicas de racionalização do poder punitivo”

Por tanto no que toca à vida criminal pregressa do paciente ou recorrente, observa-se que o paciente e primário em 34 dos 46 casos, isto é, em 69% dos casos. A primariedade é referida em conjunto aos bons antecedentes (ausência de qualquer procedimento criminal em aberto) em 20 processos. Sendo assim, boa parte dos presos provisórios não possuem condenação prévia. Ainda em analise dos referidos acórdãos, quando verificados quais aos principais fundamentos utilizados, o da garantia da ordem pública aparece em 30, dos 40 acórdãos analisados em que se manteve a prisão, isto é, em 75% dos processos se fez uso dessa justificativa. A garantia da aplicação da lei penal aparece em 14 dos acórdãos e o da garantia da instrução probatória, em 10 deles. Esses fundamentos podem aparecer em conjunto, não sendo raras às vezes em que se aplicam cumulativamente. Como se observa, o fundamento mais frequente é, sem dúvidas, aquele relativo à ordem pública. Trata-se, como já afirmado neste artigo, do fundamento com maior amplitude semântica, servindo às mais diversas pretensões decisórias. Quando passamos à análise daquilo que significa ofensa à ordem pública, verificamos que a referência à gravidade concreta ou abstrata do delito é o principal indicativo para se concluir que o demandante apresenta risco à ordem pública, aparecendo essa justificativa em mais de 50% dos casos. Também é frequente se remeter ao risco de reiteração da prática delitiva, embora tenhamos afirmado que na maioria dos casos o réu não possua condenação prévia, não se sabendo como afirmar que eles são, em si, um risco à ordem pública. 3.2 A PROBLEMÁTICA TEMPORAL DAS PREVENTIVAS.

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Como pode ser verificado anteriormente, as prisões em sua maioria estão baseadas na garantia da ordem pública, que já é um termo vago é que ta um liberdade de interpretação enorme para o juiz que associado com uma fundamentação que se diz pela defesa social ou para acautelar o meio social, acaba por legitimar essa lógica do sofrimento, onde a prisão e solução para tudo. Esse problema e agravado, pois o Código de Processo Penal não traz um prazo específico de duração para as preventivas. O limite que o nosso código é muito vago e aberto e não traz um limite temporal, apenas se limita a dizer que a prisão perdura enquanto persistirem os motivos que ensejaram a sua decretação. Gráfico 6 - Tempo da prisão até o julgamento pelo Tribunal

quency

Fre-

Percent

Va l i d

Percent

0 - 1 8 0

19 9

181 a 365

7

15,2

76,1

365 a 545

4

8,7

84,8

Mais de 546 dias Total

7

15,2

100,0

46

100,0

dias dias dias

41,3 19,6

Cumulative 41,3 60,9

Fonte: banco de dados próprio elaborado com informações do banco de dados da pesquisa “Descarcerização e Sistema Penal: a construção de políticas públicas de racionalização do poder punitivo”

Em apenas 19 dos 46 casos havia informação acerca da data da prisão do paciente ou recorrente, de modo que nem sempre é possível calcular há quanto tempo a pessoa está presa quando demanda a liberdade provisória ao tribunal. Dentre esses 19 casos em que consta a informação, se observa que o paciente ou recorrente estava preso a mais de 180 dias na maioria dos casos, isto é, que estavam aguardando o andamento do processo presos há pelo menos mais de seis meses. Ainda, não é pequeno o número de pessoas presas há mais de um ano, totalizando 11 dos 19 casos, isto é, mais do que a metade dos demandantes. Esse dado lança um necessário olhar sobre o tempo da prisão preventiva no Brasil, como já foi dito a normativa processual penal não prevê prazo fixo, deixando ao livre entendimento do julgador a análise do excesso ou não do prazo. A jurisprudência já tentou chegar num consenso, chegando ao de 81 dias, mais tal entendimento não veio a prosperar na pratica jurídica diária. Porém, é pouquíssimo razoável imaginar que um cidadão presumido inocente possa passar mais de um ano presa preventivamente, sem que haja qualquer desfecho em sua situação processual. Decisão desse tipo que privam o individua de sua liberdade, mas que são completamente cercadas de incertezas sobre a sua duração, por vezes mascara uma verdadeira antecipação de pena, que como se sabe é inaceitável num estado democrático de direito. CONCLUSÕES Numa leitura sistemática do código de processo penal fica evidente que na teoria a regra do sistema penal brasileiro é a liberdade. Mas quando vamos à realidade prática, fica evidenciado que a regra é a prisão. Para legitimar essa lógica do sofrimento onde prisão e punição são sinônimos. Como pode ser visto o judiciário usa argumentos que não são próprios das cautelares e sim da pena, para justificar uma prisão preventiva. Com isso de forma indireta estariam os magistrados antecipando pena, o que já se sabe ser inadmissível no processo penal brasileiro. Não é admissível que a prisão preventiva que é um instituto processual seja desviada de sua função de servir o processo e seja utilizado como uma forma de antecipação de pena, ainda que de forma indireta.

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É sim possível a coexistência dos institutos da prisão preventiva e presunção de inocência, pois de certa forma, eles não necessários para o equilíbrio do sistema penal. O principio da Presunção de inocência, que e um dos norteadores do processo penal, vem para garantir que a liberdade do indivíduo seja mantida durante todo processo, até que exista uma sentença com transito um julgado. O grande problema reside nos termos vagos e imprecisos que entregam muito poder nas mãos do judiciário, que por vezes se excede e ao invés de limitar o poder punitivo acaba por cometer injustiças. REFERÊNCIAS CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2º Encontro Nacional do Judiciário. Sistema Carcerário Nacional. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2015/02/603cc57a97583783cafaed1561f0ab25. pdf. Acesso em: 20 de dezembro de 2014. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2º Encontro Nacional do Judiciário. Mutirão Caecerário. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2015/02/cb7f8a009633d18900299c6e789e57e7.pdf. Acesso em: 20 de dezembro de 2014 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Novo Diagnostico de Pessoas Presas no Brasil. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/images/imprensa/diagnostico_de_pessoas_presas_correcao.pdf. Acesso: 17 de Outubro de 2014. CRUZ, Rogério Schietti Machado. Prisão Cautelar: Dramas, princípios e alternativas. 2. Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. DEPARTAMENTO PENINTENCIÁRIO NACIONAL. Levantamento Nacional de informações penitenciarias: dados consolidados. Brasília: Ministério da Justiça. LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 11 ed. São Paulo: Saraiva, 2014. Valença, Manuela Abath. A missão do judiciário no combate à criminalidade e as prisões preventivas na contramão do Estado Democrático de Direito. Revista Brasileira de Estudos Constitucionais – RBEC, Belo Horizonte, ano 7, n. 25, p. 125-144, jan./abr. 2013. VASCONCELOS, Fernanda Bestteti de. A Prisão Preventiva Como Mecanismo de Controle e Legitimação do Campo Jurídico. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. ZACKSESKI, Cristina. Sistema prisional brasileiro: uma análise dos dados sobre as condições de encarceramento no início do Século XXI. ANAIS DO CONPEDI VITÓRIA -ES. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2011, v. , p. 5980-5997. ZACKSESKI, Cristina. O Problema dos Presos sem Julgamento no Brasil. Anuário do Fórum Brasileiri de Segurança Pública. São Paulo, SP, ano 4, p. 88-99. Ago. 2010.

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